História Pública: as faces de Clio no cotidiano da sociedade | Faces de Clio | 2022

Luis Inacio Lula da Silva Imagem DW

Luís Inácio Lula da Silva | Imagem: DW

Ser pesquisador/a no Brasil nunca foi uma tarefa fácil. O país, que tradicionalmente sempre formou seus doutores no exterior, somente promoveu a alfabetização ampla e gratuita na segunda metade do século XX, sendo que as camadas de menor poder aquisitivo só tiveram real acesso às Universidades Federais há pouco mais de dez anos por meio, principalmente, da implementação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) como forma de ingresso a esses espaços até então reservados às elites. Segundo dados disponibilizados pela Casa Civil (2014, online), em 2004, “20% mais ricos representavam 55% dos universitários da rede pública e 68,9% da particular”. Esse dado impressionante só é sobreposto por outro ainda também exposto no texto: “acesso de estudantes pobres à universidade pública cresce 400% entre 2004 e 2013”.

As razões deste feito brasileiro estão intimamente associadas ao cenário político que, naquele momento, tinha como chefe da república um operário: Luís Inácio Lula da Silva. Ou somente, Lula. Integrante do Partido dos Trabalhadores, durante sua gestão (2003-2011) a maior parte da população brasileira teve acesso não só a bens de consumo, devido à valorização do real e tantas outras políticas econômicas, como também pode viver dignamente com acesso a saúde e educação de qualidade. Durante seu governo, conforme dados do Instituo Lula (2019, online), foram criadas 18 universidades federais e 173 campus universitários, sendo que de 2003 a 2014 o número de discentes passou de 505 mil para 932 mil. Leia Mais

História, cotidiano e memória social – a vida comum sob as ditaduras no século XX / Estudos Ibero-Americanos / 2017

Por uma história do cotidiano dos regimes autoritários no século XX

Em língua portuguesa, os dicionários comportam pelo menos duas definições para a palavra cotidiano: primeiramente, significa o “conjunto das ações que ocorrem todos os dias”, mas é também aquilo que “não é extraordinário; comum ou banal”. Já no idioma inglês, as palavras everyday e daily aparecem como sinônimos podendo significar, de acordo com o Oxford English Dictionary, “happening or used every day”. O vocábulo daily, por sua vez, se tem uma definição muito próxima da de everyday (“one, produced, or occurring every day or every weekday”), comporta também outros sentidos. É o que verificamos, por exemplo, na expressão daily life, a qual possui acepção bastante similar ao segundo significado que a palavra cotidiano possui em português: “the activities and experiences that constitute a person’s normal existence”. Na língua espanhola, também é possível distinguir dois termos diferentes: cotidiano, para se referir ao que “ocurre con frecuencia, habitual” e cotidianidad, entendido como a “característica de lo que es normal porque pasa todos los días”. Assim, o cotidiano pode estar ligado, ao mesmo tempo, às ideias de repetição e rotina e à de normalidade.

O dossiê História, cotidiano e memória social: a vida comum sob as ditaduras no século XX, que ora apresentamos ao leitor, tem como proposta justamente a reflexão sobre o cotidiano. A rigor, uma dupla reflexão: pretende, em primeiro lugar, debater as possibilidades, os contornos e os limites do que podemos denominar uma história da vida cotidiana e sua inscrição no âmbito dos múltiplos significados que o termo pode admitir. Assim, trata-se de refletir sobre o cotidiano como objeto historiográfico a partir daquilo que ele representa em termos de repetição, de rotina, ou antes, de rotinização da vida; mas também como aquilo que pertence ao universo do ordinário, de uma “existência normal”. Ao mesmo tempo, a proposta se concentra principalmente nas possibilidades de se pensar o universo do cotidiano em um quadro de exceção; o ordinário no contexto do extraordinário. Dito de outra forma, trata-se de questionar: é possível pensar a reprodução da vida cotidiana no quadro dos diversos regimes autoritários que tiveram lugar no século XX? Como podemos elaborar uma reflexão sobre os fatos banais da vida daqueles que não se sentiram concernidos por tais regimes, os quais tinham como base o terror de Estado e a disseminação do medo? Como se davam as reivindicações de uma “existência normal” em conjunturas excepcionais, de violência política e de ditaduras?

Para as ciências sociais, para a história, em particular, tratar o cotidiano pode constituir desafiadora empreitada, na medida mesmo em que o interesse historiográfico pelo objeto reside justamente nas possibilidades de articular a reflexão a partir de ambas as dimensões: a análise das atividades do dia-a-dia como aspecto decisivo para a compreensão de determinada sociedade no tempo; bem como as perspectivas de elaborar historicamente este sentido que o vocábulo comporta do que não é extraordinário, do que é banal e comum. Michel de Certeau, em seu estudo pioneiro, A invenção do cotidiano, fala das pesquisas que desenvolveu sobre o tema como uma “interrogação sobre as operações dos usuários, supostamente entregues à passividade e à disciplina” (CERTEAU, 1998, p. 37). Dialogando, então, com o que eram as recentes pesquisas de Michel Foucault, Certeau questiona:

Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também “minúsculos” e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados”?) dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política (CERTEAU, 1998, p. 41).

Assim, Certeau descreve seu trabalho como uma tentativa de constituir certo aparato metodológico para que se possa delimitar um campo, refletindo sobre o estudo do cotidiano a partir da ideia de práticas comuns, introduzindo-as “com as experiências particulares, as frequentações, as solidariedades e as lutas que organizam o espaço onde essas narrações vão abrindo caminho” (CERTEAU, 1998, p. 35). A delimitação do campo, no entanto e apesar da vigorosa proposta metodológica de Certeau, não é algo simples. Como bem lembrou Peter Burke, citando Norbert Elias, do ponto de vista das ciências sociais, “a noção de cotidiano é menos precisa e mais complicada do que parece. Elias distingue oito significados atuais do termo, desde a vida privada até o mundo das pessoas comuns”. O historiador continua, sinalizando para o fato de que

Igualmente difícil de descrever ou analisar é a relação entre as estruturas do cotidiano e a mudança. Visto de seu interior, o cotidiano parece eterno. O desafio para o historiador social é mostrar como ele de fato faz parte da história, relacionar a vida cotidiana aos grandes acontecimentos, como a Reforma ou a Revolução Francesa, ou a tendências de longo prazo, como a ocidentalização ou a ascensão do capitalismo. O famoso sociólogo Max Weber criou um termo famoso que pode ser útil aqui: “rotinização” (Veralltäglichung, literalmente “cotidianização”). Um foco de atenção para os historiadores sociais poderia ser o processo de interação entre acontecimentos importantes e as tendências por um lado, e as estruturas da vida cotidiana por outro (BURKE, 1992, p. 23).

Burke considera, portanto, o cotidiano como um objeto dentro do amplo espectro da História Social. Nesse sentido, o desafio seria justamente refletir sobre a articulação entre os grandes acontecimentos e a rotinização da vida; a estrutura e a mudança; o eterno e o repetitivo de um lado e o instante e a ruptura de outro. Assim, caberia a pergunta: existe, como campo ou como área de estudos uma História do Cotidiano? Se existe, como e de quê ela se constitui? Luis Castells nos lembra que “no existe una corriente que se englobe tras esta denominación, con la excepción de Alemania, donde el movimiento Al [1] tagsgeschichte se ha constituido como un referente de aquella historiografia” (CASTELLS, 1995, p. 11).

Na Alemanha, desde pelo menos a década de 1970, historiadores como Richard van Dülmen, Hans Medick, Alf Lüdtke ou Dorothee Wierling vêm encarando, “o desafio de fundar uma antropologia histórica”, a qual por sua vez, se distancia do estruturalismo, dando lugar à subjetividade dos atores e às suas experiências pessoais. Daí a apropriação do conceito de habitus caro a Pierre Bourdieu, que concilia determinações sociais e oportunidades de desenvolvimento individual. Isso explica também a preferência, por exemplo, por estudos que se concentram em processos locais e regionais, bairros ou até mesmo algumas famílias. É sob este aspecto que a Alltagsgeschichte alemã se aproxima e dialoga com a micro-história praticada na Itália por Giovanni Levi e Carlo Ginzburg (LE MOIGNE, 2005, p. 30).

