A educação nos Estados Unidos: do século 19 ao século 20 / Revista História da Educação / 2016

Este dossiê abrange uma coletânea de textos acerca da educação escolar nos Estados Unidos, com destaque à passagem do século 19 ao século 20. Os autores e os temas foram pensados a partir de dois objetivos principais: primeiro, informar o leitor brasileiro a respeito da educação norte-americana a partir de perspectivas históricas valorosas; segundo, focalizar educação escolar norte-americana em um período e nas dimensões que têm sido de especial interesse aos historiadores brasileiros da educação.

Embora a literatura acadêmica repita qual um mantra que a educação em nossas plagas seja produto da influência de modelos estrangeiros, destacadamente franceses e norte-americanos, o leitor brasileiro não conta com bibliografia consistente que ofereça informações e análises para confirmar, refutar ou, ainda, lapidar aquele postulado. É também crítica a ausência de títulos equivalentes em um momento em que os educadores e pesquisadores da educação não podem mais ignorar a inserção do Brasil na cena internacional.

O leitor não encontrará aqui intenções ou procedimentos comparativos a conduzir as análises. Pelo contrário; o que se pretende com este dossiê é o exercício de análise do outro com o máximo de respeito possível – no sentido cognitivo – à alteridade. Não se trata de proposta original no que intenta; afinal, é só isso que os historiadores da cultura vêm recomendando há décadas: estranhar, desfamiliarizar. Admitir, mesmo que por hipótese, que a juntada da farinha com o fermento nem sempre prenuncia o nosso pão francês de cada dia.

Aos autores foram estabelecidas regras singelas, truísmos para quem está familiarizado com as lidas historiográficas: apoiar os artigos em fontes originais e explorar a bibliografia disponível no que ela apresenta de mais consistente e relevante, não descurando de oferecer ao leitor indicações dos textos brasileiros que tratam do tema ou do seu em torno.

A escolha de mais autores brasileiros do que norte-americanos decorreu não só da intenção de quebrar a timidez ainda vigente nos nossos meios acadêmicos de estudar e pesquisar sobre o que se passa em outros países em matéria de educação; deriva também do interesse de reunir autores que têm acumulado conhecimento sobre a educação escolar nos Estados Unidos e, o que é especialmente interessante, autores que têm se utilizado de ferramentas conceituais e de método mais acuradas do que as verificadas em muitos títulos da historiografia educacional norte-americana.

Carla Simone Chamon apresenta o Paraíso das crianças: o kindergarten nos Estados Unidos entre meados do século 19 e início do 20. Nesse estudo, o que interessa em especial é a americanização do kindergarten alemão froebeliano. A autora informa que as primeiras instituições desse tipo apareceram nos Estados Unidos dos anos de 1850, por iniciativa de imigrantes alemães, uma vez que a presença desses imigrantes impactou estruturalmente a educação e as instituições de cultura norte-americanas; não casualmente, esse assunto reaparecerá em outro artigo do dossiê. Assim como veremos figuras como Pestalozzi, Stanley Hall, Dewey e outros que, sendo mobilizados por Chamon para compor a cena do início da educação infantil nos Estados Unidos, reaparecerão em outras cenas compostas pelos demais autores desse dossiê. Este trabalho explora de maneira competente os muitos conflitos envolvidos na implantação dos kindergartens nos Estados Unidos e as disputas no processo de incorporação dessa modalidade de instituição ao sistema público escolar norte-americano.

Como o próprio título indica, em As disputas pelo currículo e a renovação da escola primária nos Estados Unidos na transição do século 19 para o século 20, Rosa Fátima de Souza reconstitui os embates travados entre o fim do século 19 e o começo do século 20 em torno do currículo da escola elementar. Para a primeira cena, Souza traz os herbartianos, com destaque inovador aos irmãos McMurry, Francis Parker, John Dewey e Stanley Hall, envolvidos em contendas cuja relevância nacional indicia o lugar que estava sendo reservado à educação no projeto norte-americano rumo à hegemonia. Nesse artigo, o leitor ganha mais uma vez a oportunidade de desfazer a ideia de que teria havido uma “escola nova” onde estariam congraçados renovadores ou inovadores da educação norte-americana.

No seu artigo, Vera Teresa Valdemarin Modelos para a formação de professores nas páginas do Teachers College Record (1900-1921), percorre um caminho inédito para tratar com singularidade o muito visitado e ainda não devidamente equacionado tema da formação docente. Pelas páginas do periódico, Valdemarin dá a saber as posições em torno do assunto; aqui também, como há de se supor dado o caráter secularmente controvertido da matéria, a não homogeneidade de perspectivas sequer dentre o corpo docente do Teachers College. Apesar das divergências, ou em razão delas, o TCR mantém uma estratégia editorial que põe em circulação o intento comum de fazer do Teachers College da Columbia o centro de referência no campo da formação docente. As figuras destacadas neste trabalho reaparecerão neste dossiê inscritos em outras cenas.

