Trabalhadores e Segunda Guerra Mundial | Mundos do Trabalho | 2019

Diversas vertentes da história do trabalho no Brasil convergem na identificação da conjuntura situada entre 1941 e 1945 como um momento marcante tanto para a consolidação institucional do sistema varguista de relações de trabalho quanto para a emergência de um padrão de participação popular na política que viria a se constituir em base do projeto político trabalhista. Na maior parte da historiografia dedicada a esses temas, entretanto, a coincidência desses processos com o progressivo envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial costuma ser ignorada, ou, quando muito, tratada como um mero pano de fundo. Permanece imensamente influente, até os dias de hoje, por exemplo, a abordagem cunhada por Francisco Weffort, que enfatiza a reorganização do movimento operário no pós-guerra e afirma que a ditadura do Estado Novo havia apagado completamente a memória das lutas anteriores.1 Entretanto, já em 1981, o trabalho pioneiro de Alem2 demonstrou que as greves e as transformações vividas pelo sindicalismo no período de redemocratização tiveram origem no próprio contexto da guerra. Como comentaremos posteriormente, as conexões entre “esforço de guerra” e “pós-guerra” vêm sendo exploradas de forma pontual por diversos trabalhos nas últimas décadas. Até recentemente, porém, raros eram os autores que colocavam a conexão entre guerra e mundos do trabalho no centro de suas análises. Leia Mais

Pós-abolição no Mundo Atlântico / Revista Brasileira de História / 2015

O reconhecimento de escravos e libertos como sujeitos históricos acabou por influenciar os estudos sobre o destino dos escravizados e seus descendentes em antigas sociedades escravistas após a abolição legal da escravidão. No Brasil, se a década de 1980 representou um marco para a historiografia da escravidão, podemos pensar que os anos 2000 foram decisivos para a historiografia sobre as formas, condições e concepções de liberdade no pós-abolição. A produção de livros e documentários, a realização de eventos nacionais e internacionais e a formação de grupos de pesquisa adjetivados pelos termos “pós-emancipação” e “pós-abolição”, de norte a sul do país, atestam a emergência de um destacado campo de investigação, comprometido em reconstituir trajetórias, processos e experiências de liberdade da população negra no Brasil e nas Américas após a proibição legal da escravidão.

Em vistas da amplitude do campo, surgem muitas questões. O que significa pensar o pós-abolição como problema histórico? Quais os significados e limites da revogação legal da escravidão nas antigas sociedades escravistas do Atlântico? É possível construir definições precisas sobre o que seria esse pós-abolição? Quais os significados da abolição formal da escravidão? ­Pós-abolição e pós-emancipação são sinônimos ou representam formas distintas de enxergar e pesquisar as experiências de liberdade e os significados legais da abolição da escravidão? Quando começa e quando termina o pós-abolição? Qual o lugar das experiências de tornar-se livre e do abolicionismo do século XIX? Como a politização da memória da escravidão e o estudo do tempo presente contribuem para delimitação dos seus limites cronológicos? De que formas o trabalho com diversas concepções, fontes e metodologias do campo questiona a tese clássica de que os negros teriam ficados “abandonados à própria sorte”, trazendo para o centro da discussão debates relacionados aos direitos de cidadania, mundos do trabalho livre, racialização, racismo, mobilidade social, migrações, relações de gênero, gerações, acesso à terra, educação e movimentos sociais negros e indígenas em abordagens locais, transnacionais ou comparativas?

Essas são algumas das indagações sobre as quais se debruçaram autoras e autores dos trabalhos publicados no dossiê temático “Pós-abolição no Mundo Atlântico”, que integra a presente edição da Revista Brasileira de História.

O dossiê se abre com “No ritmo do Vagalume: culturas negras, associativismo dançante e nacionalidade da produção de Francisco Guimarães (1904-1933)”, de Leonardo Affonso de Miranda Pereira. A trajetória e a obra do personagem analisado são utilizadas como fio condutor para uma imersão no universo da cultura popular do período. O autor destaca a valorização da agência negra nas crônicas de Guimarães, o Vagalume, sobre a vida musical e recreativa do Rio de Janeiro. Pereira situa a produção do popular cronista e dramaturgo carioca como parte de um processo de disputa sobre a identidade brasileira que tem entre os seus resultados o estabelecimento do samba como “ritmo capaz de representar a nacionalidade”.

