As fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América | Keila Grinberg

O livro “As Fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América”, compilado pela professora e historiadora Keila Grinberg é resultado de um seminário organizado pela mesma autora, e que foi realizado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) em junho de 2011. Pode-se dizer que o seminário foi fruto do que diversos historiadores têm produzido nos últimos anos sobre o tema da escravidão e da liberdade nas fronteiras platinas. A nova historiografia da escravidão – como assim tem sido chamada – permitiu que novos assuntos entrassem em pauta, ampliando as facetas da organização da sociedade escravista e complexificando as relações entre senhores e escravos.

Em todos os textos que compõem este livro é possível perceber os novos debates realizados no seio da ciência histórica e que consequentemente afetaram também a temática da escravidão e da liberdade no sul da América. Novas narrativas, novos personagens, novas fontes. Parece que o célebre livro Nouvelle Histoire, organizado por Jacques Le Goff e Pierre Nora ainda dão eco em nosso tempo. O leitor verá também que cada artigo traz importantes contribuições de pesquisas desenvolvidas por especialistas na área. Não há dúvida que Keila Grinberg conseguiu unir em seu seminário os principais historiadores da atualidade que se debruçam sobre os temas da fronteira, escravidão e liberdade.

O texto introdutório de Keila Grinberg não busca ser somente um apanhado do que o leitor encontrará no livro, mas apresenta algumas questões que a autora considera pertinentes para entender a história da escravidão e liberdade no sul da América. A primeira delas é que o livro apresenta histórias de “pessoas escravizadas”. Ou seja, um olhar microscópico, em que as experiências dos indivíduos são ricas para se entender o intricado processo de formação dos estados nacionais. Lembramos aqui da própria tese da professora Keila, que buscou investigar a trajetória do mulato Antônio Rebouças e usou sua história como porta de entrada para entender questões de direito, justiça e cidadania no século XIX (O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antônio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002).

Sobre essa questão é importante recordar dos trabalhos de Carlo Ginzburg, O Queijo e os Vermes (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), e o de Giovanni Levi, A Herança Imaterial (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000). Ambos utilizavam a trajetória de um indivíduo para analisar os costumes de toda uma sociedade. Ginzburg usou o moleiro Menóquio para mostrar como um indivíduo excêntrico, que sabia ler e escrever num tempo onde isso era raro, tencionou com os dogmas da Igreja Católica. E Levi utilizou o pároco Chiesa para evidenciar a importância do nome e da influência de seu pai na vila de Piemonte. Estes trabalhos foram os grande ícones da Micro-História italiana e inspiraram toda uma geração de historiadores. Jacques Revel, já na década de 1990, trazia o conceito de jogos de escalas, em que a estrutura social e os indivíduos não eram antagônicos, mas eram visões diferentes que podiam ser somadas e complementadas. O leitor verá nesta resenha histórias de escravos e libertos enquanto sujeitos históricos, conscientes de sua vida e de seus limites.

Keila Grinberg também destaca o conceito de fronteira que os autores do livro utilizam. Não como uma barreira, um limite político que separam nações, mas como uma construção histórica. Afinal, a fronteira é também o que os atores fazem dela. É pertinente lembrar também do conceito de fronteira manejada, aplicada por uma das autoras deste livro, Mariana Thompson Flores, em sua tese recentemente publicada (Crimes de fronteira. A criminalidade na fronteira meridional do Brasil, 1845-1889. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014). Mariana faz uma excelente revisão historiográfica sobre este conceito, mostrando que os historiadores mais tradicionais buscavam uma fronteira que o ajudassem a justificar a condição brasileira original. Ou seja, transformar o Rio Grande do Sul integrado mais ao Brasil do que às colônias platinas. A partir da década de 1990 a fronteira passa a ser vista menos como um limite e mais com um espaço de trocas e embates. Esta visão, mais conciliatória, foi defendida por historiadores brasileiros (Helga Piccolo, César Guazzelli, Helen Osório, Enrique Padrós), mas também por estudiosos uruguaios e argentinos. Posteriormente, historiadores como Mariana Thompson Flores e Luís Augusto Farinatti, muito envolvidos em fontes primárias, perceberam que a fronteira era mais dinâmica do que as polarizações defendidas anteriormente. A fronteira manejada, ou seja, construída, era uma mutação que se alterava em virtude da ação humana e também dos conflitos políticos e sociais existentes no local. Este último conceito será bem percebido nos textos aqui resenhados.

Um dos temas mais frequentes que o leitor verá neste livro são as chamadas fugas para o além-fronteira, conceito cunhado pelo historiador Silmei Petiz. Keila mostrará que a fuga era coisa antiga, que desde a Colônia de Sacramento, em 1762, havia decretos que davam a liberdade aos escravos que fugissem. O mesmo acontecerá ao longo do século XIX, nas colônias espanholas de Jamaica, Cuba e Santo Domingo. Ou seja, as fugas traziam tensões e problemas diplomáticos, pois havia, em toda América, nações abolicionistas e escravistas que faziam fronteiras entre si. É o caso, por exemplo, de Brasil e Uruguai.

Hevelly Ferreira Acruche será a única historiadora a tratar do século XVIII e, mais especificamente, do caso de Buenos Aires, Argentina. Seu artigo apresenta duas histórias e três personagens: o primeiro, Joaquim Acosta, desertor de Rio Pardo, que fugiu em 1772 e obteve do vice-rei de Buenos Aires, Pedro de Cevallos, a possibilidade de estabelecer-se em terras hispânicas como pessoa livre; e os pardos Jerônimo e Francisco, que vieram do Brasil para serem vendidos como escravos em Buenos Aires, porém, mesmo afirmando serem de condição livre foram devolvidos ao comerciante Domingos Peres, por não apresentarem provas suficientes de suas liberdades. Acruche aponta para uma questão importante: as histórias de Joaquim e de Jerônimo e Francisco tiveram resultados distintos, o que evidencia que as questões de escravidão e liberdade que chegavam a Buenos Aires eram complexas e precisam ser analisadas particularmente, dentro de contextos específicos.

O texto seguinte é da historiadora uruguaia Natalia Stalla, que apresenta dados interessantes sobre o peso demográfico da população africana no litoral e na fronteira do Uruguai. Seu artigo, a partir de uma análise mais quantitativa, analisou a população dos departamentos de Colônia e Soriano, regiões litorâneas, buscando comparar com dados anteriores sobre escravidão na fronteira com o Brasil. Em ambos os departamentos, a população masculina era mais numerosa do que a feminina, e tratava-se de uma escravaria jovem, contando com cativos em idade produtiva. No entanto, os números de escravos foram baixos. Em Colônia, 8% e Soriano, 7% dos habitantes. Principalmente, comparando com os dados de Cerro Largo (25%), Tacuarembó (29%), Rocha, (26%). A contribuição de Stalla está em evidenciar a população negra no Uruguai a partir de dados quantitativos, que permitem comparar com as populações afrodescendentes do Brasil e da Argentina.

O artigo de Rachel Caé trata da produção de discursos abolicionistas no Uruguai no ano de 1842, estudando principalmente como a imprensa percebeu o tema da liberdade e da cidadania dos negros, escravos e libertos. O jornal El Nacional defendia a abolição total da escravidão, já o El Constitucional rechaçava tal decisão. A imprensa em Montevidéu estava dividida. Não havia consenso. A contribuição de Caé está em mostrar que as questões de abolição no Uruguai não estavam, somente, atreladas a guerra, mas sim a um conjunto de discursos de liberdade que foram suscitados e eram anteriores ao conflito.

