História da Fronteira Sul – RADIN et al (HU)

RADIN, J. C.; VALENTINI, D. J.; ZARTH, P. A. (org.). História da Fronteira Sul. Chapecó: Editora UFFS, 2016. 352 p. Resenha de SCHMITT, Ânderson Marcelo. Uma História da(s) fronteira(s): possibilidades de análise sobre uma região limítrofe. História Unisinos 23(1):128-132, Janeiro/Abril 2019.

Este livro é uma coletânea de 16 textos que fazem um apanhado de vários assuntos considerados importantes para a história e para a memória do sul do Brasil. Os méritos de uma proposta neste sentido, em um período em que cada vez mais se discute a internacionalização – ou dissolução – das fronteiras geopolíticas e do conhecimento, são vários. A construção do Estado-nação brasileiro foi possível, sobretudo, pela amálgama de locais diversos em um mesmo aparato administrativo, processo este que redimensionou pátrias locais do Antigo Regime português, em um transcurso não necessariamente pacífico. As explicações para características e problemas atuais de diferentes regiões brasileiras podem ser encontradas, desta forma, em diversos recortes temporais, variando entre a curta e a longa estrutura. Esta é a proposta geral em que se pretende que seja pensada a fronteira sul no livro organizado por Radin, Valentini e Zarth.

A fronteira é tema de pesquisa recorrente na História. No entanto, quando o historiador norte-americano Frederick Turner ressignificou a fronteira nos seus estudos sobre a expansão para o oeste estadunidense, os limites deixaram de estar conectados exclusivamente por questões políticas e passaram a possuir outras abordagens (Knauss, 2004). A Frontier Thesis, de Turner, assim como a obra aqui apresentada, aposta em fatores econômicos, culturais e sociais para a fluidez das fronteiras. Vale a pena se registrar a existência de poucos estudos sobre esta região chamada de fronteira sul do Brasil. Projetos neste sentido têm surtido bastante sucesso, porém, tratam de temáticas ou regiões bastante específicas. As obras “História do campesinato na Fronteira Sul”, organizada por Paulo Zarth (2012); “Colonização, conflitos e convivências nas fronteiras do Brasil, da Argentina e da Paraguai” (2015), organizada por Delmir Valentini e Valmir Muraro, e, mais recentemente, “Big Water: The Making of the Borderlands between Brazil, Argentina, and Paraguay” (2018), de organização de Frederico Freitas e Jacob Blanc, são exemplos neste sentido. Desta forma, o livro aqui resenhado apresenta um pioneirismo ao tratar da fronteira sul a partir de uma abordagem multitemática. Os autores dos capítulos são reconhecidos por suas pesquisas, e ao agrupá-los se demonstrou que há uma coesão regional que tangencia as temáticas abordadas.

Por mais que não haja no livro uma divisão interna entre os temas abordados, é possível perceber interesses comuns implícitos entre os textos. O capítulo introdutório escrito por Paulo A. Zarth, por exemplo, faz uma profícua discussão teórica sobre a função da História, da memória, e sobre como a ideologia do progresso e o mito do vazio demográfico marcaram as identidades sulinas.

Ao demonstrar que a história regional também é uma “guerra de histórias”, ressalta a função das pesquisas acadêmicas e seu contraponto às histórias tradicionais escritas por historiadores diletantes e que por vezes predominam na criação do imaginário local e da cultura histórica de uma região. Adelar Heinsfeld, por sua vez, complexifica esta discussão e interpreta a existência, a função e os usos da fronteira. Heinsfeld destaca algo que se encontra nas entrelinhas de todo o livro: “As fronteiras e os países não estiveram sempre onde estão, bem como não existiram sempre. Ambos não são mais que construções da história humana, resultado e expressão de processos sociais” (p. 30). Interpreta-se que a fronteira-linha político-administrativa pode ser enganosa, escondendo pontos que devem ser abordados para além – ou através – delas.

Os capítulos de Valmir Francisco Muraro, Antonio Marcos Myskiw e Tau Golin acrescentam os elementos empíricos à discussão teórica sobre a fronteira. Muraro estuda a formação fronteiriça entre Brasil, Argentina e Paraguai, dando destaque, em um primeiro momento, à Questão de Palmas ou Misiones, embate diplomático entre Brasil e Argentina pelo controle do que hoje é uma vasta região entre o sudeste do Paraná e oeste de Santa Catarina, no início do período republicano. O autor salienta, com muita razão, a importância dos atores sociais presentes na região no século XIX e XX, buscando compreender a fronteira de acordo com o “sentido atribuído pelos indivíduos que ocupam, organizam, disputam ou convivem em determinados espaços geográficos próximos e pertencentes a países diferentes” (p. 168). Afasta-se, desta forma, da ideia de que a fronteira se construiu apenas por uma imposição política consubstanciada em acordos firmados entre governos.

O capítulo escrito por Antonio M. Myskiw frisa os acordos de construção da fronteira com os países platinos, indo também até a Questão de Palmas. Analisa como movimentos insurrecionais – como a Guerra dos Farrapos (1835-1845) – ou guerras externas nas quais o Brasil se envolveu diretamente – como a Guerra da Cisplatina (1825-1828) e do Paraguai (1864-1870) – foram importantes na delimitação territorial. Estes conflitos também tiveram influência nas relações entre líderes políticos dos países vizinhos e seus congêneres brasileiros. Porém, o principal mérito de sua análise é regressar até o período colonial para buscar as origens da ocupação europeia e dos acordos territoriais entre os impérios ibéricos, como o Tratado de Madrid, de El Pardo e de Santo Ildefonso.

Sem a compreensão destes acordos, torna-se impossível entender a conjuntura territorial que conformou a fronteira meridional na época da independência e que continuou a ser delimitada por quase um século. Quando trata dos conflitos em que o Brasil se envolveu durante o século XIX, Myskiw acaba, de forma implícita, por sugerir que o processo de formação do Estado brasileiro se deu por meio da preparação para estes embates fronteiriços. Aproxima- se, assim, do olhar lançado por Charles Tilly (1996) sobre os estados nacionais europeus – modelo seguido por diversos historiadores que analisam os conflitos bélicos na América Latina durante o século XIX.

Os acordos territoriais também foram pontos centrais do texto de Tau Golin, principalmente o Tratado de Madrid, assinado em 1750 por Espanha e Portugal. Ao analisar a atividade missioneira e a Guerra Guaranítica que desorganizou as diversas ocupações jesuíticas no Rio Grande do Sul, Golin enfatiza a resistência guarani contra a passagem para o outro lado do Rio Uruguai, conforme propunha o Tratado. Os exércitos ibéricos coligados conseguiram uma vitória paliativa, com chacinas – como a ocorrida em Caiboaté –, mas não obtiveram sucesso em transferir todos os guaranis aldeados, o que ocasionou a sua dispersão pelo território e miscigenação com o restante da população. Assim, “devido à difusão dos missioneiros, juntamente com parcelas que não se ‘cristianizaram’”, as populações do Sul do Brasil “passariam gradativa e lentamente por um contínuo processo de guaranização étnica e cultural” (p. 89).

Questões étnicas também estão expressamente presentes em outros três textos da coletânea. Jaisson T. Lino, a partir de contribuições tanto históricas quanto arqueológicas, vislumbrou a longa duração da ocupação do atual Sul do Brasil, datada de 12 mil anos atrás. Estes primeiros ocupantes eram caçadores-coletores nômades e foram sendo assimilados por grupos de matriz linguística jê e tupi-guarani, que começaram a chegar à região por volta de 2.500 anos atrás. Lino traz uma detalhada apreciação da cultura material destes povos, relatando os contatos ocorridos principalmente entre os guaranis, que seguiam os cursos dos principais rios, e os demais povos que já se faziam presentes na região. Entre eles os construtores dos cerritos, na campanha do Rio Grande do Sul, e dos sambaquis do litoral, que se supõe tenham sido assimilados culturalmente ou exterminados por meio de guerra. Ao adentrar no período histórico, o autor entende, à semelhança das conclusões de Tau Golin, que embora houvesse projetos que excluíam a presença indígena da sociedade, estes permaneceram até o presente: “apesar das concepções raciais etnocêntricas e preconceituosas forjadas pela intelectualidade brasileira desde o século XIX, na qual os índios deveriam com o tempo se integrar ao projeto de Estado-nação, dezenas de etnias indígenas continuam sua trajetória histórica no Brasil” (p. 106). Fica evidenciado que a disputa pelo território no Sul do Brasil se iniciou muito antes da chegada dos europeus, conquanto os significados dados à terra fossem muito diferentes dos atribuídos posteriormente.

As comunidades quilombolas no Sul do Brasil, mais particularmente em Santa Catarina, são o tema de Raquel Mombelli. A autora também dialoga com outra área do conhecimento – a Antropologia – para explicar o processo de reconhecimento de grupos quilombolas na região sul. Ao relatar como ideologias do branqueamento surgiram e forjaram um modelo de nação, Mombelli também reconhece que a própria historiografia contribuiu para o desenvolvimento de um racismo velado na sociedade, uma vez que a teoria – ou mito – da democracia racial defendia que existia uma harmonia e cordialidade nas relações raciais no Brasil. Ao demonstrar que existem quilombos reconhecidos ou que solicitam reconhecimento – 133 comunidades, segundo a autora – no Sul do Brasil, ajuda a comprovar que a mão de obra negra escravizada era utilizada em diversas atividades também no interior, como a historiografia recente vem apontando. Nos termos gerais da coletânea, um capítulo sobre a escravidão – suas relações intrínsecas, formas de dominação e resistência – poderia ter contribuído para a compreensão das relações étnicas existentes na fronteira sul da colônia ou do Império, uma vez que nos últimos anos diversas pesquisas vêm abordando este tema no Sul do país e/ou em suas regiões de fronteira. Pesquisas como a realizada por Gabriel Aládren (2012) ou a coletânea organizada por Beatriz Mamigonian e Joseane Vidal (2013) podem ser aqui lembradas.

Em seu texto, José C. Radin também reconhece a pluralidade étnica na fronteira sul do Brasil. Antes de passar a falar sobre seu tema principal – (i)migração alemã, italiana e polonesa –, o autor adverte que, além dos “imigrantes europeus, espanhóis, portugueses, alemães, italianos e poloneses, a história dessa região se fez com a participação de negros, caboclos e por povos indígenas” (p. 143). As imigrações europeias do século XIX foram motivadas, via de regra, pelas guerras, a escassez de emprego e terras, e pela instabilidade política. “Fazer a América” se tornou o sonho dos imigrantes. Entre os diversos destaques do texto de Radin, merece ser realçada a importância dada pelo autor à migração da segunda geração de colonos, que, a partir do início do século XX, seguiram para regiões ainda consideradas desabitadas pelos governantes. Assim se dão a atividade das empresas colonizadoras e os choques sociais e étnicos com grupos que habitavam a região do extremo norte do Rio Grande do Sul, o oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná há séculos – conflitos que ainda não foram totalmente resolvidos. O autor dá suporte, portanto, para que sejam pensados os movimentos sociais que surgiram durante a segunda metade do século XX, notadamente o Master, o MST e o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), e que buscaram democratizar o acesso à terra; acesso este que é central na discussão sobre imigração e migração destes colonos. Neste sentido, questões que em um primeiro momento podem ser consideradas étnicas se transformam em conflitos sociais muito mais complexos.

