A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores | Jorge Ferreira e Maria de C. Soares

Para os irmãos Lumiére, o cinema seria uma curiosidade passageira. Reza a lenda que um dos inventores do cinematógrafo (1895), ou o pai dele, chegara a proferir: “o cinema é uma invenção sem futuro”. O palpite não vingou e, em pleno alvorecer do século XXI, a captação de imagens em movimento sobrevive muito bem, seja em fotogramas, seja nos seus avatares em novas tecnologias (do vídeo analógico aos processos digitais).

E o cinema não apenas teria um futuro, mas ainda deixaria, em sua secular existência, um rastro imensurável de registros desse próprio tempo, bem como de tempos mais ou menos remotos, bem ou mal reinterpretados em celulóide. Presentificando outras etapas da história, o cinem também tornou-se uma invenção com o olho (câmera) no passado. O problema é que os historiadores, em princípio, não perceberam isso. Leia Mais

O Brasil Republicano (vol.5). O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-2016) | Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves

É inegável que a História do Tempo Presente desponta como um dos campos que mais cresce na historiografia brasileira desde a última década. Ao contar com objetos de pesquisa até então poucos explorados e ao propor instigantes debates em torno da função social do historiador, esse campo vive um momento de intensa produção intelectual. Na sua busca por encontrar um espaço particular dentro de um campo historiográfico nacional já demarcado por correntes consolidadas, como a História Política, a História Cultural e a História Social, a História do Tempo Presente aparenta estar conquistando grande receptividade, tanto entre historiadores e historiadoras de gerações mais recentes, como entre nomes já consagrados da área que buscam tecer diálogos com essa vertente. Leia Mais

Censura e propaganda: os pilares básicos da repressão | Carlos Fico

O presente texto divide-se em seis tópicos, dos quais se faz presente a narrativa do processo da ditadura militar no Brasil: a) introdução; b) Espionagem; c) Polícia Politica; d) Censura; e) Propaganda; f) Conclusão; Logo na Introdução o autor aborda a questão teórica da historia do regime militar, enfatizando que há varias maneiras de se contar a história, partindo por diversas perspectivas. Mostrando o interesse pelo período da ditadura militar no Brasil que não é recente, destacando dois aspectos interessantes: “a facilidade com que a desarticulada conspiração se tornou vitoriosa, no dia 1º de abril de 1964 e o pasmante crescimento da repressão – que prendeu arbitrariamente e torturou desde o primeiro momento, e não somente depois de 1968…” (p.169). Depois temos o relato a partir de fontes de jornais como O Correio da manha e outros, que demonstram variam denuncias sobre as torturas. Essas perspectivas históricas de abordagem são ressaltadas na introdução onde vemos que “existem miudezas que são fundamentais para o entendimento da história , tanto algumas explicações estruturais tendem a claudicar quando confrontadas com os fatos discretos”. (p. 173), onde vemos a importância das fontes em questão.

No tópico seguinte, temos A Espionagem, que relata a experiência de Golbery do Couto Silva, que foi responsável pelo recolhimento de informações anterior ao Golpe militar. Contudo é Costa e Silva que em 1965 com o Ato Institucional nº2, “aumenta o prazo para as cassações e suspensões de direitos políticos” (p.175). Havia vários órgãos responsáveis pela espionagem: O Sisni: Sistema Nacional de Informação; Aesi: Assessoria Especial de Seguranças e Informações; CGI: Comissão Geral de Investigação; Sissegin: Sistema de Segurança Interna, dentre outros. Uma questão relevante abordada é que muitos foram prejudicados, por causa das interpretações que esses órgãos poderiam fazer, pelo fato por exemplo de uma simples pichação em um determinado muro poderia “conter ameaças à segurança nacional” (p.180).

Durante a ditadura, além dos casos óbvios de perseguição, prisão, tortura e morte de militares e quadros organizados, praticados pela polícia política, milhares de pessoas foram espionadas, julgadas e prejudicadas pela comunidade de informações. (FICO, 2007, p.181)

Assim, a espionagem que garantiria a manutenção da ordem no país e o domínio do governo militar, também não estava isento de erros e falhas. Pois cada órgão possuía uma determinada autonomia, contudo estavam interligados.