Com o trabalho de Maria das Graças M. Ribeiro, A educação superior norteamericana: gênese de um modelo, o leitor é chamado a conhecer o processo de hegemonização de um modelo de ensino superior como elemento chave do processo de construção da hegemonia norte-americana. Além de documentos oficiais, como o Morril Act de 1862, Ribeiro atenta para posições críticas de grande relevo teórico e histórico, como a de Thorstein Veblen, por meio de quem é dado a compreender como se amalgamaram, nos Estados Unidos, as esferas pública e privada no campo do ensino superior. Vale destacar, ainda, o que a autora apresenta sobre os land-grant colleges que marcam o início da presença do Estado na educação superior, assunto que já vem estudando há um tempo.

Mirian Jorge Warde, em Periodismo educacional: Estados Unidos, do século 19 às primeiras décadas do século 20, apresenta uma visão abrangente dos periódicos lançados desde o século 19 até os anos de 1920 no âmbito da educação. São destacadas as tendências prevalecentes em aspectos tais como editores, locais de produção e destinatários potenciais. O artigo procura evidenciar a passagem da destinação predominantemente escolar para uma destinação mais diversificada na qual a especialização em subáreas do conhecimento, a expertise em pesquisa, a gramática acadêmica não são as únicas propensões, mas passam a estabelecer padrões de qualidade. Este artigo dialoga com os demais não tanto pela temática abarcada como também pelas pessoas, instituições e associações referidas.

Waye Urban, professor da renomada Universidade de Wisconsin, aqui apresenta um estudo sobre o tema de seu interesse: A Associação Nacional de Educação dos Estados Unidos da América. Urban oferece um entendimento sólido do que teria sido a trajetória da mais poderosa associação de educação nos Estados Unidos, em pleno funcionamento desde meados do século 19. Com este artigo, mais uma vez os dissensos, as polêmicas, os debates ocupam a cena ajudando, também, a desfazer as leituras esquematizadoras. Merecem destaques tensões que atravessam a NEA e que aparecem como motores de importantes confrontações: as de gênero e as étnico-raciais.

Mirian Jorge Warde – Professora visitante no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo – campus de Guarulhos. Pesquisador sênior do CNPq. E-mail: [email protected]


WARDE, Mirian Jorge. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 20, n. 48, Jan. / abr., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Estados Unidos: História e Historiografia / Anos 90 / 2015

“Quem será o americano, este novo homem”?

(Ou quantas Américas cabem na América?)

Uma outra América, um país sem nome!

Os Estados Unidos da América (EUA) constituem um estranho país! Para iniciar, trata-se de um país “sem nome”!

O historiador Leandro Karnal – da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – salientou, numa conferência proferida em nossa universidade, em 2010,1 que todos os países americanos têm nomes: eles podem ser associados a heróis nacionais (Bolívia, Colômbia), a acidentes geográficos (Uruguai, Paraguai), aos nomes que tinham estes territórios antes da conquista (Chile, México), ou a produtos identificados com os lugares (Argentina, Brasil). Os Estados Unidos, ao contrário, originários das Treze Colônias, pertencentes ao Reino Unido, constituíram-se em estados, resguardando suas autonomias, tendo como referência o continente – a América, que lutava pela independência – em oposição a uma opressão que vinha da Europa.

O país “sem nome” adotou como seu um nome que incluía outras terras e povos! É raro escutar de um estadunidense, referindo-se ao seu país, a expressão United States; bem mais comum é o uso da abreviatura U.S.A., pronunciada rapidamente, letra por letra. No entanto, America é, desde a Revolução de Independência, uma referência tão forte que mesmo os americanos de outros países se referem aos estadunidenses como “americanos” ou pelo menos “norte-americanos”2.

Mas o país, se não tinha um nome, construiu seus símbolos identitários e implementou processos políticos e sociais que lhe trariam a condição de superpotência apenas um século e meio depois de sua criação. E desde o início a formação do Estado nacional foi garantida a partir de unidades autônomas – os estados sucedâneos às colônias originais – que delegaram a um poder constituído na forma de uma federação.3 Muito antes disso, porém, já havia sido criada a representação máxima da nação, a bandeira. Primeiramente uma bandeira clandestina que representava as colônias por listras alternadas vermelhas e brancas, adotada por Washington, em 1776, mas ostentando no quadrante superior esquerdo o desenho da bandeira britânica, substituído definitivamente pelo retângulo azul, com as estrelas simbolizando os estados, criada pela lei de quatorze de junho de 1777. Deram-lhe nomes: Stars and Stripes, descritivo; Old Glory, apologético!

Esta marca inconfundível dos Estados Unidos ainda não tinha cem anos quando foi negada pelos rebeldes sulistas que fizeram a secessão dos Estados Confederados da América. Criaram sua própria bandeira, com fundo, listras e estrelas noutro arranjo. E ela é ainda hasteada em estados do Sul, muitas vezes de forma contraditória, ao lado do estandarte da União. Além disso, foi parodiada por Mark Twain, que compôs um estandarte de listras vermelhas e negras, ostentando num retângulo preto caveiras, ao invés das estrelas; para ele, a nação da liberdade convertera-se num entreposto da pirataria mundial.

