Utopias e distopias na contemporaneidade | PerCursos | 2020

Na abertura do filme “Arquitetura da destruição”, lançado em 1989, vê-se a sequência de imagens aéreas de uma pequena povoação, em meio à paisagem predominantemente natural. No desdobrar das imagens idílicas, o narrador anuncia uma característica fundamental do projeto nacional-socialista: a de ser um sonho de harmonia, pureza, força e beleza, em reação à ordem percebida como existente, na qual esses valores supostamente se degradavam e estariam às portas da aniquilação. Era preciso combater aqueles que ameaçavam esses valores e impediam a realização do sonho. Como se sabe, o que daí derivou concretizou-se como terrível pesadelo, vivido em vigília.

Visões acerca de um estado de coisas ideal, sonhado e desejado, que proporcionaria o bem viver, estão associadas às utopias. São traduzidas, às vezes, por projeções de um mundo de liberdade, igualdade, justiça, felicidade; outras vezes, associadas à prosperidade, segurança, ordem, harmonia. Já as distopias – etimologicamente, lugares ruins, hostis, doentios, imperfeitos, como destacou o historiador britânico Gregory Claeys (2017, p. 4) – configuram a negação da felicidade, ao inverter os termos valorizados nas utopias ou ao lê-los em outra clave. Assim, as projeções distópicas costumam ser caracterizadas por desigualdade, injustiça, ausência de liberdade; aquilo que, na perspectiva utópica, poderia ser considerado ordenado e harmonioso, nas distopias mostra dimensões controladoras, autoritárias, opressivas. Leia Mais

Mudanças climáticas e problemas ambientais |  PerCursos | 2020

No livro The Uninhabitable Earth: A History of the Future − publicado em 2019 e no mesmo ano traduzido para o português e editado no Brasil −, o jornalista estadunidense David Wallace-Wells, com base em projeções científicas de um aquecimento global de 4º a 4,5ºC até o ano 2100, discorreu sobre os problemas necessariamente gerados por essa provável alteração. Com variações conforme distintos pontos do globo, podem ser vislumbradas diversas catástrofes: derretimento de calotas polares; ondas de calor com grande poder letal; secas; incêndios florestais; enchentes; crises alimentares e sanitárias; intensas imigrações provocadas pela impossibilidade de sobrevivência nas novas condições do ambiente. O jornalista não se furtou a arrolar decisões urgentes a tomar: “um imposto de carbono e o aparelhamento político para eliminar agressivamente a energia suja; uma nova abordagem de práticas agrícolas e uma guinada na dieta mundial de carne e laticínios; e investimento público em energia verde e captura de carbono.” (WALLACE-WELLS, 2019, p. 276). Contudo, na atual ordem econômico-política mundial, qual a probabilidade de que essas decisões sejam tomadas e efetivadas, em larga escala? Leia Mais

Big Data, pós-verdade e democracia | PerCursos  | 2020

As tecnologias de informação e comunicação têm permitido capturar, armazenar e disseminar quantidades massivas de dados, sejam eles de indivíduos, governos ou corporações. Por seu volume e complexidade, tais dados exigem um tratamento cada vez mais sofisticado, o que traz novos desafios para diferentes profissionais, com destaque para cientistas da informação, programadores, estatísticos e matemáticos. Simultaneamente, o uso massivo desses dados no ambiente de negócios acende a luz de alerta para ameaças a direitos fundamentais dos cidadãos-consumidores. Dados pessoais são registrados de múltiplas formas e com frequência cedidos inadvertidamente, nas numerosas interações dos usuários da Internet. Com isso, os sistemas de monitoramento e vigilância se tornam uma constante, num fluxo quase indiscriminado entre as dimensões do público e do privado. Construir, analisar e controlar esses gigantescos repositórios de dados torna-se vital para conquistar ou assegurar hegemonias (econômicas, políticas, culturais) e exercer poder. Em paralelo, conjuntos expressivos de registros escritos, visuais e audiovisuais têm sido propositadamente disseminados, em larga escala, de forma errônea e distorcida, com grande peso na formação de opinião e, de forma bastante visível, enorme influência nos processos eleitorais recentes, em vários países, pondo em xeque os mecanismos tradicionais de garantias democráticas. Leia Mais