Dois dos artigos revisitam o tema clássico do campesinato negro no pós-abolição nas regiões Sudeste e Sul do Brasil. Em “Revisitando ‘Família e transição’: família, terra e mobilidade social no pós-abolição. Rio de Janeiro (1888-1940)”, Carlos Eduardo Coutinho da Costa analisa mais de seis décadas de registros civis do município de Nova Iguaçu, identificando os impactos econômicos e demográficos da citricultura sobre as famílias negras rurais da província fluminense e suas estratégias de mobilidade social. Em “Sr. Sidão Manoel Inácio e a conquista da cidadania: o campesinato negro do Morro Alto e a República que foi”, Rodrigo de Azevedo Weimer aborda a agência política do campesinato negro do litoral norte do Rio Grande do Sul na luta por direitos cidadãos durante a Primeira República.

Deslocando o foco para a Bahia, Wlamyra Albuquerque também aborda as conexões entre pós-abolição e cidadania em “Teodoro Sampaio e Rui Barbosa no tabuleiro da política: estratégias e alianças de homens de cor (1880-1919)”. Colocando o foco na experiência escrava da família de Teodoro Sampaio, a autora demonstra as conexões, aproximações e distanciamentos das trajetórias contemporâneas de dois destacados atores políticos baianos atuantes no final do Império e no início da República. Oferece ao leitor, desse modo, um olhar inovador sobre o contexto de atuação política de negros e brancos nas décadas que se seguiram à Abolição.

Dois outros artigos retomam o debate historiográfico sobre continuidades e rupturas entre a experiência escrava e o movimento operário. André Cicalo, em “Campos do pós-abolição: identidades laborais e experiência ‘negra’ entre os trabalhadores do café no Rio de Janeiro (1931-1964)” revisita o tema no setor portuário carioca, trazendo uma contribuição inovadora no que diz respeito ao estudo da racialização da estrutura ocupacional no cais. O tema da racialização reaparece em “As heranças do Rosário: associativismo operário e o silêncio da identidade étnico-racial no pós-abolição, Laguna (SC)”, de Thiago Juliano Sayão, que analisa o ocultamento da raça ou cor na Sociedade Recreativa União Operária (1903), fundada por afrodescendentes vinculados à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na cidade de Laguna, em Santa Catarina.

A perspectiva comparativa entre as experiências das duas maiores nações que passaram pelo processo emancipacionista no século XIX está presente em dois trabalhos do nosso dossiê: “Os perigos dos Negros Brancos: cultura mulata, classe e beleza eugênica no pós-emancipação (EUA, 1900-1920)”, de Giovana Xavier da Conceição Nascimento, e “O legado das canções escravas nos Estados Unidos e no Brasil: diálogos musicais no pós-abolição”, de Martha Abreu. Nascimento analisa, por meio de textos e imagens publicados em revistas norte-americanas, a emergência, nas primeiras décadas do século XX, de uma “pigmentocracia” decorrente do sistema de segregação intrarracial com base na tonalidade da pele. Já Abreu parte dos trabalhos de Du Bois e Coelho Netto para refletir sobre as similaridades dos legados da canção escrava – ou “som do cativeiro” – nos Estados Unidos e no Brasil.

Uma entrevista inédita realizada por Hebe Mattos e Martha Abreu com Eric Foner, historiador pioneiro no estudo do pós-emancipação nos Estados Unidos complementa o dossiê temático desta edição.

O presente volume traz seis trabalhos avulsos. Dois deles apresentam resultados inéditos de pesquisas sobre o movimento operário brasileiro entre as décadas de 1960 e 1980: “Relações Igreja-Estado em uma cidade operária durante a ditadura militar”, de Alejandra Luisa Magalhães Estevez, e “Uma greve que pôs em risco a Segurança Nacional: o caso do açúcar e a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida”, de Felipe Augusto dos Santos Ribeiro. A atuação social e política de intelectuais, religiosos e organizações católicas constitui o campo temático comum de “Os ativos intelectuais católicos no Brasil dos anos 1930”, de Helena Isabel Mueller, e “A Revista A Ordem e o ‘flagelo comunista’: na fronteira entre as esferas política, intelectual e religiosa”, de Marco Antônio Machado Lima Pereira. Em “‘Vivemos identificados com a civilização, dentro da civilização’: autoimagens urbanas nos sertões da Bahia”, Valter Gomes Santos de Oliveira analisa textos memorialísticos, matérias jornalísticas e fotografias produzidos pela pequena intelectualidade sertaneja na Bahia do início do século XX. Já Vitor Marcos Gregório, em “A emancipação negociada: os debates sobre a criação da província do Paraná e o sistema representativo imperial, 1843”, analisa a relação entre a criação de novas unidades administrativas e as alterações no funcionamento do sistema político do país.