Em seguida temos o ensaio de Carla Menegat, que aborda a presença de proprietários brasileiros estabelecidos no Uruguai entre os anos de 1845 e 1864. A partir de um interessante conjunto de listas, Carla busca mostrar a importância da presença brasileira em solo uruguaio e utiliza a família Brum da Silveira para evidenciar as suas estratégias no que tange os negócios e sua cidadania. Seu trabalho também aponta para como os uruguaios trataram o processo de abolição da escravatura em virtude da presença brasileira em seu solo. Segundo Menegat, com o passar dos anos surgem campanhas de “orientalização” em busca de uma homogeneização da língua e do abandono do uso do português. Em outras palavras, se queria tornar o Uruguai mais unido e com uma identidade nacional própria.

O tema das fugas cativas volta em cena com o texto de Daniela Vallandro de Carvalho. Especificamente, Daniela trabalha com as fugas em tempos de guerra, usando como mote a Guerra dos Farrapos e a Guerra Grande. A autora utiliza também algumas trajetórias para dar vida e sentido para os planos dos escravos. Para Carvalho, a guerra era um excelente momento para que os escravos obtivessem a liberdade: ou por servirem em fileiras de guerra, ou para serem leais e conseguirem mais prestígio com seus senhores. Uma de suas importantes contribuições está em demonstrar que os cativos usavam o Exército para sua maior mobilidade e posterior liberdade.

O artigo de Marcelo Santos Matheus foca em um município fronteiriço específico, o de Alegrete. Sua questão-problema levantada foi como a fronteira influenciou diferentes agentes históricos, tanto os cativos como seus senhores. Alguns casos mostraram como os escravos utilizavam estratégias para chegarem à liberdade e ao mesmo tempo como os senhores manejavam a fronteira ao seu favor. Um dos destaques de seu texto está em mostrar como os escravos usavam a Justiça para conseguirem sua alforria, usando para isso uma interpretação das leis de abolicionistas uruguaias que servisse aos seus interesses. Foi o caso dos cativos que pediam alforria por terem trabalhado no Uruguai após a lei abolicionista de 1842.

Seguindo pelo pagos de Alegrete, o texto de Mariana Thompson Flores nos brinda novamente com o tema das fugas, mas deixa claro de que mesmo que tal assunto tenha sido abordado com frequência, ainda existem aspectos que merecem ser melhor explorados. É o caso do papel dos sedutores que ajudavam e convenciam os escravos a fugirem. Nos processos criminais analisados, Mariana encontrou cinco casos onde os escravos fugiam por conta própria e catorze situações onde houve a participação do sedutor, que os persuadia a uma vida melhor do outro lado da fronteira. A Justiça bem que tentou incriminar os sedutores de escravos e, em muitos casos, conseguiu. Porém, Mariana apresenta diversos casos empíricos que mostram como escravos e sedutores (homens livres ou libertos) aproveitaram deste contexto fronteiriço e se beneficiaram disso.

Continuando com o tema das fugas de escravos para o além-fronteira, Thiago Araujo apresenta o assunto em outra perspectiva, focando nas dificuldades do percurso e na difícil tarefa dos escravos romperem com o mundo da escravidão. Seu objetivo foi mostrar quais eram os mecanismos de controle e vigilância que os senhores acionavam num universo de escravidão na pecuária. A partir do caso de fuga de José, Leopoldino e Adão, Araújo mostra como os senhores de escravos precisavam pensar em políticas de domínio para evitar a fuga de seus cativos. Araújo evidencia que em alguns casos nem a família escrava impedia que os cativos fugissem.

Se Thiago Araújo investigou a fuga de escravos para o Uruguai, o texto de Rafael Peter de Lima aborda outra faceta da escravidão em regiões de fronteira: os sequestros e raptos de negros uruguaios que eram vendidos como escravos no Império do Brasil. Rafael mostra como era difícil definir a condição de afrodescendentes em áreas de fronteira. E mais do que isso. Os problemas diplomáticos e internacionais que surgiam devido a questão do fim ou da permanência da escravidão. Lima também apresenta dados muito interessantes como, por exemplo, o sexo e a idade das vítimas dos sequestros. As mulheres em idade produtiva eram as mais raptadas neste cenário. Por fim, Rafael também nos brinda com dados que apontam que os cônsules uruguaios tiveram sucesso na defesa dos negros orientais na Justiça. Em pouquíssimos casos eles permaneciam na escravidão.

E para finalizar temos o artigo da historiadora uruguaia Karla Chagas que, dos textos apresentados aqui, é o que mais se diferencia em termos de tema e delimitação temporal. Karla avança os marcos da escravidão e apresenta uma entrevista realizada a uma afrodescendente, Cecília, nascida em Rivera em 1904. Seu ensaio pretendeu analisar as linhas de ruptura e de continuidade que houve nas condições de vida da população afro-uruguaia na virada do século XIX para XX. Destacam-se as diferentes estratégias que Cecília utilizou para melhorar suas condições de vida como a fuga de uma casa onde a maltratavam.

O conjunto de textos ora apresentados mostra o avanço das pesquisas sobre a escravidão no espaço platino nos últimos anos. Infelizmente historiadores argentinos não escreveram textos para este livro. Mas muito se tem pesquisado sobre a influência e o impacto da fronteira na vida de senhores e escravos. Também a importância que as leis abolicionistas uruguaias de 1842 e 1846 tiveram para a (des)organização do sistema escravista brasileiro, principalmente, no Rio Grande do Sul. Este livro é o resultado deste cenário. Mostra, entre outras coisas, como as especificidades regionais precisam ser levadas em conta, mas sem perder de vista que os sujeitos históricos possuíam planos próprios que, por vezes, desafiavam o contexto que os mesmos estavam inseridos. Quem for ler o livro “As fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América”, organizado pela professora e historiadora Keila Grinberg verá histórias individuais amalgamadas em um contexto mais amplo de disputa e consolidação dos Estados Nacionais. A riqueza está na coletividade e no diálogo que gerou este livro.

Jônatas Marques Caratti – Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS – Porto Alegre/Brasil). E-mail: [email protected]


GRINBERG, Keila (org.). As fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. CARATTI, Jônatas Marques. Escravidão e Liberdade nas fronteiras platinas. Almanack, Guarulhos, n.8, p. 166-169, jul./dez., 2014.

Acessar publicação original [DR]

O Brasil imperial. Volume II: 1831-1870 – GRINBERB; SALLES (HH)

GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil imperial. Volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, 502 p. Resenha de: POPINIGIS, Fabieane. Conflitos e experiências na formação do Estado imperial brasileiro. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7 p.357-363, nov./dez. 2011.

Conflitos e experiências na formação do Estado imperial brasileiro 358 Organizado por Keila Grinberg e Ricardo Salles e publicado em 2009 pela Civilização Brasileira, o livro O Brasil Imperial – Vol. II: 1831-1870, faz parte de uma coletânea de três volumes que abrange, em seu conjunto, todo o período Imperial: o primeiro deles vai de 1822 a 1831, o segundo de 1831 a 1870 e o terceiro de 1870 a 1889. Este volume dois tem onze capítulos, distribuídos em 502 páginas, acrescido de uma apresentação de José Murilo de Carvalho e de um pequeno prefácio dos organizadores.

Os autores tiveram bastante sucesso em pelo menos três quesitos que norteiam a organização da coleção: a exposição didática dos acontecimentos – inclusive em narrativas cronológicas; a escolha dos autores e temas, que possibilitaram aliar o estágio atual das pesquisas à critica historiográfica; e a articulação entre os temas e problemas historiográficos abordados, que se interconectam.