Analisando os processos a partir dos quais a Alltagsgeschichte tomou corpo na academia da República Federal da Alemanha ao longo da década de 1970, Nicolas Le Moigne explica que, no contexto alemão daquele período, tais premissas não estavam isentas de “implicações universitárias e mesmo políticas”. Também Alf Lüdtke, um dos grandes expoentes da Alltagsgeschichte alemã, reconhece que em fins dos anos 1970, formaram-se na RFA, grupos locais, preocupados com a Geschichte von unten (História dos de baixo) e com a Geschichte vor Ort (História local). Para o historiador, tais iniciativas partiam, frequentemente, dos fortes conflitos surgidos a partir de 1968 em centros de ensino, em meios burocráticos de conformação de políticas culturais e outros espaços públicos em torno do tema de um novo ensino de História (LÜDTKE, 1995, p. 54). Assim, se na França análises de micro-história encontraram espaço propício para se desenvolver no âmbito de uma História Social que se renovava, o mesmo não se passou na Alemanha com a Alltagsgeschichte: determinados historiadores passaram a “acusar os defensores da Alltag de fazerem pouco da tradição iluminista, colocando emoções e subjetividades no coração da análise histórica” (LE MOIGNE, 2005, p. 31). Sobre a Alltagsgeschichte alemã, Lüdtke explica:

La Alltagsgeschichte no es una disciplina especial. Se trata más bien de un enfoque específico del pasado. Este punto de vista no se limita a las ‘acciones de los dirigentes y de hombres de Estado’ tal y como se hacía predominantemente en la historia política y militar de antes. Por otro lado, esta visión de las experiencias y actuaciones del pasado no se reduce tampoco a coacciones anónimas de mecanismos estructurales. En el centro se encuentra más bien la conducta diaria de los hombres: tanto los prominentes como los supuestamente anónimos son considerados como actores históricos. Se reconstruyen las formas de la práctica en las que los hombres se ‘apropiaban’ de las situaciones en las que se encontraban. Este enfoque insiste en que cada hombre y cada mujer ha ‘hecho historia’ diariamente (LÜDTKE, 1995, p. 50).

Nesse sentido, a Alltagsgeschichte, embora tributária em alguma medida desta se afasta da History from below inglesa(LÜDTKE, 1995, p. 54). O conceito remete às questões da reprodução da vida dos indivíduos anônimos ou não, de origem popular ou das elites, buscando na dinâmica entre as esferas pública e privada elementos que possam contribuir para a compreensão dos modos de pensar e agir das pessoas em seu cotidiano. Nesse sentido, a amplitude do conceito pode resultar em problemas de delimitação do objeto ou da natureza mesma da História do Cotidiano. Luis Castells chama atenção para o fato de que:

Buena parte de sus problemas a la hora de precisar lo que se entiende por historia de la vida cotidiana deriva de su imprecisión, de sus vagos contornos, así como de su escasa teorización, cuando menos desde la perspectiva de los historiadores (CASTELLS, 1995, p. 11).

Não obstante, Castells relembra também que tais problemas são inerentes ao próprio campo da História Social. O que não se pode perder de vista quando se trata deste objeto ou campo de estudos, supostamente de contornos imprecisos, é justamente suas relações com o público. Dedicando-se ao estudo dos aspectos talvez mais triviais do dia-a-dia dos atores sociais, a História do Cotidiano não pode, no entanto, ser pensada separadamente da esfera política. Ao contrário, ao centrar as atenções no quadro microssocial, os historiadores do cotidiano concebem a história como um processo multidirecional, em constante transformação, em uma tentativa de apreender em sua complexidade os comportamentos coletivos (KOSLOV, 2010).

Ainda sobre a corrente alemã, Le Moigne explica que a Alltagsgeschichte deu prioridade a três campos de pesquisa: em primeiro lugar, os “parâmetros gerais da vida humana” que tendiam a ser considerados “a-históricos” na Alemanha: a sexualidade, o nascimento, as doenças, o amor, a morte; depois, ela se ocupou dos meios desenvolvidos pelos homens para gerir seu cotidiano: o vestuário, a habitação, nutrição e o trabalho. Por fim, a História do Cotidiano voltou-se para os comportamentos e as formas de adaptação em situações excepcionais, notadamente a Guerra, a crise econômica, as privações de liberdade, as ditaduras (LE MOIGNE, 2005, p. 32).

Aplicado ao caso do nazismo, a História do Cotidiano ajudava a melhor perceber a atração que o regime exerceu sobre a sociedade e as maneiras a partir das quais as “emoções se combinaram com interesses materiais e necessidades individuais durante o processo que possiblitou que a política de destruição e perseguição nazista fosse colocada em marcha” (KOSLOV, 2010). Em 1989, Alf Lüdtke publicava na Alemanha um trabalho com uma série de estudos sobre História do Cotidiano1. Especificamente no que concernia ao período do nazismo, o autor evocava algumas vezes o sofrimento dos atores e a necessidade por parte do historiador de elaborar – social e historicamente – tal sofrimento. Não obstante, no caso do nazismo, compreender as penúrias impostas pelo regime significava igualmente refletir sobre os comportamentos que as produziram ou que, de maneira mais recorrente, ao menos coexistiram com elas. Tratava-se de compreender aquilo que o autor chamou de fascismo comum (REVEL, 1995, p. 805-808).

Não obstante, Lüdtke reconhecia as dificuldades e controvérsias que as propostas da Alltagsgeschichte poderiam suscitar especificamente quando dedicadas a refletir sobre o nazismo (LÜDTKE, 1994, p. 2). Sob este aspecto, é fundamental nos colocarmos diante das questões levantadas por Detlev J.K. Peukert também para o caso alemão:

podemos, ou mesmo devemos, falar de “vida cotidiana” em uma era que, para as vítimas de perseguição e guerra, significou um perpétuo estado de emergência? Em face da monstruosidade dos crimes do nacional-socialismo, não deveríamos ficar em silêncio sobre as rotinas diárias banais da maioria que não sente que foi afetada ou envolvida? (PEUKERT, 1987, p. 21)

Assim, se a ênfase nos estudos dos fatos da vida cotidiana sob um regime criminoso pode colocar o historiador diante de importante questão ética, o mesmo Peukert nos lista uma série de razões pelas quais o estudo de um regime autoritário – o nazismo, no caso – sob a perspectiva da História do Cotidiano pode também fornecer bases interessantes para uma historiografia crítica, na medida em que retira o seu objeto de interesse justamente das contraditórias e complexas experiências da “gente comum”.

Também Alf Lüdtke defende que

apenas um estudo detalhado dos comportamentos e das tomadas de consciência individuais pode identificar as contradições com as quais lideram indivíduos e grupos sociais sob o nazismo. Assim, pode-se entender o funcionamento do movimento de massas que esteve na origem do triunfo e da manutenção do regime nacional-socialista (KOTT; LÜDTKE, 1991, p. 153).

Mas, as reflexões em torno da vida cotidiana sob regimes autoritários no século XX não ficaram, evidentemente, restritas ao caso alemão. A historiografia sobre tais experiências vem passando por um processo de renovação desde pelo menos as décadas de 1970 e 1980 na Europa e, mais recentemente, processo similar se verifica para o caso da América Latina. Nesse sentido, o trabalho com categorias como memória, opinião, consenso, consentimento e resistência têm sido fundamentais para compreender os regimes autoritários do século XX, em suas mais diversas essências e temporalidades em ambos os continentes. No mesmo movimento, o cotidiano foi tomado como objeto, interrogando sobre a pluralidade das atitudes coletivas e sobre as formas a partir das quais se teceram as relações sociais em seus ambientes cotidianos, moldadas pelos pressupostos dos Estados autoritários que as governavam.