Outra glória máxima da nação é o hino! Além do hino dos Estados Unidos, de 1814, tornou-se muito popular outra composição, God Bless America (Deus Abençoe a América), de Irving Berlin, que a partir de 1938 tornou-se um “hino não oficial” do país, popularizando-se muito nos tempos de guerra que se seguiram. Parte da letra diz: “From the mountains / To the prairies / To the oceans / White with foam / God bless America / My home sweet home” 4.

Mas, assim como a bandeira, esse hino foi glosado pelo músico e cantor Woody Guthrie; ligado ao cancioneiro folk desde jovem, tornou-se famoso pelas letras de protesto depois da Grande Depressão, quando aderiu ao Partido Comunista. Em 1940, ele escreveu God Blessed America for Me, fazendo um contraponto mordaz ao hino. Mais tarde ele modificaria um pouco a letra, renomeada como This Land is Your Land, da qual reproduzimos um trecho: “When the sun came shining, and I was strolling / And the wheat fields waving and the dust clouds rolling / A voice was chanting, As the fog was lifting, / This land was made for you and me”.5 Sempre com um violão com os dizeres “This machine kills fascists”, os versos de Woody expunham a terra da promissão.

No entanto, afinal, que país era (é) esse? Quais encantos exerceu (exerce) aos que o conheceram (conhecem)? Quais as decepções ou revoltas que provocou (provoca) interna e externamente?

“Quem é o americano, este novo homem”!

John Hector St. John de Crèvecœur – um francês que escolhera viver em New York – na sua Letter III dos anos 1760 fez esta pergunta: “What then is the American, this new man? He is either a European, or the descendant of a European, hence that strange mixture of blood, which you will find in no other country”.6 Este “novo homem” que gerou tais indagações seria mais tarde recuperado pela Literatura como um ser original, muito mais adequado aos embates de uma terra por construir que seus avós do Velho Mundo. Pode-se especular que em Crèvecœur confluíssem uma tradição puritana – associada a uma busca pela Terra Prometida, que mais tarde resultaria na doutrina do Destino Manifesto – e um pragmatismo burguês de políticos e pensadores que literalmente projetaram um país.

Com sua Declaração de Independência de quatro de julho de 1776, estes “novos homens” emergiam da Revolução Americana7 para a construção de uma nação que passava, antes que nada, pela sua identificação como “um povo”. Dizem os membros congressistas dos Treze Estados:

When in the Course of human events, it becomes necessary for one people to dissolve the political bands which have connected them with another, and to assume among the powers of the Earth, the separate and equal station to which the Laws of Nature and the Nature’s God entitle them, a decent respect to the opinions of mankind requires that they should to declare the causes which impel them to the separation.8

Destacamos que, se era alegada uma legitimação divina, aparecia também em maiúsculas as Leis da Natureza! O “americano” político tinha sido gestado pela sua “natureza americana”.

Para esse país tornado independente pelas armas “americanas”, em dezessete de setembro de 1787, seus Founding Fathers 9 assumiram a representação de “Povo dos Estados Unidos” quando escreveram uma Constituição que vige até os dias atuais. Já o seu Preâmbulo, clama por um apelo coletivo:

We the People of the United States, in Order to form a more perfect Union, establish Justice, insure domestic Tranquility, provide for the common defence, promote the general Welfare, and secure the Blessings of Liberty to ourselves and our Posterity, do ordain and establish this Constitution for the United States of America.10

Mais tarde a ratificação deste diploma passou pela elaboração da Bill of Rights – a Declaração de Direitos – formada por dez emendas, também elas em vigor atualmente. É à Primeira Emenda em que se atribuem os fundamentos da democracia “americana”:

Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances”.11

O “novo homem” inaugurava-se em nome da liberdade, da igualdade, dos direitos universais. Mas estes “americanos” não eram tão “iguais”, ou tão “livres”, ou não gozavam todos dos mesmos direitos. Neste projeto de nação em que os políticos dos ilustrados estados do Norte atraíram estrangeiros de todas as partes para suas grandes cidades, ao mesmo tempo em que lhes facilitaram o acesso às generosas terras do Oeste, conformavam-se campos de conflito: burgueses e operários nos centros urbanos, fazendeiros e indígenas, nos novos territórios. Por outro lado, conviviam com os aristocratas dos estados do Sul, com suas grandes plantations de algodão tocadas por escravos africanos, com cinturões de brancos pobres sitiantes.12 Os acertos de tantas disparidades se faziam com a expansão do país às custas do extermínio dos que fossem empecilho: povos indígenas, franceses, espanhóis, mexicanos… A doutrina do Destino Manifesto avançava as fronteiras dos Estados Unidos, mas o melting pot que formaria o “americano” decerto não incluía estes outros povos.