Memória, ética e reparação | PerCursos | 2019

Verdadeira obsessão nas décadas finais do século XX, o tema da memória tem ocupado diferentes campos disciplinares e gerou expressões cuja circulação se deu nos mais variados estudos, tais como “cultura da memória”, “batalhas de memória”, “dever de memória” e “lugares de memória”. Grosso modo, o debate tem se concentrado, de um lado, na memória articulada a ações de mercantilização de representações sobre o passado (como em revivals e guinadas “retrô” que tomaram a indústria da moda e do entretenimento). De outro, rapidamente derivou para demandas por reparação que, ao viés estritamente político, agregaram o jurídico, resultando, inclusive, nas chamadas leis memoriais, que tentaram estabelecer se e como determinados momentos e processos históricos deveriam ser narrados. Afirmou-se, com isso, que o passado continuava vivo no presente, embora memórias difíceis sobre tempos e episódios sombrios por muito tempo ficassem ocultadas, recalcadas. Vindas à tona, em um esforço doloroso de continuada exposição e reexposição dos traumas vividos, buscaram − e ainda buscam − não somente o reconhecimento de crimes perpetrados contra determinados grupos como a punição dos responsáveis. No horizonte, a recomposição das relações sociais por meio de uma nova ordem ética, pós-traumas. Leia Mais

Rússia revolucionária: repercussões, inspirações, ressonâncias e atualidade / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2017

Com a aproximação do centenário das revoluções russas de fevereiro e de outubro de 1917, multiplicaram-se as iniciativas acadêmicas e editoriais voltadas para a reflexão sobre seu lugar histórico (em especial, sobre o lugar ocupado pela revolução que marcou a vitória do projeto bolchevique). A magnitude daquele processo revolucionário forçosamente desencadeou, desde sua eclosão, análises e balanços, tanto positivos como negativos, de variados matizes. Mas constata-se que, em 2017, a distância temporal e, sobretudo, os desdobramentos pós-1989, esfriaram o calor apaixonado que marcou o debate sobre o movimento responsável por levar um país predominante agrário ao topo do socialismo internacional, convertendo-o em referência central, para o bem ou para o mal, de todo movimento de esquerda, em escala planetária. Outubro de 1917 desalojou a Comuna de Paris do posto de inspiração revolucionária fundamental para as esquerdas, em nível internacional; nas décadas seguintes, os olhares fervorosos daqueles que desejavam “assaltar os céus” voltaram-se para o leste. Pois ali forjava-se um “novo mundo” e emergiam práticas sociais inusitadas, novas tramas de sociabilidade, uma nova linguagem – enfim, um novo homem e uma nova mulher, para um futuro solidário de igualdade social, econômica e política. “Ouvir a música da revolução”, aconselhou o poeta Aleksandr Blok, sugerindo tratar-se de muitos timbres e vozes. Os desafios eram imensos. As possibilidades, ainda maiores…

Passados cem anos, muitos se lançam a apontar acertos e a repartir equívocos por vários ombros, mas principalmente a humanizar personagens e processos, compreendendo-os na contingência da ação. Num certo sentido, um século pode parecer tempo suficiente para se repensar um fenômeno histórico tão marcante. Todavia, não é a distância temporal que nos garante a escolha dos pontos “certos” de observação. Como indicou Walter Benjamim, em uma de suas teses sobre o conceito de História: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.”