Assim, é importante destacar, dentre tantos outros, o estudo realizado por Sheila Fitzpatrick sobre a vida cotidiana sob o stalinismo. Nele, a autora avalia que existem inúmeras teorias sobre a forma de se escrever a história da vida cotidiana. Algumas delas consideram que o cotidiano abrange essencialmente a esfera da vida privada: a família, o lar, a educação das crianças, os lazeres, as relações de amizade e a sociabilidade. Outros voltam suas atenções para o mundo do trabalho, os comportamentos e atitudes nos locais de trabalho. Já os especialistas da vida cotidiana sob regimes autoritários se interessaram principalmente pelas diferentes formas de resistência – ativa ou passiva – elaboradas pelos cidadãos ou pela questão da resistência cotidiana, no campo ou nas cidades (FITZPATRICK, 2002, p. 13).

É o que ocorre, por exemplo, no caso do Brasil, onde apenas muito recentemente verifica-se um processo de renovação historiográfica que busca refletir sobre a ditadura como um processo de construção social [2]. No que se refere aos debates a respeito das reflexões sobre o cotidiano e, especificamente, sobre as problemáticas em torno da articulação entre uma reflexão sobre as possibilidades de uma História do cotidiano sob ditaduras, os trabalhos existentes retomam, em primeiro plano, as questões que envolvem o dia-a-dia dos grupos de resistência e oposição ao regime.

Neste caso, trabalho pioneiro foi a reflexão desenvolvida por Maria Hermínia Tavares e Luiz Weiz a respeito do cotidiano de oposição da classe média brasileira durante a ditadura e que compõe o volume 4 da coletânea História da vida privada no Brasil. Os autores estudaram especificamente setores a que chamaram “classe média intelectualizada”: “estudantes politicamente ativos, professores universitários, profissionais liberais, artistas, jornalistas, publicitários, etc” e a vasta gama de comportamentos que definiam a oposição durante a ditadura (TAVARES; WEIZ, 1998, p. 327-328).

Tavares e Weiz chamam atenção, nesse sentido, para os diferentes modos de se relacionar com o espaço urbano que a clandestinidade impunha: o isolamento social em alguns casos, as dificuldades por parte das famílias de jovens militantes em “retomar uma existência cotidiana regular” e, por fim, a transformação do medo e da insegurança em “sensações básicas cotidianas e comuns a quem quer que tenha feito oposição à ditadura, marcando a fundo a vida privada dos oposicionistas” (TAVARES; WEIZ, 1998, p. 328).

É importante, no entanto, considerar que não foi apenas a vida cotidiana da oposição à ditadura que sofreu profunda alteração. Tampouco as sensações de medo e insegurança ficaram restritas a tais meios. Ao contrário, a temática da violência política e a sensação de que se poderia estar sob vigilância teria caracterizado o dia-a-dia de parcelas muito mais expressivas da sociedade e não apenas daqueles que se opuseram ao regime. A própria Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que ao fim forneceu a justificativa para o golpe e para a manutenção da ditadura, ao operar a partir de noções como as de guerra permanente e guerra total, contribuía de forma expressiva para moldar a vida cotidiana sob a ditadura. O dia-a-dia do “cidadão comum” foi, dessa maneira, invadido por tais noções e estes incorporaram, sob muitos aspectos, a essência da DSN, a qual residia mesmo “no enquadramento da sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica anti-subversiva contra o inimigo comum” (BORGES, 2007, p. 29).

Não obstante e de maneira geral, se em um primeiro momento a ideia de tomar o cotidiano sob regimes autoritários como objeto esteve vinculada às possibilidades de ampliar os estudos sobre as diversas formas de resistência, trabalhos mais recentes vêm propondo transcender este âmbito. Ainda de acordo com Fitzpatrick, tais análises buscam “dar ênfase às práticas, ou seja, às formas de comportamento e estratégias pessoais elaboradas para fazer face à condições sociais e políticas particulares” (FITZPATRICK, 2002, p. 14).

Sobre tais práticas e estratégias, talvez seja interessante ter em vista, de um ponto de vista teóricometodológico, aquilo que o historiador Andrew Stuart Bergerson observa para o caso alemão. Em seu estudo sobre alemães comuns em tempos incomuns, que toma como base as relações de vizinhança e em outros espaços cotidianos na cidade de Hildesheim, Bergerson busca compreender justamente “como pessoas comuns buscaram manter uma cultura de normalidade enquanto, não obstante, transformavam amigos e vizinhos em judeus e arianos” (BERGERSON, 2004, p. 6) [3]. Por “cultura de normalidade”, o historiador explica que não se refere a um estado natural, mas a um subproduto da cultura humana: “uma experiência gerada por uma forma específica de ser, acreditar e se comportar”. Nesse sentido, a cultura de normalidade fornece os elementos a partir dos quais as pessoas comuns se autodefinem como tais, tendo em vista ideias de impotência e insignificância, reforçando a construção de uma percepção sobre si mesmo que os aparta da História com H maiúsculo, mas que, de fato, apenas os habilita a “moldar a história” enquanto os envolve em uma autoilusão de inocência (BERGERSON, 2004, p. 6).

Sob este aspecto e como a ideia de homem comum ou de uma vida ordinária estão presentes e ligadas de certa maneira às possibilidades e questionamentos em torno da História do Cotidiano, é importante destacar que tais termos são entendidos aqui de maneira similar à proposta de Bergerson e relaciona-se, antes de tudo, à uma autoimagem ou autodefinição de si mesmos. Assim, para o autor, o termo comum [4] serve

não tanto para descrever um conjunto de pessoas que permaneceram fora dos círculos do poder público e da responsabilidade histórica. Ser comum era engajar-se em uma estratégia cultural específica de sobrevivência. Uma resposta criativa às rápidas e perturbadoras transformações históricas, essa forma de comportamento foi caracteristicamente moderna, mais que especificamente alemã, um hábito de vida diário (BERGERSON, 2004, p. 6).

Por fim, o que pretendemos ao propor este dossiê temático, considerando os pressupostos e as discussões em torno da chamada História do Cotidiano, foi chamar atenção para as possibilidades – e os limites – de se tomar como objeto de estudos a vida cotidiana sob regimes autoritários e / ou situações de guerra no século XX.

Nesse sentido, indagamos sobre como as vidas de pessoas não implicadas diretamente nos embates políticos em questão foram modificadas – ou não – por eles. Mais que isso, como estas pessoas perceberam, reagiram e se adaptaram a tais regimes em seus espaços de vivência cotidiana. Como segmentos sociais diversos lideram com os regimes políticos em questão, naturalizando, em níveis distintos, suas práticas e linguagem próprias? Quais comportamentos e “estratégias pessoais” utilizados diante das novas situações? Por outro, consideramos importante também pensar atores não tão “comuns” e seus espaços cotidianos: meios de comunicação, participantes de organizações armadas, ídolos musicais. Como veremos nas páginas que seguem, o conceito de cotidiano é ampliado, enriquecendo os questionamentos aqui apresentados.

Esta edição conta com quinze artigo, três resenhas e duas entrevistas. Abrindo o dossiê, o artigo de Fernando Perlatto “Svetlana Aleksiévitch, a Grande Utopia e o cotidiano: testemunhos e memórias do Homo Sovieticus”, analisa a obra da escritora bielorrussa a partir da reflexão da vida cotidiana dos homens e mulheres “comuns” ao longo dos anos de autoritarismo soviético. A autora contribui para pensarmos a relação entre grandes acontecimentos e a vida cotidiana do “Homo Sovieticus”. Por sua vez, Daniel Lvovich em seu texto “Vida cotidiana y dictadura militar en la Argentina: Un balance historiográfico” faz um levantamento e uma análise dos estudos que tomam como objeto a questão do cotidiano durante a última ditadura militar argentina (1976-1983).