O volume se conclui com três resenhas. Em “Trabalho, história ambiental e cana-de-açúcar em Cuba e no Brasil”, originalmente publicada em inglês na revista Social History, a professora Aviva Chomsky analisa quatro livros recentes sobre temáticas similares, dois deles tratando do Brasil (The Deepest Wounds: A Labor and Environmental History of Sugar in Northeast Brazil, de Thomas Rogers, e This Land Is Ours: Social Mobilization and the Meanings of Land in Brazil, de Wendy Wolford), os outros dois sobre Cuba (Blazing Cane: Sugar Communities, Class, and State Formation in Cuba, 1868-1959, de Gillian McGillivray, e From Rainforest to Cane Field in Cuba: An Environmental History since 1492, de Reinaldo Funes Monzote). Por fim, Walkiria Oliveira Silva apresenta ao leitor What is History for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography, de Arthur Alfaix Assis, e Jean Rodrigues Sales comenta a muito aguardada biografia Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos, de Daniel Aarão Reis Filho.

Alexandre Fortes – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Instituto Multidisciplinar. Nova Iguaçu, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

Hebe Mattos – Universidade Federal Fluminense (UFF), Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Niterói, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]


FORTES, Alexandre; MATTOS, Hebe. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.35, n.69, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]

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O Brasil na História Global / Revista Brasileira de História / 2014

O polêmico e polissêmico conceito de globalização se impôs como a caracterização mais difundida das transformações mundiais ocorridas desde a última década do século XX. Tem cabido aos historiadores, frequentemente, o papel de relativizar o ineditismo da conjuntura atual, identificando-a como um novo momento em um processo de longo prazo de expansão e aceleração dos múltiplos fluxos que integram os mais distantes pontos do planeta. Ainda assim, o corrente foco na perspectiva global tem gerado questionamentos e debates relevantes para o nosso ofício.

Sabe-se que a institucionalização da disciplina histórica transcorreu intimamente articulada ao desenvolvimento dos modernos Estados nacionais e desempenhou papel fundamental na construção de suas bases simbólicas de legitimação. Até que ponto o enquadramento no espaço nacional limita a definição dos objetos e perspectivas de análise na pesquisa histórica? Em que as diversas correntes e metodologias associadas à ideia de História Global podem contribuir para redefinir as abordagens sobre temas tradicionalmente recortados nos limites de fronteiras nacionais? A chamada História Global representa um paradigma radicalmente inovador, um campo de diálogo entre diversas perspectivas, ou apenas um modismo intelectual influenciado pelo “espírito da época”? Até que ponto a História Global pode alterar nosso entendimento sobre o Brasil e seu lugar no mundo em diferentes momentos históricos? Ou seria justamente a ênfase nas particularidades dos fenômenos históricos no interior de um Estado nacional pós-colonial como o Brasil uma forma de romper com o eurocentrismo de narrativas “mundiais” ou “globais”?

Essas foram algumas das indagações propostas aos autores que apresentaram artigos para integrar o dossiê temático “O Brasil na História Global”, contido neste número da Revista Brasileira de História. Os trabalhos selecionados oferecem um panorama significativo da diversidade de abordagens abarcadas sob o conceito de História Global.

Em “‘O maior incêndio do planeta’: como a Volkswagen e o regime militar brasileiro acidentalmente ajudaram a transformar a Amazônia em uma arena política global”, Antoine Acker relata a surpreendente história da ascensão e queda do projeto que visava transformar o Brasil em exportador de carne bovina empregando as modernas técnicas de gestão da multinacional alemã. José Juan Pérez Meléndez, por sua vez, valendo-se de pesquisa inovadora, oferece novas perspectivas sobre um tema clássico da história brasileira do século XIX em “Reconsiderando a política de colonização no Brasil Imperial: os anos da Regência e o mundo externo”. Gênero, literatura e crítica à sociedade escravista são os temas que se conectam nos relatos analisados por Ludmila de Souza Maia em “Viajantes de saias: escritoras e ideias antiescravistas numa perspectiva transnacional (Brasil – século XIX)”.