Mais do que simplesmente realizar o registro de uma efeméride, o dossiê Rússia revolucionária: repercussões, inspirações, ressonâncias e atualidade, ao ser proposto, pretendeu, de um lado, estimular pesquisadores do campo da História e de áreas afins a se debruçar sobre a história e as memórias dos projetos revolucionários que se espraiaram pela Rússia de 1917 e a partir dela; de outro lado, debater o papel cumprido pela derrubada do regime czarista e pela tomada do poder pelos bolcheviques no imaginário e nas lutas dos movimentos sociais de vários países, ao longo de cem anos. Quais os sentidos daquele momento histórico em um presente fortemente atravessado por intolerâncias, exclusões, discriminações e ódios de classe, de gênero, étnicos e religiosos? Qual o significado do processo revolucionário russo de 1917, na atualidade, para a configuração do pensamento de esquerda e, mesmo, de direita? Ele ainda pode atuar como motor das utopias de transformação social? Ou, como parte da esquerda sugere, seria necessário esquecê-lo e superá-lo, para tornar possível a reconstrução da utopia de uma sociedade justa e igualitária?

A Rússia revolucionária que problematizamos hoje é aquela que ainda pode dizer algo sobre o nosso tempo, sobre nós mesmos e nossos dilemas. Nesse sentido, o dossiê tem a Revolução Russa como referência, mas certamente vista de um país periférico, do sul do mundo, neste ano da graça de 2017 que nos coloca frente às angústias, incertezas e ambiguidades de um novo golpe contra a democracia, gerador, em curto período, de um retrocesso de décadas. Talvez seja essa a chave que torne particularmente importante, atual e necessária, a leitura dos artigos e resenhas do dossiê.

No artigo Rastros do Realismo Socialista na América: trajetórias e conflitos na primeira metade do século XX, Tiago da Silva Coelho foca nossa atenção no papel social da arte, ao dar destaque para os debates latino-americanos e os desdobramentos do realismo socialista no muralismo mexicano, nos trabalhos de Diego Rivera, David Siqueiros e José Orozco, bem como na obra do brasileiro Candido Portinari.

Os ventos do leste movem moinhos: o impulso revolucionário de 1917 na criação do PCB, artigo de Rodrigo Lima, problematiza as influências da Revolução de Outubro de 1917 no contexto histórico latino-americano e no brasileiro, em especial, tornando-se o impulso decisivo para a criação do PCB em 1922. Caso único na história da criação de partidos comunistas, o PCB originou-se não de um agrupamento de socialistas de esquerda insatisfeitos com suas políticas de conciliação, mas das insuficiências que foram vislumbradas no anarquismo, incapaz de manter, pela força das leis, as conquistas obtidas com uma sofisticada rede de solidariedade e organização.

O artigo Fascínio e desencanto: apontamentos acerca de uma narrativa de viagem à URSS, de Edison Lucas Fabrício, nos leva a refletir acerca da relação entre viagem, memória e narrativa, com base no livro Lágrimas na chuva – uma aventura na URSS, de Sérgio Faraco. Embora a experiência de viagem tenha ocorrido na década de 1960, o relato de Faraco foi publicado primeiramente apenas em 2002, na forma de capítulos, na imprensa no Rio Grande do Sul. Essa distância temporal deveu-se à prisão do autor, em 1965, e aos “anos de chumbo”, que tornavam no mínimo imprudente quem se aventurasse a um relato como esse, que tece considerações sobre o cotidiano da União Soviética, em meados da década de 1960, e sobre as relações estabelecidas com os militantes do Partido Comunista Brasileiro (partido ao qual Faraco se filiou quando residia no município catarinense de Blumenau).

Três resenhas dialogam fortemente com os artigos do dossiê, referindo-se a publicações feitas no Brasil, em 2017, que sintomaticamente dão ênfase à divulgação de materiais produzidos na Rússia revolucionária, na sua maior parte até então inéditos em português. Fabrício Leal de Souza comenta a coletânea organizada por Daniel Aarão Reis Filho, Manifestos vermelhos e outros textos históricos da Revolução Russa; Jorge Luiz Zaluski apresenta o livro A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética – artigos, atas, panfletos, ensaios, organizado por Graziela Schneider Urso; Camila Zucon Ramos de Siqueira e Frederico Alves Lopes tratam do livro A construção da Pedagogia Socialista: escritos selecionados, com textos de Nadezhda Krupskaya. Livros que agregam novos elementos às reflexões sobre o marco revolucionário de 1917, também elas centenárias.