No tópico Policia Politica o autor destaca “o endurecimento da repressão a partir do Ato Institucional nº5, de dezembro de 1968” (p.181). Esse ato foi motivado pela insatisfação da linha dura, que viam as punições sendo barradas pela justiça, por meio de habeas corpus. O órgão citado acima, Sissegin foi implantado que propunha diretrizes uniformes para cada estado brasileiro. Assim eram criados os Condi: comandos de defesa interna; Codi: Centro de Operações de Defesa Interna; DOI: Destacamento de Operações de Informações; todos sobre o comando do Exercito respectivo, ou ZDI: zona de defesa interna. Mais tarde com a morte do jornalista Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, que morreram no DOI de São Paulo em 17 de janeiro de 1976, o órgão Sissegin foi se desestruturando.

No tópico Censura, o autor desperta o leitor ao se referir que antes da ditadura já havia censura, onde este afirma: “não se pode falar propriamente no “estabelecimento” da censura durante o regime militar porque ela nunca deixou de existir no Brasil”. (p.187). “A censura estava em todos os lugares” Além da imprensa e mídia, as atividades artísticas, culturais, e recreativas eram reguladas pela ditadura, como o cinema, o teatro, o circo, os bailes musicais, as representações de cantoras em casas noturnas, etc.” (p.189) foram estabelecidas diversas leis de segurança nacional, que abriram margem e fortificadas pelo Ato institucional nº5, para censurar a imprensa. Tudo o que fosse contra a defesa da moral e dos bons costumes, estipulados pela ditadura militar no Brasil, deveria ser censurado.

No tópico Propaganda, temos a exaltação do Brasil, como o país que ia pra frente no desenvolvimento graças à politica militar. Contudo, essa propaganda era negada pelos militares, mas era formada pelo jargão: “motivar a vontade coletiva para o esforço nacional de desenvolvimento” (p.196). “Na verdade, Otávio Costa negava, em entrevistas aos jornais da época, que estivesse fazendo divulgação do governo ou propaganda politica: estava, apenas, estimulando a “vontade coletiva para o fortalecimento do caráter nacional”. (p.196). A televisão passava por uma grande fase de desenvolvimento no País, e Otavio Costa a utilizou com pequenos filmes que eram divididos em: “natureza educativa e caráter ético-moral” (p.197) enaltecendo assim o governo militar da época.

Na Conclusão o autor destaca que os sistemas que compunham o aparato da ditadura militar não foram inventados no regime militar no Brasil, mas que foram reinventados, de tal maneira que foram até copiados fora do Brasil. Esse aparato não foi harmônico nem integrado, onde “os setores estavam que praticavam a tortura e o assassinato politico estavam bastante cingidos aos DOIs e aos Dops” (p.199), mas claro que os órgãos reinventados não estavam também sobre completa autonomização. O autor ressalta que “a anistia de 1979 foi reciproca, isto é, os torturadores também foram anistiados.” (p.200) também interessante destacar que alguns órgãos permanecem hoje, como por exemplo o SNI, sistema Nacional de Informação, hoje é a ABIN que é a Agencia Brasileira de Inteligência, sendo “ainda mal estruturada, não havendo mecanismos sociais de controle efetivo, através do Congresso Nacional, de suas atividades, e, de tempos em tempos, temos noticias de atividades escusas de espionagem no país” (p.200).

Concluímos portanto que o presente texto se faz de fundamental importância para compreendermos o sistema politico brasileiro, dado pelo regime militar de 1964 a 1985, observando novas perspectivas abordadas pelo autor Carlos Fico, alargando assim a nossa zona de conhecimento do processo histórico em questão. Percebendo que os órgãos criados, mesmo assim eram falhos, onde como exemplo, podemos citar: O caso do Maranhão onde em 9 de abril de 1969 José Sarney assume o governo, e logo o capitão de infantaria Marcio Viana Pereira entrega ao seu comandante direto um dossiê de 17 paginas com 25 documentos anexados, com o título “Corrupção na área do estado”. Esse documento foi enviado para a base do Comando Geral de Investigação , onde foi apenas arquivado. Os órgãos de combate a corrupção haviam sido criados, contudo ainda existia corrupção politica. Mas não cabe o historiador julgar os fatos e sim analisá-los.

Ricardo de Moura Borges – Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Piauí. Graduando em Licenciatura em Filosofia pelo Instituto Católico de Estudos Superiores do Piauí, ICESPI.