Maria Verónica Secreto explora as possibilidades inovadoras abertas pelas correntes historiográficas que buscam transcender o recorte do espaço nacional para entender as relações entre nosso país e seu maior vizinho em “Histórias conectadas: histórias integradas. Brasil e Argentina em busca de um terceiro no século XIX”. Em “‘Como abelhas polinizando flores’: gerência e racionalização do trabalho no complexo coureiro-calçadista de Franca-SP no século XX”, Vinícius de Rezende situa a experiência de um importante setor industrial brasileiro no quadro global do desenvolvimento das técnicas de gestão empresarial. Helenice Aparecida Bastos Rocha e Flávia Eloisa Caimi, por sua vez, levam a temática do nosso dossiê à sala de aula, com “A(s) história(s) contada(s) no livro didático hoje: entre o nacional e o mundial”.

Completando esse quadro, publicamos entrevista inédita com Patrick Manning, da Universidade de Pittsburgh, pesquisador consagrado e pioneiro no estudo da diáspora africana e dos fluxos migratórios globais na perspectiva da História Mundial. O professor Manning tem se destacado ao longo das últimas décadas na articulação de redes continentais de pesquisadores interessados em explorar os potenciais da História Global.

A seção de avulsos também traz um conjunto de trabalhos marcados por grande diversidade, tanto do ponto de vista da temática quanto no escopo cronológico.

Ela se abre com “Descontruindo mapas, revelando espacializações: reflexões sobre o uso da cartografia em estudos sobre o Brasil colonial”, de Tiago Kramer de Oliveira. Victor Melo apresenta uma abordagem original sobre a história africana do século XX em “O esporte na política colonial portuguesa: as iniciativas de Sarmento Rodrigues na Guiné (1945-1949)”. A história ­po­lítica britânica do século XVI é o campo de análise de Eoin O’Neill em “A inglória ilha de Gloriana: Elizabeth I, responsabilidade e honra na Guerra dos Nove Anos na Irlanda”.

Temas clássicos nos estudos sobre economia e da política no Brasil colonial são reexaminados por Thiago Alves Dias em “O Código Filipino, as Normas Camarárias e o comércio: mecanismo de vigilância e regulamentação comercial na capitania do Rio Grande do Norte”. As linhas de continuidade e ruptura na história do trabalho no Brasil entre os séculos XIX e XX são abordadas em “Greve como luta por direitos: as paralisações dos cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906)” de Paulo Cruz Terra.

Já Bruno Bontempi Jr. e Carlota Boto oferecem uma contribuição original para a reflexão sobre a relação entre políticas educacionais, identidade nacional e construção do Estado brasileiro em “O ensino público como projeto de nação: A ‘Memória’ de Martim Francisco (1816-1823)”. Finalmente, trazemos um trabalho sobre história política nacional no período recente: “Informação, política e fé: o jornal Mensageiro da Paz no contexto de redemocratização do Brasil (1980-1990)”, de André Dioney Fonseca.

O volume se conclui com quatro resenhas. Flávio Limoncic comenta A Justiça do Trabalho e sua história, organizado por Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva. Denise Soares de Moura analisa Governabilidade nas fronteiras da América portuguesa, de Nauk Maria de Jesus. Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris, de Robert Darnton, é a obra examinada por Luís Felipe Sobral. Por fim, Magda Rita Ribeiro de Almeida Duarte apresenta A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história, de Leandro Duarte Rust.

Alexandre Fortes


FORTES, Alexandre. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Golpes e Ditaduras / Revista Brasileira de História / 2014

O ano de 2014 transcorre sob o signo dos debates acadêmicos e políticos relacionados ao cinquentenário do Golpe de 1964. O dossiê “Golpes e Ditaduras“, contido neste número 67, traz a contribuição da Revista Brasileira de História a esse processo de reflexão. Os seis artigos contidos no dossiê, cinco deles enfocando o Brasil e um Portugal, exploram diferentes dimensões da experiência de supressão da democracia por meio da força, assim como as formas pelas quais as sociedades contemporâneas enfrentam os desafios colocados por essas circunstâncias históricas.