Além dos textos e resenhas que compõem o Dossiê, neste número trazemos os artigos: A regeneração, pela ordem, contra a anarquia: o léxico político da criação da província Cisplatina (1821-1823), cujo autor é Murillo Dias Winter; História ambiental da Capitania de Goiás: mineração e transformação agroecológica da terra (1726-1822), por Fabíula Sevilha; Notas sobre a história ambiental e sua trajetória na Itália, escrito por Gil Karlo Ferri e José Carlos Radin; Breve análise de requerimentos de compra de terras devolutas do termo de Lages: interface entre história política e história agrária, por Flávia Paula Darossi.

Vpered! – em russo, avante! Boa leitura!

Adriano Luiz Duarte (UFSC)

Janice Gonçalves (UDESC)


DUARTE, Adriano Luiz; GONÇALVES, Janice. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.30, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Cotidiano e política in memorian: Americo Augusto da Costa Souto / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2011

O Brasil republicano tem espaço destacado no número 19 de Fronteiras – Revista Catarinense de História, cuja capa apresenta trabalho fotográfico de Mariana Rotili da Silveira intitulado “Fé cega, faca amolada”, elaborado a partir de registro feito no centro de Florianópolis em abril de 2010.

No dossiê “Cotidiano e Política”, a Primeira República é enfocada em dois dos quatro artigos, os demais concentrando-se em duas décadas do período posterior – a de 1940 e a de 1970. As aproximações e os distanciamentos entre cotidiano e política são tratados com ênfases e perspectivas distintas nestes trabalhos, que apresentam experiências históricas marcantes em localidades do norte, nordeste e sudeste do país, atravessadas por dimensões dos mundos do trabalho, movimentos migratórios, trocas econômicas e culturais, projetos e ações políticas, atividades jornalísticas e circulação de impressos.

O primeiro artigo do dossiê, de autoria de Helder Remígio de Amorim, põe em destaque a cidade de Arcoverde, ponto nevrálgico de caminhos pelos quais circularam e circulam mercadorias no sertão pernambucano. Buscando examinar mais detidamente o comércio popular de alimentos nos anos 1970, o artigo fundamenta-se principalmente em fontes orais, salientando trajetórias de vida de bodegueiros que pontuam outros momentos históricos e diferentes espaços geográficos.

As transformações da cidade de Manaus na Primeira República, de modo a implantar uma “ordem burguesa”, são destacadas por Luciano Everton Costa Teles, que também examina a presença dos operários, além das representações e ações que com eles se ocuparam na Manaus republicana. Daí, também, a análise dos registros a este respeito contidos no periódico Vida Operária.

Geraldo Magella de Menezes Neto aborda em seu artigo as relações entre jornais e folhetos de cordel, tomando como referência crime ocorrido em 1942 (o “crime da praça da República”), na capital do Pará. Os fatos cotidianos e, em especial, os fait divers cobertos pela imprensa são examinados em sua passagem para a literatura popular, que no caso estudado foi feita pelo poeta Arinos de Belém. Trata-se de um estudo interessante sobre leituras e representações de aspectos do cotidiano feitos por impressos de perfil bastante diferenciado.

Fechando o dossiê, artigo de Luciana da Silva Santos mostra como eram estreitas as relações entre redes de abastecimento (em especial, de carne) e a vida político-partidária no Rio de Janeiro dos inícios republicanos. Põe em destaque um grupo político atuante na área rural da capital republicana (o “Triângulo”), que buscava apoiar sua linha de ação no controle da administração do Matadouro de Santa Cruz e na defesa do abastecimento regular de carne verde, sem escassez ou carestia.

Nas resenhas, quatro livros são colocados em destaque. Julia Uzun apresenta livro organizado por Adrián Ascolani e Diana Gonçalves Vidal, que focaliza projetos educacionais elaborados e desenvolvidos no Brasil e na Argentina nos séculos XIX e XX, em um exercício de história comparada. Já Adelson André Brüggemann detém-se em livro de Peter Beattie (Tributo de sangue) que aborda a trajetória do Exército brasileiro entre 1864 e 1945. Na resenha de Daniela Pistorello são tratadas as relações entre preservação e turismo em Angra dos Reis e Paraty, a partir do livro Entre ilhas e correntes, de Aline Vieira de Carvalho. Na última resenha, Felipe Matos põe em destaque o relato biográfico de Rubens Borba de Moraes registrado em Testemunha ocular (recordações).