Através do artigo de Ilmar Mattos, que transita entre todos os temas abordados nos capítulos seguintes como que tecendo um fio invisível entre eles, somos apresentados a uma das mais interessantes características da coletânea: o diálogo entre os temas e abordagens, que parecem ser retomados aqui e ali, formando um conjunto na maior parte das vezes harmonioso e com movimento. Sob o título “O Gigante e o Espelho”, o autor mostra que a revolução de 7 de abril tornava realidade a independência do Brasil e abria um novo tempo de liberdade para os “brasileiros”, condensando problemas que eram centrais para os contemporâneos e seu projeto de construção da nação.

Em primeiro lugar, o gigante território e o desafio de mantê-lo unido, enquanto o restante da América se fragmentara, cria a singularidade de sua primeira expansão, que Mattos chamou de “expansão para dentro”. A partir da Independência, abdicava-se de um domínio ilimitado em termos espaciais e construía-se a ficção entre território e nacionalidade. O espelho, por sua vez, tinha dupla face: de um lado os brasileiros espelhavam-se nas nações “civilizadas” da Europa, no porcesso de construção da nação brasileira, e do outro, a associação do Brasil à lavoura e a opção pela manutenção da escravidão na consolidação da ordem significava conviver com outras “nações” no interior do território. O nexo de pertencimento, propriedade e características fenotípicas distinguiria os homens bons do “povo mais ou menos miúdo” e dos escravos, e, na medida em que avançavam o café e o regresso, também se acrescia à diferenciação entre livres e escravos aquelas entre escravo e cidadão. Seguir por esse caminho significava também voltar as costas a uma “proposta de nação constituída por homens e mulheres representados como livres e iguais juridicamente”. O regresso, a derrota dos liberais em 1842 e a consolidação do projeto político conservador, com os liberais atrelados às propostas e ações políticas dos saquaremas, “incapazes de manter viva entre seus compatriotas a lembrança do dia 7 de abril como início de um novo tempo”. A ordem imperial, portanto, consolidar-se-ia sob o signo da conciliação entre as famílias da boa sociedade sob o governo do Estado, que imprimiria, nas palavras de Mattos “não apenas um exercício de dominação, mas de direção intelectual e moral dos brasileiros, uma história e uma língua nacionais com seus propósitos ‘imperiais”.

História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7 nov./dez. 2011 357-363 Assim, o capítulo inicial sugere os eixos organizadores dos capítulos seguintes: as disputas políticas e sociais em torno da formação administrativa do território nacional, as questões suscitadas pelo nexo organizador da sociedade escravista e suas desigualdades, e a necessidade de criação de sentimento de pertencimento, a partir da imprensa e da literatura.

No caso do primeiro eixo, cuja referência fundamental é claramente o momento de abdicação de D.Pedro I, em 7 de abril de 1831. O período regencial é retomado como momento de disputa em torno de diferentes projetos de nação, em perspectivas diversas – que vão das discussões na arena estritamente política, passando pelos conflitos sociais em torno do processo de integração das regiões ao projeto centralizador na Corte Imperial, até lugar de homens e mulheres de cor na construção da nação.

Privilegiando a política parlamentar e abordando com minúcia as disputas entre as diversas propostas e os grupos que iam se delineando, Marcello Basile mostra, em “O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840)”, que o 7 de abril inaugurou um momento ímpar de experimentação política em que uma diversidade de fórmulas políticas foram apresentadas e experimentadas, e de participação popular, ainda que não na política institucional, mas nas ruas, de um amplo leque de grupos e estratos sociais. Partindo da crítica à historiografia que atribuiu ao período características sobretudo negativas – ressaltando as revoltas ocorridas como sinônimo de anarquia e empecilho ao estabelecimento da ordem -, ele é aqui abordado em suas próprias bases, e não como um momento de transição política entre a abdicação e o chamado regresso conservador. Embora não contemple neste capítulo sua própria pesquisa sobre os motins urbanos no Rio de Janeiro durante o período (BASILE 2007, p. 65) – o que teria contribuído para enriquecer o diálogo entre o que acontece nas ruas e os debates no Parlamento-, o autor observa que o que orientou o pacto responsável pelo esvaziamento do espaço público das práticas de cidadania experienciadas naquele momento inicial foi o temor das revoltas e a consciência da necessidade de coesão das elites políticas.

Alguns desses movimentos ocorridos nas províncias, sua relação com a Corte, os projetos de identidade nacional e a participação popular são analisados por Marcus Carvalho no capitulo intitulado “Movimentos sociais: Pernambuco (1831-1848)” e em “Cabanos, patriotismo e identidades”, de Magda Ricci. Nos dois casos, a data da Abdicação é novamente o divisor de águas que mobiliza esses grupos e radicaliza as oposições. Entretanto, os acontecimentos e seus desenvolvimentos são vistos neles como parte de um processo histórico de longa data, envolvendo questões políticas e sociais engendradas no enfrentamento entre os interesses dos diversos grupos em disputa. Ambos articulam o plano político institucional das tentativas do governo na Corte de tomar o controle sobre as províncias ao plano regional e cotidiano das querelas locais e aos sentidos da liberdade atribuídos pelo povo miúdo, atentando para a precariedade das liberdades individuais. A participação popular é aqui posta em relevo sem ser vista como espasmódica ou manipulada pelas elites políticas. Os autores tecem os acontecimentos numa trama complexa para ir além dos conhecidos marcos políticos, mostrando a diversidade de grupos envolvidos e as lógicas que informavam suas lutas, fazendo-os por vezes aliados circunstanciais – como no caso dos senhores de engenho, escravos, quilombolas, indígenas e homens livres pobres em geral. Ainda que, por vezes, não houvesse uma organização com objetivos mais específicos, os grupos em questão tinham suas razões e sua lógica de ação a partir de interesses próprios. Assim, a política cotidiana das pessoas comuns e dos diversos grupos que as compõe é analisada sem esquecer seus laços com a política institucional.

No caso de Carvalho, a inovação é a não compartimentação da história desses movimentos num Pernambuco em constante estado de tensão, que é guiada, de modo mais geral, pelos acontecimentos ligados ao 7 de abril, data da Abdicação, quando aqueles que haviam apoiado a repressão de D. Pedro I às pretensões revolucionárias de 1817 ou 1824 passam a ser perseguidos pelos que agora foram elevados pela gangorra política. Ricci, por sua vez, analisa o segundo ciclo de revoltas do período regencial no norte do território. Ela mostra que a Província do Pará, ao contrário de isolada e pouco povoada como se pretendeu em várias análises, estava interligada a rotas internacionais através do comércio intercontinental e da circulação de pessoas e ideias entre a região e os países vizinhos. Durante a Revolução de 1835, como chama a autora, surgia um sentimento comum de identidade entre povos e etnias de culturas diferentes, uma identidade local não afinada com aquela em formação no Rio de Janeiro. Com a luta de classes no centro do processo de formação do Império e das incertezas que configuraram a década de 1830, os dois textos são importante contribuição para mostrar como o medo aos sentidos de liberdade atribuídos pelo povo miúdo forçou dirigentes imperiais e elites locais a se aliarem e a submeter esses homens e mulheres livres pobres à repressão. A evidente vantagem destas estratégias é a de oferecer aos leitores um panorama do período abordado a partir de uma referência de fora da Corte.

O texto de Keila Grinberg também se conecta a este primeiro eixo, analisando a Sabinada não apenas como parte do processo conflituoso de disputa entre projetos de autonomia e independência das províncias em relação à Corte, mas, sobretudo, como disputa pelo lugar dos homens de cor na construção da nação. No texto intitulado “A Sabinada e a politização da cor na década de 1830”, o movimento na Bahia foi utilizado por Keila Grinberg para analisar dois projetos políticos em disputa: de um lado aquele representado por Antônio Pereira Rebouças que, colocando-se do lado da “ordem”, procurava ater-se aos princípios constitucionais segundo os quais os cidadãos brasileiros, qualquer que fosse a sua cor, só poderiam ser distinguidos por seus talentos e virtudes; Francisco Sabino, por outro lado, representava aqueles que viram com desgosto serem cada vez mais negadas as possibilidades abertas a partir da independência, de uma maior inserção de livres e libertos, pardos e mulatos, tanto na participação política como na ocupação de cargos públicos e militares.