Em “Mortes no mar, dor na terra. Brasileiros atingidos pelo ataque do submarino alemão U-507 (agosto de 1942)”, o terceiro artigo de nosso dossiê, Jorge Ferreira parte do ataque de retaliação do governo nazista a navios brasileiros para trabalhar as reações das vítimas e seus familiares sobre o referido episódio a partir de cartas publicadas em jornais. Também no contexto da década 1940, mas em Portugal, Carla Ribeiro em “A educação estética da Nação e a “Campanha do Bom Gosto” de António Ferro (1940- 1949)” analisa a iniciativa cultural durante o Estado Novo e sua proposta de criar uma consciência estética entre os portugueses, assim como as marcas que essa campanha deixou na identidade do país no século XX.

Os artigos de Lorena Soler e Diogo Cunha trabalham o cotidiano e questões de sociabilidade no contexto sul-americano: em “Sociabilidad y vida cotidiana. Los rituales del festejo de amistad durante el stronismo en Paraguay”, a autora também utiliza a imprensa como caminho de análise das formas de recreação cotidianas que geravam adesões ao autoritarismo stronista, com foco na organização civil Cruzada Mundial de la Amistad, apoiada pelo regime. Já Diogo Cunha em “Sociabilidade, memórias e valores compartilhados: o cotidiano na Academia Brasileira de Letras durante a ditadura militar através da Revista da Academia Brasileira de Letras” propõe, através da análise da revista citada no título, pensar como esta instituição pode ter servido como espaço de legitimação da última ditadura em nosso país. O autor destaca a intensa sociabilidade entre os membros da ABL e representantes do regime como parte desta legitimação.

Nina Schneider também trabalha o regime brasileiro em “Propaganda ditatorial e invasão do cotidiano: a ditadura militar em perspectiva comparada”. A historiadora propõe uma reflexão sobre os impactos da propaganda governamental no cotidiano sob ditadura, assim como os limites no respeito à vida privada por parte do regime. Para a autora, diferente dos casos do varguismo e do nazismo, a última ditadura brasileira não procurou politizar e mobilizar a sociedade através da propaganda.

Os trabalhos que seguem de Marcos Napolitano e Rodrigo Patto Sá Motta têm como foco a análise da grande imprensa como ator durante a ditadura civilmilitar no Brasil. Em “A imprensa e a construção da memória do regime militar brasileiro (1965-1985)”, Napolitano parte da análise desse ator para pensar o cotidiano ditatorial. Analisando os editoriais de quatro jornais da grande mídia (O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e O Globo) no aniversário do Golpe de 1964, o autor trabalha com a hipótese de que foi a linhagem ideológica, das guinadas e revisões da memória liberal sobre o regime presente nestes editoriais, que definiu as bases da memória hegemônica de “resistência democrática” sobre o período. Já Rodrigo Motta propõe em seu trabalho “Entre a liberdade e a ordem: o jornal O Estado de São Paulo e a ditadura (1969-1973)” pensar as representações políticas divulgadas pelo citado jornal para tentar compreender suas estratégias frente à ditadura que, segundo o autor, variaram entre a adesão e a acomodação.

Retornando à Argentina em “Vida cotidiana, violencia política y represión. La Argentina de los años setenta y de la post-dictadura a partir del Archivo Marshall T. Meyer”, Sebastián Carassai parte de um arquivo pessoal para analisar as diversas experiências da sociedade do país no contexto de violência política dos anos 1970 e 1980, incluindo o pós-ditadura. Com uma interessante variedade de fontes o autor reflete sobre a partir da experiência concreta de uma comunidade judia de classe média em Buenos Aires.

No artigo que segue, Ana Maria Mauad trabalha as últimas ditaduras na América do Sul em um contexto regional, a partir da análise de imagens particulares. “Imagens que faltam, imagens que sobram: práticas visuais e cotidiano em regimes de exceção 1960-1980” vai do contexto privado das fotografias familiares e sua migração para o espaço público e propõe a discussão do papel da fotografia na elaboração da imaginação civil na contemporaneidade. Também no campo das manifestações culturais, “Entre a política e o prazer: ditadura, arte e boêmia através do filme “Garota de Ipanema” (Leon Hirszman, 1967)”, de Carlos Eduardo Pinto de Pinto, o autor usa a obra cinematográfica citada para analisar as tensões entre política e prazer no cotidiano do Rio de Janeiro no último período ditatorial, trazendo ao debate imaginários como a boemia, a arte e a despolitização na época.

Já o artigo de Cláudia Cristina da Silva Fontineles: “O cenário esportivo como arena de disputas políticas: entre a memória recitada e o apagamento de rastros” utiliza uma vasta seleção de fontes históricas para discutir que papel nas disputas entre dois grupos políticos majoritários tiveram o estádio de futebol “Albertão” e o time de futebol Tiradentes no Piauí, entre as décadas de 1970 e 1980. O artigo aponta as disputas de memórias entre as múltiplas leituras do espaço esportivo feitas por aliados como parte da euforia desenvolvimentista e por opositores pelo uso como reafirmação da presença do governo de Alberto Silva (1971-1975).

Em mais um trabalho que tem a imprensa como objeto de análise, Nataniél dal Moro utiliza o periódico Correio do Estado para abordar conflitos de classe no artigo intitulado “Conflitos entre elite e povo comum na cidade de Campo Grande (décadas de 1960-70)”. O autor destaca que as matérias produzidas pelo periódico representam um discurso próprio do mesmo, e por isso um interessante meio de análise dos conflitos cotidianos da cidade.

Finalmente, o trabalho de Gustavo Alves Alonso Ferreira: ”Os Vandrés do sertão: Música sertaneja, ufanismo e reconstruções da memória na redemocratização”, fecha a seção de artigos desse dossiê. Alonso discute a imagem de apoiadores da ditadura que carregam os artistas sertanejos. Se por um lado muitos deles de fato apoiaram a ditadura em determinado momento, como tantos outros artistas de gêneros musicais distintos, no período da redemocratização os sertanejos se engajaram no processo de transição, o que parece “esquecido” nas disputas de memória.

Essa edição conta com três resenhas. A primeira delas, feita por Maurício Santoro, intitulada “Memória familiar, identidade e ditadura”, sobre a obra A Resistência, de Julian Fuks (Companhia das Letras, 2015). Em “A casa dos horrores e seus agentes: o DOI-Codi de São Paulo e o trabalho sujo na ditadura”, Laurindo Mekie Pereira resenha o livro Na casa da vovó – Tempos da ditadura (o que vi e vivi) (Revan, 2015), de Francisco Antônio Doria. Finalmente, a obra Sinais de Fumaça na Cidade: uma sociologia da clandestinidade na luta contra a ditadura no Brasil (Lamparina, 2015), de Henri Acselrad, deu origem à resenha “O Cotidiano sob a Ditadura Civil-militar: o espaço de interação entre a militância clandestina e os habitantes do subúrbio”, de Keila Auxiliadora Carvalho.

Fechando o dossiê, duas entrevistas que trazem como tema diferentes experiências autoritárias no século XX. A primeira delas realizada por Lívia Gonçalves Magalhães com a cientista política Pilar Calveiro, argentina sobrevivente de centros clandestinos de detenção durante a última ditadura civil-militar argentina. Vivendo no México desde seu exílio em 1979, Calveiro possui diversos trabalhos que procuram entender o cotidiano autoritário tanto em ditadura como em democracia. A entrevista de Janaina Martins Cordeiro foi feita com Antonio Cazorla Sánchez, espanhol e hoje professor de História Contemporânea no Canadá. Autor de uma biografia do general espanhol Francisco Franco, Cazorla é hoje um dos maiores especialistas no período do primeiro franquismo.

Esperamos que este dossiê gere novos debates e reflexões sobre o tema, que de forma alguma se esgota nas páginas que seguem.

Boa leitura!