Por sua vez, o texto de Délcio Marquetti com Juraci B. L. da Silva e o de Gerson W. Fraga com Isabel R. Gritti lidam com questões que podem ser consideradas correlatas, e dizem respeito ao reconhecimento identitário dos sujeitos da fronteira sul. Marquetti e Silva estudam as características da cultura cabocla na região. O caboclo teria surgido da miscigenação entre portugueses, índios e negros e suas características foram constantemente negativadas. A desvalorização da figura do caboclo foi tanto racial como social, pelo modo de vida que levavam, sendo atribuídos a eles “estereótipos do tipo ‘acomodados’ ou ‘incapazes’, que contrastam com os atributos do imigrante, este, ‘trabalhador’, ‘desbravador’ que com seu comportamento diferenciado introduziu uma dinâmica capitalista às terras” (p. 110).

Por outro lado, o texto de Fraga e Gritti interpreta o fato histórico e a criação memorialística da Revolução Farroupilha (1835-1845). Os autores dão atenção às festividades que ajudaram a criar o mito de uma revolução que teria sido gloriosa. Para eles, o 20 de setembro como “data magna estadual enseja atualmente acampamentos e desfiles, em uma espécie de eterno retorno comemorativo à figura do gaúcho pampeiro, mobilizando grande quantidade de pessoas e recursos e gozando de boa exposição midiática” (p. 199). Neste sentido, os autores trazem uma contribuição importante para a compreensão da identidade sulina a partir do mito do gaúcho, discussão que vem sendo realizada há algum tempo por historiadores e jornalistas dedicados ao tema, como Tau Golin (2004).

Resta saber como houve o processo de disseminação de Centros de Tradições Gaúchas em outros estados da região sul, principalmente em locais que foram alvo da migração de sul-rio-grandenses durante o século XX. Quanto ao próprio contexto da Farroupilha, trabalhos recentes, como o de José Iran Ribeiro (2013), vêm demonstrando que a partir da análise deste evento é possível compreender como ocorreu parte do processo de criação do nacionalismo e do Estado-nação brasileiros, principalmente a partir das interações de soldados que se deslocavam de outros locais do Brasil para os campos de batalha no Rio Grande do Sul. Santa Catarina foi um dos locais que mais sentiu esta interação, pois servia como ponto de preparação e aclimatação aos ares sulinos. Estes detalhes, se interpretados de forma mais sistemática pelos autores, poderiam auxiliar a entender a importância desta guerra para toda a região sul, e quiçá à formação do nacionalismo brasileiro.

O eixo central dos capítulos de Delmir J. Valentini, Jaci Poli e Monica Hass são as implicações e conflitos gerados na região de fronteira agrícola aberta a partir do início do século XX e que levaram diferentes grupos sociais a uma convivência forçada e a expurgos constantes. Valentini analisa a Guerra do Contestado (1912-1916), enfatizando os elementos sociais presentes na região, a religiosidade cabocla a partir das crenças nos monges, e a atuação da Brazil Railway Company e da Lumber, sua subsidiária, no processo de extração de madeira e colonização. Ao optar por não realizar um apanhado de toda a guerra, o autor dá valiosas interpretações sobre as bases do movimento e apresenta subsídios importantes para pesquisadores que venham a analisar os movimentos messiânicos como um todo. No mesmo sentido, o texto de Jaci Poli demonstra a complexidade das relações sociais e políticas envolvidas nos conflitos por desapropriações de colonos no sudoeste do Paraná na década de 1950.

Colonos, indígenas, jagunços, madeireiras, entre outros, possuem interesses diversos e são produtos históricos da falta de diálogo, do preconceito e de projetos de desenvolvimento linear. Uma das maiores implicações da expansão para o oeste catarinense e sudoeste do Paraná foi, como apontado em outros capítulos da coletânea, a atuação de empresas colonizadoras. O capítulo escrito por Monica Hass aponta as relações entre estas empresas e o mandonismo local. Hass historiciza o coronelismo desde a colônia e traz elementos para comprovar que, entre a segunda e a sétima décadas do século XX, as relações coronelistas no oeste de Santa Catarina sofreram mutações, refletindo também as modificações políticas nacionais, porém, não foram eliminadas. Ressalta-se que, “como práticas políticas resultantes do sistema coronelista estão enraizadas na ossatura do Estado e na sociedade, os novos personagens políticos acabam se acomodando e se reajustando a elas” (p. 323). As conclusões trazidas pela autora podem servir de ponto de partida para historiadores que queiram entender as relações políticas e sociais em termos diacrônicos, principalmente naqueles locais marcados por terem servido de fronteira agrícola.

O texto de Gentil Corazza e o de Claiton M. da Silva, Marlon Brandt e Miguel M. X. de Carvalho convergem para a compreensão das relações econômicas e da interação entre ser humano e meio ambiente. Corazza analisa a modernização da agricultura, os avanços da indústria e a urbanização, vislumbrando suas consequências sociais durante o século XX. Por seu turno, Silva, Brandt e Carvalho demonstram as transformações nas formas de se pensar e interagir com o meio natural, enfocando as seguintes temáticas: a ocupação da região dos campos do planalto catarinense; a pecuária e modernização agrícola vinculadas à paisagem; a destruição das matas de araucárias no Sul do Brasil e, ao exemplo de Corazza, a modernização agrícola que, a partir de meados do XX, cada vez mais se voltou à lógica do mercado. Estes dois textos têm em comum a preocupação latente novamente com a região que abrange desde o norte do Rio Grande do Sul até o oeste paranaense. A recente corrente da História Ambiental ainda carece em contemplar áreas de estudo como o bioma Pampa, existente na fronteira entre Brasil, Uruguai e Argentina, que serviram de plano de fundo para a história e não receberam a devida atenção enquanto objeto central de estudo.

Os capítulos da coletânea, se vistos em conjunto, não possuem uma proposta teórico-metodológica rígida, pois são entrecortados por História Social, Política, Econômica, Cultural, Ambiental, etc.; ressalta-se que, de fato, este não era o objetivo da obra. Tampouco pretendem um tema específico, como guerras, colonização, conflitos pela terra, lutas identitárias, ao mesmo tempo que estas preocupações estão presentes simultaneamente em diversos textos. Esta liberdade possibilita uma contribuição muito maior por parte dos autores e permite que o livro apresente subsídios para diversos assuntos, tanto no Sul do país como para além – no sentido do restante do Brasil ou mesmo para outros países fronteiriços. Outro mérito do livro é que consegue trazer em vários momentos a história vista de baixo, mostrando a agência de sujeitos históricos que, de outro modo, poderiam parecer passivos.

Os autores, em sua grande maioria, dialogam com a História Social; também convergem, com algumas exceções, para estudos voltados à região de colonização nova, leia-se, as áreas de ocupação da segunda geração de (i) migrantes, a partir do início do século XX. Não obstante, por todos os seus pontos positivos e pela qualidade dos trabalhos, a coletânea já se apresenta como obrigatória a todos os interessados na historicidade do Sul do país, uma vez que explicita que a fronteira-linha pode ser enganosa, ao simplificar processos muito mais amplos.

Referências

ALADRÉN, G. 2012. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e guerra na formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Niterói, RJ. Tese de Doutoramento, Universidade Federal Fluminense, 374 p.

BLANC, J; FREITAS, F. (org.). 2018. Big Water: The Making of the Borderlands between Brazil, Argentina, and Paraguay. Tucson, AZ, The University of Arizona Press, 329 p.

GOLIN, T. 2004. Identidades: Questões sobre as representações socioculturais no gauchismo. Passo Fundo, Clio, Méritos, 111 p.

KNAUSS, P. (org.). 2004. Oeste americano: quatro ensaios de história dos Estados Unidos da América de Frederick Jackson Turner. Niterói, EdUFF, 126 p.

MAMIGONIAN, B.G.; VIDAL, J.Z. 2013. História Diversa. Africanos e Afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina. Florianópolis, Ed. da UFSC, 281 p.

MURARO, V.F.; VALENTINI, J.D. 2015. Colonização, conflitos e convivências nas fronteiras do Brasil, da Argentina e do Paraguai. Porto Alegre, Letra & Vida; Chapecó, Ed. UFFS, 317 p.

RIBEIRO, J.I. 2013. O Império e as revoltas: Estado e nação nas trajetórias dos militares do Exército imperial no contexto da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 331 p.

TILLY, C. 1996. Coerção, capital e Estados europeus. São Paulo, Edusp, 356 p.

ZARTH, P.A. (org.). 2012. História do campesinato na Fronteira Sul. Porto Alegre, Letra & Vida; Chapecó, Universidade Federal da Fronteira Sul, 319 p.

Ânderson Marcelo Schmitt – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Centro de Filosofia e Ciências Humanas, R. Eng. Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n, Trindade, 88040-90 Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: [email protected].

Volver del exilio: Historia comparada de las políticas de recepción en las posdictaduras de la Argentina y Uruguay (1983-1989) – LASTRA (RH-USP)

LASTRA, María Soledad. Volver del exilio. Historia comparada de las políticas de recepción en las posdictaduras de la Argentina y Uruguay (1983-1989). La Plata: Universidad de la Plata, Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento, Posadas: Universidad Nacional de Misiones, 2016. Resenha de: BALBINO, Ana Carolina. Os retornos possíveis: história comparada das políticas de recepção ao exílio no pós-ditadura argentino e uruguaio. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo  2017.

Após a parceria com Silvina Jensen na organização de Exilios: militancia y represión,1 a socióloga, doutora em História e pesquisadora do Conicet (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas) María Soledad Lastra lançou, em 2016, o livro Volver del exílio. Nesta obra, a autora centra o debate nas políticas de recepção aos exilados na Argentina e Uruguai no momento da redemocratização em ambos os países, buscando compreender os sentidos e representações do exílio nos projetos democráticos de Alfonsín (Argentina) e Sanguinetti (Uruguai), além das respostas dos Estados e associações civis a essas imagens, que geraram diferentes políticas de recepção aos exilados no pós-ditadura.