A derrota do movimento e as políticas centralizadoras do Regresso, entretanto, fechariam os ciclos de revoltas e manifestações populares, frustrando as aspirações liberais de homens livres e de cor, que viram cada vez mais distante de sua realidade as possibilidades de uma participação verdadeiramente igualitária naquela sociedade.

Uma das principais causas de insatisfação entre homens livres pobres e libertos era a questão do recrutamento, grande causador de conflitos, pois expunha as contradições e hierarquias sociais. Como mostra Victor Izechsohn, no capítulo intitulado “A Guerra do Paraguai”, essas tensões foram acirradas durante a guerra: por um lado, os agregados buscavam proteção nos chefes políticos; quando não conseguiam, a opção era a oferta de substitutos, livres ou libertos ou a simples fuga. Por outro lado, por conta da “massificação operada pelo recrutamento”, aos trabalhadores pobres livres desagradava ver seu status igualado a tais recrutas. Afinal, a certa altura, o governo imperial resolveu libertar quantidade significativa de escravos para serem integrados ao exército, e o próprio Caxias mostrou constante preocupação com sua grande heterogeneidade racial. A Guerra do Paraguai é aqui analisada como elemento central na construção dos estados e nações envolvidos, num momento em que se procurava a manutenção do controle territorial pelos novos centros políticos estabelecidos.

Assim, as tensões que o recrutamento suscitava se entrelaçavam ao problema político da constituição de sentimentos de pertencimento a um território que havia sido consolidado recentemente.

O segundo organizativo dos capítulos da coleção – o da escravidão como nexo organizador da sociedade – é analisado de diferentes perspectivas nos trabalhos de Rafael Bivar Marquese e Dale Tomich e de Jaime Rodrigues. Para Marquese e Tomich em “O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX” foi a ação “concertada” entre os fazendeiros do Vale escravista e os políticos ligados ao regresso o que estreitou a relação entre o crescimento do tráfico atlântico e o aumento da produção cafeeira, além da otimização do tráfico conseguida por luso-brasileiros que comandavam boa parte do infame comércio na região da África centro-ocidental. O texto inscrevese no objetivo mais geral de enfatizar a necessidade de voltar à utilização das lentes de aumento na análise histórica sobre a inserção do Brasil num contexto mais amplo de relações, neste caso para perceber o “papel do Vale do Paraíba na formação do mercado mundial do café” e na conformação do estado brasileiro.

Dois elementos possibilitaram esse investimento inicial e o crescimento da produção na intenção de atender às necessidades do mercado externo entre as décadas de 1820 e 1830: em primeiro lugar, toda a estrutura dos caminhos de tropas montadas em função da mineração, no século XVIII, ligando o sul e o litoral ao interior de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro possibilitava escoar a produção do Vale do Paraíba (que dominaria a produção brasileira de café ate meados de 1870) para os portos do litoral; em segundo lugar, os arranjos políticos eficientes por parte do Império do Brasil para lidar com a pressão inglesa e a ilegalidade do tráfico a partir de 1831 teriam garantido um terreno seguro para as práticas escravistas.

Jaime Rodrigues, por sua vez, procura ir além dos paradigmas mais consolidados da historiografia que põe em relevo a pressão inglesa como razão determinante para o fim do tráfico atlântico de escravos em “O fim do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil: paradigmas em questão”. O autor encontra os principais argumentos de justificativa do comércio e do tráfico atlântico de escravos na função civilizatória da catequização de africanos e, posteriormente, na necessidade da manutenção da mão de obra para a lavoura, através da análise de obras e discursos letrados do início do século XIX. Rodrigues reafirma então a centralidade do comércio de escravos para a construção da nação na primeira metade do século XIX, imbricada no processo que levou ao fim do tráfico como seu aspecto fundante. O que teria mudado no período entre a primeira lei de proibição do tráfico atlântico e a lei de 1850 e sua efetiva aplicação? Entre o argumento da “corrupção de costumes” e a conivência das autoridades policiais com a propriedade escrava, Rodrigues atribui um grande peso ao medo senhorial em relação à população escrava, não apenas de motins e revoluções, mas também de ações jurídicas dos escravos contra seus senhores e em prol de sua liberdade. Segundo ele, é no “equilíbrio entre o medo das ações violentas dos escravos e a necessidade de manter a produção, que devem ser procuradas as explicações para as idas de vindas na decisão de acabar com o tráfico atlântico de escravos africanos”. Finalmente, nesse processo, o importante era definir o status jurídico dessas pessoas na sociedade que se estava construindo, limitando a cidadania de livres e libertos e garantindo meios de controle sobre eles e sobre seu trabalho.

No terceiro eixo que permeia a organização dos capítulos, a literatura, a língua nacional e a imprensa são analisadas por Ivana Stolze Lima, Márcia de Almeida Gonçalves e Sandra Jathay Pesavento como lugares privilegiados de disputa em torno da formação de um sentimento de pertencimento e nacionalidade. Em “Uma certa Revolução Farroupilha”, Pesavento atribui papel de destaque à literatura na construção posterior que se faz deste percurso de dez anos de guerra da província do Rio Grande do Sul contra o Império, centralizado no Rio de Janeiro, para elevar a Farroupilha a foros de evento mitológico e fundador de uma identidade que é ao mesmo tempo nacional e regional. Entre diferenças e semelhanças, literatura e história constroem o mito de um passado idílico em que “senhores não encontravam freios a seu mando”.

A partir da Independência, a interferência centralizadora da corte estabelecida no Rio de Janeiro representará “o outro”, assim como os inimigos no Prata. O ethos de uma identidade regional situa-se no Rio Grande do Sul como paladino da liberdade, unindo-os num ideal comum para além das distinções étnicas da posse da terra ou de hierarquia social. A elevação da Farroupilha como acontecimento chave para a explicação da província reiterava a vocação libertária do gaúcho, que, nessa leitura, rebelar-se contra o autoritarismo do Império, não para dele se desvincular, mas, ao contrário para transformar o nacional.

Ressaltando a importância da literatura e seus autores, Marcia Gonçalves em “Histórias de gênios e heróis: indivíduo e nação no Romantismo brasileiro”, analisa as disputas em torno da existência de uma literatura própria do Brasil na segunda metade do século XIX. As biografias mobilizavam conceitos de gênio e herói para a caracterização dos construtores do império do Brasil: selecionando- -se quem não deveria ser esquecido e como deveria ser lembrado, procurava- se criar exemplaridades para o que era ser brasileiro e individualizar o Brasil como estado. Elementos do romantismo que caracterizavam singularidades da cultura de povos e sociedades locais foram utilizados na construção de uma nacionalidade brasileira e suas especificidades. Nesse sentido, portanto, Gonçalves ressalta a importância do fundo histórico da literatura, que deveria alçar o Brasil a um lugar entre as nações modernas e civilizadas.

Ivana Stolze Lima, em “A língua nacional no Império do Brasil”, também atenta para a questão da especificidade da língua brasileira como “uma das expressões do Romantismo literário no Brasil” – tomando para isso um outro caminho, que procura revelar também o lugar daqueles que não faziam parte dos projetos dos letrados do século XIX, mas com quem tinham que lidar. A autora mostra como no início da colonização as línguas indígenas e africanas persistiam, e a escravidão africana ajudava a difundir o português. As diferenças linguísticas dos africanos eram superadas pelo uso de línguas gerais e pela utilização do português como base ou pela criação de línguas crioulas. No século XIX, com a evolução de um certo projeto de nação, dirigentes imperiais e homens de letras consideravam a centralidade da unidade da língua e sua utilização para a constituição do sentimento de pertencimento e nacionalidade.