FICO, Carlos. Censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Orgs). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (p. 167 – 201). Resenha de: BORGES, Ricardo de Moura. Contraponto. Teresina, v.2, n.2, jan./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]

O Populismo e sua História: debate e crítica | Jorge Ferreira

A coletânea reúne textos de sete historiadores, uma antropóloga e uma socióloga, num total de sete artigos, já que dois deles são escritos a quatro mãos. Constituem uma plêiade de pesquisadores contemporâneos que labutam nos departamentos de História, Antropologia e Sociologia de universidades como USP, UFF, UFRJ, UFMG, Metodista de Piracicaba e Escola Sindical São Paulo, vinculada à CUT. Não seria exagerado afirmar que se trata de um livro que corta e recorta, não sem marcar o nosso tempo, a categoria populismo e seu corolário histórico mais imediato, a chamada democracia populista que teria sua vigência mais arrebatadora entre 1945 e 1964. Do fato de que o uso da categoria remete à noção de traição, ninguém ficaria contrariado e, embora nem os seus críticos nem os seus defensores tenham aludido a hipóteses psicológicas, talvez não fosse despropositado mencionar que a própria idéia de traição política e de classe teria gerado no Brasil um fenômeno de complexo de populismo. O propósito da minha recensão é tentar elucidar, com a verve e a argúcia dos autores reunidos, a teoria e o complexo, tarefa nada fácil para o espaço normativo das revistas nacionais em se tratando de polêmicas historiográficas. Leia Mais

O populismo e sua história – debate e crítica – FERREIRA (RBH)

FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história – debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 380p. Resenha de: BORGUES, Vavy Pacheco. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

A coletânea organizada por Jorge Ferreira, professor do Departamento de História da Universidade Federal fluminense, se inscreve a meu ver em uma das melhores vertentes da chamada “história política renovada”, trazendo preocupações conceituais como eixo de articulação dos artigos, conforme bem exprime seu título. Como os historiadores têm procurado mostrar, os conceitos, além de históricos (como tudo que se refere ao homem e sua cultura, isto é, tudo que é humano), quando usados em política ¾ eminentemente uma disputa ¾ nunca são neutros. Também as emoções, os sentimentos e instintos dos indivíduos e das “massas” são hoje, para muitos historiadores, uma dimensão fundamental da vida política; os analistas do séc. XIX dela muito se ocuparam, mas essa dimensão foi relegada pelos cientistas sociais brasileiros das últimas décadas. Ao começar seu texto por uma bela epígrafe de Rachel de Queiroz, Jorge Ferreira indica sua intenção de lembrar a importância dessa questão, embora isso só permaneça subjacente aos textos. Cita ele : “Não há povo amorfo. Não há massa bruta e indiferente. A massa é formada de homens e a natureza de todos os homens é a mesma: dela é a paixão, a gratidão, a cólera, o instinto de luta e de defesa.”

Os autores, em suas análises, fazem-nos dar profícuas voltas e mais voltas em torno do conceito ou categoria explicativa populismo, ao qual se referem também como “noção”, “palavra”, “expressão”, “imagem”, “sentido”… Exploram também aqueles que são vistos como os sujeitos políticos dessa história: os líderes e seus projetos, as “massas” ou as classes e suas relações. Na obra, o populismo surge absolutamente enredado em outros conceitos, como trabalhismo, getulismo, queremismo, sindicalismo ou peleguismo, autoritarismo, fascismo ou totalitarismo (como se fossem termos equivalentes), e ainda nacionalismo e estatismo. Esses são analisados em suas doutrinas e em suas práticas, configuradas estas em noções como “mistificação, manipulação e demagogia”.

São sete artigos, praticamente todos sobre a história brasileira, e a forma de analisá-la. Apenas o de Maria Helena Capelato se debruça sobre a questão no âmbito da América Latina, fazendo uma comparação do chamado fenômeno populista no México e na Argentina. Alguns, na trilha “arqueológica” da história do conceito de populismo, apresentam preocupações teórico-conceituais mais marcantes, sobretudo os de Ângela C. Gomes, Jorge Ferreira e Daniel A . Reis. O artigo de Fernando T. da Silva e Hélio Costa situa-se ainda nesse terreno de fortes preocupações teórico-metodológicas, mas analisando interpretações historiográficas no campo da história social do trabalho. Os outros são mais reconstituições de partes da história política do período denominado populista, cujos inícios, a partir dos anos 1930 (“tempo das origens”), se solidificam no que é apresentado como um sistema político de 1945 a 1964 (a “república populista”). O artigo de Lucília de A . Neves (no campo das idéias políticas) explicita as propostas do trabalhismo, no que ela chama de “um projeto para o Brasil” de 1945 a 1964, entrelaçadas ao nacionalismo e ao desenvolvimentismo. Eliana Pessanha e Regina Morel comparam experiências de sindicalismo no Rio de Janeiro, que consideram “expressivas da experiência sindical no período considerado”: os operários navais e da indústria siderúrgica.