Na primeira parte do livro, debate-se a conjuntura de transição democrática argentina e uruguaia. Trabalhando com a ideia de que a Argentina teve uma redemocratização por colapso, ou seja, na qual os militares não tiveram atuação, e o Uruguai uma transição pactuada, decorrente de uma associação entre militares e sociedade civil, a autora se dedica inicialmente aos perfis dos exilados em ambos os países, dando especial atenção à presença das esquerdas no desterro e mostrando que não houve, em nenhum dos casos, uma opção por retorno em massa. Em seguida, é discutido como as sociedades refletiram o tema do exílio no momento dos retornos. Aqui, Soledad Lastra chama a atenção para as enormes diferenças entre o processo argentino e o uruguaio, já que no primeiro caso se deu uma ênfase maior à imagem do exilado-subversivo, mantendo-se o discurso ditatorial de que aqueles que haviam saído do país era antigos guerrilheiros derrotados pela “guerra suja”.

Já na segunda parte, a autora foca seu olhar nas organizações civis que buscaram colaborar para a reinserção dos exilados nas suas respectivas sociedades. Assim, o leitor é informado sobre o surgimento e as primeiras formas de atuação das principais organizações de direitos humanos voltadas para a temática do exílio na Argentina e no Uruguai. Posteriormente, a autora foca as relações existentes entre as organizações argentinas e uruguaias, já que as primeiras passaram pelo processo de redemocratização e consequente recepção do exílio dois anos antes daquelas instaladas no país vizinho. Aqui o leitor encontra um dos pontos inovadores da obra, que permite, além da familiarização com as trajetórias das principais associações de direitos humanos que se dedicaram ao exílio – como Osea (Oficina de Solidaridad con Exilio Argentino) e a Caref (Comisión Argentina para los Refugiados) na Argentina e a CRU (Comisión para el Reencuentro de Uruguayos), SER (Servicio Ecuménico de Reintegración), Sersoc (Servicio de Rehabilitación Social) e SES (Servicio Ecomunénico Solidario) do Uruguai -, também com as relações mantidas com partidos políticos, demais associações de direitos humanos e com as igrejas. Ainda se pode compreender como, apesar de alguns pontos de preocupação comuns, as políticas de atuação nos dois países foram distintas. Enquanto na Argentina a Osea e a Caref se preocuparam em colocar o exilado no lugar de vítima da repressão, e não de algoz, no Uruguai, a preocupação maior foi em não criar uma hierarquização da dor.

Ao final dessa segunda parte, o leitor se depara com os principais conflitos enfrentados por essas organizações no momento de preparar a recepção, como a temática do “privilégio”, debatida em ambos os países, mas com ênfases diferentes. Enquanto na Argentina a ideia de evitar privilégios aos exilados passava necessariamente por comprovar que não se auxiliavam os “subversivos-guerrilheiros”, seja com ajuda financeira, moradia ou reinserção empregatícia, no Uruguai a questão era conceder ajuda indistintamente a exilados, libertados após anos de prisão e desempregados afetados pela crise econômica grave que se instalara no país nos anos militares.

Na última parte do livro, a pesquisadora preocupa-se com a atuação do Estado em relação às políticas de recepção do exílio e os problemas legais decorrentes desta. Esse ponto foi muito mais presente na Argentina – cuja ideia de justiça passava por não arquivar as causas judiciais abertas pelos militares contra os assim considerados “subversivos” e culpabilizar também a esquerda pela repressão perpetrada. A Lei de Anistia, ditada no Uruguai logo após a subida do presidente Sanguinetti ao poder, permitiu aos uruguaios um retorno mais tranquilo à pátria.

Por fim, a autora trabalha com as comissões oficiais criadas pelos Estados para promover o retorno de exilados. A Comisión Nacional para el Retorno de los Argentinos en el Exterior (Cnrae), criada por Alfonsín em 1984, teve pouca atuação efetiva na reincorporação dos desterrados, já que a grande questão a ser enfrentada naquele país era o desaparecimento. Promovendo uma hierarquização do sofrimento e difundindo a imagem do exilado-subversivo, o governo alfonsinista não deu prioridade ao retorno daqueles que viviam no exterior. Por outro lado, a Comisión Nacional de Repatriación, criada no Uruguai junto com a Lei de Anistia em 1985, apesar de não dispor de grandes recursos financeiros, trabalhou intensamente para que todos os uruguaios – exilados políticos e econômicos – encontrassem as condições mais propícias para o seu retorno à nação democrática.

Atuando em um tema candente da América Latina, Soledad Lastra inclui-se em uma série de estudos que buscam lançar luz ao exílio argentino trabalhando-o na chave comparativa e na relação com o restante da América Latina, como nos textos de Pablo Yankelevich, Ráfagas del exilio: argentinos em México,2 e de Silvina Jensen, Agendas para una historia comparada de los exilios masivos del siglo xx. Los casos de España y Argentina.3 Em Volver del exilio, a autora levanta importantes questões para a compreensão das redemocratizações do subcontinente, mostrando a necessidade de inserir as políticas de recepção ao exílio na ampla conjuntura do debate dos direitos humanos no pós-ditadura e da atuação dos Estados recém-instalados na promoção da justiça e na pacificação. Dessa forma, destaca que sua preocupação não é criar uma ideia maniqueísta de boas ou más políticas, mas inseri-las no contexto de revisão da repressão existente em cada um dos países.

Para a pesquisadora, o enfoque na história comparada evitaria o uso das “excepcionalidades nacionais” na compreensão das políticas de reinserção do exilado e das próprias redemocratizações (p. 29). No entanto, ressaltamos que as explicações dadas para as brutais diferenças entre as políticas de recepção argentinas e uruguaias, mesmo que inseridas no contexto de redemocratizações da América Latina, se encontram exatamente no contexto nacional em que essas se deram. Assim, é impossível entender a maior dificuldade de reinserção do exilado argentino se deixarmos de lado a opção do governo Alfonsín por acusar também a esquerda pela instalação da repressão. Por outro lado, se podemos questionar a impunidade dos militares uruguaios, foi a Lei de Anistia proposta pelo governo Sanguinetti que permitiu às organizações de direitos humanos promover o reingresso maciço dos desterrados naquele país.

A comparação também não pareceu capaz de elucidar as diferenças em relação às imagens do exílio com as quais as organizações tiveram de lidar, que dependeram muito mais do contexto de redemocratização de cada um dos países. Se essa metodologia traz um ganho significativo para o trabalho ao permitir a compreensão das relações mantidas entre as associações argentinas e uruguaias entre os anos de 1984 e 1986, não aclara por completo as dificuldades maiores encontradas no caso argentino pela Osea e pela Caref para reinserirem o exilado.

Com esse livro, Soledad Lastra levanta novos questionamentos sobre as políticas de reinserção dos desterrados, mostrando como a atuação do Estado foi decisiva na imagem criada sobre o desterro e afetou diretamente a atuação dos organismos sociais que buscaram promover o retorno na América Latina. Além disso, o livro ajuda a compreender melhor como a política de direitos humanos instalada no Cone Sul é muito complexa, não podendo ser trabalhada somente a partir do julgamento ou não dos militares que chefiaram as ditaduras. Dessa forma, Volver del exilio amplia o debate sobre as redemocratizações, e questiona alguns paradigmas da ideia de justiça que se instalaram nos pós-ditaduras na América Latina.

Referências

JENSEN, Silvina. Agendas para una historia comparada de los exilios masivos del siglo xx. Los casos de España y Argentina. Pacarina del Sur. Revista de Pensamiento Crítico Latinoamericano, dossiê 1, out.-dez. 2011. Disponível em: Disponível em: http://www. pacarinadelsur.com/ediciones/numero-9 . Acesso em: 12/09/2017. [ Links ]

JENSEN, Silvina & LASTRA, María Soledad (ed.). Exilios: militancia y represión: nuevas fuentes y nuevos abordajes de los destierros de la Argentina de los años setenta. Edulp: Editorial de la Universidad Nacional de La Plata, 2014. [ Links ]

LASTRA, María Soledad. Volver del exilio. Historia comparada de las políticas de recepción en las posdictaduras de la Argentina y Uruguay (1983-1989). La Plata: Universidad de la Plata; Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento; Posadas: Universidad Nacional de Misiones, 2016, 301 p. Disponível em e-book em: Disponível em e-book em: http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/library?a=d&c=libros&d=Jpm486 , acessado em 12/09/2017. [ Links ]

YANKELEVICH, Pablo. Ráfagas de un exilio: argentinos en México, 1974-1983. Cidade do México: Colegio De Mexico AC, 2009. [ Links ]

1JENSEN, Silvina & LASTRA, María Soledad (ed.). Exilios: militancia y represión: nuevas fuentes y nuevos abordajes de los destierros de la Argentina de los años setenta. Universidad Nacional de La Plata: Edulp, 2014.

2YANKELEVICH, Pablo. Ráfagas de un exilio: argentinos en México, 1974-1983. Cidade do México: Colegio de Mexico AC, 2009.

3JENSEN, Silvina. Agendas para una historia comparada de los exilios masivos del siglo xx. Los casos de España y Argentina. Pacarina del Sur. Revista de Pensamiento Crítico Latinoamericano, dossiê 1, out.-dez. 2011. Disponível em http://www.pacarinadelsur.com/ediciones/numero-9. Acesso em: 12/09/2017.

Ana Carolina Balbino – Doutoranda na área de Política, Cultura e Cidade, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Autora da dissertação de mestrado O exílio em manchete: O retrato dos exilados na imprensa argentina durante a redemocratização (1982-1984), defendida em 2015 no Programa de pós-graduação da mesma instituição. E-mail: [email protected].

O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862) – CARATI (HU)

CARATTI, J.M.. O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862). São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2013. 454 p. Resenha de: VOGT, Debora Regina. Os limites da fronteira na posse dos cativos após o fim da escravidão no Uruguai. História Unisinos n.20 n.3 – setembro/dezembro de 2016.

A história do cotidiano, das disputas internas que muitas vezes não estão claras nos documentos, durante muito tempo passou alheia à historiografia. Interessava-nos a história global, das estruturas do sistema e do movimento maior que a tudo envolvia. O fenômeno da micro-história demonstra a mudança de visão sobre o passado. Nesse sentido, não é mais somente a grande estrutura que nos interessa, mas os indivíduos que fazem parte do jogo e que sentido eles deram para os contextos em que viveram. O Menocchio2, de Carlos Ginzburg, tornou-se inspiração para muitos personagens que desvendam uma faceta historiográfica que há algum tempo era desconhecida.

No entanto, é preciso salientar que o acesso a esses “homens e mulheres comuns” em geral não ocorre por suas falas autorais. Nós os encontramos nos documentos da justiça, no julgamento da Inquisição – caso de Menocchio – ou em outras fontes em que suas falas aparecem como testemunhos. Isso não invalida essa narrativa, mas demonstra a busca por esses sujeitos, que, por não representarem a elite letrada, muitas vezes estiveram distantes da historiografia.