Para isso foi essencial a atuação da imprensa no século XIX – que atingia mais gente do que os que sabiam ler -, e a educação escolar, formando cidadãos de acordo com os valores da classe senhorial em formação. Segundo a autora, a língua também propiciava caminhos para a incorporação social de homens livres pobres e mesmo escravos que se utilizavam de seus recursos.

Trata-se assim de um livro composto por capítulos escritos por especialistas reconhecidos nos variados campos de discussão historiográfica sobre o período, mas articulados por uma estratégia que possibilita sua interconexão a partir de grandes eixos temáticos. Isso faz com que a obra preencha uma importante lacuna na compilação de debates e pesquisas recentes, oferecendo aos leitores e leitoras uma leitura acessível para a compreensão dos processos históricos centrais no Brasil Imperial. Mais ainda, a coletânea, de forma geral, constitui-se em leitura obrigatória para os que trabalham com o tema e se interessam pelo debate historiográfico sendo por isso ótima opção para ser utilizada em sala de aula. Em suma, o livro cumpre com a função de divulgação para um público amplo sem abdicar de pesquisa empírica rigorosa e do debate historiográfico atualizado. Uma boa notícia para todos interessados em conhecer o que de mais novo se produz sobre o período Imperial.

Referência bibliográfica BASILE, M. Revolta e cidadania na Corte regencial. Tempo: revista do departamento de história da UFF, v. 22, p. 65, 2007.

Fabiane Popinigis – Professora adjunta Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Rua Glaucio Gil, n.777, bloco 101, casa 01 – Recreio dos Bandeirantes 22795-171 – Rio de Janeiro – RJ Brasil.

O Brasil imperial | Keila Grinberg e Ricardo Salles

Esses três volumes dividem a história da monarquia brasileira em três fases distintas: 1808-1831, 1831-1870 e 1870-1889; ou seja, da transferência da Corte portuguesa à abdicação do primeiro imperador; da Regência até o fim da Guerra do Paraguai; e deste conflito até a queda da monarquia. Cada volume é composto por onze capítulos, escritos, individualmente ou em colaboração, por 36 historiadores.

Coleções são, notoriamente, difíceis de organizar. Os colegas, com frequência, têm dificuldade de cumprir prazos ou hesitam em aceitar sugestões e correções. Os resultados, amiúde, variam consideravelmente de capítulo a capítulo. Essa coleção de três volumes é, contudo, excepcionalmente sólida, pelo alto nível geral de conhecimento que apresenta, por sua abrangência e pela clareza da escrita e, como José Murilo de Carvalho observa em sua elegante introdução, expressiva das conquistas do país na última ou nas duas últimas gerações. A coleção pode ser considerada uma celebração da maneira como a história do Brasil tem sido escrita e ensinada nesse período. As referências bastam para tornar os volumes indispensáveis, tanto para o graduado quanto para o profissional da área. O estilo e a abordagem são, muitas vezes, tão convidativos que também o leigo poderá se beneficiar. Embora fique evidente que Grinberg e Salles não exerceram uma coordenação autoritária (abordagens, extensões e graus de sucesso variados sugerem que se limitaram a selecionar colegas e tópicos), eles devem ser felicitados e reconhecidos por esse triunfo ímpar na historiografia.

São dois os precedentes desses volumes. A imprescindível série A história geral da civilização brasileira, organizada por Sérgio Buarque de Hollanda e, depois, por Boris Fausto, durante os anos 1960 e 1970; e os magistrais capítulos sobre o Brasil na Cambridge History of Latin America [CHLA], composta em grande parte na década de 1980 (sendo que as contribuições mais recentes foram feitas ainda em 2008) e organizada por Leslie Bethell. A primeira foi escrita por especialistas brasileiros e americanos como uma narrativa tanto para leigos quanto para acadêmicos, com um mínimo de referências. A segunda fornece análises densas e narrativas sintéticas, feitas por especialistas de três continentes. Sua linguagem sugere que foi escrita para acadêmicos ou graduados, e, embora careça seriamente de referências, cada capítulo é reforçado por um ensaio bibliográfico bastante útil, que abrange as pesquisas em todos os idiomas indispensáveis. A coleção em mãos difere de ambos os precedentes. Com uma exceção, Dale Tomich, todos os autores são brasileiros. Alguns dos textos são fundamentados tanto em fontes primárias quanto em bibliografia, e todas elas recebem notas (não há bibliografia no final dos capítulos). Muitos dos autores, assim como os da CHLA, sintetizam e colocam referências somente nas fontes bibliográficas; na verdade, muitos dos trabalhos citados são os mais recentes na área e estão em teses e dissertações não-publicadas. Lamentavelmente, há, reiteradas vezes, espantosas lacunas nas citações. Referências a importantes contribuições em inglês variam de autor para autor; mas, com frequência, estão ausentes ou desiguais, e, com muita frequência, trabalhos mais antigos escritos em qualquer idioma são negligenciados. Em geral, esta poderia ser definida como uma coleção feita por e para acadêmicos brasileiros dessa geração e da anterior, com ênfase na pesquisa realizada nesse período.

Dos três volumes, o primeiro e o terceiro são os mais irregulares em termos de qualidade. No primeiro, podem-se considerar problemáticos o segundo capítulo e os capítulos de quatro a sete, por várias razões. O capítulo de Iara Schiavinetto sobre o período joanino apresenta escassa narrativa sobre a época e poucas evidências para seus argumentos. Em vez disso, a autora pressupõe um público erudito e enfatiza as expressões culturais e simbólicas. O texto de Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira sobre o Primeiro Reinado negligencia as ligações entre líderes políticos e seguidores populares, não faz distinção entre os interesses e as ações dos vários elementos que compõem as massas e, no fundo, tende a confundir pessoas de cor, libertos e filhos de escravos em argumentações que se esforçam para persuadir o leitor quanto à agência popular. O ensaio de Patrícia Sampaio sobre política indigenista é surpreendentemente decepcionante; um estudo de relatórios ministeriais que presta pouca atenção ao que aconteceu na realidade concreta. O capítulo sobre tráfico de escravos, escrito por Beatriz Mamigonian, é ambicioso, até por suas conclusões provocativas e problemáticas em um ponto ou outro. Seja como for, suas novas proposições (de que o tráfico esteve sujeito a intensos ataques jurídicos, os quais impactaram a escravatura e os próprios africanos) são apenas expostas, e não satisfatoriamente demonstradas. Por fim, o capítulo sobre rebeliões de escravos pré-1850, escrito por Keila Grinberg, Magno Borges e Ricardo Salles, fornece um estudo e uma bibliografia úteis. Ainda assim, o argumento (de que as rebeliões e a violenta resistência dos cativos eram o aspecto distintivo do regime escravista, as quais impunham temor e pânico generalizados sobre os livres) fundamenta-se em evidências problemáticas e, por vezes, contestadas por fatos comprovados (por exemplo, a primazia da resistência pela fuga e por quilombos, a reduzida dimensão e o caráter efêmero das revoltas, suas seguidas repressões e, sobretudo, o êxito e a expansão do sistema escravista em todas as regiões e classes sociais).