Em “Os ‘inimigos da pátria’: repressão e luta dos trabalhadores do Sindicato dos Químicos de São Paulo (1964-1979)”, Larissa Rosa Corrêa detalha os impactos da violência exercida sobre os trabalhadores urbanos organizados em associações de classe, tomando como caso de estudo uma das maiores organizações operárias do país, em um trabalho que enfatiza a dimensão classista do autoritarismo instalado a partir de 1964. Já o provocativo artigo de Bryan Pitts intitulado “‘O sangue da mocidade está correndo’: a classe política e seus filhos enfrentam os militares em 1968” examina as reações dos congressistas brasileiros à repressão desencadeada contra o movimento estudantil em 1968. Chamando a atenção para os vínculos de sangue e de classe entre líderes universitários e políticos profissionais, Pitts oferece novas perspectivas para a compreensão da mudança da natureza do regime a partir da promulgação do AI-5 e para o debate sobre a relação entre seus componentes civis e militares. Carla Simone Rodeghero, no artigo “Pela ‘pacificação da família brasileira’: uma breve comparação entre as anistias de 1945 e de 1979”, proporciona ao leitor uma reflexão sobre as semelhanças e as diferenças entre os dois períodos de “transição democrática” vividos pelo Brasil. Examinando como a concepção do significado da anistia desloca-se da mera “conciliação” para a de “ferramenta para a conquista de direitos”, Rodeghero agrega importantes elementos para um debate de renovada atualidade.

As dimensões culturais da busca de construção de legitimidade dos regimes ditatoriais, bem como da resistência a eles, estão no foco dos três artigos que fecham o dossiê. Em “Os usos do civismo em tempos autoritários: as comemorações e ações do Conselho Federal de Cultura (1966-1975)”, Tatyana de Amaral Maia examina um dos principais mecanismos institucionais por meio do qual o regime exercia sua política cultural, voltada a “valorizar os elementos cívicos” como parte de um processo de “regeneração” da vida social e política do país. Já Francisco Régis Lopes Ramos, em “O Calendário e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da história e hagiografia”, analisa a atualização da tradição católica de associação entre o registro da passagem do tempo e a memória do sacrifício dos mártires como parte da resistência às ditaduras latino-americanas, a partir do exemplo de como obras de caráter hagiográfico vinculadas à Teologia da Libertação trataram a vida e a morte de frei Tito de Alencar Lima. Por fim, Edwar de Alencar Castelo Branco reflete sobre a relação entre experimentalismo estético e resistência política em “PO-EX: A poética como acontecimento sob a noite que o fascismo salazarista impôs a Portugal”.

A seção de artigos avulsos contém sete trabalhos. Dois deles analisam personagens relevantes da história da ciência nos séculos XIX e XX e seus vínculos com o Brasil. Trata-se de “Evolucionismo darwinista? Contribuições de Alfred Russel Wallace à Teoria da Evolução”, de Nelson Papavero e Christian Fausto Moraes dos Santos, e de “Diplomacia e ciência no contexto da Segunda Guerra Mundial: a viagem de Arthur Compton ao Brasil em 1941”, de Olival Freire Junior e Indianara Silva. A dimensão cultural das relações entre o Brasil e o restante do mundo continua em foco no trabalho de Anaïs Fléchet e Juliette Dumont, intitulado “‘Pelo que é nosso!’ A diplomacia cultural brasileira no século XX”.

Os quatro trabalhos seguintes analisam temas e objetos diversos no campo da história social. Márcia C. O. Cury oferece uma importante contribuição para o estudo dos movimentos sociais no Cone Sul em “Ocupando espaços, construindo identidades: a importância do movimento de pobladores para a história política e social do Chile (1950-1970)”. “Cidadania por um fio: o associativismo negro no Rio de Janeiro (1888-1930)”, de Petrônio Domingues, traz novos elementos para o debate de um dos aspectos cruciais do período pós-emancipação no Brasil. Paulo Cesar Gonçalves oferece uma nova abordagem para um tema clássico da história do trabalho no Brasil em “Procuram-se braços para a lavoura: imigrantes e retirantes na economia cafeeira paulista no final do Oitocentos”. A seção de avulsos se encerra com um trabalho focado na temática de gênero: “Imprensa e educação feminina em zona pioneira: o caso do Noroeste Paulista (1920-1940)”, de Raquel Discini de Campos.