Como a maioria das coletâneas ou coleções, o resultado é desigual na organização do pensamento e na forma de exposição, da clareza, do estilo, revelando por vezes maior reflexão própria, outras vezes mais resumos e crítica historiográfica, sempre interessantes. Inicia com artigos agradavelmente escritos, como os de Ângela C. Gomes e Jorge Ferreira, com imagens simples e eficientes, e termina com um fecho de ouro, no sentido da narração, que é o artigo de Daniel A. Reis, dotado de uma fina ironia e um estilo envolvente. Há algumas repetições de idéias e de análises de autores que nos dão impressão de vai-e-vem; isso se nota mais no conjunto dos textos, mas por vezes em um mesmo texto.

De uma forma geral, o que ressalta da obra é mais uma demonstração cabal e irrefutável de que os conceitos que usamos para explicar a história política estão sempre enredados nos laços permanentes e inextricáveis entre o momento histórico e sua análise, entre a história e a política1. É preciso estar constantemente atento a esses laços, pois senão, por motivos múltiplos e diversos, as intenções não desvendadas da política levam o analista a considerar o conceito como um fato que se passou ou um tema que mereça um estudo, sem maiores questionamentos2. Não é possível, enquanto cientistas sociais, pensarmos no populismo só na vida política ou só na academia: o imbricamento entre os dois ( visto na coletânea como um “deslizamento”) resulta da luta política mais ampla, como bem se percebe pelos artigos que se detêm no panorama historiográfico, ao abordarem o conceito e seu uso pelos mais diversos agentes e/ou analistas políticos.

Do conjunto da obra depreendem-se claramente os mecanismos pelos quais as explicações sociológicas e da ciência política resultaram de uma luta política mais ampla3. Já no início a Introdução de Jorge Ferreira mostra a elasticidade da categoria até torná-la o que chamei de “categoria-monstro”, quando fiz uma retomada do surgimento do conceito de tenentismo e seus diversos empregos, por diferentes oponentes políticos, em diversos momentos da política brasileira4. Assim como esse, o populismo teve seu sinal invertido, mas em sentido contrário: quando surgiu o uso do termo populista no vocabulário da luta política, este aparecia quase como um mero adjetivo, ligado a “popular”. Getúlio Vargas e João Goulart eram chamados de populistas, e isto não tinha, para Jorge Ferreira, um sentido ofensivo. Depois, tornou-se um insulto para a direita liberal. O tenentismo começou como uma tentativa de descrédito político, depois foi legitimado e positivamente valorizado por Virgínio de Santa Rosa e outros da época, como a “revolução das classes-médias”5.

Ambos os conceitos tiveram também até hoje um uso eminentemente plástico: pelo fato de querer “pôr tudo no mesmo saco” (imagem de Jorge Ferreira) e por querer explicar tudo, acaba-se não explicando realmente nada. Como explicita o mesmo autor, “personagens com diferentes tradições políticas foram reduzidos a um denominador comum: líderes trabalhistas como Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola e mesmo Miguel Arraes perfilaram-se ao lado de políticos regionais paulistas, como Adhemar de Barros e Jânio Quadros; de um general anódino, como Eurico Dutra; de um udenista golpista, como Carlos Lacerda; e de uma figura ainda mal estudada, como Juscelino Kubitschek. Após 1964, o próprio general-presidente João Figueiredo igualmente entrou no rol, segundo algumas análises. (…) projetos políticos que fincaram tradições políticas, e que ainda hoje se manifestam na sociedade brasileira, como o trabalhismo petebista e o liberalismo udenista, dissolvem-se e confundem-se em um mesmo rótulo: tratar-se-ia de ‘populismo’ ” 6.

Esse populismo, chamado pelos autores de “gato de sete vidas” ou “herança maldita” ¾ pois foi e por vezes ainda é visto como uma categoria explicativa de um sistema político e social brasileiro ¾ tem suas apontadas características explicitadas em muitos dos artigos. São dissecadas com propriedade e clareza as análises clássicas sobre o populismo, em especial as dos anos 1960, de Francisco Weffort e Octávio Ianni, mas também os primeiros trabalhos da década de 1950, do Grupo de Itatiaia e depois do ISEB, que estão nas origens das interpretações posteriores.