A maior parte do volume, contudo, é bem mais consistente. O primeiro capítulo, uma introdução de Cecília Helena Oliveira para todo o período, é uma síntese sólida, que expõe a narrativa e os argumentos com destreza. Falta-lhe apenas uma melhor análise sobre as bases regionais e socioeconômicas por trás da divisão política da época. O capítulo de Piedade Grinberg sobre arte e arquitetura é uma apresentação culta e instrutiva, com notas explicativas e referências úteis. Embora ele já seja bastante proveitoso, seria bem-vindo alguém capaz de estender sua abordagem para os possíveis paralelos com escolas literárias e outras instituições de inspiração francesa, tais como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Colégio Dom Pedro II e também o papel de mecenas do monarca. O capítulo de Lúcia Maria Bastos P. das Neves sobre o Estado e a política na época da Independência faz hábil uso de fontes coevas em um percurso muito bem sucedido pela historiografia, ao qual se segue uma análise útil e, por vezes, revisionista, da narrativa. O capítulo de Eduardo França Paiva sobre Minas no século XIX é um estudo magistral, um tour de force que utiliza as pesquisas mais recentes para ressaltar a importância racial, demográfica e de desenvolvimento da província – é uma pena que ele não aplica o mesmo esforço para fazer as relações com a história política do período. Gabriela Ferreira compensa essa negligência, tão comum nestes capítulos, em seu engenhoso texto sobre a história diplomática no Prata. A autora fornece um relato útil e necessário sobre a consolidação do Estado entre 1837 e a década de 1850 e utiliza essa análise como estrutura indispensável para sua síntese narrativa. Fundamentado tanto em clássicos quanto em trabalhos recentes, este é um estudo que não para de surpreender e informar. Por fim, o capítulo de Guilherme Pereira das Neves, sobre a religião na monarquia, conclui o volume com um estudo amplo e útil, contextualizando a história da Igreja com um uso erudito de fontes em diversos idiomas e criteriosas referências a debates parlamentares. Só se poderia desejar que o autor houvesse tido espaço para aprofundar o tema da maçonaria ou a questão dos bispos, depois de tê-los apresentado.

O segundo volume é, no geral, o mais consistente. É verdade que o capítulo introdutório de Ilmar Rohloff de Mattos não aprimora muito seu clássico estudo sobre o período. Fazendo referência a uma bibliografia ampla e seletiva, sem o benefício da pesquisa de arquivo, sua análise digressiva evoca O tempo saquarema, frequentemente citado em outras partes por seus colegas, no qual se confunde a monarquia, o Estado e as classes dirigentes, sem uma clara noção do processo, da articulação ou das distinções partidárias, tão importantes na tentativa de compreender esse complexo passado. O estudo de Magda Ricci sobre a Cabanagem pode ser mais bem recomendado, se bem que com hesitação. A autora não apresenta nenhuma pesquisa de arquivo e presume que o leitor está familiarizado com a narrativa – os que desconhecem o assunto talvez ficarão confusos. No entanto, sua síntese de uma ampla gama de trabalhos apresenta a mais devastadora das revoltas regenciais, geralmente ignorada ou desconhecida por muitos de nós, e suas citações de obras relativamente obscuras da historiografia amazônica são úteis. O capítulo de Jaime Rodrigues acerca do fim do comércio atlântico de escravos é surpreendente, devido à erudição do autor. Ele pressupõe que o debate central permanece no tema das motivações britânicas versus motivações nacionais e geralmente ignora a contenda mais atual, que aponta como causas a agência escrava e a febre amarela. Embora forneça uma fascinante história intelectual da polêmica e da crítica parlamentar ao tráfico, ele o faz sem atentar ao seu impacto sobre a decisão de terminar o tráfico, às opiniões daqueles que realmente tomaram esta decisão ou à história política, essencial para compreender o contexto desta decisão. Por fim, o capítulo de Márcia Gonçalves sobre o Romantismo pode ser considerado como uma oportunidade perdida. É um trabalho sobre os conceitos fundamentais da escola e pressupõe um interesse na análise teórica de tais conceitos e um conhecimento do período e de suas figuras literárias. Há uma excelente bibliografia sobre os temas abordados e sobre autores canônicos brasileiros. No entanto, não há preocupação em mostrar como a sensibilidade e os literatos românticos se encaixavam no meio literário, social e político da época. Na verdade, a chance de demonstrar a relação entre a alta cultura e os interesses de outros historiadores – ou até mesmo dos leitores – foi perdida.

Outros capítulos são verdadeiramente valiosos. Nenhum período é mais importante ou seminal para a história da monarquia que a Regência, e a introdução de Marcelo Basile a esse período é deveras admirável, devido à sua clareza e maestria, beneficiando-se da ótima pesquisa, tanto de fontes primárias quanto de bibliografia. Embora seja preciso notar que ele negligencia a questão crucial do impacto socioeconômico no início da formação dos partidos, deve-se recomendar este texto bastante sólido e provido de úteis notas explicativas. O texto de Sandra Pesavento sobre os farroupilhas inclui uma útil narrativa, embora a necessária análise contextual da revolta seja atrapalhada, aqui e ali, por hipóteses e conclusões equivocadas. Estas são bem menos relevantes que a provocativa investigação que a autora faz da construção literária e historiográfica da identidade e do imaginário gaúchos e de sua importância. O capítulo de K. Grinberg sobre a Sabinada também tem valor evidente. Pode-se discordar da autora em algumas passagens, quanto a fatos e interpretações, mas o texto é, em si, útil por seu caráter provocativo e pela centralidade das questões que apresenta. Ela usa essa destacada revolta para ilustrar como o debate sobre discriminação racial veio à tona e depois foi suprimido na década de 1830. Ao fazê-lo, discute explicitamente os aspectos raciais do movimento, a oposição que lhe fez Antônio Rebouças e as carreiras deste e de Sabino. Embora a autora procure se concentrar na questão da raça, sua bela pesquisa mostra que os fatores políticos, de classe e de carreira se entrelaçam com o fator racial consistentemente. De fato, as generalizações políticas e raciais que ela sugere nem sempre se ajustam com a carreira de Rebouças ou com as de Justiano José Rocha, Francisco Otaviano, Aureliano e Paula Brito. O texto de Vitor Izecksohn sobre a Guerra do Paraguai faz um sólido resumo da guerra e fornece uma excelente bibliografia. Além das várias linhas de pesquisa cuidadosamente sugeridas na conclusão, outras são indicadas pela bem elaborada análise política: qual foi o impacto da guerra na política doméstica em termos de reforma urbana e dificuldades financeiras? Qual foi a base dos temores do gabinete quanto à mobilização política entre liberais e veteranos depois de 1870? A conclusão de Ivana Lima para o volume dedica-se ao tópico aparentemente pouco auspicioso da língua nacional. Ainda assim, por mobilizar uma gama impressionante de bibliografia e textos coevos publicados, pode-se considerá-la muito útil para se pensar a formação cultural multiétnica, os aspectos culturais da sociabilização e o seu impacto político e as intenções políticas da cultura literária e o uso da língua. Por exemplo, a autora mostra a intenção senhorial de usar a língua para manter a hierarquia social, mas também demonstra os usos da língua para inclusão dos subalternos e para a mobilidade social. É uma introdução cuidadosa e atraente a um tópico que a maioria de nós ignora.