Este número traz de volta a seção Memória, publicando a conferência “Conhecimento histórico e diálogo social”, proferida pelo ex-presidente nacional da Anpuh, Benito Bisso Schmidt, na abertura do XXVII Simpósio Nacional de História (julho de 2013, Natal, RN).

O volume encerra-se com quatro resenhas. A primeira delas relaciona-se diretamente ao dossiê temático desta edição: Claudia Wasserman analisa a coletânea O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina, organizada por Francisco C. Palomanes Martinho e António C. Pinto. Fernando Teixeira da Silva apresenta aos leitores brasileiros Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho, tradução do livro do historiador holandês Marcel van der Linden. Por fim, trazemos duas resenhas dedicadas a obras sobre aspectos da história brasileira recentemente publicadas em inglês. Maria Helena P. T. Machado comenta From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830, de Walter Hawthorne; e Regina Horta Duarte analisa In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region, de Seth Garfield.

Alexandre Fortes


FORTES, Alexandre. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.67, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Inclusões e Exclusões / Revista Brasileira de História / 2013

Este número 66 da Revista Brasileira de História traz aos nossos leitores um dossiê que representa uma amostra do modo como a produção historiográfica nacional e internacional tem analisado a temática “Inclusões e Exclusões”. Tratando de contextos espaciais e temporais diversos, os artigos exploram os modos como sociedades, Estados, movimentos sociais e correntes políticas definem os limites de pertencimento a determinadas comunidades simbólicas: ‘povo’, ‘nação’, ‘raça’ e ‘classe’, entre outras. Nesses processos, as linhas divisórias entre os ‘de dentro’ e os ‘de fora’ afetam decisivamente as bases de titularidade a direitos numa determinada ordem e o reconhecimento de determinados grupos sociais como sujeitos históricos coletivos. ‘Inclusão’ e ‘Exclusão’, portanto, são frequentemente polos opostos de um mesmo processo, no qual as definições sobre a legitimidade das estruturas de poder e de desigualdade existentes ou da luta pela sua superação são tensionadas por conflitos. Construção de identidades, participação política, tolerância e respeito à diversidade, são algumas das questões que derivam dessa problemática geral e ganham lugar de destaque nos diversos trabalhos aqui reunidos.

O primeiro texto do dossiê é “Os pangermanistas na África: inclusão e exclusão dos nativos nos planos expansionistas do império, 1896-1914”, de Marion Brepohl. Analisando o impacto do pensamento racista nas políticas de expropriação territorial praticadas por alemães contra nativos na antiga África Alemã do Sudoeste (atual Namíbia), Brepohl argumenta que esse processo foi legitimado pela estigmatização dos negros em geral e, de forma mais específica, pela manipulação do mito dos bushmen, uma tribo nômade local descrita por pioneiros da antropologia do século XIX como uma espécie de sub-raça, “um corpo entre o macaco e o homem”.

Em “O conceito político de povo no período da Independência: história e tempo no debate político (1820-1823)”, Luisa Rauter Pereira demonstra como os principais grupos políticos atuantes no Brasil no período digladiaram-se em torno das definições de quem constituía o ‘povo’, articulando argumentos científicos, jurídicos e sociológicos para sustentar visões mais inclusivas ou mais restritivas de cidadania.

Renata Figueiredo Moraes, em “Uma pena de ouro para a Abolição – A lei do 13 de maio e a participação popular”, analisa o movimento coletivo objetivando incorporar simbolicamente um amplo número de cidadãos comuns como participantes ativos de um ato visto como inaugurador de um novo momento histórico no Brasil. Mapeando um conjunto mais amplo de manifestações, a autora se concentra na campanha de arrecadação de doações financeiras levada a cabo por um periódico com vistas à aquisição de uma pena de ouro a ser utilizada pela princesa regente no momento da assinatura da lei.

Em “Trabalhadores e associativismo urbano no governo Jânio Quadros em São Paulo (1953-1954)”, Paulo Fontes apresenta os resultados preliminares de pesquisa sobre petições apresentadas por organizações populares com base territorial ao gabinete da prefeitura paulistana. O artigo reconstitui o complexo jogo que conecta a organização e a luta dos habitantes da periferia por suas reivindicações no pós-guerra à trajetória meteórica de Jânio Quadros, cujos dotes de tribuno popular ecoavam a presença política dos trabalhadores no espaço da política institucional. Os contornos do ‘sistema político populista’ que emergem do trabalho de Fontes são muito distintos das imagens de massas amorfas manipuladas por líderes carismáticos que povoaram o imaginário acadêmico e político do país por várias décadas.