Algumas práticas historiográficas ¾ hoje já condenadas ¾ estavam presentes em nossa historiografia naquele momento, sendo de certa forma um pano de fundo que propiciava as interpretações analisadas na obra. As duas principais me parecem a linearidade do chamado “processo histórico” e o papel atribuído ao Estado na história brasileira. A primeira percebe-se numa recorrência da interpretação da nossa vida política: até hoje muitos consideram que 1937 está necessariamente contido em 1930, ou em outras palavras, o golpe de Estado e o autoritarismo eram as únicas possibilidades ao longo do primeiro período getulista, e assim a dita Revolução de 30 teria levado necessariamente ao golpe de Estado e à ditadura do Estado Novo; da mesma forma, no conjunto das interpretações criticadas pelos diversos autores, 1954 ¾ ano da morte de Getúlio ¾ contém em germe, inelutavelmente, o golpe político-militar de 1964, apontado como momento do colapso do populismo, tanto como sistema como prática política (esses dois sentidos por vezes parecem se confundir, na obra )7. Essas relações apresentadas como necessárias e inelutáveis são combatidas por historiadores que, além de recusar modelos de desenvolvimentos de outros tempos e espaços, estão atentos às possibilidades e potencialidades da história, que nunca é uma estrada de mão única, linear e com ponto de chegada definido, predeterminado. O segundo tipo de prática tem a ver com a definição dos sujeitos em história. No “desprezo” da história das grandes figuras do início do século XX, passamos, décadas atrás, a ver o Estado como o demiurgo de nossa história; isso se deu entre os historiadores ainda devido a essa importância atribuída às análises das ciências sociais. A forte presença do Estado na organização da vida política brasileira anulava os outros possíveis sujeitos.

Na verdade, a grande questão que estrutura toda a coletânea é: qual é o papel dos trabalhadores enquanto sujeitos da história brasileira? Os autores internacionais e nacionais que estudaram a história social do trabalho em geral e a brasileira em particular são bastante bem utilizados por alguns textos. Há uma crítica aos trabalhos que tratam de populismo por verem em geral os trabalhadores seja como massa manipulada, seja como “atrasados” em relação a outros desenvolvimentos históricos. Isso aparece centralizar as reflexões sobretudo de Jorge Ferreira, Fernando T. da Silva e Hélio Costa. Os dois últimos lembram o questionamento levantado pelo brasilianista John French, sobre a “mistificação” dos trabalhadores que apresenta como “a grande pergunta, nunca respondida”: “por que os operários sucumbiram aos agrados dos líderes populistas, aceitando a dominação, e, ao mesmo tempo, se dispuseram a confiar em traidores?” Decorre dessa questão o debate sobre os reais avanços da Consolidação Geral do Trabalho (CLT), hoje em dia ameaçada.

Só se pode receber bem estudos e pesquisas sobre a história política do período, ainda muito pouco examinada. Além disso, concordo com Francisco Carlos T. da Silva, autor da orelha da obra, que Jorge Ferreira, ao reunir autores significativos no tema, fez um trabalho “extremamente louvável”, que acaba por constituir uma “garantia contra o pensamento único”. Pois apesar do debate e da crítica a que os diversos artigos nos introduzem e reforçam, o conceito de populismo continua vivo, presente na mídia e em nosso cotidiano, como se referindo a um fato político-social indubitável, tanto no Brasil quanto na América Latina (e por vezes, em alguns breves momentos me pareceu que alguns dos próprios autores do livro escorregam nessa aceitação, legitimando o populismo como um “fenômeno histórico”). O que mostra que um conceito, uma vez consagrado pelo senso comum, é de difícil extirpação8.

Como diz Ângela C. Gomes, “escrever sobre o populismo no Brasil será sempre um risco”. Hoje em dia pode-se perceber que, na boca e na pena da direita conservadora, a pecha de “populista” substituiu a pecha de “comunista”, desde os anos vinte do século passado empregado como o maior insulto, ou seja, uma forte “arma” política. Aliás, Jorge Ferreira destacou a origem do termo populista enquanto insulto desde os anos 1960, mas também hoje em dia, na boca, por exemplo, de nosso presidente atual, Fernando Henrique Cardoso. Percebe-se na luta política mais ampla que, por trás do uso da qualificação de populista, há a tentativa (sempre renovada e proveniente do medo, e por que não dizer, mesquinhez) de se impedir uma decisiva participação de sujeitos políticos que possam mudar os rumos de nossa história, marcada por terríveis indicadores sociais, provenientes em última análise da nossa injusta e desumana distribuição de renda.