Essas histórias são excepcionais ao mesmo tempo em que são normais, ou seja, ao mesmo tempo em que têm seus dramas particulares, também são coletivas, já que compartilham experiências com inúmeros indivíduos contemporâneos. No caso da pesquisa em questão, os indivíduos compartilharam a vida fronteiriça, sofrendo os impactos das relações do império com o Prata, especialmente o Uruguai.

Tais fenômenos estiveram presentes também na historiografia sobre a escravidão, e o livro de Jônatas Caratti se insere nessa linha. Assim, autores como Azevedo (2006), Grinberg (2006) e Pena (2006) são exemplos na visão do escravo como personagem, que tem desejos, voz e luta também por sua liberdade. Esses trabalhos analisam, por exemplo, a atuação de advogados abolicionistas nos pleitos através das ações de liberdade, de manutenção da liberdade e da reescravização.

Nesse contexto, são analisadas as disputas, acomodações e transformações da vida escrava e suas diversas formas de luta pela liberdade. Da mesma forma como Menocchio, os personagens em geral nos falam indiretamente através das fontes – a fala dos escravos é terceirizada –, mas nem por isso são perdidas, já que são capazes de demonstrar as lutas cotidianas e as possibilidades de liberdade no mundo atlântico.

Além dos mencionados, Paulo Moreira (2003, 2007), João José Reis (Reis e Silva, 1989), Márcio Soares (2009) e Hebe Matos (1995) são outros historiadores que problematizam o papel do escravo, as disputas envolvidas nas leis abolicionistas e as noções de propriedade e direito.

Entre a visão de concessão e conquista escrava é de se destacar o papel da alforria como veículo de disputas entre os senhores “homens de bem” e os escravos. Essa luta pela liberdade, representada pela busca da alforria, é a inspiração do livro e resume o objetivo do livro, sendo o país fronteiriço “o solo da liberdade”. Os dois personagens do livro escrito por Jônatas Caratti, embora crianças ainda são representativos dessa conjuntura que, dentro do sistema preestabelecido, busca os espaços possíveis de negociação, conciliação e até luta jurídica.

Desta forma, Jônatas Marques Caratti, em sua dissertação de mestrado, transformada em livro – O solo da liberdade – percorre o caminho da micro-história, procurando apresentar as relações, disputas e esperanças de liberdade na sociedade escravista brasileira. Seu ponto de partida são as leis abolicionistas uruguaias e seu impacto na região de fronteira no Rio Grande do Sul. No território de fronteira, senhores e escravos negociam e tomam parte do jogo de relações e acordos em busca de seus objetivos.

O historiador elege dois personagens, representativos em suas fontes, e, através deles, procura mostrar o contexto social e a luta pela liberdade dos negros escravizados. Faustina e Anacleto são duas crianças que desde cedo conhecem a escravidão e, embora talvez não soubessem, são também reflexos dessa sociedade que, escravocrata, convive de forma muito próxima com o vizinho Uruguai, que havia colocado fim à escravidão, transformando a região pós-fronteira no “solo da liberdade”. É importante destacar que as trajetórias tornaram-se excepcionais pela quantidade de fontes documentais encontradas, o que permitiu que se produzisse uma narrativa verossímil e plausível para os sujeitos; já quanto a outros, não revelados pela documentação, jamais teremos conhecimento de sua existência. De acordo com Jônatas, os dois processos lhe chamaram inicialmente atenção pela quantidade de anexos e por tratarem de questões mais amplas que somente o tráfico de escravos na fronteira, demonstrando a vida social que se estabelecia dentro dessa dinâmica.

É importante destacar que a reflexão sobre crianças escravas é, de certo modo, ainda recente na historiografia. A própria ausência de fontes e o descaso com que eram tratadas, muitas vezes, fazem com que a pesquisa e análise de suas condições sejam ainda incipientes. Além disso, a mortalidade infantil era alta, fazendo com que muitos não chegassem à vida adulta3. Desta forma, a própria possibilidade de refletir sobre a situação de duas crianças escravas torna o trabalho instigante e aberto a novas reflexões.

O livro une pesquisa séria de um historiador que escreve com rigor e ética com a vida pessoal de alguém que também vive na fronteira, já que, hoje, Jônatas é professor na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA).

No final do livro há um diário de bordo, escrito de forma pessoal, com o relato de suas caminhadas pela região sul do estado e os encontros com sua pesquisa, as esperanças e os desafios de um historiador. Por meio de uma narrativa cativante, Jônatas permite ao leitor caminhar com ele, perceber suas escolhas, as limitações apresentadas pelas próprias fontes e as descobertas no caminho rico e intrigante que é a pesquisa histórica.

Os personagens escolhidos pelo pesquisador são exemplos de situações que ocorriam de forma expressiva no período analisado. A escravização de sujeitos que podiam ser considerados livres foi comum nesse período. Sendo assim, a importância de Anacleto e Faustina não se restringe à situação em que viveram, mas mostra o contexto social da época e propicia perceber as lutas pela liberdade e as formas como os acordos e arranjos ocorriam.

Esse horizonte, de certa forma ainda novo na historiografia, dá vida e complexidade a sujeitos que em nossos documentos se restringiam a números de escravizados. No texto de Jônatas, eles estabelecem relações, sonham com a liberdade, juntam dinheiro para consegui-la, fazem acordos, são complexos e demonstram as formas como os indivíduos reagiram a situações em que eram colocados.

Uns dos principais documentos analisados por Jônatas, assim como outros historiadores, são os judiciais, são eles que mais fornecem informações ao pesquisador. Ali é possível perceber a visão não só dos personagens principais, mas quem presenciou o ocorrido e também os réus, que apresentavam sua própria defesa. Ou seja, demonstram a complexidade das relações dentro da sociedade escravista e quais os caminhos encontrados pelos que faziam parte desse contexto. Cada argumento é analisado pelo pesquisador, demonstrando a riqueza de detalhes da narrativa e aproximando-nos da visão desses sujeitos do passado. Documentos como esses, por sua vez, abundam nos arquivos, como afirma Paulo Roberto Moreira – orientador e autor da apresentação do livro – faltava, contudo, alguém que com atenção de debruçasse sobre essa documentação com questionamentos plausíveis e tecesse a narrativa historiográfica.

O livro, por sua temática e também pela metodologia do pesquisador, caminha em várias frentes, que vão do micro ao macro, abrindo várias formas de reflexão e interpretação. No texto, transparece tanto o contexto nacional como a realidade regional, com suas particularidades, transpassada pela fronteira. Além disso, aspectos políticos, econômicos e sociais são explorados, demonstrando a dinâmica das relações, no aspecto particular e global. Seus personagens foram escolhidos entre dezenas de outros, e, por meio deles, observamos a sociedade do oitocentos: foram eles as lentes escolhidas pelo autor em sua narrativa.

Faustina nasceu livre em Cerro Largo, no ano de 1843, filha da preta, descrita como “gorda e velha” da Costa da África, Joaquina Maria, que era de Jaguarão. Sua mãe havia fugido através da fronteira para o Uruguai e lá viveu como livre até o encontro com os que raptaram sua filha. No outro país, Joaquina Maria encontrou um companheiro, Joaquim Antônio, sendo Faustina fruto dessa união. A menina foi arrancada de seus pais em uma noite de 1852 por um homem chamado Manoel Noronha, que se descreveu nos depoimentos como “capitão do mato”, lavrador, Capitão da Guarda Nacional e agarrador de negros fugidos. Quando preso, ele apresentou ao júri uma lista com 266 cativos fugitivos que pretendia perseguir e devolver aos respectivos senhores, em troca de recompensa.

Anacleto, por sua vez, nasceu em Encruzilhada do Sul como propriedade de Antônio de Souza Escouto, até que este o enviou para trabalhar em sua fazenda em Tupambahé, Uruguai, por volta de 1858. É importante lembrar, no entanto, que por lá a abolição já havia ocorrido, ou seja, do outro lado Anacleto era um homem livre. O menino teria ido ao Uruguai com 7 anos, idade considerada como fim da infância e início da vida de trabalho, já que se vivessem até essa idade, as crianças escravas demonstravam sobreviver ao elevado índice de mortalidade infantil. No Uruguai, Anacleto foi carregado por dois homens e trazido de volta ao Brasil; em 1860, foi vendido como escravo.

A história de Jônatas tem enredo, personagens e acontecimentos. Seu relato nos envolve e nos aproxima dos personagens, fazendo-nos torcer pelo sucesso de suas empreitadas e a conquista da liberdade. Isso não significa que a narrativa seja simplificadora; pelo contrário, ela é complexa e demonstra o rigor da pesquisa com documentação produzida pelo autor.

Faustina e Anacleto foram levados como cativos a Jaguarão, local estratégico na fronteira do Império e ali foram vendidos como escravos. O capitão do mato Noronha legalizou a posse de Faustina, comprando-a da senhora de sua mãe. Noronha revendeu-a em Pelotas com lucro considerável, o qual posteriormente a vendeu ao Capitão José da Silva Pinheiro. O historiador demonstra, por meio de suas fontes, que a crença de que a sociedade era composta por grandes senhores de escravos em muitos casos não se sustenta. Assim, boa parte dos compradores tinham poucos escravos que eram, por vezes, dados como heranças a herdeiros, fazendo parte do patrimônio da família. No entanto, mesmo numa sociedade tão desigual para esses sujeitos, conseguimos perceber as possibilidades de ação e a luta constante pelo sonho da liberdade.

Anacleto transformou-se em Gregório e foi vendido a Francisca Gomes Porciúncula, que o adquiriu na ausência do marido, o português Manoel da Costa. “Dona Chiquinha” e “seu Maneca” foram cúmplices desse sequestro, comprando Anacleto mesmo sabendo que ele era roubado. “Seu Maneca” era funileiro e viajava pelos centros urbanos provinciais alugando seus serviços; assim, quando foi a Rio Grande, repassou Gregório ao negociante de escravos José Maria Maciel, que o vendeu para o charqueador Miguel Mathias Velho. Uma mistura de sorte com coincidência fez Anacleto visto por um tropeiro o reconheceu como filho de Marcela e escravo furtado de Escouto.

Após essas desventuras encontramos as autoridades públicas, o uso da lei, a procura pelos criminosos, suas justificativas e a forma como a sociedade escravocrata se organizava. Os que são chamados a depor apresentam suas escrituras de compra e venda e, na ausência delas, passa-se a suspeitar de crime de compra ou venda ilegal de cativos. Através do método comparativo usado por Jônatas, percebemos e reconhecemos as proximidades e diferenças entre os personagens escolhidos pelo pesquisador.

A trajetória de Faustina ocorreu no contexto do Tratado de Extradição de Criminosos e Devolução de Escravos, assinado em 1851 entre o Império Brasileiro e a República Oriental; por isso, contou com o apoio dos chefes políticos e de autoridades uruguaias. Como ela nasceu em Cerro Largo, o Estado a defendeu como um caso de soberania e resistência ao imperialismo brasileiro.