Notas

1. Cf. a edição francesa do livro: LÜDTKE, 1994.

2. Cf., dentre outros, AARÃO REIS, 2000; GRINBERG, 2009; ROLLEMBERG e QUADRAT, 2010; MAGALHÃES, 2014; MOTTA, 2014; ALONSO, 2015; CORDEIRO, 2015.

3. Grifos no original.

4. O termo utilizado no original em inglês é ordinary.

Referências

AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

ALONSO, Gustavo. Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

BERGERSON, Andrew Stuart. Ordinary Germans in extraordinary times. The Nazi revolution in Hildesheim. Bloomington: Indiana University Press, 2004.

BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Vol. 4.

BURKE, Peter. Abertura: a Nova História, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.

CASTELLS, Luis. Introducción. In: Ayer (dossiê “La historia de la vida cotidiana”), n. 19, 1995.

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.

CORDEIRO, Janaina Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV, 2015.

FITZPATRICK, Sheila. Le stalinisme au quotidien. La Russie Soviétique dans les années 30. Paris: Flammarion, 2002.

GRINBERG, Lucia. Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (Arena), 1965-1979. Rio de Janeiro: Mauad, 2009.

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Janaina Martins Cordeiro – Professora Adjunta de História Contemporânea do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela mesma instituição, é Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ, 2015-2018) e autora de A ditadura em tempos de Milagre: comemorações, orgulho e consentimento (FGV, 2015) e Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil (FGV, 2009). E-mail: [email protected]

Lívia Gonçalves Magalhães – Professora Adjunta de História do Brasil Republicano do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela mesma instituição e Mestra em Estudos Latino-Americanos pela Universidad Nacional de San Martín (UNSAM, Argentina). Possui Pós-Doutorado em História pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES, CAPES, 2014-2016). É autora de Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina (Lamparina, 2014) e Histórias do Futebol (APESP, 2010). E-mail: [email protected]


CORDEIRO, Janaina Martins; MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 43, n. 2, maio / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Cotidiano e política in memorian: Americo Augusto da Costa Souto / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2011

O Brasil republicano tem espaço destacado no número 19 de Fronteiras – Revista Catarinense de História, cuja capa apresenta trabalho fotográfico de Mariana Rotili da Silveira intitulado “Fé cega, faca amolada”, elaborado a partir de registro feito no centro de Florianópolis em abril de 2010.

No dossiê “Cotidiano e Política”, a Primeira República é enfocada em dois dos quatro artigos, os demais concentrando-se em duas décadas do período posterior – a de 1940 e a de 1970. As aproximações e os distanciamentos entre cotidiano e política são tratados com ênfases e perspectivas distintas nestes trabalhos, que apresentam experiências históricas marcantes em localidades do norte, nordeste e sudeste do país, atravessadas por dimensões dos mundos do trabalho, movimentos migratórios, trocas econômicas e culturais, projetos e ações políticas, atividades jornalísticas e circulação de impressos.

O primeiro artigo do dossiê, de autoria de Helder Remígio de Amorim, põe em destaque a cidade de Arcoverde, ponto nevrálgico de caminhos pelos quais circularam e circulam mercadorias no sertão pernambucano. Buscando examinar mais detidamente o comércio popular de alimentos nos anos 1970, o artigo fundamenta-se principalmente em fontes orais, salientando trajetórias de vida de bodegueiros que pontuam outros momentos históricos e diferentes espaços geográficos.

As transformações da cidade de Manaus na Primeira República, de modo a implantar uma “ordem burguesa”, são destacadas por Luciano Everton Costa Teles, que também examina a presença dos operários, além das representações e ações que com eles se ocuparam na Manaus republicana. Daí, também, a análise dos registros a este respeito contidos no periódico Vida Operária.

Geraldo Magella de Menezes Neto aborda em seu artigo as relações entre jornais e folhetos de cordel, tomando como referência crime ocorrido em 1942 (o “crime da praça da República”), na capital do Pará. Os fatos cotidianos e, em especial, os fait divers cobertos pela imprensa são examinados em sua passagem para a literatura popular, que no caso estudado foi feita pelo poeta Arinos de Belém. Trata-se de um estudo interessante sobre leituras e representações de aspectos do cotidiano feitos por impressos de perfil bastante diferenciado.

Fechando o dossiê, artigo de Luciana da Silva Santos mostra como eram estreitas as relações entre redes de abastecimento (em especial, de carne) e a vida político-partidária no Rio de Janeiro dos inícios republicanos. Põe em destaque um grupo político atuante na área rural da capital republicana (o “Triângulo”), que buscava apoiar sua linha de ação no controle da administração do Matadouro de Santa Cruz e na defesa do abastecimento regular de carne verde, sem escassez ou carestia.

Nas resenhas, quatro livros são colocados em destaque. Julia Uzun apresenta livro organizado por Adrián Ascolani e Diana Gonçalves Vidal, que focaliza projetos educacionais elaborados e desenvolvidos no Brasil e na Argentina nos séculos XIX e XX, em um exercício de história comparada. Já Adelson André Brüggemann detém-se em livro de Peter Beattie (Tributo de sangue) que aborda a trajetória do Exército brasileiro entre 1864 e 1945. Na resenha de Daniela Pistorello são tratadas as relações entre preservação e turismo em Angra dos Reis e Paraty, a partir do livro Entre ilhas e correntes, de Aline Vieira de Carvalho. Na última resenha, Felipe Matos põe em destaque o relato biográfico de Rubens Borba de Moraes registrado em Testemunha ocular (recordações).

Entre os artigos do dossiê e as resenhas, foi reservado espaço para homenagear o Prof. Américo Augusto da Costa Souto, historiador que foi professor na Universidade Federal de Santa Catarina por vários anos, tendo também atuado no então Núcleo Regional de Santa Catarina da Associação Nacional de História, e que faleceu em 9 de agosto de 2011, poucos meses antes de completar 80 anos.

Antecedido por texto de Norberto Dallabrida que apresenta brevemente o historiador catarinense Américo Augusto da Costa Souto, é republicado nessa homenagem, em edição revisada, o artigo Estudos: os vários ritmos da evolução histórica (modelo didático baseado nas teorias de F. Braudel), originalmente editado no primeiro número da Revista Educação e Ensino de Santa Catarina, de julho de 1972. Trata-se de artigo que sistematiza a interpretação do Prof. Américo acerca das ideias braudelianas sobre o tempo histórico, propondo uma aplicação para o ensino de História Moderna e História Contemporânea na graduação em História.

Aos autores, nossos agradecimentos por colaborarem com a revista. Aos leitores, nossos votos de uma boa e proveitosa leitura.

Janice Gonçalves – Editora de Fronteiras – Revista Catarinense de História


GONÇALVES, Janice. Editorial. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.19, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Os trabalhadores: experiência, cotidiano e identidades / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2011

Os estudos sobre o trabalho e os trabalhadores vem sendo, por décadas, uma espécie de indicador sensível das transformações pelas quais passou e passa a história em suas relações com as ciências sociais em geral. Temas de pesquisa, fontes, conceitos e categorias analíticas, modelos interpretativos, enquadramentos teóricos: nenhum dos grandes parâmetros fortes da disciplina passou intacto pelos muitos desafios intelectuais que deram forma ao campo historiográfico contemporâneo.