Penso que a principal contribuição da coletânea reside em repor a historicidade do conceito de populismo ( e de alguns dos a ele conexos). A tarefa não é empreendida explicitamente por cada texto, mas bem sucedida em seu conjunto. Para ilustrar tal resultado, penso ser interessante relatar um episódio ocorrido durante minha defesa de tese de doutorado, em que Francisco Weffort era membro da banca (trabalho já citado sobre a retomada do conceito de tenentismo). Ele terminou sua simpática argüição pela pergunta seguinte: “mas, afinal, o que foi o tenentismo?” Eu (e os outros membros, assim como parte do público, que compreenderam bem a intenção da tese ) percebemos que, enquanto cientista social e diversamente de Octávio Ianni, que orientara minha tese, Weffort não conseguia compreender o trabalho de um historiador que, numa linha de raciocínio de crítica ao conceito, procurara recuperar sua historicidade9. Não acredito, porém, que um leitor que faça atentamente a leitura desta coletânea, ao terminar pergunte, de forma semelhante à de Weffort: “mas, afinal, o que foi o populismo” ?

Notas

1 Ver BORGES, Vavy Pacheco. “História e Política: laços permanentes”. In Revista Brasileira de História: Política e Cultura. São Paulo: ANPUH/Marco Zero/SCT/CNpq/Finep, vol. 12, Nº.23/24, pp.7-18, set. 91-ago.92.

2 Esse tipo de preocupação surge entre nós historiadores brasileiros em torno do tema da “Revolução de Trinta”, a partir da década de 1970. No caso, ver sobretudo VESENTINI, Carlos A. A Teia do Fato: uma proposta de estudo sobre a memória histórica. São Paulo: HUCITEC/HISTÓRIA SOCIAL, USP, 1997.

3 A historicidade dos conceitos tem entre nós, no alemão Reinhardt Kosseleck e no francês Pierre Rosanvallon, alguns de seus expoentes. Os assuntos em questão têm sido debatidos nas apresentações promovidas nos encontros da ANPUH pelos grupos de trabalho de História Política e de Mundo do Trabalho.

4 Ver BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e Revolução Brasileira.. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992.

5 Essa concepção, embora questionada, permanece intocada em muitíssimos trabalhos. Tome-se um exemplo ao acaso, entre inúmeros exemplos recentes de obras de divulgação: a obra Viagem pela história do Brasil, de Jorge Caldeira, publicada em 1997 pela Companhia das Letras; essa apresenta o tenentismo como a expressão dos anseios das classes médias; apresenta também um capítulo intitulado: “O período populista” sem maiores explicitações….

6 Ver pp.10-11 da coletânea.

7 É interessante lembrar que, durante a presidência de Fernando Collor, uma caricatura na grande imprensa paulistana mostrava Collor sentado em um trono presidencial, tendo ao lado um bobo da corte, que carregava um livro intitulado ” O colapso do populismo”.

8 No momento em que escrevo a resenha, dois exemplos: do ponto de vista da academia, a recente versão do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro ¾ pós-1930, produzido pelo CPDOC, traz um item “Populismo” com quase tudo o que é criticado nesta coletânea; do ponto de vista da política, o populismo na mídia tem aparecido como o culpado, em boa parte, pelos insucessos políticos atuais da Argentina (dezembro 2001- janeiro 2002.)

9 Eu respondi a Weffort que a criação do termo, datada do primeiro semestre do ano de 1931, foi resultado de um enorme medo das elites políticas paulistas, depois difundido por essas nas classes médias urbanas, gerado pela presença de uma forma de militarismo na política, que poderia trazer, temiam todos, uma enorme mudança social. Porém, para as elites, antes e depois desse momento histórico, quando os militares fazem o que elas querem, eles não parecem despertar medo algum.

Vavy Pacheco Borges – Universidade Estadual de Campinas.

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A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores / Jorge Ferreira

Para os irmãos Lumiére, o cinema seria uma curiosidade passageira. Reza a lenda que um dos inventores do cinematógrafo (1895), ou o pai dele, chegara a proferir: “o cinema é uma invenção sem futuro”. O palpite não vingou e, em pleno alvorecer do século XXI, a captação de imagens em movimento sobrevive muito bem, seja em fotogramas, seja nos seus avatares em novas tecnologias (do vídeo analógico aos processos digitais).