Seus sequestradores, no entanto, foram absolvidos, marca de uma sociedade que ainda não questionava a escravidão. Contudo, ela voltou para seus pais, diferentemente do que ocorreu com Anacleto. Os dois processos são semelhantes e demonstravam, segundo o professor, a possibilidade de uma análise de comparação. A própria sentença que os réus receberam era a mesma, baseada no art. 179 do Código Criminal de 1830: “reduzir pessoa livre à escravidão”. Os réus responderam pelo mesmo crime e as vítimas eram crianças entre 10 e 12 anos. Esses são dois movimentos que aproximam o leitor da sociedade escravocrata sul rio-grandense em suas relações com o Uruguai. No entanto, há diferenças entre os dois casos, e isso, de acordo com Jônatas (Caratti, 2013, p. 57), o instigou a estabelecer a narrativa de forma comparada. Relacionar as experiências foi um caminho frutífero e promissor para a história social não só para a região da fronteira, mas também para a compreensão do Brasil nesse momento.

Anacleto nasceu no Brasil, de ventre escravo, e trabalhou no Uruguai como cativo, mesmo após a abolição da escravidão nesse país. Nesse caso, o promotor do caso, Sebastião Rodrigues Barcell, usou a ideia de “solo livre”, ou seja, vivendo em Estado onde havia sido abolida a escravidão, Anacleto seria considerado livre. Contudo, não sabemos exatamente por que – e aqui está o ponto em que a própria documentação limita o pesquisador – ele aparece no inventário de seu senhor Escouto, em 1865, então com 15 anos de idade. Possivelmente parecesse radical aplicar a lei, já que havia dezenas de fazendeiros que estariam nessa situação, além do potencial subversivo dentro da escravaria local.

Tendo como base os dados que encontrou nos arquivos, o autor recria contextos, compõe cenários e imagina cenários plausíveis diante do que suas fontes demonstram sobre seus personagens. Todos eles, é importante salientar, produzidos com base em intensa pesquisa na documentação, cruzamento de fontes e de leituras realizadas pelo historiador. Não à toa, Jônatas compara seu texto a uma peça de teatro e nos agradecimentos refere-se a si mesmo como diretor: “[…] Qualquer tropeço do diretor, e o fracasso ou sucesso de sua peça, é de sua inteira responsabilidade […]” (Caratti, 2013, p. 12). Sua narrativa e análise é um múltiplo labirinto que se abre e se transforma, demonstrando as multifacetadas vivências dos indivíduos que fazem parte de sua peça.

São várias as metodologias utilizadas por Jônatas em seu texto, já que ele trabalha com fontes diversas.

Assim, encontramos reflexões sobre as alforrias, sobre o mundo do trabalho escravo – com dados de compra e venda e leitura de pesquisadores da área –, escolha dos padrinhos, tráfico de escravos e comércio de cativos.

A narrativa do professor é instigante por colocar um elemento que, muitas vezes, está ausente na historiografia: a imprevisibilidade. Ao mesmo tempo que Anacleto e Faustina tinham seus próprios objetivos, suas vidas se entrecruzam com a visão de outros, que relacionavam-se entre si e por vezes determinaram seu futuro. O indivíduo e a sociedade, representada pela vontade de vários, são também reflexões possíveis da trama apresentada pelo professor. Segundo o próprio historiador, sua metodologia, inspirada na micro-história, trata de questões “inesperadas” e também as analisa de forma “experimental”; além disso, seu objetivo é explorar as fontes e os dados encontrados, mesmo quando poucos (Caratti, 2013, p. 55).

Se a narrativa por vezes esfria os conflitos que eram inerentes ao momento em que foram narrados, podemos afirmar que na narrativa de Jônatas por vezes afloram paixões, já que ele nos aproxima, como poucos, dos personagens por ele tratados. Assim, quando Joaquina Maria foi levada para depor, estava em “estado de alienação” e “chamava por sua filha”. Faustina estava no rancho de seus pais, escondida em um barril, quando dois homens a levaram. Mesmo que a mãe afirmasse que juntava dinheiro para a compra de sua liberdade, os homens, num cálculo frio, raciocinaram que a menina daria mais lucro e suportaria mais a viagem que a mãe e resolveram levar a garota. O que sentia essa mãe? Como isso a alterou emocionalmente ao ponto de não conseguir depor? A aflição dessa mulher demonstra não só a rede de relações entre senhores e escravos, as tentativas de fuga, mas também a sensação de completa instabilidade vivida pelos cativos nesse contexto.

De um lado, os donos de escravos, que viam como fundamental a utilização de mão de obra escrava em suas estâncias no lado uruguaio. De outro, o medo de que os escravos usassem a lei a seu favor e garantissem sua própria liberdade. A descrição das trajetórias de Anacleto e Faustina procura elucidar essas questões, que são o eixo principal da pesquisa do historiador.

Essa reflexão sobre os personagens, seus anseios e desejos faz com que o trabalho de Jônatas se insira na historiografia recente sobre escravidão, que não os trata como “coisas” ou como engrenagens de uma estrutura. Eles têm nomes, desejos, sonhos e lutam pela liberdade diante das possibilidades apresentadas.

Anacleto e Faustina não foram vítimas de um crime comum, mas estiveram envolvidos em conflitos sobre posse de escravos, fronteira e limites do Estado. Passaram por Melo, Jaguarão, Pelotas, Encruzilhada, Tupambahé e Rio Grande. Assim, o limite da pesquisa de Jônatas não é local, mas temporal, procurando perceber as diversas interfaces que permeiam a vida dos protagonistas de suas tramas. No decorrer do livro, o autor nos leva a cada um desses lugares, com dados levantados dos arquivos e bibliografia especializada, apresentando um quadro social amplo da sociedade sul-rio-grandense. A mobilidade é uma constante em sua obra: “[…] Tropeiros tocando o gado pela fronteira, escravos fugindo estrategicamente em embarcações, juízes e delegados retirados e colocados em vilas, como se fossem peças de um jogo de xadrez: tudo indica que essa gente não vivia na monotonia” (Caratti, 2013, p. 64).

Tal como em uma peça teatral, acompanhamos os personagens na narrativa de Jônatas, envolvemo-nos com suas trajetórias e percebemos suas vidas como mostras de um tecido social. O historiador, desta forma, nos abre outras cortinas: da complexidade do social e da dinâmica das relações que se dão entre o micro e macro. Um livro instigante, que poderia ser filme e que mostra que é possível unir boa narrativa com rigor acadêmico.

Referências

AZEVEDO, E. 2006. Para além dos tribunais: advogados e escravos no movimento abolicionista em São Paulo. In: S.H. LARA; J.M.N. MENDONÇA (org.), Direitos e justiça no Brasil: ensaios de história social. Campinas, Editora Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, p. 93-157.

GINZBURG, C. 1987. O queijo e os vermes. São Paulo, Companhia das Letras, 256 p.

GOÉS, J.R.; FLORENTINO, M. 2002. Crianças escravas, crianças dos escravos. In: M. DEL PRIORE (org.), História das crianças no Brasil. São Paulo, Contexto, p. 177-191.

GRINBERG, K. 2006. Reescravidão, direitos e justiça no Brasil do século XIX. In: S.H. LARA; J.M.N. MENDONÇA (org.), Direitos e justiça no Brasil: ensaios de história social. Campinas, Editora Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, p. 4-13.

MATTOS, H. 1995. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista: Brasil, século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 384 p.

MOREIRA, P.R.S. 2003. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano: Porto Alegre 1858-1888. Porto Alegre, EST, 358 p.

MOREIRA, P.R.S. 2007. Introdução. In: P.R.S. MOREIRA; T. TASSONI, Que com seu trabalho nos sustenta: as cartas de alforria de Porto Alegre (1748-1888). Porto Alegre, EST, p. 7-15.

PENA, E.S. 2006. Burlar a lei e revolta escrava no tráfico interno no Brasil meridional, século XIX. In: S.H. LARA; J.M.N. MENDONÇA (org.), Direito e justiça no Brasil: ensaios de história social.

Campinas, Editora Unicamp, Centro de Pesquisa de História Cultural, p. 161-197.

REIS, J.J.; SILVA, E. 1989. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo, Companhia das Letras, 152 p.

SOARES, M. 2009. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c. 1750-c. 1830. Rio de Janeiro, Apicuri, 265 p.

Notas

2 Domenico Scandella ficou conhecido como Menocchio graças a Carlo Ginzburg, que procurou compreender o mundo do moleiro através dos arquivos da Inquisição. Seus ensinamentos renderam-lhe a qualificação de herege, sendo morto e torturado na fogueira (Ginzburg, 1987).

3 “Poucas crianças chegavam a ser adultos, sobretudo quando do incremento dos desembarques de africanos nos portos cariocas […] no intervalo entre o falecimento dos proprietários e a conclusão da partilha entre os herdeiros, os escravos com menos de dez anos de idade correspondiam a um terço dos cativos falecidos, dentre estes dois terços morriam antes de completar um ano de idade, 80% até os cinco anos” (Góes e Floretino, 2002, p. 180).

Debora Regina Vogt – Doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Analista técnico educacional da rede SESI/SP. Av Paulista, 1313, 01311-923, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

Procesos represivos y actitudes sociales. Entre la España franquista y las dictaduras del Cono Sur – ÁGUILA; ALONSO (VH)

ÁGUILA, Gabriela; ALONSO, Luciano (Coord). Procesos represivos y actitudes sociales. Entre la España franquista y las dictaduras del Cono Sur. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2013. 300 p. GONÇALVES, Marcos. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 56, Mai./ Ago. 2015.

Quais as correspondências possíveis entre o regime franquista (1939-1975) e as ditaduras militares instaladas ao sul do nosso continente a partir da década de 1960? Existem categorias de análise comuns que podem constituir-se em grade de interpretação sistêmica desses objetos? Estas são duas das indagações que atravessam os ensaios reunidos na coletânea “Procesos represivos y actitudes sociales. Entre la España franquista y las dictaduras del Cono Sur”, coordenada por Gabriela Águila, professora de História Latino-americana da Universidad de Rosário, e Luciano Alonso, catedrático de História e Teoria Social da Universidad Nacional del Litoral (Santa Fe/Argentina).

Desde o Prólogo a obra sinaliza para a complexidade de tais questões, não apenas pela evidência prévia das distâncias cronológicas e geográficas, mas igualmente pelas origens políticas e culturais distintas dos conflitos sociais que fizeram emergir esse conjunto de regimes. A este duplo aspecto são aditados os desdobramentos díspares quanto aos processos da experiência repressiva e transição democrática vivenciados pelas sociedades respectivas.