Mesmo uma análise breve e resumida do panorama dos estudos sobre o trabalho nas seis últimas décadas demonstra esse argumento eloquentemente: tomando como um ponto de partida qualquer (ainda que não inteiramente arbitrário), como os estudos dos historiadores marxistas britânicos que, desde os anos 1950, redefiniram a história da Inglaterra a partir do protagonismo dos trabalhadores, podemos identificar o impulso forte, que marca os desenvolvimentos mais importantes da história social, de integrar à história os instrumentos e perguntas das ciências sociais e da antropologia. Basta lembrar a originalidade do trabalho de alguém como Eric Hobsbawm, por exemplo, que em Rebeldes primitivos (1959) estudou as formas de resistência popular, mostrando como era possível ler a “política” dos grupos subalternos em suas atitudes de desafio da lei e da ordem, como no “banditismo social” do Cangaço. Não faz falta mencionar também outro originalíssimo Englishman, que foi Edward Palmer Thompson, cujos trabalhos sobre o “fazer-se” da classe operária inglesa, sobre as revoltas camponesas pré-industriais ou sobre as relações entre lei, costume e conflito social, foram fundamentais para colocar no centro da história social o tema da experiência e do protagonismo dos atores sociais, bem como mostrar a importância da interrogação sobre a “cultura” entendida em um sentido marcadamente antropológico. Desenvolvimentos e críticas posteriores, como o chamado “cultural turn” e os estudos de gênero, também se dedicaram a repensar categorias identitárias, colocando em causa a própria ideia do “trabalhador”, chamando a atenção para sujeitos e experiências sociais que foram por muito tempo negligenciados pelos estudos mais “convencionais” sobre o trabalho, tradicionalmente centrados nos trabalhadores da indústria (frequentemente do sexo masculino e sindicalizados) ajudando a formular a crítica a uma história do movimento operário que dava destaque unicamente às associações formais dos trabalhadores, bem como às ideias políticas dos seus membros mais destacados, dando como favas contadas a “identidade de classe” e o seu significado.

Foi também o campo amplo dos estudos sobre o trabalho que descobriu e redescobriu outros atores que por muito tempo ficaram à margem da narrativa mestra da história social: não apenas as mulheres (descobrindo, por exemplo, que a “classe operária tem dois sexos” [1]), mas também os escravos e trabalhadores livres pobres na cidade e no campo, os marginalizados, o mundo do trabalho “informal” e precário, o mundo colonial e pós-colonial, em suas dimensões sociais e culturais.

A despeito das inflexões e reviravoltas, das transformações teóricas e conceituais, o leque amplo de estudos a que estamos nos referindo não deixou jamais de reconhecer a centralidade do “trabalho” na experiência social contemporânea.

No Brasil, esse entrelaçamento entre os estudos sobre o trabalho no âmbito das ciências sociais e da história tem uma trajetória igualmente rica, marcada pelas trocas recíprocas e pela atenção constante sobre as transformações do campo político contemporâneo. Aqui, mais uma vez, é nesse horizonte intelectual e político que o influxo entre a história e ciências sociais aparece com mais força e consistência, como atestam os estudos seminais, produzidos já nos primeiros anos da década de1980 (não por acaso, em resposta ao momento político da democratização e do fortalecimento do movimento operário que contribuiu com a dissolução do suporte político da ditadura militar na década anterior), exemplificados por estudos como os de Emir Sader, Maria Célia Paoli ou José Sérgio Leite Lopes – entre outros –, que aliavam a pesquisa sociológica e etnográfica a um olhar profundamente informado pela reflexão histórica.[2] Um princípio inspirador que se manteve forte e que continua a mover os debates e a renovação dos estudos sócio-históricos ainda hoje.

Diversidade temática e regional, diálogo interdisciplinar e centralidade do trabalho são elementos que se entrelaçam no dossiê da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais (RBHCS) que aqui se apresenta e que é dedicado aos estudos sobre os “Trabalhadores: experiências, cotidiano e identidades”. Nele encontramos de saída dois estudos etnográficos sobre o mundo do trabalho: O primeiro é um trabalho comparativo realizado por Marta Cioccari sobre um setor central da história operária – os mineiros – que foram protagonistas de algumas das mais significativas transformações ao longo do último século. Temas como “honra”, “orgulho do trabalho”, bem como os vários pertencimentos dos trabalhadores são investigados em duas comunidades mineiras distintas: Minas do Leão (RS) e em Creutzwald, na Lorena francesa. Flávio Ferreira, por outro lado, foca as relações entre o “tempo do trabalho” e o “tempo da festa”, também explorando o entrelaçamento e porosidade entre a esfera do trabalho e do “não-trabalho” em sua relação com a organização do tempo na Serra da Gameleira (RN). Na sequência, Jairo Falcão apresenta seu estudo sobre as memórias dos portuários de Porto Alegre, mostrando mais uma vez a importância da história oral para a reconstrução de dimensões difíceis de capturar em outros documentos, como as relações entre o trabalho, a memória e o corpo. Finalmente, um grupo de pesquisadoras na área de saúde em Santa Catarina apresentam seu diagnóstico de vida e saúde sobre um bairro de trabalhadores de Criciúma, focando elementos da violência urbana através dos registros da Delegacia da Mulher daquela cidade.

Como se pode ver, trata-se de um conjunto sugestivo de temas e de abordagens que marcam os artigos aqui apresentados, entrelaçando o interesse pelas permanências e tradições dos trabalhadores com dimensões absolutamente contemporâneas da sua experiência. Motivos mais do que suficientes para indicar fortemente a sua leitura.

Notas

1. A referência é do livro de Elisabeth Souza-Lobo, A classe operária tem dois sexos. Trabalho, dominação e resistência. 2a edição, São Paulo: Perseu Abramo, 2011 (1a edição de 1991).

2. Paoli, Maria Célia; Sader, Eder & Telles, Vera Silva. “Pensando a classe operária: os trabalhadores sujeitos ao imaginário acadêmico”. Revista Brasileira de História, Vol. 3, no. 6, 1983, pp. 1291-49. Sader, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo (1970-1980). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Lopes, José Sérgio. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés. São Paulo / Brasília: Marco Zero / CNPq, 1988.

Henrique Espada Lima – Professor Adjunto do Departamento de História da UFSC. Bolsista de Produtividade do CNPq.


LIMA, Henrique Espada. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.3, n. 6, jul. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Tecnologia, Cotidiano e Poder / Projeto História / 2007

A tecnologia entendida como o conjunto das capacidades, das atividades produtivas e do conhecimento a partir dos quais o ser humano produz a história, isto é, sua existência social, encontra-se explanada nos múltiplos textos que este número da Revista Projeto História apresenta a seus leitores.

A escolha de tal temática mantém a coerência que vem norteando o pensamento da Revista, que toma a história, não enquanto uma disciplina, mas enquanto a própria ciência, resultante esta da força produtiva que expressa o complexo de potências através das quais os homens se apropriam do mundo e que resulta da dupla configuração: dos carecimentos humanos que os impulsionam e das limitações postas a cada momento às realizações de suas inerentes potencialidades de alteração da natureza, do mundo e de si próprio.

As múltiplas conotações que a tecnologia possui e que podem ser resgatadas pelo historiador em quaisquer dimensões do ser social se apresentam neste volume, cujos autores refletem de um lado sobre a produtividade humana que se traduz na tecnologia nos moldes propostos pela ontologia marxiana, adentrando nas inerentes contradições que resultam da apropriação privada desta produção social no metabolismo social do capital. Por outro lado, outros analistas problematizam sobre a percepção do conhecimento / tecnologia enquanto produto da subjetividade, perpassando, também por reflexões sobre a influência desta tecnologia no mundo artístico, particularmente como decorrente de interferência de políticas públicas voltadas para incorporar a este universo os processos industriais.

Evidencia-se assim, de um lado, como a ciência se vê convertida em parte integrante do capital e adquire uma inflexão histórica que não se fez ou se faz em nome do próprio desenvolvimento das ciências, mas como meio mais eficaz de reduzir o trabalho, a sua produtividade para além das fronteiras dadas pela figura física viva do trabalhador e que necessita reduzir o tempo de circulação. Neste contexto, os autores não fazem a crítica da tecnologia pelo prisma duma crítica moral, estética ou política, porém, ressaltam que quanto mais se universaliza a forma de ser própria da produção dos indivíduos sociais, mais expande seu raio de ação, todavia, no interior da alienação do suprimento das necessidades humanas universais que a geraram.