Entre os artigos do dossiê e as resenhas, foi reservado espaço para homenagear o Prof. Américo Augusto da Costa Souto, historiador que foi professor na Universidade Federal de Santa Catarina por vários anos, tendo também atuado no então Núcleo Regional de Santa Catarina da Associação Nacional de História, e que faleceu em 9 de agosto de 2011, poucos meses antes de completar 80 anos.

Antecedido por texto de Norberto Dallabrida que apresenta brevemente o historiador catarinense Américo Augusto da Costa Souto, é republicado nessa homenagem, em edição revisada, o artigo Estudos: os vários ritmos da evolução histórica (modelo didático baseado nas teorias de F. Braudel), originalmente editado no primeiro número da Revista Educação e Ensino de Santa Catarina, de julho de 1972. Trata-se de artigo que sistematiza a interpretação do Prof. Américo acerca das ideias braudelianas sobre o tempo histórico, propondo uma aplicação para o ensino de História Moderna e História Contemporânea na graduação em História.

Aos autores, nossos agradecimentos por colaborarem com a revista. Aos leitores, nossos votos de uma boa e proveitosa leitura.

Janice Gonçalves – Editora de Fronteiras – Revista Catarinense de História


GONÇALVES, Janice. Editorial. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.19, 2011. Acessar publicação original [DR]

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História e Cinema / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2010

O número 18 de Fronteiras – Revista Catarinense de História é o primeiro a ser publicado de forma exclusivamente digital, através da World Wide Web, no sítio eletrônico da ANPUH-Seção SC. Esperamos com isso ganhar mais agilidade na produção e na disseminação da revista e alcançar um número maior de leitores!

A publicação on line está também associada ao projeto RCH Digital, desenvolvido pela Diretoria da ANPUH-Seção SC (Gestão 2010- 2012), e que objetiva disponibilizar na rede mundial de computadores, no sítio eletrônico da entidade, todas as edições do periódico, desde 1990. Cada edição da revista registra, a sua maneira, debates, percepções, fazeres e perspectivas do campo historiográfico. Ao procurar garantir o acesso à totalidade dos números editados da Revista Catarinense de História (em 1998 transformada em Fronteiras – Revista Catarinense de História), a Diretoria da ANPUH-Seção SC quer contribuir para uma melhor avaliação das propostas e dos projetos delineados na publicação, ao longo de sua trajetória, através de diferentes sujeitos e a partir de distintos lugares de fala. Em suma, a análise de rupturas e permanências, balanço ao qual os historiadores costumeiramente se entregam e que merece ser efetuado também em relação a esse periódico teimosamente editado há 20 anos.

Neste número 18, que é relativo a 2010 mas que, lamentavelmente, pôde ser editado apenas em 2011, os anos 1960 e 1970 estão significativamente presentes, em todas as seções da revista.

No dossiê História e Cinema, aquele período histórico é abordado em três artigos: “Travessuras em superoito milímetros: o cinema em liberdade de Torquato Neto”, de Edwar de Alencar Castelo Branco; “O terceiro cinema em Florianópolis: duas ficções e um documentário experimentais (1968 a 1976)”, de Sissi Valente Pereira; e “Imagens e história da industrialização no Brasil: a pesquisa histórica e a produção do documentário Libertários”, de Lauro Escorel Filho (1976), de Rafael Rosa Hagemeyer.