No entanto, as assimetrias passam a significar um fator de menos densidade quando a elas são aplicados modelos de compreensão que se afastam das definições normativas e rígidas, atribuindo a essa obra coletiva unidade metodológica, coerência teórica e pluralidade documental. A coletânea reúne contribuições de historiadores e estudiosos das ciências sociais de países como Espanha, Brasil, Chile, Argentina e Uruguai cuja especialidade na temática núcleo – a ditadura repressiva como síntese sociopolítica dessas sociedades no século XX, e as consequentes sequelas herdadas – convida a revisitar subtemáticas alicerçadas ao núcleo. As categorias chaves de análise são o sistema repressivo engendrado pelos regimes; as coalizões de violência formadas por diversos níveis organizacionais e hierárquicos; as atitudes sociais que conformaram extensas redes de relacionamentos situadas entre o consenso e a resistência; o exílio como símbolo primordial do desterro.

A obra conta com a reedição de um clássico artigo escrito por Julio Aróstegui e publicado em dezembro de 1996, no Bulletin d’Histoire Contemporaine de l’Espagne. Atual e robusto pelas inquietações que suscita, “Opresión y pseudojuricidad. De nuevo sobre la naturaleza del franquismo,” (p.23-40) funciona como o fundamento metodológico para o agrupamento de ensaios que problematizam o papel das ditaduras de ambos os lados do Atlântico. No texto, Aróstegui advoga a necessidade de superação de tipologias dependentes da casuística politológica, para que sejam reconsiderados, efetivamente, os estatutos histórico e historiográfico da questão.

Em outras palavras, para Aróstegui, partindo do problema espanhol, a análise do sentido histórico de um regime não pode estar encoberta pela sua significação; ou, as interrogações não devem ser lançadas aos referentes do objeto numa categoria dada a prioriou circunscrita em definições formais de regimes políticos segundo critérios já estabelecidos. (p.25) Aróstegui reivindica uma “suficiente empiria” propiciada pela análise histórica que desconstrua as estratégias argumentativas da ciência política e da sociologia em interpretarem como “fascista”, “sin apelación, a un régimen [franquismo] que jamás se llamó a sí mismo tal cosa. Y lo mismo cabría decir de sus calificaciones como “autoritarismo” – con o sin “pluralismo limitado” -, “bonapartista” o “dictatorial.” (p.28)

Tendo em vista esses postulados teóricos, abrem-se para os autores da coletânea questões em série, todas elas proporcionadas, claro está, pela legitimação heurística e prática cotidiana que foram atribuídas aos regimes por si mesmos. De modo que as possibilidades de comparação não frutificam somente entre os regimes que tiveram certa proximidade geográfica e cultural; mas existem razões que justificam “comparaciones ampliadas”. Tais casos comparativos aparecem na reflexão de Luciano Alonso (p.43-68) e Daniel Lvovich, (p.123-146) ao ponderarem sobre os marcos gerais de uma época; as estruturas sociais e instituições políticas; os vínculos internacionais; e, principalmente; as mútuas influências e características ideológicas, fatores suficientemente capazes de romper barreiras temporais, culturais e geográficas assumindo certo caráter de permanência e densidade histórica, e tornando factíveis as comparações ampliadas, assim como, as devidas diferenciações entre os grupos políticos.

Não obstante, a grade de interpretação sistêmica mais recorrente da obra coletiva é instaurada pela noção de “dimensão repressiva” como aquilo que parece representar ou definir a natureza dos regimes políticos. Coerentes a essa noção, autores como Jorge Marco mergulham nos sistemas de “limpeza política” na Espanha franquista que levaram a assassinatos extrajudiciais. (p.69-96) Como reforço do argumento comparativo, esta prática em muito encontra parentescos com o que viria a ocorrer mais tarde em países como a Argentina, com a lógica de “desaparición” e Chile com os “assassinatos públicos” que inauguraram a ditadura pinochetista. Os dois países são analisados respectivamente por Gabriela Águila, no texto “La represión en la historia reciente argentina: fases, dispositivos y dinámicas regionales,” (p.97-121) ou Igor Goicovic Donoso que em “Terrorismo de Estado y resistencia armada en Chile,” (p.245-270) desbasta a radicalização profunda da sociedade chilena com a chegada do socialista Allende ao poder, acompanhada do inconformismo de uma sociedade tradicional e na qual as Forças Armadas gozavam de imenso prestígio. Donoso destaca que, obstinadas pela ideia de uma “refundação” da sociedade chilena, as Forças Armadas recorreram à repressão como principal mecanismo de controle social: “La represión política fue, por lo tanto, una condición imprescindible para garantizar el éxito del proceso refundacional y un elemento clave para anular la relación entre izquierda política y movimiento popular.” (p.245)

A coletânea ainda conta com artigos sobre os sistemas repressivos do Brasil, a cargo de Samantha Quadrat, e Uruguai, com um ensaio escrito por Carlos Demasi. Enquanto Quadrat problematiza as cadeias de comando repressivo e as variantes de violência política; Demasi debate as ambíguas formas de coexistência entre a sociedade uruguaia e a ditadura.

Tal obra coletiva é especialmente recomendada aos estudiosos (professores e alunos de pós-graduação) da história política recente da América Latina, bem como, aos pesquisadores preocupados com a dimensão transnacional e de cruzamentos da cultura política hispanoamericana. Fundamentada em sólida metodologia e original emprego de documentação (sob a ótica de atribuir voz própria aos regimes políticos), a conjugação das variadas facetas assumidas pelos sistemas repressivos em pauta na coletânea pode subsidiar, como marco historiográfico comparativo uma série auspiciosa de objetos de estudos: o funcionamento dos sistemas penitenciários, as resistências armadas ou pacíficas, as funções representacionais e legitimadoras das ditaduras, os posicionamentos dos distintos agentes frente à dominação ditatorial, ou ainda, a autonomia adquirida pelo sistema repressivo nos âmbitos regionalizados.

Marcos Gonçalves – Departamento de História. Universidade Federal do Paraná. Rua General Carneiro, 460, 6º andar, Ed. D. Pedro I, Curitiba, PR, 80.060-150. [email protected].

Claves | UR | 2015

Claves

CLAVES. Revista de Historia (Montevideo, 2015-) es una publicación semestral académica adherida a los principios de acceso abierto y normas de rigor científico de sus contenidos, impulsada desde el Grupo de Investigación “Crisis revolucionaria y procesos de construcción estatal en el Río de la Plata”, radicado institucionalmente en el Instituto de Ciencias Históricas de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad de la República, Uruguay.

Su propósito es la publicación de artículos académicos de Historia y disciplinas afines buscando ofrecer un espacio de encuentro entre investigadores que abordan temáticas, períodos y espacios geográficos diversos y que contribuyan desde su trabajo al desarrollo científico de la disciplina, tanto en sus aspectos teóricos y metodológicos como en los abordajes empíricos.

Entre las temáticas prioritarias que trata la revista podemos destacar la constitución de identidades colectivas, los conflictos sociales, las formas y los espacios de la política, los procesos de construcción estatal, las definiciones de fronteras y territorios, y la revisión de los relatos historiográficos tradicionales.

La revista contendrá artículos, notas y comentarios, reseñas bibliográficas, noticias de eventos y entrevistas. Una parte de los artículos de cada número corresponderá a un tema central, para el cual se hará una convocatoria específica. El idioma de la revista es el español, aunque se recibirán trabajos en portugués.

Periodicidade semestral.

Acesso livre

ISSN 2393-6584

Acessar resenhas

Acessar dossiês

Acessar sumários

Acessar arquivos

As fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América | Keila Grinberg

O livro “As Fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América”, compilado pela professora e historiadora Keila Grinberg é resultado de um seminário organizado pela mesma autora, e que foi realizado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) em junho de 2011. Pode-se dizer que o seminário foi fruto do que diversos historiadores têm produzido nos últimos anos sobre o tema da escravidão e da liberdade nas fronteiras platinas. A nova historiografia da escravidão – como assim tem sido chamada – permitiu que novos assuntos entrassem em pauta, ampliando as facetas da organização da sociedade escravista e complexificando as relações entre senhores e escravos.

Em todos os textos que compõem este livro é possível perceber os novos debates realizados no seio da ciência histórica e que consequentemente afetaram também a temática da escravidão e da liberdade no sul da América. Novas narrativas, novos personagens, novas fontes. Parece que o célebre livro Nouvelle Histoire, organizado por Jacques Le Goff e Pierre Nora ainda dão eco em nosso tempo. O leitor verá também que cada artigo traz importantes contribuições de pesquisas desenvolvidas por especialistas na área. Não há dúvida que Keila Grinberg conseguiu unir em seu seminário os principais historiadores da atualidade que se debruçam sobre os temas da fronteira, escravidão e liberdade.

O texto introdutório de Keila Grinberg não busca ser somente um apanhado do que o leitor encontrará no livro, mas apresenta algumas questões que a autora considera pertinentes para entender a história da escravidão e liberdade no sul da América. A primeira delas é que o livro apresenta histórias de “pessoas escravizadas”. Ou seja, um olhar microscópico, em que as experiências dos indivíduos são ricas para se entender o intricado processo de formação dos estados nacionais. Lembramos aqui da própria tese da professora Keila, que buscou investigar a trajetória do mulato Antônio Rebouças e usou sua história como porta de entrada para entender questões de direito, justiça e cidadania no século XIX (O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antônio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002).

Sobre essa questão é importante recordar dos trabalhos de Carlo Ginzburg, O Queijo e os Vermes (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), e o de Giovanni Levi, A Herança Imaterial (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000). Ambos utilizavam a trajetória de um indivíduo para analisar os costumes de toda uma sociedade. Ginzburg usou o moleiro Menóquio para mostrar como um indivíduo excêntrico, que sabia ler e escrever num tempo onde isso era raro, tencionou com os dogmas da Igreja Católica. E Levi utilizou o pároco Chiesa para evidenciar a importância do nome e da influência de seu pai na vila de Piemonte. Estes trabalhos foram os grande ícones da Micro-História italiana e inspiraram toda uma geração de historiadores. Jacques Revel, já na década de 1990, trazia o conceito de jogos de escalas, em que a estrutura social e os indivíduos não eram antagônicos, mas eram visões diferentes que podiam ser somadas e complementadas. O leitor verá nesta resenha histórias de escravos e libertos enquanto sujeitos históricos, conscientes de sua vida e de seus limites.