Em face de tal desenvolvimento tecnológico universal se evidencia mais uma vez o atraso tecnológico e industrial do Brasil, associado à subordinação e a dependência ao capital internacional, o que transparece inclusive nas iniciativas modernizadoras. São os casos aqui exemplificados das inovações na iluminação pública, nos meios de transportes urbanos no início do século XX e mesmo na missão modernizadora que as forças armadas se atribuem em seu projeto do Brasil potência.

Neste aspecto, destaca um dos analistas a importância que conferem os militares à ciência e à tecnologia como alicerces do desenvolvimento econômico e nesse sentido, afirma, as duas Guerras Mundiais foram referência para a profissionalização, modernização e treinamento dos militares brasileiros.

Uma modernização historicamente carreada por um conservadorismo expresso, inclusive pelos mais diferentes ideólogos, que se expressam atavicamente na rejeição das categorias sociais dominantes em investir em tecnologias e que nos dias atuais, se exprime na culpabilização da tecnologia pelos males do mundo moderno, particularmente os vinculados ao meio ambiente. Considera-se mesmo que esta ideologia expressa um equívoco de cunho “malthusiano” e se evidencia, inclusive, no discurso de inúmeras organizações que se colocam em defesa do equilíbrio ecológico e sustentável.

De qualquer forma, a tal estágio de desenvolvimento tecnológico chegou a humanidade que já se evidenciam, conforme outros autores, as condições de superação dos limites à realização das potencialidades humanas capazes de superar o reino da necessidade, postos em um mundo regido pelo trabalho abstrato, para o reino da liberdade, não fosse a contradição da apropriação privada desta produção coletiva. Contradição impeditiva da superação da oposição, por exemplo, entre profissão e cultura tomada esta enquanto atividade operativa social. Trata-se de tornar a ciência e o trabalho inerentes a todos os indivíduos, de impedir que a atual necessidade de aquisição dos novos códigos de comunicação não reduzam o ser humano a entes informacionais, à condição de apêndices das máquinas, protocolos e fluxos de informação, mas sim de reconhecer que o uso generalizado de máquinas programáveis informacionais gera novas formas de sociabilidade decorrentes da intercomunicação entre indivíduos através deste ciberespaço em gestação.

Do “espaço técnico” chega-se ao universo do ciberespaço, sem tangenciar a solução de problemas cruciais, apesar do fascínio pelas estatísticas, que, entre outras coisas, nos permite demonstrar como a disparidade de renda entre os países mais ricos e os mais pobres que, conforme a referência, em 1820, era da ordem de 3 para 1, em fins do século XX chega a de 80 para 1. O que demonstra que o melhor conhecimento do problema, seu melhor equacionamento e visibilidade não é condição suficiente para o encaminhamento de suas soluções.

É neste universo do primado da tecnologia que a temática sobre o mundo do trabalho ganha novos contornos, particularmente quando o pesquisador centra sua atenção no crescimento do número de mulheres como força de trabalho assalariada e a exacerbada valorização das questões emocionais o que aparece como uma nova tecnologia de gênero / poder. Refere-se o autor à ênfase que se dá neste contexto, à subjetividade das mulheres como “dóceis, emocionais, afetuosas”, ganhando aura de avanço societal a divisão maniqueísta que a educação sexista perpetra – e o movimento feminista combate. Uma tecnologia de gênero que não se constitui separada e isoladamente apenas para sedimentar o sexismo, mas é também uma tecnologia de poder, perpetuando a exploração da força de trabalho.

Observa-se ainda a ênfase em se analisar como as novas ferramentas se constituem em instrumentos vitais ao historiador, ampliando as possibilidades de preservação das evidências históricas, papel que, por exemplo, cumpre a fotografia pela possibilidade que traz de grafar a imagem e nos remeter, por exemplo, ao universo oitocentista com uma enorme riqueza de detalhes. Particularmente na área de preservação, conservação e divulgação do patrimônio histórico-cultural, abrindo-se novos campos de possibilidades de conhecimentos e também de transformação de espaços de preservação da história em verdadeiros espaços públicos. Dessa maneira, também colocam novos desafios à educação cujas políticas públicas têm se mostrado, conforme o leitor poderá apreciar nas páginas da Projeto História, incapazes de garantir a inserção deste universo, até mesmo naquelas modalidades centradas no ensino tecnológico.

Neste número trazemos uma entrevista que nos dá oportunidade de refletir sobre a relação entre especialistas da área de energia elétrica e o modelo enérgico em curso no último período ditatorial brasileiro, cujos principais projetos desenvolvidos ou, pelo menos, debatidos pela Coordenação da COPPE, tiveram papel fundamental na implantação das diretrizes do II PND do governo do autocrata Ernesto Geisel.

Este volume apresenta ainda ao leitor a tradução inédita no Brasil do renomado historiador francês que trata de tema com visibilidade cada vez maior no campo da historiografia: as relações entre o imaginário sobre o corpo e a ciência. O historiador francês Georges Vigarello, autor de Historia da beleza, resgata no texto ora apresentado, a íntima relação entre o imaginário do corpo e a experiência técnica, a partir do final do século XIX até fins do século XX. Conforme Vigarello, se até o fim do século XIX o corpo era antes de tudo uma “máquina” da qual se buscava exigir o máximo de rentabilidade com o mínimo de consumo de energia; na primeira metade do século XX se enfatiza a importância do gestual para a obtenção dos melhores índices de produtividade. A habilidade substitui a força bruta, transformando o corpo em uma máquina nervosa. Já no fim do século XX, com a digitalização incorporando a automação, novas valorações são lançadas ao corpo e as exigências visam se apropriar também da subjetividade dos trabalhadores, transformando o trabalhador em “máquina informacional”.

Desde a Renascença se impõe na vida cotidiana a concepção de um demiurgo humano que reconfigura o mundo por sua própria inventividade e prática, consciente da progressividade do domínio de uma “segunda natureza” e que propõe a humanização do mito e ao mesmo tempo a deificação do homem.

Esta noção da autêntica grandeza humana foi disposta de modo categórico por Ficino: “Quem pode negar que o homem possui quase o mesmo gênio do Autor dos Céus? E quem pode negar que o homem também poderia criar de algum modo os céus, se pudesse obter os instrumentos e o material celeste, dado que mesmo hoje ele os cria, embora com um material diferente, mas com uma ordem bastante semelhante?”.[1]

A contradição que perpassa a contemporaneidade, é que quando esses instrumentos passam a reger a vida cotidiana por inteiro, abrindo amplas possibilidades para a resolução de dilemas seculares da humanidade, do desvendamento da estrutura genômica que permite a fabricação da própria vida, dos avanços da biotecnologia, em suma da conquista sem precedentes das formas orgânicas e inorgânicas da natureza; todavia, na regência da mundialização do capital – regência das necessidades dos proprietários privados sobre as necessidades genuinamente humanas – que controla e subordina a nova cooperação social do trabalho no interior da universalização das forças produtivas materiais por meio de uma revolução tecnológica inaudita, fragmenta, mutila e nulifica milhões de vidas humanas.

No século passado, a visão trágica do mundo deu o tom hegemônico. A civilização estava prestes a ser devorada por seus próprios frutos, a ciência e a técnica, dessa maneira, o home preso a uma eterna ilusão de conquista da natureza, seria desqualificado por seu próprio engenho. A “Escola de Frankfurt”, com sua dialética da negatividade, desenvolveu a crítica ao pensamento esclarecido, cuja origem datava do Renascimento e que em sua lógica interna levaria da ultrapassagem do mito, ao domínio da natureza, e deste ao extremo negado da razão: o novo mito. A razão instrumental conduziu ao inferno nazista. Nos termos de Adorno e Horkheimer: “O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem da ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação. Esta identidade constitui a unidade da natureza”.[2]

Devemos, seguindo esse discurso, eternizar a escravização mercantil como condição humana? O preço a pagar pela conquista da natureza, portanto, não é como os renascentistas projetavam, a conquista de nossa humanidade, mas a preparação de outra forma de conquista: o estado totalitário? Como produto de relações sociais naturalizadas?