As “travessuras” torquateanas são remetidas a dois filmes em superoito, feitos em Teresina, que Torquato Neto roteirizou, dirigiu e nos quais atuou: O Terror da Vermelha e Adão e Eva do Paraíso ao consumo. Através de Torquato Neto, busca-se pensar percepções e ações de uma geração de jovens que, em vários locais do país, interrogavam seu mundo e, em especial, sua relação com a linguagem. Temas que são discutidos em livro organizado pelo autor do artigo e que é, aliás, objeto de uma das resenhas que compõem este número 18, elaborada por Fábio Leonardo Castelo Branco Brito. Sissi Valente Pereira aborda três filmes de curta-metragem que, entre 1968 e 1976, em Florianópolis, dialogaram com o cinema experimental, revelando preocupações estéticas, filosóficas e políticas peculiares, bem como novos olhares sobre a cidade. Já o artigo de Rafael Rosa Hagemeyer convida à reflexão sobre as interações entre Cinema e História a partir de um instigante relato sobre as condições de produção do documentário Libertários. Problematiza as relações do filme com os temas e os materiais de arquivo nele enfocados (relativos à experiência anarquista brasileira do início do século XX) e com o próprio momento histórico em que foi produzido.

Debruçando-se sobre outro período, Bianca Melyna Filgueira, em “A mise-en-scène do Estado Novo e os filmes premiados pelo DIP: reflexões metodológicas para uma análise”, ensaia a análise do filme Pureza, de 1940, premiado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP.

Em um dossiê onde predominam experiências cinematográficas no Brasil (enfocadas em quatro dos cinco artigos), José Luis de Oliveira e Silva se diferencia por trazer reflexões acerca de uma produção estadunidense, Atividade paranormal, de 2009. O autor concentra-se na análise dos elementos próprios à construção da narrativa de terror mobilizados no filme, dando destaque para a forma com que são nele agenciadas as categorias de tempo e espaço. Note-se que o artigo também dialoga com questões abordadas em outros textos do dossiê, como os limites tensos e tênues entre o documental e o ficcional cinematográficos.

Mesmo fora do dossiê, dois outros artigos continuam a tematizar manifestações artísticas. Em “Entre imagem e história – Lindonéia”, Mara Rúbia Sant’Anna e Monike Meurer propõem reflexões sobre o contexto político e cultural brasileiro na segunda metade dos anos 1960 a partir da personagem “Lindonéia”, presente em obra pictórica de Rubens Gerchman e em canção de Caetano Veloso interpretada por Nara Leão. Já em “Sinais em trânsito: Roadsworth e a arte de asfalto”, Daniel Pereira Xavier de Mendonça destaca as obras de artista canadense contemporâneo que relê os signos urbanos, desafiando sua banalidade ao propor conexões inesperadas e desenhos inusitados no asfalto pisado pelos passantes – intervenções que desestabilizam os olhares sem negar a transitoriedade de sua presença.

O último artigo apresentado é justamente aquele que foi primeiramente enviado para este número da revista, ainda em fevereiro de 2010. Augusto da Silva e Adenilson da Rosa, em “Antes do Oeste Catarinense: aspectos da vida econômica e social de uma região”, problematizam, sobretudo a partir de inventários post mortem, aspectos econômicos e sociais, entre o final do século XIX e 1930, da região que ficaria conhecida como “Oeste Catarinense”, oferecendo preciosos elementos de reflexão acerca de sua história.

A propósito do centenário da morte de Joaquim Nabuco, comemorado em janeiro de 2010, fecha o número da revista a resenha de Ademir Luiz da Silva, sobre o livro O encontro de Joaquim Nabuco com a política: as desventuras do liberalismo, de Marco Aurélio Nogueira. Aos autores, nossos agradecimentos por colaborarem com a revista.

Aos leitores, nossos votos de uma boa e proveitosa leitura.

Janice Gonçalves


GONÇALVES, Janice. Editorial. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.18, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Campos da História / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2009

Uma paisagem árida cujo horizonte anuncia sua monótona continuidade. Ausentes pessoas, animais, vegetação. Entre as pedras do solo, próximas à estrada, protuberâncias arredondadas são percebidas, mas sua identificação não é imediata nem certa: seriam balas de canhão? Neste cenário inóspito da Crimeia, em 1855, Roger Fenton realizou dois registros fotográficos. O título que ambos receberam − O vale da sombra da morte – empresta dramaticidade ao território, tornando-o emblema de desolação ao remeter às mortes geradas por muitas batalhas. Os próprios combatentes britânicos da Guerra da Crimeia teriam passado a reconhecer o local como “vale da morte”, e o título dado por Fenton, ao combinar essa percepção a uma passagem bíblica, busca ganhar ainda mais força junto aos receptores da imagem.