E o cinema não apenas teria um futuro, mas ainda deixaria, em sua secular existência, um rastro imensurável de registros desse próprio tempo, bem como de tempos mais ou menos remotos, bem ou mal reinterpretados em celulóide. Presentificando outras etapas da história, o cinem também tornou-se uma invenção com o olho (câmera) no passado. O problema é que os historiadores, em princípio, não perceberam isso.

A História, que aperfeiçoa seus métodos antes de surgir o cinematógrafo, prefere ignorá-lo, como lembra Marc Ferro, acrescentando: “a linguagem do cinema revela-se ininteligível e, como a dos sonhos, é de interpretação incerta”. Mais prudente, naquele campo do conhecimento, seria manter a tradição documental da palavra escrita. Além de tudo, em sua fase heróica, era o cinema uma curiosidade inculta, destinada portanto à “ralé”. Os elitistas não o levariam a sério. Muitas décadas depois, mesmo mudando-se esse conceito, ainda haveria resistência dos historiadores para se valer do filme, seja ficcional ou mesmo documental, como fonte. Ferro foi um dos profissionais desse campo a apontar a legitimidade do material cinematográfico junto aos estudiosos.

No Brasil, os historiadores seguiram o descompasso de seus pares estrangeiros no trato com o cinema. Mas o audio-visual tanto cresceu em nossas vidas (com a televisão e o videocassete), que logo se impôs como suporte pedagógico. Várias disciplinas o acolheram em salas de aula, impondo aos professores a urgente necessidade de se melhor compreender o que até então era “mera diversão”.

O livro A História vai ao Cinema, organizado por Jorge Ferreira e Mariza de Carvalho Soares, é um rico e estimulante passo do pensamento acadêmico para se compreender uma manifestação artística que já tinha ido à História desde seu surgimento em fins do século XIX.

Não se trata de um compêndio que teoriza sobre tais relações entre as duas matérias apreensoras do tempo (o diretor Sílvio Tendler, na introdução, apenas esboça algo nesse sentido).

A coletânea em pauta reúne vinte filmes brasileiros, cada um deles analisado por um historiador. A seleção dos títulos teve critério um tanto elástico. Incidiu sobre fitas lançadas entre 1976 e 1998 – de “Dona Flor e seus dois Maridos” a “Central do Brasil”. A ênfase em filmes de sucesso comercial, ou de boa ressonância junto à crônica especializada, coincidentemente ou não, redundou em filmes associados a uma idéia de “bom gosto” artístico – o que implica na exclusão não justificada de produções absurdamente populares, como as comédias de Mazzaropi, dos Trapalhões ou do ciclo pornochanchadeiro (dois terços do que se produziu em cinema brasileiro, nos anos 70, eram filmes eróticos). Se tais filmes não foram sucesso de crítica (de resto, algo subjetivo), foram avalizados pelo público. Além do mais, a pornochanchada esteve no centro das discussões daquela década, seja associada ao “pão e circo” imposto pela ditadura, seja por suas supostas “transgressões” sexuais num período de liberação dos costumes, particularmente da mulher – assunto que, por si só, legitimaria uma observação mais ampla das relações basilares entre obras como “Dona Flor…” e “Xica da Silva” e esses filmes de menor extração.

A compreensão, pelo prisma da História, de obras fílmicas requer que se aventure um pouco na própria história do cinema – no caso, o brasileiro. Assim, à guisa de exemplo, é pertinente, na análise de “Marvada Carne”, a observação da ancestralidade do personagem Nhô Quim, que hoje mantém os “poucos mesmos artefatos da cultura material dos bandeirantes paulistas”.[1] Mas o mesmo tipo caipira – e todo esse filme de André Klotzel – é também uma citação do cinema caipira de Mazzaropi, inclusive contando no elenco com a presença de Geny Prado, veterana atriz de seus populares filmes. A cultura remota, sem dúvida, ressoa nos personagens e em seu mundo rural. Mas a cultura imediata do cinema também está, mais conscientemente, arrisco dizer, na construção da obra, que visa tocar no imaginário de amplo público, emocionando-o de algum modo.