Keila Grinberg também destaca o conceito de fronteira que os autores do livro utilizam. Não como uma barreira, um limite político que separam nações, mas como uma construção histórica. Afinal, a fronteira é também o que os atores fazem dela. É pertinente lembrar também do conceito de fronteira manejada, aplicada por uma das autoras deste livro, Mariana Thompson Flores, em sua tese recentemente publicada (Crimes de fronteira. A criminalidade na fronteira meridional do Brasil, 1845-1889. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014). Mariana faz uma excelente revisão historiográfica sobre este conceito, mostrando que os historiadores mais tradicionais buscavam uma fronteira que o ajudassem a justificar a condição brasileira original. Ou seja, transformar o Rio Grande do Sul integrado mais ao Brasil do que às colônias platinas. A partir da década de 1990 a fronteira passa a ser vista menos como um limite e mais com um espaço de trocas e embates. Esta visão, mais conciliatória, foi defendida por historiadores brasileiros (Helga Piccolo, César Guazzelli, Helen Osório, Enrique Padrós), mas também por estudiosos uruguaios e argentinos. Posteriormente, historiadores como Mariana Thompson Flores e Luís Augusto Farinatti, muito envolvidos em fontes primárias, perceberam que a fronteira era mais dinâmica do que as polarizações defendidas anteriormente. A fronteira manejada, ou seja, construída, era uma mutação que se alterava em virtude da ação humana e também dos conflitos políticos e sociais existentes no local. Este último conceito será bem percebido nos textos aqui resenhados.

Um dos temas mais frequentes que o leitor verá neste livro são as chamadas fugas para o além-fronteira, conceito cunhado pelo historiador Silmei Petiz. Keila mostrará que a fuga era coisa antiga, que desde a Colônia de Sacramento, em 1762, havia decretos que davam a liberdade aos escravos que fugissem. O mesmo acontecerá ao longo do século XIX, nas colônias espanholas de Jamaica, Cuba e Santo Domingo. Ou seja, as fugas traziam tensões e problemas diplomáticos, pois havia, em toda América, nações abolicionistas e escravistas que faziam fronteiras entre si. É o caso, por exemplo, de Brasil e Uruguai.

Hevelly Ferreira Acruche será a única historiadora a tratar do século XVIII e, mais especificamente, do caso de Buenos Aires, Argentina. Seu artigo apresenta duas histórias e três personagens: o primeiro, Joaquim Acosta, desertor de Rio Pardo, que fugiu em 1772 e obteve do vice-rei de Buenos Aires, Pedro de Cevallos, a possibilidade de estabelecer-se em terras hispânicas como pessoa livre; e os pardos Jerônimo e Francisco, que vieram do Brasil para serem vendidos como escravos em Buenos Aires, porém, mesmo afirmando serem de condição livre foram devolvidos ao comerciante Domingos Peres, por não apresentarem provas suficientes de suas liberdades. Acruche aponta para uma questão importante: as histórias de Joaquim e de Jerônimo e Francisco tiveram resultados distintos, o que evidencia que as questões de escravidão e liberdade que chegavam a Buenos Aires eram complexas e precisam ser analisadas particularmente, dentro de contextos específicos.

O texto seguinte é da historiadora uruguaia Natalia Stalla, que apresenta dados interessantes sobre o peso demográfico da população africana no litoral e na fronteira do Uruguai. Seu artigo, a partir de uma análise mais quantitativa, analisou a população dos departamentos de Colônia e Soriano, regiões litorâneas, buscando comparar com dados anteriores sobre escravidão na fronteira com o Brasil. Em ambos os departamentos, a população masculina era mais numerosa do que a feminina, e tratava-se de uma escravaria jovem, contando com cativos em idade produtiva. No entanto, os números de escravos foram baixos. Em Colônia, 8% e Soriano, 7% dos habitantes. Principalmente, comparando com os dados de Cerro Largo (25%), Tacuarembó (29%), Rocha, (26%). A contribuição de Stalla está em evidenciar a população negra no Uruguai a partir de dados quantitativos, que permitem comparar com as populações afrodescendentes do Brasil e da Argentina.

O artigo de Rachel Caé trata da produção de discursos abolicionistas no Uruguai no ano de 1842, estudando principalmente como a imprensa percebeu o tema da liberdade e da cidadania dos negros, escravos e libertos. O jornal El Nacional defendia a abolição total da escravidão, já o El Constitucional rechaçava tal decisão. A imprensa em Montevidéu estava dividida. Não havia consenso. A contribuição de Caé está em mostrar que as questões de abolição no Uruguai não estavam, somente, atreladas a guerra, mas sim a um conjunto de discursos de liberdade que foram suscitados e eram anteriores ao conflito.

Em seguida temos o ensaio de Carla Menegat, que aborda a presença de proprietários brasileiros estabelecidos no Uruguai entre os anos de 1845 e 1864. A partir de um interessante conjunto de listas, Carla busca mostrar a importância da presença brasileira em solo uruguaio e utiliza a família Brum da Silveira para evidenciar as suas estratégias no que tange os negócios e sua cidadania. Seu trabalho também aponta para como os uruguaios trataram o processo de abolição da escravatura em virtude da presença brasileira em seu solo. Segundo Menegat, com o passar dos anos surgem campanhas de “orientalização” em busca de uma homogeneização da língua e do abandono do uso do português. Em outras palavras, se queria tornar o Uruguai mais unido e com uma identidade nacional própria.

O tema das fugas cativas volta em cena com o texto de Daniela Vallandro de Carvalho. Especificamente, Daniela trabalha com as fugas em tempos de guerra, usando como mote a Guerra dos Farrapos e a Guerra Grande. A autora utiliza também algumas trajetórias para dar vida e sentido para os planos dos escravos. Para Carvalho, a guerra era um excelente momento para que os escravos obtivessem a liberdade: ou por servirem em fileiras de guerra, ou para serem leais e conseguirem mais prestígio com seus senhores. Uma de suas importantes contribuições está em demonstrar que os cativos usavam o Exército para sua maior mobilidade e posterior liberdade.

O artigo de Marcelo Santos Matheus foca em um município fronteiriço específico, o de Alegrete. Sua questão-problema levantada foi como a fronteira influenciou diferentes agentes históricos, tanto os cativos como seus senhores. Alguns casos mostraram como os escravos utilizavam estratégias para chegarem à liberdade e ao mesmo tempo como os senhores manejavam a fronteira ao seu favor. Um dos destaques de seu texto está em mostrar como os escravos usavam a Justiça para conseguirem sua alforria, usando para isso uma interpretação das leis de abolicionistas uruguaias que servisse aos seus interesses. Foi o caso dos cativos que pediam alforria por terem trabalhado no Uruguai após a lei abolicionista de 1842.

Seguindo pelo pagos de Alegrete, o texto de Mariana Thompson Flores nos brinda novamente com o tema das fugas, mas deixa claro de que mesmo que tal assunto tenha sido abordado com frequência, ainda existem aspectos que merecem ser melhor explorados. É o caso do papel dos sedutores que ajudavam e convenciam os escravos a fugirem. Nos processos criminais analisados, Mariana encontrou cinco casos onde os escravos fugiam por conta própria e catorze situações onde houve a participação do sedutor, que os persuadia a uma vida melhor do outro lado da fronteira. A Justiça bem que tentou incriminar os sedutores de escravos e, em muitos casos, conseguiu. Porém, Mariana apresenta diversos casos empíricos que mostram como escravos e sedutores (homens livres ou libertos) aproveitaram deste contexto fronteiriço e se beneficiaram disso.

Continuando com o tema das fugas de escravos para o além-fronteira, Thiago Araujo apresenta o assunto em outra perspectiva, focando nas dificuldades do percurso e na difícil tarefa dos escravos romperem com o mundo da escravidão. Seu objetivo foi mostrar quais eram os mecanismos de controle e vigilância que os senhores acionavam num universo de escravidão na pecuária. A partir do caso de fuga de José, Leopoldino e Adão, Araújo mostra como os senhores de escravos precisavam pensar em políticas de domínio para evitar a fuga de seus cativos. Araújo evidencia que em alguns casos nem a família escrava impedia que os cativos fugissem.

Se Thiago Araújo investigou a fuga de escravos para o Uruguai, o texto de Rafael Peter de Lima aborda outra faceta da escravidão em regiões de fronteira: os sequestros e raptos de negros uruguaios que eram vendidos como escravos no Império do Brasil. Rafael mostra como era difícil definir a condição de afrodescendentes em áreas de fronteira. E mais do que isso. Os problemas diplomáticos e internacionais que surgiam devido a questão do fim ou da permanência da escravidão. Lima também apresenta dados muito interessantes como, por exemplo, o sexo e a idade das vítimas dos sequestros. As mulheres em idade produtiva eram as mais raptadas neste cenário. Por fim, Rafael também nos brinda com dados que apontam que os cônsules uruguaios tiveram sucesso na defesa dos negros orientais na Justiça. Em pouquíssimos casos eles permaneciam na escravidão.

E para finalizar temos o artigo da historiadora uruguaia Karla Chagas que, dos textos apresentados aqui, é o que mais se diferencia em termos de tema e delimitação temporal. Karla avança os marcos da escravidão e apresenta uma entrevista realizada a uma afrodescendente, Cecília, nascida em Rivera em 1904. Seu ensaio pretendeu analisar as linhas de ruptura e de continuidade que houve nas condições de vida da população afro-uruguaia na virada do século XIX para XX. Destacam-se as diferentes estratégias que Cecília utilizou para melhorar suas condições de vida como a fuga de uma casa onde a maltratavam.

O conjunto de textos ora apresentados mostra o avanço das pesquisas sobre a escravidão no espaço platino nos últimos anos. Infelizmente historiadores argentinos não escreveram textos para este livro. Mas muito se tem pesquisado sobre a influência e o impacto da fronteira na vida de senhores e escravos. Também a importância que as leis abolicionistas uruguaias de 1842 e 1846 tiveram para a (des)organização do sistema escravista brasileiro, principalmente, no Rio Grande do Sul. Este livro é o resultado deste cenário. Mostra, entre outras coisas, como as especificidades regionais precisam ser levadas em conta, mas sem perder de vista que os sujeitos históricos possuíam planos próprios que, por vezes, desafiavam o contexto que os mesmos estavam inseridos. Quem for ler o livro “As fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América”, organizado pela professora e historiadora Keila Grinberg verá histórias individuais amalgamadas em um contexto mais amplo de disputa e consolidação dos Estados Nacionais. A riqueza está na coletividade e no diálogo que gerou este livro.

Jônatas Marques Caratti – Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS – Porto Alegre/Brasil). E-mail: [email protected]


GRINBERG, Keila (org.). As fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. CARATTI, Jônatas Marques. Escravidão e Liberdade nas fronteiras platinas. Almanack, Guarulhos, n.8, p. 166-169, jul./dez., 2014.

Acessar publicação original [DR]

Recuperando la memoria: afrodescendientes en la frontera uruguayo brasileña a mediados del siglo XX – CHAGAS; STALLA (HU)

CHAGAS, K.; STALLA, N. Recuperando la memoria: afrodescendientes en la frontera uruguayo brasileña a mediados del siglo XX. Montevideo, Mastergraf, 2009; 122 p. Resenha de: LONER, Beatriz Ana; GILL, Lorena Almeida. Novos elementos para se pensar a história dos afro-descendentes no Uruguai. História Unisinos v. 15 n. 1 – janeiro/abril de 2011.