Lutas pelos direitos civis dos afrodescendentes, reconhecimento dos povos indígenas remanescentes, imigração clandestina de latino-americanos e orientais, imperialismo e opressão externos são ainda dilemas da sociedade estadunidense que não foram garantidos pelos diplomas da sua fundação. Ainda não sabemos o que é um americano, ou em que ele difere dos demais americanos. Afinal, que América é esta, dentro da nossa América?

A outra América entre nós!

O Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul há muito tempo destaca como área de estudos a História da América. Em tempos mais pregressos, as disciplinas obrigatórias de História da América incluíam os conteúdos de História dos Estados Unidos, desde os tempos coloniais até os contemporâneos. Assim, era possível uma comparação entre os processos de colonização, as revoluções de independência e formações dos Estados nacionais, a inserção no capitalismo mundial etc. Observava-se, no entanto, que a História dos Estados Unidos merecia um destaque maior, até porque os temas relativos à História Contemporânea chamavam a atenção para uma superpotência cuja história de antanho não vinha sendo trabalhada com a intensidade merecida. Numa reunião de docentes que ministravam História da América na UFRGS, realizada em 1990, a professora Heloísa Jochims Reichel sugeriu a criação de uma disciplina específica de História dos Estados Unidos; os demais professores – Susana Bleil de Souza, Claudia Wasserman, Helen Osório e Cesar Augusto Barcellos Guazzelli – apoiaram esta proposta, que foi mais tarde referendada pelo Departamento de História.

Desde então, História dos Estados Unidos da América faz parte do currículo de disciplinas eletivas do Curso de História, mas há reparos a fazer. O primeiro deles diz respeito a uma dupla mudança na inserção dos conteúdos ministrados: aos tempos em que eles faziam parte dos programas de História da América, eram obrigatórios para todos os alunos do curso; no formato que vige desde 1990, eles se tornaram opcionais! Além disso, na medida em que História dos Estados Unidos da América é eletiva, os professores que a assumem têm também uma ampla liberdade de escolha em relação aos temas que desenvolvem. (História dos Estados Unidos da América já foi ministrada por Heloisa J. Reichel, Susana B. de Souza e Cesar A. B. Guazzelli, tanto de forma sucessiva como compartilhada.)

Em 2003, Cesar A. B. Guazzelli foi contemplado com Bolsa Produtividade do CNPq para desenvolver o projeto de pesquisa Senhores da guerra em espaços fronteiriços: o norte do México e o Rio da Prata na primeira metade do século XIX (c.1810-c.1850); este estudo comparativo inaugurava as pesquisas sobre História dos Estados Unidos na UFRGS. Neste mesmo ano, Guazzelli também ministrou pela primeira vez a disciplina de História dos Estados Unidos da América, realizando um corte temporal entre a Independência e o final do século XIX. A esse projeto, foram integrados dois acadêmicos do Curso de História que desde o ano anterior estavam associados aos estudos sobre fronteiras: Arthur Lima de Avila e Renata Dal Sasso Freitas. Fluentes em inglês, cada um deles tratou de um tema específico em relação ao espectro mais amplo da pesquisa: Arthur Avila assumiu a investigação sobre Fronteiras nos ensaios de Frederick Jackson Turner, cuja obra nunca era traduzida em português; Renata Freitas dedicou-se aos temas fronteiriços na obra de James Fenimore Cooper, quase toda ela inédita em português.

Os dois bolsistas deram continuidade aos seus trabalhos com investigações próprias derivadas destas atividades. Arthur Lima de Avila realizou o Mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS como bolsista do CNPq, defendendo em 2006 a dissertação intitulada E da Fronteira veio um Pioneiro: a “frontier thesis” de Frederick Jackson Turner (1861-1932), sob a orientação de Cesar Augusto Barcellos Guazzelli. Ingressando no Doutorado do mesmo Programa, Arthur Ávila desenvolveu sua Tese Território contestado: a reescrita da história do Oeste norte-americano (c.1985-c.1995), com apoio do CNPq, ainda sob orientação de Cesar Guazzelli. Durante o Doutorado, realizou estágio na John Hopkins University. Em 2011, o trabalho foi contemplado com o Prêmio CAPES de melhor Tese em História de 2010.

As pesquisas sobre Cooper renderam a Renata Dal Sasso Freitas a dissertação de Mestrado Páginas do Novo Mundo: um estudo comparativo entre José de Alencar e James Fenimore Cooper na formação dos Estados nacionais brasileiro e norte-americano no século XIX, realizada no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS; ela recebeu bolsa do CNPq, sendo concluída em 2008, sob orientação de Cesar Guazzelli. Neste mesmo ano, Renata Freitas iniciou seu Doutorado no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro; em 2012, concluiu a Tese intitulada “Love of country”: os romances históricos de James Fenimore Cooper sobre a Guerra de Independência dos Estados Unidos (1821-1824), com apoio do CNPq; nesse período estagiou na Yale University, em função de suas pesquisas.