Fenton fotografou episódios da Guerra da Crimeia sem registrar combates nem cadáveres – de um lado, porque os próprios meios técnicos dos quais dispunha exigiam longo período de exposição do material fotográfico para captação da imagem desejada; de outro, porque as autoridades britânicas que autorizaram sua presença na região do conflito não aprovavam imagens de mortos e mutilados. As fotos daquele “vale da morte”, porém, passariam a aludir às perdas e às dores humanas na guerra sem que a exibição de corpos sem vida ou agonizantes fosse necessária.

A capa de Fronteiras estampa o que foi provavelmente o primeiro dos dois registros fotográficos de Roger Fenton naquele local. Mas a questão é polêmica, pois o outro registro, diferentemente da imagem da capa, mostra várias balas de canhão distribuídas harmoniosamente ao longo da mesma estrada (a comparação das duas imagens pode ser feita, aliás, na página final deste número da revista). Como explicar a diferença? Teria Fenton interferido no cenário, alterando a disposição das balas de canhão que já se encontravam ali? Teria acrescentando outras? Se houve a redistribuição espacial das balas, poderia ela ser explicada pela ação de combatentes, interessados em facilitar sua remoção e reutilização? O registro fotográfico de Fenton, afinal, atestaria uma dada situação – a ele poderia ser atribuído valor documental? Ou seria intervenção criativa, reelaboração ficcional do fotógrafo a partir do real, de modo a torná-lo mais eloquente?

Do ponto de vista da História, as imagens produzidas por Fenton põem em causa a relação estabelecida pelos sujeitos históricos com seu próprio presente, bem como os elementos materiais que nascem dessa relação, interpretados pelos historiadores como evidências do real, vestígios de práticas e experiências a problematizar. Testemunhas e testemunhos, intenções de verdade, tramas ficcionais, tensões entre passado, presente e futuro são elementos continuamente considerados no fazer historiográfico. Não sem razão, portanto, tais elementos são discutidos nos textos deste número da revista, em especial nos artigos do dossiê “Campos da História”.

Sete artigos compõem o dossiê, que é aberto por texto de Fernando Gil Portela Vieira sobre as relações entre história e literatura, no qual a ficção é apresentada mais como traço de união do que de separação entre as duas áreas. Recuperando elementos fundamentais dessa discussão no debate historiográfico, o autor se atém particularmente às questões trazidas no bojo da “virada lingüística” e da emergência de uma historiografia pós-moderna.

A escrita da história ocupa também lugar privilegiado no artigo de Rogério Chaves da Silva, que valoriza a contribuição teórica de Jörn Rüsen. Destaca-se como, nas reflexões de Rüsen, a história tem suas especificidades disciplinares definidas tanto pelos procedimentos metodológicos adotados como por sua estreita ligação aos interesses e demandas da vida prática, que articulam sentidos para a produção do conhecimento histórico.

Na linha de uma “história da história”, Arnaldo Haas Júnior trata especificamente do lugar dos estudos de história local na historiografia contemporânea, bem como problematiza os perfis diversos daqueles que compartilham com os historiadores a tarefa de escrever textos de caráter histórico. No horizonte das considerações do autor estão as relações da historiografia catarinense com a história local, tal como praticada, no pós1945, por diferentes “produtores de história”.

Tiago de Melo Gomes examina a presença da política, da diplomacia e da guerra em obras de autores vinculados às diferentes gerações dos Annales, como Bloch, Braudel, Duby e Le Roy Ladurie. Busca demonstrar que, apesar das críticas do movimento dos Annales a uma história tradicional ou “historizante” (como a denominou Febvre), tais autores não conseguiram com ela romper ao enfrentar aqueles temas.