Dois capítulos deste volume são especialmente admiráveis por suas contribuições: o capítulo de Marcus Carvalho sobre movimentos sociais pernambucanos e a análise de Rafael Marquese e Dale Tomich sobre a produção cafeeira do Vale do Paraíba no contexto mundial. Nenhuma província era mais atingida pela instabilidade e pela violência que Pernambuco naquele período. Nenhuma era mais importante para compreender o significado nacional tanto da Regência quanto do Regresso. A análise de Marcus Carvalho aborda todas essas questões em uma mostra singular e impressionante do ofício do historiador. É exemplar por sua habilidosa conjugação de uma vasta gama de fontes de arquivo com bibliografia; por sua atenção à interação entre classes e cores de pele e entre a província e a Corte; e pela clareza de sua exposição. Modelo de como lidar com os complicados elementos em jogo na política e nas revoltas provinciais do início da monarquia, o artigo demonstra quão indispensável a história social é para a história política, a história política é para a social, e quão crucial a apreciação das contingências e das especificidades de tempo e lugar é para a compreensão e o encadeamento dos processos políticos. É invejável o evidente domínio de Carvalho sobre as questões no plano empírico e na historiografia; espera-se ansiosamente o dia em que forem feitas análises similares sobre todas as províncias do Império. Marquese e Tomich, em uma notável demonstração que combina um extraordinário entendimento das tendências gerais a uma atenção focada no detalhe local, colocam em contexto a emergência das plantações de café escravistas, em uma síntese magnífica, baseada em uma fundamentação historiográfica excepcionalmente extensa. Seu vigor específico provém da maneira pela qual insere as exportações do café brasileiro no contexto global, expondo, sem dificuldade, números e análises acerca do mercado do produto, da competição e da relação de ambos com o cultivo e a mão-de-obra no Brasil. Com excelentes números e preocupação com a cronologia, essa dupla ilustra, de forma ousada, os fatores vários que permitiram que o Brasil se lançasse à frente de rivais contemporâneos, como as ilhas caribenhas e Java. Mais que isso, a escrita e a organização dos autores é feita de tal modo, que aquilo que muitos de nós julgamos ser o aspecto mais desalentador da história torna-se dramático.

Como no primeiro volume, as contribuições do terceiro tendem a se agrupar em dois extremos – o dos problemáticos e o dos impressionantes. O texto introdutório de Hebe Mattos sobre raça, escravidão e política, por exemplo, focaliza as três principais leis abolicionistas de 1850, 1871 e 1888, mas se esquiva da complexidade da história política com generalizações simplificadas sobre a classe dominante e o reformismo desprezado e com a afirmação insatisfatória de que cada lei foi, em grande medida, resultado da mobilização dos escravos. O ensaio de Margarida Neves sobre o Rio é inesperado, baseado em uma considerável bibliografia sobre as exposições universais e, na maior parte, as impressões de Koseritz. A bibliografia sobre o Rio ou sobre a história urbana do final do século XIX é, em geral, ignorada, exceto pelos trabalhos de Chalhoub. Não há nada sobre assuntos como a dramática transformação demográfica da cidade, o declínio do escravismo, a nova opulência e as amenidades da era pós-1850, a economia que girava em torno da cidade, a infraestrutura que a sustentava ou os estilos arquitetônicos que a adornavam, o surgimento dos novos bairros elegantes, o impacto qualitativo e quantitativo das doenças contagiosas. O capítulo de João Klug sobre a imigração para o sul também não satisfaz. É menos uma síntese competente que uma tentativa fracassada de construir uma narrativa triunfalista. Preocupa-se quando o autor supõe que a política de Estado ou que a classe dirigente da nação não mudaram com as décadas, e, embora ele presuma que há uma lógica racial na imigração europeia, não faz qualquer tentativa de atrelar as mudanças na política de imigração às mudanças na política atinente ao tráfico de escravos africano e à escravidão. Por fim, o relato de Maria Helena Machado sobre a abolição da escravatura é igualmente decepcionante. A exemplar pesquisa de arquivo sobre eventos locais paulistas é maravilhosa, mas nota-se que a autora geralmente deixa de lado as fontes coevas abolicionistas publicadas e a tradição acadêmica sobre o movimento abolicionista para privilegiar o argumento de que as rebeliões escravas e o medo por elas espalhado impulsionaram o abolicionismo. Suas evidências são demasiado seletivas e, às vezes, podem ser lidas de modo bem diferente do que ela propõe. E, embora o próprio texto indique algo sobre a importância dos abolicionistas na fuga e na resistência dos escravos rurais, ela insiste em argumentar que os líderes abolicionistas eram marginais até 1888. Na verdade, a autora só menciona o movimento abolicionista uma única vez e, apesar de seu enfoque na desestabilização rural paulista nos anos 1880, ela se refere apenas de passagem a Antonio Bento. A agência escrava dos escravos é crucial para o entendimento tanto da escravidão quanto da abolição no Brasil, mas não há motivos para ignorar as realidades políticas nacionais ou a natureza do movimento nacional que, com êxito, se envolveu com essas realidades, promoveu e organizou a fuga e a resistência na década de 1880 e fez um uso político astuto e efetivo do impacto da agência escrava.

Há trabalhos bem mais interessantes nos outros capítulos do volume. Veja-se, por exemplo, o convincente relato de Martha Abreu e Larissa Viana sobre cultura urbana afro-brasileira. Bem escrito e envolvente, é resultado de uma persuasiva síntese da bibliografia atual e dos valiosos registros do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Pode-se perguntar, devido à pesquisa das autoras, por que elas ainda se sentiram compelidas a impor uma identidade “negra” a-histórica e uma política cultural consciente sobre os afro-brasileiros pobres. Afinal, essa imposição é, muitas vezes, contrariada pela especificidade e complexidade dos fatos que eles mesmos apresentam tão bem. Identidade negra, comunidade negra e comunidades e festividades negras são concepções post-facto com que eles cobrem uma realidade muito mais complexa – as variadas etnias africanas, a crioulização, a miscigenação racial, o hibridismo cultural e as metamorfoses nas festividades, o oportunismo, além da exploração, que eles detalham tão bem. O relato de Renato Lemos sobre republicanismo e o golpe de 1889 é uma síntese bastante útil e bem organizada de uma bibliografia considerável e variada. Apenas se poderia esperar que sua hábil análise se demorasse um pouco mais na ideologia e no papel crucial dos republicanos positivistas, no fracasso do reformismo democrático e agrário dos abolicionistas e nas divisões e recuos dos partidos tradicionais. Contudo, o artigo deve ser recomendado por sua discussão acerca da dissidência, da alienação e da politização dos militares – excepcional pela minúcia e clareza.

Os capítulos restantes são ainda mais consistentes, dois deles em particular. Embora se possa discordar da compreensão de Salles sobre a história dos saquaremas e da crise de 1871, deve-se recomendar a maior parte deste capítulo sem hesitação. Bem concebido e escrito, o texto faz uso de uma criteriosa seleção de bibliografia e de fontes primárias publicadas para fornecer um sofisticado tratamento da história política de meados do século e das figuras que o dominaram, com evidente conhecimento sobre o crucial contexto socioeconômico. Talvez um estudo mais rigoroso das fontes de arquivo e dos debates de 1871 pudesse explicar como e porque os saquaremas condenaram a Conciliação e pudesse fazer a clara distinção entre as políticas e a perspectiva do imperador e as dos saquaremas. Não obstante, esse é um trabalho notável e uma excelente base para um debate proveitoso. O texto de Ângela Alonso sobre as ideias e as correntes da Geração de 1870 é indispensável por vários motivos. Baseado em uma leitura cuidadosa de bibliografia e fontes coevas publicadas, é uma análise rica e original que requer (e recompensa a) leitura atenta, pois trata, com esmero, de influências, autores e preocupações. O artigo destaca o ponto crucial da adaptação do pensamento atlântico feita pelos intelectuais brasileiros e o papel decisivo que estes desempenharam como atores políticos engajados (e não como intelectuais descompromissados). A autora também esclarece que eles deixaram um importante legado, enfatizando a missão civilizatória do pensamento social e a ideia seminal de que as massas da nação eram um singular amálgama de três raças. De modo geral, o capítulo é fortemente recomendável. Mas, devido à ênfase no ativismo político, o leitor é surpreendido pela implícita decisão da autora por separar a história política da intelectual ao tratar da primeira sem a costurar com a segunda, na maioria das vezes. Isso pode explicar alguns deslizes: o artigo não aborda de modo satisfatório a natureza ou influência duradoura do radicalismo liberal pré-1870; afirma que o regime possuía uma ideologia aristocrática e católica, em contradição com as verdadeiras ideologias e políticas da monarquia; e seu foco sobre o positivismo e seus militantes é irresoluto, apesar da importância destes sobre os republicanos, sobre a queda do regime e sobre o regime seguinte.