Atualmente, Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, Arthur Lima de Avila e Renata Dal Sasso Freitas coordenam o projeto de pesquisa América: identidades e alteridades: a escrita da História da América Hispânica nos Estados Unidos (c.1900-c.1930) apoiado em Edital Universal do CNPq. Essa pesquisa reúne diversos pesquisadores e bolsistas da UFRGS e de outras universidades, todos com investigações relacionadas e temas de História dos Estados Unidos da América. 13

A outra América em Revista!

Salientamos até agora algumas controvérsias que gera a História dos Estados Unidos, esta “outra América” que dá nome a um país tão diverso das demais nações americanas. Este irmão do Norte, cuja cultura de massas penetrou com uma intensidade talvez maior que sua influência na política ou sua dominação econômica imperialista, recebe atenções mínimas da historiografia nacional. Nesse sentido, nossa intenção de organizar este dossiê para a revista Anos 90 buscou cumprir uma dupla missão: 1) dar continuidade a um campo de conhecimento que vem se afirmando entre nós já há algum tempo; 2) apresentar para os historiadores que a História dos Estados Unidos tem uma grande possibilidade de se desenvolver em nosso meio.

Para este número da revista Anos 90, compusemos este dossiê com seis artigos inéditos, abordando aspectos históricos bem variados dos Estados Unidos da América.

O primeiro artigo tem como título A Quem Pertence o Passado Norte-americano? A controvérsia sobre os National History Standards nos Estados Unidos (1994-1996), de autoria do professor Arthur Ávila (UFRGS). Este texto trata da controvérsia pública sobre os National History Standards, um conjunto de propostas que visavam a auxiliar na reforma do Ensino Básico nos Estados Unidos, entre 1994 e 1996. No texto, enfatizam-se as respostas dos setores conservadores às diretrizes propostas, especialmente sua rejeição àquilo que consideravam um “sequestro da história” pelas hostes “multiculturais”, “politicamente corretas” e “antiocidentais”. Com isso, argumenta-se que tais setores buscavam a construção de um passado estável e sem conflitos justamente como contraponto a um presente que se apresentava cada vez mais instável e conflituoso, assegurando, assim, uma ideia bastante limitada sobre quem eram os personagens da história norte-americana e o que ela deveria significar.

Segue-se Os Estados Unidos entre o nacional e o transnacional: o saber produzido pela circum-navegação científica da U. S. Exploring Expedidion (1838-1842), de autoria da professora Mary Anne Junqueira (USP). Aqui trata-se de analisar alguns aspectos do conhecimento moderno expresso no relato de viagem da primeira circum-navegação científica, U. S. Exploring Expedition, entre 1838-1842. Os conjuntos de saberes constituídos pela expedição estiveram entre a afirmação nacional e os aspectos transnacionais próprios da época. Revela-se o propósito norte-americano no que diz respeito à inserção de quadros do país na rede de conhecimento liderada pelos europeus, discutindo com os seus pares do velho continente, mas também concorrendo com eles.

O trabalho seguinte é de autoria do professor Vitor Izecksohn (UFRJ) e tem como título A experiência miliciana norte-americana: antimilitarismo ou pragmatismo? Nesse artigo, o autor discute a experiência miliciana nas colônias inglesas da América do Norte e nos Estados Unidos durante a primeira república. Enfatizo o papel do antimilitarismo como principal aspecto da experiência militar anglo-americana. Relaciono essa perspectiva à aversão ao despotismo, derivada da tradição política inglesa e ao controle civil sobre os militares. Sublinho as dificuldades encontradas para a criação de um exército profissional e os problemas de coordenação entre o poder central e as autoridades locais e estaduais.

O artigo de Valeria Lourdes Carbone (UBA) tem como título El Movimiento afro-estadounidense contra el Apartheid sudafricano: un reflejo de la lucha de la comunidad negra a nivel doméstico y su impacto sobre la política exterior de los EE.UU. Esse texto tem como proposta analisar como – e em que medida! – o ativismo político afro-estadunidense contra o Apartheid sul-africano, após décadas de militância e organização, passou a influenciar as relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a África do Sul. Isto permite ver como o movimento afro-americano foi recebido pelo governo Reagan; além de observar como qual era a real influência que aquele movimento podia ter ao desafiar certos aspectos da política externa do governo, destaca-se também a possibilidade de canalizar demandas próprias e reivindica-las internamente.

O texto Sobrevoando histórias: sobre índios e historiadores no Brasil e nos Estados Unidos foi escrito por Soraia Sales Dornelles e Karina Moreira Ribeiro da Silva e Melo, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). As duas historiadoras abordam aspectos similares entre as produções brasileira e estadunidense sobre os respectivos grupos indígenas. Salientam que em ambos os casos as produções históricas feitas sobre os habitantes nativos tiveram importância objetiva nas políticas públicas relativas a eles. Destacam ainda que muitas influências de natureza complexa agem na formulação de conhecimentos sobre os povos indígenas do Brasil e dos Estados Unidos. O objetivo das autoras é perseguir uma abordagem comparativa entre as construções dos discursos históricos sobre os indígenas nos dois países, buscando, a partir disso, mapear os possíveis intercâmbios científicos sobre o tema.