Em sua obra O modernismo reacionário, J. Herf enfrentou tal “beco sem saída”, para simplesmente buscar nas condições históricas e culturais da “via prussiana” (Lukács) a necessidade histórica de tal reacionarismo. A reconciliação alemã entre alta tecnologia e irrazão, e não a razão iluminista, é o cerne dessa ideologia tão bem sintetizada por Thomas Mann: “O aspecto verdadeiramente característico e perigoso do nacional-socialismo era a mescla que fazia de robusta modernidade com uma postura positiva rumo ao progresso associadas a sonhos do passado: um romantismo altamente tecnológico”.[3] Ou, nas palavras de Herf: “Essa tradição consistia numa coleção coerente e significativa de metáforas, palavras familiares e expressões emotivas que tinham o efeito de converter a tecnologia, de componente de uma Zivilisation estranha, ocidental, em parte orgânica da kultur alemã. Combinavam reação política com avanço tecnológico. Onde os conservadores alemães haviam falado de tecnologia ou cultura, os modernistas reacionários ensinaram a direita alemã a falar de tecnologia e cultura”. Eis o paradoxo do modernismo reacionário, base do ideário nazista: “incorporava a tecnologia moderna ao sistema cultural do nacional-socialismo alemão moderno, sem lhe diminuir os aspectos românticos e anti-racionais”.[4]

Walter Benjamin soube compreender essa processualidade histórica ao denunciar a “estetização da política” e a glorificação da “tecnologia da guerra”, todavia, sem remeter a uma condição humana inexorável, uma visão trágica do mundo. Assim como fez o músico Karlheinz Stockhausen ao plasmar as Torres Gêmeas em chamas e sonorizar com suas palavras que “jamais vira obra-de-arte mais bela”, no trágico 11 de setembro de 2001, repetiu o irracionalismo dos futuristas que entoaram a expressão “a guerra é bela”! Ao enaltecer a barbárie, atos desumanos, o uso tecnológico das armas que pulverizam vidas humanas, a guerra que revolve por inteiro a vida cotidiana, essa “estetização da política” enaltece o poder imperialista, a subjugação dos trabalhadores e trabalhadoras pelo sistema do capital. Walter Benjamin é claro e impiedoso: “Em seus traços mais cruéis, a guerra imperialista é determinada pela discrepância entre os poderosos meios de produção e sua utilização insuficiente no processo produtivo, ou seja, pelo desemprego e pela falta de mercados. Essa guerra é uma revolta da técnica, que cobra em ‘material humano’ o que lhe foi negado pela sociedade. Em vez de usinas energéticas, ela mobiliza energias humanas, sob a forma de exércitos. Em vez do tráfego aéreo, ela regulamenta o tráfego de fuzis, e na guerra dos gases encontrou uma forma nova de liquidar a aura. ‘Fiat ars, pereat mundus’, diz o fascismo e espera que a guerra proporcione a satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela técnica, como faz Marinetti”.[5]

Trata-se de reverter essa dimensão de crueldade na vida cotidiana. “As massas têm o direito de exigir mudanças das relações de propriedade; o fascismo permite que elas se exprimam, conservando, ao mesmo tempo, essas relações”[6]. Há saída no horizonte para além da visão trágica do mundo, da perspectiva da lógica onímoda do trabalho, para a humanidade!

Numa síntese característica de sua pena, Marx frisou que “O homem é o que faz e como faz”: “Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção.”[8]

Em outra passagem exemplar, adensando suas reflexões ontológicas sobre o modo como produzem, Marx escreveu: “As forças produtivas são, portanto, o resultado da energia aplicada dos homens, mas essa mesma energia é limitada pelas circunstâncias em, que os homens se encontram, pelas forças produtivas já obtidas, pela forma social preexistente, que eles não criam e que é produto da geração precedente. Devido ao simples fato de que toda nova geração encontra as forças de produção já obtidas pela geração anterior e que lhe servem de matéria-prima para uma nova produção, surge um encadeamento na história dos homens, surge a história da humanidade, que é tanto mais história da humanidade quanto mais crescem as forças produtivas dos homens e, por conseguinte, as suas relações sociais.” E disto decorre que para os indivíduos autoproducentes, mesmo sem o saber, “a história social dos homens nada mais é que a história do seu desenvolvimento individual, tenham ou não consciência disso. Suas relações materiais são a base de todas as suas relações. Essas relações materiais não são mais do que as formas necessárias em que se realiza a sua atividade material e individual”.[9]

No atual estágio do sistema metabólico do capital, com a mundialização do capital, o desenvolvimento das forças produtivas se põe em aguda contradição com as relações sociais de produção (relações de propriedade na esfera jurídica): “Ou seja, a capacidade humana alcançada para a produção de seu mundo próprio é superior e mais potente do que a organização social que os homens permanecem obrigados a tolerar, contra a qual se debatem. As relações sociais, a partir das quais aquela capacidade foi produzida, não são capazes de conter e tirar proveito de sua realização, enquanto tais para se conservarem ferem de morte a própria humanidade, tornam letal a sua maior realização: a) aniquila parte da própria humanidade, dos produtores da realização; b) aniquila a autoprodução da individualidade, acentua a alienação (do produto, do trabalho, do gênero); c) agora a dispensa do próprio trabalho (alienado).”[10]

No mundo contemporâneo, as nebulosas do neopositivismo, do irracionalismo e das filosofias que irradiam a idéia da “impossibilidade do conhecimento” substituído pelas “imputações hermenêuticas”, e que anunciam o “fim do trabalho”, da “alienação” e, em conseqüência disso, afirmam a impossibilidade da emancipação humana geral. Assim, junto à necessidade da lógica expansiva do capital de modelar indivíduos conformistas, que apodrecem debaixo da própria pele, estas posições ilusórias confluem no banimento da revolução social.

Com as novas maneiras de viver e sentir da mundialização, nos termos chasinianos, se configura a grandeza e a miséria do homem contemporâneo. Isto porque a humanidade foi capaz de criar as bases materiais da liberdade humana, mas se acha impossibilitado de se autodeterminar no processo de individuação social. “Donde a humanidade futura, se futuro houver, será posto pela possibilidade emergente das perspectivas da síntese do saber – a fusão entre o melhor e mais avançado do saber científico-tecnológico e o mais agudo e universal do saber humanista, ou seja, da aglutinação natural entre o saber do mundo e o saber de si. Hoje, o homem já está se tornando o demiurgo da natureza, falta se converter no demiurgo de si mesmo.” [11]

Notas

1. FICINO apud HELLER, Agnes. O Homem do Renascimento. Tradução Conceição Jardim e Eduardo Nogueira. Lisboa: Presença, 1982, pp. 67-68.

2. ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 24.

3. MANN apud HERF, Jeffrey. O modernismo reacionário. Tradução Claudio Frederico Ramos. São Paulo: Ensaio, 1993, p. 14.

4. HERF, J. O modernismo reacionário. In: Op. cit., p. 14.

5. BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Primeira versão”. In: Walter Benjamin: obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política.Vol.1. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 196.

6. Idem, ib., p. 195.

[Nota 7 ausente no original].

8. MARX, K. & Engels, F. A Ideologia Alemã. Tradução Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano C. Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 87.

9. MARX, K. “Carta a P. V. Annenkow”. In: Marx: História. Coleção grandes cientistas sociais n.º 36. Tradução Flávio R. Kothe. São Paulo: Ática, 1983, pp. 432-433.

10. CHASIN, J. “Ad Hominem – rota e prospectiva de um projeto marxista”. In: A determinação ontonegativa da politicidade. Santo André / SP: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000, p. 73.

11. Idem. Ibidem, pp.72-73.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira

Os Editores


FILHO RAGO, Antonio; VIEIRA, Vera Lúcia. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 34, 2007. Acessar publicação original [DR]

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