Os capítulos remanescentes também são altamente recomendáveis. O texto de Maria Luiza Oliveira sobre São Paulo é exemplar; escrito com grande empatia e destreza, combina um estudo magistral sobre as abordagens e tendências da historiografia com um esboço útil da natureza, do ritmo e da direção das mudanças urbanas que transformaram São Paulo de centro intelectual provincial em núcleo agroexportador emergente. As referências indicam domínio dos clássicos e selecionam textos acadêmicos inéditos; a autora emprega, engenhosamente, fontes de arquivo para provar pontos específicos. Instrutivo e inspirador em todos os aspectos, o artigo é uma realização invejável. O mesmo talvez possa ser dito sobre o agradável ensaio de Leonardo Pereira sobre a literatura do período. Bem escrito, é um texto lúcido, que se vale da literatura e do célebre dito de Machado de Assis sobre o “instinto nacional” para traçar os meios pelos quais a literatura e os literatos pós-1870 se engajaram na transformação da política e da sociedade. Aqui encontramos um hábil tratamento da teoria literária coeva, das obras literárias e do meio político e social, além de uma demonstração competente de como esses aspectos se relacionavam. O leitor pode apenas imaginar o que um acadêmico tão talentoso haveria feito se sua tarefa houvesse sido estendida até o divisor de águas literário dos anos 1850, durante os quais tanto Alencar quanto Machado se formaram. Ainda que o uso das fontes primárias seja exemplar, o leitor fica intrigado com a decisão do autor em citar apenas textos bibliográficos selecionadas e muito recentes – o que surpreende, sobretudo, quando se leva em conta a grande força da história e da interpretação literárias brasileiras e brasilianistas ao longo das gerações. Por fim, José Augusto Pádua nos fornece um estudo bem sucedido sobre a história e o pensamento ambiental do período. Dominando as fontes e a bibliografia imprescindíveis, as quais ele discute com destreza, essa é uma contribuição revigorante e provocativa que sugere, implícita ou explicitamente, inúmeras possibilidades para pesquisas ulteriores nesse campo relativamente novo. Seria desejável, por exemplo, que o autor houvesse enfatizado com maior vigor o impacto da oposição (ou da indiferença) do Estado e das classes dominantes às críticas concernentes à natureza do modelo de desenvolvimento rural do Brasil. Como no caso dos abolicionistas até a década de 1880, brasileiros que se opunham ao modelo de produção agro-exportadora insustentável eram marginalizados, não importando quão proeminente fossem pessoalmente. Tudo isso faz o leitor relembrar algo que a obra clássica de Emília Viotti da Costa sobre a abolição da escravatura deixou evidente. Não é a ausência ou a presença de ideias esclarecidas o que explica práticas ruins em um período e práticas boas em outro. Mas, sim, as alterações favoráveis nas circunstâncias materiais e políticas.

A resenha de uma coleção desse porte pode ser comparada a um convite para um bufê de amigos. É preciso provar os diversos pratos e emitir uma opinião; felizmente, está claro que a maioria dos pratos aqui degustados é excelente ou, pelo menos, que vale a pena experimentá-los, apesar de uma ou duas objeções. Talvez agora o convidado possa notar que faltaram alguns pratos que ele gostaria que houvessem sido servidos – apenas para fazer algumas sugestões de pesquisas futuras para todos nós.

Faz sentido haver capítulos sobre o Rio, a capital nacional, e sobre o café e o Vale do Paraíba; também faz sentido haver um capítulo sobre Minas, devido à sua importância política, econômica e demográfica; sobre Pernambuco, dada a sua constante importância política e econômica, e sobre São Paulo, cuja primeira emergência no cenário econômico ocorre sob a monarquia e cuja proeminência ulterior no país chama atenção. Pode-se perguntar, porém, pela ausência de capítulos sobre Salvador e a Província da Bahia, pela falta de um capítulo sobre o açúcar ou pela ausência de um capítulo sobre a Amazônia.

Afinal, Salvador foi a segunda cidade do império ao longo do período e a Bahia foi economicamente significativa e politicamente crucial durante toda a monarquia. O açúcar, mesmo que sua exportação e participação no mercado internacional tenham recuado na época, dominou as exportações no início do período que os três volumes discutem e continuou sendo um item de exportação regional muito importante no nordeste e na baixada fluminense durante a monarquia. Embora comentários sobre isso estejam espalhados pelos volumes, um capítulo sobre a ascensão e o declínio do produto, com uma análise das várias consequências, seria, por certo, útil. Quanto à Amazônia, embora o capítulo sobre a Cabanagem tenha sido uma excelente ideia, o esquecimento no qual Belém, Manaus e a Amazônia caem logo na sequência da trilogia é lamentável. Embora o mesmo possa ser dito sobre o Rio Grande do Sul depois do capítulo sobre a revolta farroupilha, a importância econômica e política da província gaúcha pelo menos é abordada no capítulo sobre a diplomacia platina. O mesmo não pode ser dito sobre o norte; a antologia negligencia sua história após o início dos anos 1840. Ainda que a política de Estado tenha focalizado e se dedicado a outras áreas, ela demonstrou um esporádico, mas crescente interesse na região pelo menos a partir de meados do século. A Província do Amazonas data desta época, quando as marcas do ciclo da borracha, que atingiu seu pico por volta do ano 1900, começaram a se definir; além disso, toda a região é um interessante campo para conflitos diplomáticos, expansão da infraestrutura, penetração econômica e política indigenista. Embora o desdobramento de grande parte desses eventos ocorra um pouco mais tarde (1890-1914), sua preparação tem atraído e deve atrair maior interesse.

Outra lacuna se refere a uma atenção séria e constante ao pensamento econômico e às políticas financeiras sob a monarquia, com ênfase em uma escrita que seja acessível àqueles que não têm noções sobre economia. Tradicionalmente, historiadores do desenvolvimento e das finanças do Brasil asseveram que o século XIX foi significativo para o que aconteceu ou não aconteceu e por quê. Mais que isso, a monarquia é a época em que foram feitos avanços cruciais na infraestrutura e na qual o dramático incremento na produção, no comércio, nas comunicações e nos investimentos da nação ocasionou a inovação e o debate na política financeira e nas instituições. De fato, dívidas internacionais, demandas e crises atlânticas modelaram a política dos gabinetes e o debate parlamentar a partir dos anos 1850, com crescente importância e impacto doméstico desde a época da Guerra do Paraguai até a era do reformismo urbano e do abolicionismo. Sem dúvidas, esses assuntos solicitam nossa atenção.

Jeffrey D. Needell – Professor de História Brasileira no Departamento de História da Universidade da Flórida (College of Liberal Arts and Sciences/ UF – Flórida/EUA) e Professor Afiliado do Centro de Estudos Latino-Americanos (UF – Flórida/EUA). E-mail: [email protected]


GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Orgs.). O Brasil imperial. 3 Vols. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. Resenha de: NEEDELL, Jeffrey D. Uma celebração da História Imperial do Brasil. Tradução da resenha: LUCIANI, Fernanda Trindade. Almanack, Guarulhos, n.2, p. 160-167, jul./dez., 2011.

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