Lourival Andrade Júnior, em “Os ciganos e os processos de exclusão”, examina as perseguições sofridas por um povo marcado por sua condição nômade e pela ausência de um Estado nacional próprio. Lançando mão de um conjunto diversificado de fontes, Andrade examina como a caracterização negativa dos ciganos realimenta o preconceito no qual se baseia o cerceamento dos seus direitos.

Em “O Partido Comunista Brasileiro e o governo João Goulart”, Jorge Ferreira examina a evolução do posicionamento da principal força política da esquerda brasileira durante um conturbado período caracterizado, de um lado, por mobilizações de massas em defesas de reformas e, de outro, pela desestabilização da ordem democrática. Distanciando-se dos rótulos simplificadores que pretendem desqualificar a atuação dos comunistas com bases no pré-julgamento sobre suas opções estratégicas e táticas, o autor busca reconstituir o contexto de atuação dos atores diante dos desafios e possibilidades colocados. Como mostra Ferreira, o anti-imperialismo, a defesa da democracia e das reformas de base, que sintetizavam a linha política dos comunistas no período, não se traduziam automaticamente em posicionamentos predefinidos diante dos desafios da conjuntura. Ao contrário, demandavam o exercício permanente da decifração de um cenário dinâmico e repleto de incertezas.

O dossiê se conclui com “Adeus à classe trabalhadora?”, de Geoff Eley e Keith Nield. A versão original deste artigo, publicada na International Labor and Working-Class History em 2000, desencadeou um grande debate, em função do provocativo balanço apresentado pelos autores. Eley e Nield reconhecem a contribuição das novas abordagens teóricas que, desde os anos 1960, abalaram muitas das convicções presentes nas origens da história social marxista. Destacam, igualmente, como a emergência dos novos movimentos sociais e do feminismo vieram a exigir uma renovação da agenda historiográfica. Longe de defenderem o abandono do conceito de classe, porém, oferecem uma sofisticada justificativa da sua atualidade, indissociável do imperativo de atualização teórico-metodológica no reexame das temáticas tradicionais da história social.

A seção de avulsos contém sete artigos. Abrangendo a história brasileira de meados do século XVII ao início do XVIII temos “Carreira e trajetória social na monarquia e no império ultramarino português, governadores gerais do Estado do Brasil (1640-1702)”, de Francisco Carlos Cosentino, e “Um espelho possível de santidade na Bahia colonial: madre Vitória da Encarnação (1661-1715)”, de William de Souza Martins. Em “As Câmaras e o Ensino Régio na América Portuguesa”, Thais Nivia de Lima e Fonseca examina um período imediatamente posterior, que se estende de meados do século XVIII às primeiras décadas do XIX. Libertad Borges Bittencourt, por sua vez, trata de um personagem chave do processo de independência da Colômbia em “Escrever, contar, guardar: o diário de Santander no exílio europeu (1829-1832)”. Três artigos tratam de vertentes políticas do Brasil do século XX: “O pensamento corporativo em Miguel Reale: leituras do fascismo italiano no integralismo brasileiro”, de João Fábio Bertonha; “Cruzada pela democracia: militantes católicos no Brasil republicano”, de Ana Maria Koch; e “Os petistas e a crise do socialismo real: os desafios da renovação e as heranças das esquerdas tradicionais”, de Izabel Cristina Gomes da Costa.

O número encerra-se com quatro resenhas. A primeira delas, escrita por Samuel Silva R. de Oliveira, analisa uma obra cujo foco relaciona-se diretamente à temática do nosso dossiê: A poverty of rights: Citizenship and inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro, de Brodwyn Fischer. Antonio de Pádua Bosi examina Cash for your trashScrap recycling in America, de Carl A. Zimring. O pequeno x: biografia e historiografia no século XIX, de Sabina Loriga, foi resenhado por Douglas Pavoni Arienti. Por fim, Lidiane S. Rodrigues comenta A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar, de Marieta de Moraes Ferreira.

Alexandre Fortes


FORTES, Alexandre. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.66, jul. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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