Martha De Cunto (UBA) escreveu Chase-Riboud: Sally Hemings: Oralidad, escritura y la resignificación del passado, em que analisa o romance histórico de Chase-Reboud dentro de tradição literária negra. O trabalho relaciona o romance com as primeiras narrativas dos escravos, mostrando as continuidades e ruptura. Indaga sobre as representações dos principais personagens: Langdon, a escritura; Sally, a oralidade; e James, a cultura e a comunidade negra. O texto discute a legitimidade, o valor histórico e a veracidade dos discursos escritos, assim como aborda a desestabilização do binário “realidade ficcional” e “realidade” histórica, denunciando a forma como a historiografia dos brancos dominadores apresenta os negros marginalizados.

O último artigo, Entre Cabanas e Diligências: os Fronteiriços na Western Fiction de Bret Harte e Ernest Haycox, é de autoria conjunta de Cesar Guazzelli e Renata Freitas (UFRGS). O texto evidencia como a fronteira americana em seu avanço inexorável para Oeste produziu obras ficcionais muito carregadas de emoção, mesmo passados os tempos épicos dos pioneiros. Mais que isso, elas recriaram os seus dramas fora daquelas paisagens ocupadas pelos grandes rebanhos de gado e seus cowboys, mas justamente nos núcleos civilizatórios que já se haviam instalado no Oeste. A mitologia dos pioneiros mudava para uma realidade menos glamourizada, mas talvez mais verossímil. Assim, o que propomos é uma leitura comparada de dois contos que se reportam ao avanço da fronteira “civilizatória” para o Oeste: The Outcasts of Poker Flat, de Bret Harte, escrita em 1868 (HARTE, 2001) e Stage to Lordsburg, de Ernest Haycox, escrita em 1939.

Essas são algumas visões sobre a História dos Estados Unidos, para que talvez – parafraseando Crèvecœr – compreendamos um pouco melhor quem é aquele “novo homem”, e se este outro “americano” está tão distante assim de nós.

Notas

1. Esta fala aconteceu na abertura do Ciclo de Cinema – Curso de Extensão em Cinema, História e Educação USA não abusa! Os Estados Unidos da América em Tempos de Guerra. No mesmo ano, esta conferência de Karnal foi publicada como texto: Identidade e Guerra: Estados Unidos da América e os Conflitos (GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos et al. Tio Sam Vai à Guerra. Porto Alegre: Letra & Vida, 2010, p. 9-16).

2. Durante as guerras de independência, a expressão “americano” foi usada por todo continente em oposição aos colonizadores. Também não custa lembrar que a América do Norte – vista aqui como um subcontinente! – inclui o Canadá e o México.

3. Esta organização política pode ser acompanhada pelas publicações do jornal The Federalist, mais tarde reunidas em um livro homônimo: HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Brasília: Editora da UnB, 1984.

4. “Das montanhas / Para as pradarias / Para os oceanos / Branco com espuma / Deus abençoe a América / Meu lar doce lar”. Tradução nossa.

5. “Quando o sol apareceu brilhando, e eu estava passeando / E os campos de trigo ondulando e as nuvens de poeira rolando / Conforme a fumaça se levantava uma voz cantava / Esta terra foi feita para você e para mim”. Tradução nossa.

6. “Quem é afinal o americano, esse novo homem? É europeu ou descendente de europeu, e daí aquela estranha mistura de sangue que não é encontrada em nenhum outro país”. Tradução nossa. Uma série de cartas escritas por Crèvecoeur foram reunidas e publicadas em 1782, como Letters from na American Farmer. Ver: VANSPANCKEREN, Kathryn. Outline of American Literature. Dules (VA): United States Departament of State, 1994, p. 18.

7. O historiador marxista estadunidense Aptheker não duvida em destacar a Revolução Americana como “uma daquelas grandes guerras realmente revolucionárias”. APTHEKER, Herbert. Uma Nova História dos Estados Unidos: a Revolução Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 17.

8. “Quando no Curso dos eventos humanos torna-se necessário para um povo dissolver os laços políticos que o tem ligado a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, estatuto igual e separado que lhe asseguram as Leis da Natureza e de Deus, o decente respeito às opiniões da humanidade requer que sejam declaradas as causas que os impeliram à separação”. Tradução nossa. FOUNDING FATHERS. The Declaration of Independence and The Constitution of the United States of America. New York: SoHo Books, 2012.

9. Pais Fundadores são chamados os congressistas que elaboraram a Constituição dos Estados Unidos e as Emendas que formam a Declaração de Direitos do Cidadão.

10. “Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a Tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o Bem-Estar geral, e garantir para nós e para os nossos Descendentes as Bênçãos da Liberdade, ordenamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América”. Tradução nossa. FOUNDING FATHERS, op. cit.

11. “O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas”. Id. Ibid.