O imbricar de memória e narrativa na percepção e na recepção de registros fotográficos é tema do artigo de Tati Lourenço da Costa, cujo título traz a marca indelével da inspiração proustiana, entre outras influências significativas, como Roland Barthes e Ecléa Bosi. As imagens fotográficas aparecem aqui na plenitude de sua condição de vetores de sensações e sentimentos.

Das imagens apropriadas pelos processos de memória caminha-se para aquelas que buscam prioritariamente provocar o riso: no artigo de Michele Bete Petry e Emerson César de Campos são problematizadas as dimensões gráficas do humor (caricaturas, charges, cartuns).

Fecha o dossiê artigo de Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho, voltado para os desafios que se colocam à produção de caráter histórico que toma para si a empreitada de pensar, em especial, o tempo presente.

Embora não diretamente relacionados ao dossiê, são também instigantes para pensar os campos da História os quatro artigos e as duas resenhas que compõem o restante deste número da revista Fronteiras.

Primeiramente, o artigo de Ana Paula Pruner de Siqueira, que deveria ter integrado o número anterior da revista (como, aliás, assinalava a contracapa daquela edição). O número 17 de Fronteiras corrige o equívoco e apresenta o texto da autora, resultante de suas pesquisas em nível de mestrado relativas à escravidão nas atividades pecuaristas em Palmas, no Paraná, durante a segunda metade do século XIX.

Mas, como são vários os “mundos do trabalho”, das considerações sobre o trabalho escravo na Província do Paraná o leitor poderá seguir para as reflexões de Juçara da Silva Barbosa de Mello sobre as relações entre trabalho fabril, cultura operária e futebol no Distrito de Santo Aleixo, em Magé, Rio de Janeiro.

Iuri Cavlak, abordando o período desenvolvimentista, permite repensar as relações diplomáticas entre Brasil e Argentina com base em documentos por ele consultados no arquivo pessoal do político argentino Arturo Frondizi, há pouco tempo disponibilizados à pesquisa.

Religiosidade e patrimônio cultural mesclam-se no artigo de Patrícia Ferreira dos Santos, que apresenta a peculiar trajetória do templo em devoção a Sant’Ana, em Mariana, e sua história de afastamento e reaproximação em relação à comunidade do Gogô.

As duas resenhas contidas neste número de Fronteiras contemplam publicações efetuadas em 2007. Cristiane Cecchin aborda o livro Tecnologia e estética do racismo: ciência e arte na política da beleza, coletânea que reúne textos da historiadora Maria Bernardete Ramos Flores sobre a imbricação, no Brasil de inícios do século XX, de perspectivas nacionalistas, modernizadoras e racistas que convergiram para a modelagem de um brasileiro ideal. Belo e perfeito em sua adequação aos moldes europeus, tal brasileiro imaginário tentaria ser alcançado por meio de ações diversas que articularam arte e ciência. Sandor Fernando Bringmann, por sua vez, resenha o livro de Luísa Tombini Wittmann sobre as tensões e trocas culturais entre os grupos Xokleng e os indivíduos envolvidos nos empreendimentos de colonização do Vale do Itajaí, entre 1850 e 1926.

Cada uma das três seções da revista – relativas ao dossiê, aos demais artigos e às resenhas – tem, em sua página de abertura, uma imagem fotográfica produzida por Mariana Rotili da Silveira, graduanda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina. Os trabalhos fotográficos aqui apresentados são cenas captadas em 2009 nas ruas de Florianópolis.

O conjunto de artigos e resenhas reúne pesquisadores de perfis variados, apenas uma parte deles atuante em Santa Catarina, e contempla ampla gama de tipos documentais, além de diferentes recortes espaciais e temporais. Oferece, assim, amostra significativa de problemas, abordagens e estilos que atravessam a produção historiográfica brasileira contemporânea. Apreendidos em sua totalidade, textos e imagens presentes na revista permitirão ao leitor estabelecer diálogos que seus autores, por certo, não previram nem suspeitaram. Aproximações e distanciamentos desenham-se em temas, referências, concepções – desenhos que agora caberá a cada um configurar na leitura.

Janice Gonçalves


GONÇALVES, Janice. Editorial. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.17, 2009. Acessar publicação original [DR]

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