O processo cinematográfico, por injunções comerciais, implica em se agrupar filmes em gêneros reconhecíveis. As tramas, os tipos humanos (heróis e vilões) etc. se repetem, bem como as formatações narrativas de pura imagem. Estas tendem a ser recorrentes (o uso dos planos, os movimentos de câmera, a montagem e seu ritmo, a cor etc.). Produzem discursos em consonância com o roteiro meramente literário. Às vezes, porém, deliberadamente ou não, há dissonâncias entre o que é verbalizado na tela e a montagem audiovisual adotada. Na análise de “Pra frente Brasil” cita-se o modelo thriller norte-americano para o filme político, fórmula esta difundida por Costa Gavras.[2] A comparação procede, mas seria também pertinente observar que tal modelo redunda na espetacularização da trama política, engolida pelo ilusionismo hollywoodiano, não surtindo maior efeito nas platéias que só se interessam na “ação pela ação”. Roberto Farias, o diretor, sobretudo está, com seu filme, ajustando-se a uma solicitação comercial num momento em que a abertura política supostamente aceitaria filmes dessa natureza. Farias opta pela linguagem conservadora plenamente adequada à “ideologia” que adota: a do mercado. Da chanchada ao ensaio do Cinema Novo, passando por filmes modernosos sobre Roberto Carlos, o cineasta sempre se guia por caminhos que devem ser também lembrados na análise da obra em pauta. Essa contextualização de cultura cinematográfica e sua adequação ao plano lingüístico não são elementos desprezíveis numa análise envolvendo História e Cinema.

Concorde-se ou não com toda a opinião e abordagem de tantos estudiosos, o livro em questão é, desde já, uma referência obrigatória para se estudar aqueles dois campos do conhecimento. Os autores são especialistas dos temas retratados nos filmes em foco. Alguns podem ter mais familiaridade ou não no trato da linguagem cinematográfica. O projeto editorial assemelha-se ao livro Passado Imperfeito – A História no Cinema (Record, 1997), organizado por Marc C. Carnes, em que historiadores e outros especialistas rastreiam e criticam a história da humanidade expressa em filmes europeus e notadamente hollywoodianos. Ressalvas aqui cabem também no que tange às especificidades do meio cinematográfico, mas o resultado é sempre estimulante. Num outro ângulo dessa aproximação cinema-história, cabe lembrar que os criadores audiovisuais precisam também mergulhar no que há de específico e mais avançado noutras áreas do conhecimento. Há um atraso brutal em relação ao saber, haja vista os resultados medíocres de tantos filmes. “Canudos”, de Sérgio Rezende (que também se baseia no romance O Rei do Cangaço, de Manuel Benício, e não somente traduz Euclides da Cunha), é exemplo desse mau resultado. Um fracasso artístico, inclusive, o que me faz discordar de que seja “bom cinema”, como se lê no texto.[3] O formato do espetáculo comercial de gênero “épico guerreiro”, implica na redução do fenômeno messiânico a uma sucessão de batalhas mal realizadas.

O Nordeste, com esse filme e outros como “Cabra Marcado para Morrer”, “O Homem que virou Suco”, “Central do Brasil” etc. é um tema recorrente na cinematografia brasileira, herança da redescoberta do Brasil via Cinema Novo dos anos 60. Mas outros temas, nessa antologia, se cruzam em vários filmes. Assim, vemos o problema das migrações tanto em “Aleluia Gretchen”, “Quatrilho”, “Gaijin” e “Lição de Amor” quanto em “O Homem que virou Suco” e “Cabra Marcado para Morrer” – esse último diretamente ligado a outro subtema: o Brasil pré e pós-64, ao lado de “Jango”. Temos, enfim, um amplo espectro de possibilidades de análises, por vários ângulos, inclusive com filmes cujo tema histórico situado no passado mais remoto é, de fato, uma crítica ao Brasil contemporâneo, como se observa em “Xica da Silva, por exemplo. Adotemos, pois, esse livro como suporte para discussões mais aprofundadas sobre nosso imaginário histórico, sem esquecer a perspectiva de fazermos “a história audiovisual da história”, como propôs o sociólogo Gilberto Vasconcelos em recente estudo sobre Glauber Rocha.

Notas

1. ALMEIDA, Jayme de. Marvada Carne: uma comédia caipira épica. In: p. 195.

2. BATALHA, Cláudio H. Pra frente Brasil: o retorno do cinema político. In: p. 137.

3. HERMANN, Jacqueline. Imagens de Canudos. In: p. 246.

Firmino Holanda – Universidade Federal do Ceará.


FERREIRA, Jorge; SOARES, Maria de C. (Orgs.) A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores. Rio de Janeiro: Record, 2001. Resenha de: HOLANDA Firmino (Res), Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.1, 2001. Acessar publicação original. [IF].