12. O contraste entre o Norte capitalista e o Sul escravocrata levariam o país à trágica Guerra da Secessão. Para Barrington Moore, ela teve tanta importância quanto as grandes revoluções capitalistas do século XVIII. MOORE JR., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1983. Sobre o tema, ver também: KOSSOK, Manfred et al. Las Revoluciones Burguesas. Barcelona: Crítica, 1983.

13. Os docentes colaboradores são os seguintes: Teresa Cribelli, Ph.D. em História pela Johns Hopkins University, professora de História na University of Alabama; Fabrício Pereira Prado, Ph.D. em História Latino-Americana pela Emory University, professor de História na Roosevelt University, USA; Mariana Flores da Cunha Thompson Flores, Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio doutoral na Universitat Pompeu Fabra, de Barcelona, professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Joana Bosak de Figueiredo, Mestre em História e Doutora em Literatura Comparada pela UFRGS, com estágio doutoral na Universitat de Barcelona, professora de História da Arte na UFRGS; Susana Bleil de Souza, Doutora em História pela Université de Paris X – Nanterre, de professora de História na UFRGS e professora convidada da Universidad de la República de Montevidéu; Carla Menegat, Doutoranda em História na UFRGS, com estágio doutoral na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IFSUL); Rafael Hansen Quinsani, Doutorando em História na UFRGS.

Referências

APTHEKER, Herbert. Uma Nova História dos Estados Unidos: a Revolução Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969

FOUNDING FATHERS. The Declaration of Independence and The Constitution of the United States of America. New York: SoHo Books, 2012

HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Brasília: Editora da UnB, 1984.

KARNAL, Leandro. Identidade e Guerra: Estados Unidos da América e os Conflitos. In. GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos et al. Tio Sam Vai à Guerra. Porto Alegre: Letra & Vida, 2010. p. 9-16.

KOSSOK, Manfred et al. Las Revoluciones Burguesas. Barcelona: Crítica, 1983

MOORE Jr., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

VANSPANCKEREN, Kathryn. Outline of American Literature. Dules (VA): United States Departament of State, 1994.

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli – Professor Titular do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Arthur Lima de Ávila – Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos; ÁVILA, Arthur Lima de. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 41, jul., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Influência dos Estados Unidos: Mundo e Brasil / Tempo / 2008

O presente dossiê partiu do desconcerto diante de um evidente paradoxo: a inquestionável influência dos Estados Unidos no mundo, e no Brasil em particular, de um lado, e o desinteresse e o conseqüente lento desenvolvimento dos estudos de história dos Estados Unidos nas universidades brasileiras, de outro. Parte desse descompasso deve-se certamente ao acesso restrito à produção historiográfica estadunidense, ao desinteresse das editoras especializadas e ao alto custo das traduções. A escassez de material bibliográfico em português, por sua vez, dificulta o ensino de história dos Estados Unidos nos cursos de graduação e faz com que a história desse país não seja privilegiada nos programas de História das Américas, cuja ênfase, em geral, é posta na história da América Latina, concedendo-se, inclusive, pouca atenção à dinâmica das relações interamericanas.

Com o objetivo de estimular discussões sobre essa história tão desconhecida quanto estereotipada, reunimos nesse dossiê artigos de quatro autores norte-americanos e de uma brasileira, acompanhados por uma entrevista com a atual presidente da American Historical Association (AHA). No conjunto, eles ajudam a visualizar linhas de investigação e reflexão muito distantes tanto de uma historiografia nacionalista dominante até os anos 1950 e marcada pelas idéias do consenso interno e da excepcionalidade da experiência norte-americana, produzida por norte-americanos, quanto de uma historiografia brasileira sobre os Estados Unidos, que igualmente elide a diversidade e os conflitos sociais e políticos, ao valorizar a continuidade de traços negativos e perversos de suas políticas internas e externas. Já é hora de superar esses paradigmas que sustentam uma cultura histórica e um imaginário sobre os Estados Unidos que não convidam à reflexão e à pesquisa.

O artigo de Mae Ngai trata de imigração e controle de fronteiras, tema fundamental da história norte-americana e uma das questões mais candentes no debate político, posto que associada à discussão da identidade nacional desde a fundação da nação. O período recoberto pelo artigo é o dos anos 1921 a 1965, quando teve vigência uma legislação que estabelecia quotas para imigrantes segundo a nacionalidade. A autora demonstra o quanto essa política imigratória se fez acompanhar do reforço do controle das fronteiras terrestres, especialmente a do sul, e da deportação de imigrantes considerados ilegais, cujo número se elevou de modo extraordinário, justamente em função da importante mudança conceitual que se operou então. Atingindo indivíduos já inseridos na sociedade muitas vezes por longo tempo, a deportação e sua revisão, implementadas de modo diferenciado de acordo com a nacionalidade, envolvia avaliações sobre adequação social e aptidão para a cidadania, ou seja, critérios qualitativos supostamente superados pelo princípio numérico que regia a política em vigor. Ao recuperar o debate político sobre princípios e direitos que a revisão da lei suscitou, a autora nos dá acesso aos conflitos vividos pela sociedade norte-americana naquele contexto.

No segundo artigo, Gary Gerstle articula guerra e imaginário político norte-americano, ao analisar produções cinematográficas e o sucesso editorial de obras que se dedicaram a recuperar, nos anos 1990, as duas guerras mais populares da história norte-americana: a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial. O autor percebe o investimento de figuras como o diretor Spielberg e o historiador Sthephan Ambrose em filmes e séries como “O resgate do soldado Ryan” e Band of Brothers como parte do movimento de reconciliação dos liberais com o nacionalismo, depois do trauma do Vietnã. Através da figura do soldado-cidadão, central nessas narrativas épicas, busca-se realçar sua disposição cívica e moral, valorizada em geral pelos conservadores, de modo a novamente associar a guerra ao sentido de missão e virtudes democráticas.

Os artigos de David Chappell e Jessica Graham relacionam ideologia, religião e relações raciais. O primeiro enfoca o pensamento de líderes do movimento pelos direitos civis, refutando a tese, muito difundida, de que Martin Luther King Jr. tenha adotado uma perspectiva gradualista nessa matéria, o que o colocaria num pólo oposto ao de outros líderes negros considerados radicais, que rejeitaram qualquer projeto de integração ou acomodação com a América branca. Chappell demonstra, valendo-se de grande erudição, que o evangelismo profético estava na base da desobediência civil pregada por King e outros líderes negros que, ao contrário dos liberais, tinham uma visão extremamente negativa da natureza humana e da ordem social. Não comungavam, portanto, da idéia de que a discriminação racial, por sua disfunção e irracionalidade, teria seus dias irremediavelmente contados, considerando que a redenção dessa ordem só poderia advir da ação dos próprios negros. A ênfase do autor no poder mobilizador do discurso profético parece irrefutável, dada a disciplina e a firmeza demonstradas pelas massas negras na luta pelos direitos civis que, por fim, obrigou o governo a agir, tornando ilegal a segregação racial.

Jessica Graham se vale do boxe, esporte muito popular e carregado de forte simbolismo relacionado à nação, para apontar mudanças nas sensibilidades coletivas nos Estados Unidos decorrentes da ascensão do nazismo. Analisando a clara mudança na disposição do público em relação ao boxeador negro Joe Louis por ocasião das duas lutas que travou contra o alemão Max Schmeling em 1936 e 1938, a autora percebe um desgaste do paradigma racialista e maior abertura para inclusão do negro na comunidade nacional imaginada na segunda metade da década de 1930.

Representando os estudos norte-americanos no Brasil, Mary Anne Junqueira retrocede ao século XIX para recuperar um episódio muito pouco conhecido: a primeira expedição de circunavegação de caráter científico lançada pela Marinha dos Estados Unidos em 1838. Mary Junqueira mostra-nos que a então jovem nação norte-americana, antes mesmo de consolidar suas fronteiras terrestres, já se lançava nos mares, revelando não só suas ambições no terreno econômico, militar e geopolítico, mas também a preocupação em construir sua hegemonia no campo científico e cultural. A expedição apresenta-se assim como um empreendimento de múltiplas faces. Além do grande feito de constatar que a Antártida era um continente separado, de mapear costas e inúmeras rotas marítimas, a expedição coletou um número elevadíssimo de artefatos culturais, espécimes da fauna, da flora, amostras de minerais e, o que é muito significativo, constituiu uma rede de contatos entre atores-chave neste intercâmbio internacional: oficiais, diplomatas, cientistas, missionários. Desse modo, a autora nos ensina que muito antes da virada do século XIX para o XX – momento costumeiramente assinalado como início da extroversão dos Estados Unidos –, esse país já procurava firmar seus interesses globais frente às potências européias.

Por fim, a entrevista com Barbara Weinstein, a primeira “brazilianista” a assumir a presidência da AHA, centenária associação de historiadores dos Estados Unidos, descortina o universo extremamente plural de interesses e tendências da historiografia estadunidense, valorizando o intercâmbio com historiadores de outros países, particularmente o Brasil.

Cecília da Silva Azevedo – Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]


AZEVEDO, Cecília da Silva Apresentação. Tempo. Niterói, v.13, n.25, 2008. Acessar publicação original [DR]

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Estados Unidos | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2008

A Revista Eletrônica da ANPHLAC, ao lançar o seu sétimo número, com o dossiê: Estados Unidos, consolida as mudanças que ocorrem desde 2002, ano do Encontro em Belo Horizonte, quando a Associação passou a congregar não apenas pesquisadores e professores de História da América Latina, mas também os de História dos Estados Unidos e do Canadá.

Tal inclusão é de capital importância para os interessados na História daquela parte do globo e para os que buscam a compreensão das Américas em geral. O dossiê demonstra que surge, no âmbito da História das Américas, trabalhos de qualidade sobre a História dos Estados Unidos, realizados por brasileiros; em sua maioria pesquisadores que se defrontam com o predominante desconhecimento da academia brasileira com relação à historiografia clássica norte-americana e com as dificuldades de acesso à documentação pertinente. Leia Mais