As autoras Karla Chagas e Natalia Stalla, mais conhecidas no Brasil por seus trabalhos sobre a escravidão no Uruguai, lançaram, ano passado, um livro tratando sobre as condições de vida dos afro-descendentes que habitam preferencialmente os departamentos de Artigas, Cerro Largo e Tacuarembó, regiões que abrigam mais de 20% do total da população que se identifica como negra naquele país.

Chagas e Stalla justificam seu trabalho em virtude da pouca produção historiográfica sobre o assunto, especialmente para o período do pós-abolição e ao longo do século XX. As autoras remontam a história e a política uruguaia de meados do século XX, que auxiliou a desenvolver um imaginário hegemônico, o qual insistia na afirmação da população daquele país como majoritariamente branca, relegando os afro-descendentes à situação de invisibilidade e perpetuando sua discriminação social.

A pesquisa baseou-se principalmente na história oral, naquilo que Joutard (2000, p. 33) chamou de sua inspiração inicial, ou seja: “ouvir a voz dos excluídos e dos esquecidos; trazer à luz realidades ‘indescritíveis’, quer dizer aquela que a escrita não consegue transmitir; testemunhar as situações de extremo abandono”.

O texto foi construído, portanto, a partir de “palavras e imagens”. As palavras foram ditas por sete homens e treze mulheres, com idades entre 49 e 103 anos, cujas entrevistas foram realizadas entre outubro de 2008 e abril de 2009.

Já as imagens, fontes fotográficas em sua essência, foram inseridas a partir dos arquivos pessoais dos depoentes e também por meio da pesquisa na imprensa negra, como os jornais Acción e Orientación, de Melo, Democracia e Rumbos, de Rocha, e Nuestra Raza, Revista Uruguay e Rumbo Cierto, de Montevidéu.

O livro, que foi subvencionado por fundos concursais do Ministério da Educação e Cultura do Uruguai, é interessante para todos os historiadores, especialmente para aqueles que se dedicam a temáticas como afrodescendentes, história oral e fronteiras. Em sua Introdução, as autoras discutem como se deu a construção dos testemunhos orais; o uso das fontes fotográficas, além de informarem sobre alguns dados que conformam a história do Uruguai no século XX e a tentativa, realizada pelas autoras e alguns poucos historiadores, de alterar os rumos historiográficos uruguaios, inserindo a pesquisa e as contribuições dos negros daquele país na história nacional.

Tentativas como essas têm a maior importância, porque, especialmente no sul gaúcho, a fronteira com o Uruguai sempre foi móvel e dinâmica, culturalmente integrada, o que leva ao fato de que inúmeras constatações lá realizadas terem sua contrapartida aqui no Brasil, praticamente da mesma forma, como se verá a seguir.

O primeiro capítulo, “Las condiciones de vida de las famílias afrouruguaias”, debate as estruturas familiares, revelando uma população afro-uruguaia atualmente entre 5 e 10% do percentual total. Boa parte dos afro-descendentes concentra-se ao redor das fronteiras, especialmente com o Brasil. Muitos deles, inclusive, têm origens ou parentes ainda neste país. As autoras constataram, também, certa quantidade de uniões inter-raciais, especialmente na região da fronteira.

Como fazem parte da parcela mais pobre da população, são comuns famílias chefiadas por mulheres, já que, na maior parte das vezes, são os homens que partem, em busca de novas oportunidades profissionais. Além disso, os afro-uruguaios, pelas suas precárias condições de subsistência, costumavam viver em zonas periféricas das cidades e tiveram que se utilizar, de forma mais ou menos constante, da entrega de seus filhos a outras pessoas, que, em troca de cuidado, alimentação e escola, exigiam o exercício de trabalhos domésticos.

No segundo capítulo, “Oportunidades educativas: escuela, liceo y universidad del trabajo”, as autoras relatam que a maioria dos entrevistados esteve na escola, ainda que somente por alguns anos, até mesmo porque o movimento negro uruguaio, já desde 1947, através da revista Uruguay, entendia que apenas com a educação os negros poderiam se emancipar. Se o ensino fundamental era mais acessível, entretanto, o mesmo não acontecia com o secundário, até porque muitos necessitavam trabalhar para auxiliar sua família. Quanto à discriminação, alguns depoentes afirmaram que existia, ou através dos mestres ou dos colegas, em momentos pontuais.

O terceiro capítulo, “El trabajo en la frontera”, disserta sobre as relações fluidas que se estabelecem em regiões imbricadas entre dois países, fazendo com que tanto pessoas, quanto bens, circulem com regularidade e sem limitações. No que diz respeito ao trabalho, no meio urbano os homens dedicam-se preferencialmente à construção e aos serviços; na zona rural são peões, capatazes, safristas. As mulheres, em sua maioria, realizam tarefas que reproduzem a esfera do lar, ou seja, vinculam-se ao cuidado, como domésticas, lavadeiras, babás __ frequentemente, profissões que não permitem uma ascensão social e estão aquém das oportunidades educacionais que estes sujeitos tiveram em sua trajetória. Entre as entrevistadas, apenas uma (Adelma) contou ter conseguido emprego em um frigorífico em Tacuarembó, o que, segundo as autoras, foi uma trajetória incomum entre a população afro, fato ratificado por suas entrevistadas. Outra que fugiu ao padrão imposto foi Adélia, que conseguiu se formar como professora, mas foi discriminada em Montevidéu, tanto pela direção de uma escola quanto pelos pais em outra, tendo que voltar para sua cidade natal, Artigas. Seu caso, entretanto, teve repercussão, pois a denúncia foi levada até o XXXIV Congreso Federal de Educadores, sendo realizada, posteriormente, sindicância pública. Entretanto, cumpre notar que Adélia, por si mesma, não teria protestado. A denúncia partiu de seus colegas educadores de Montevidéu, pois sustentava que “salvo esta vez, a ella nunca le habian cerrado laspuertas” (Chagas e Stalla, 2009, p. 78).

O último capítulo, “Espacios ‘propios’ y ‘ajenos’: diversión, recreación y bailes”, baseia-se mais fortemente na pesquisa documental em jornais e enfatiza o espaço do lazer na vida cotidiana. Chagas e Stalla afirmam que “salir a pasear por el centro” era, muitas vezes, a atividade mais frequente entre a população com poucos recursos financeiros. Faziam também “picnics”, realizados em parques; o cinema, cujos filmes vinham, sobretudo, dos Estados Unidos, França e Itália, possibilitavam que as pessoas se encontrassem nas famosas “matinée y vermouth” (esta última à noite), e os carnavais, que, no Uruguai, ocupavam diferentes bairros tanto da capital quanto de cidades do interior, promoviam diversão. Havia uma série de atividades carnavalescas, normalmente iniciada pelos desfiles inaugurais ou corsos, com intensa troca de serpentinas. Depois aconteciam bailes, atuação de conjuntos musicais ou teatrais (murga) e os concursos de tablado. Na região próxima à fronteira com o Brasil, tanto a música quanto o carnaval sofriam infl uência do país vizinho, bem como de suas formas de “pular o carnaval”.

Um espaço importante de sociabilidade foi obtido em clubes sociais destinados apenas aos negros, uma vez que não tinham acesso a muitas das associações que recebiam a população branca. Possuíam o clube Ansina, em Tacuarembó; Renato Marán, Gordillo e Centro Uruguai, em Cerro Largo; Centro Uruguay, em Melo. As associações funcionavam com o pagamento de cotas dos sócios, além da arrecadação obtida em bailes e outras promoções culturais, que não eram muitas, segundo os entrevistados.

Pela forma de tratamento dada ao texto, cada uma dessas assertivas é corroborada com seu enquadramento dentro da situação geral do Uruguai, o que fornece uma boa contextualização da situação política e social uruguaia das décadas de 1940 e 1950 e auxilia o entendimento dos graus de preconceito existentes naquele país, bem como das contradições e limites de políticas governamentais que, até aquele momento, não se preocupavam com a discriminação racial.

Alguns pontos poderiam ter sido mais aprofundados, principalmente no que tange à parte teórico-metodológica, na qual faltou maior debate sobre, por exemplo, a memória e o conceito de testemunho. Neste sentido, o próprio título remete à memória como algo dado e não como uma construção, absolutamente relacionada ao tempo presente. Sente-se falta também de certa caracterização da imprensa negra, que poderia servir como uma espécie de guia ao leitor, todavia, não podemos esquecer que se trata de síntese, conforme a apresentação.

Por outro lado, seu conteúdo é extremamente interessante, pois permite visualizar realidades próximas de um e de outro lado da fronteira, como a questão da exploração, pelas famílias brancas, dos “filhos de criação”, de que temos muitos testemunhos na região sul (Vecchia, 1994); a formação de clubes sociais exclusivos para negros, como forma de escapar à discriminação e reunir-se entre iguais, também muito encontrados no Rio Grande do Sul (Loner e Gill, 2009), e os tipos de empregos oportunizados às chamadas “pessoas de cor” naqueles anos, de ambos os lados da fronteira, os quais são bem similares, embora os afro-descendentes uruguaios tivessem maiores possibilidades educacionais que os afro-brasileiros, especialmente na primeira metade do século XX, comprovando que a discriminação e o preconceito racial, muito mais do que a educação, tiveram um papel extremamente condicionador na vida destes sujeitos.

Referências

VECCHIA, A.M. 1994. Vozes do silêncio. Pelotas, Editora e Gráfica Universitária/UFPel, vol. 2, 296 p.

JOUTARD, P. 2000. Desafios à história oral do século XXI. In: M.

FERREIRA (org.), História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz/ CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, p. 31-46.

LONER, B.A.; GILL, L.A. 2009. Clubes carnavalescos negros na cidade de Pelotas. Estudos Ibero-Americanos, 35:145-162.

Beatriz Ana Loner – Universidade Federal de Pelotas Instituto de Ciências Humanas Departamento de História e Filosofia Rua Alberto Rosa, 154, Caixa Postal: 354 96010-770, Pelotas, RS, Brasil.

Lorena Almeida Gill – Universidade Federal de Pelotas Instituto de Ciências Humanas Departamento de História e Antropologia. Rua Alberto Rosa, 154, Caixa Postal: 354 96010-770, Pelotas, RS, Brasil.

Memorias de insurgencia: historias de vida y militância en el MLN-Tupamaros – ALDRIGHI (HO)

ALDRIGHI, Clara. Memorias de insurgencia: historias de vida y militância en el MLN-Tupamaros. 1965-1975. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2009. 456p. Resenha de: LEITE, Isabel Cristina. História Oral, v. 13, n. 2, p. 189-192, jul.-dez. 2010.

O imperativo no olvidar tornou-se a tônica dos países do Cone Sul que recentemente passaram por situações de arbítrio e violações dos direitos humanos sob o signo de ditaduras civil-militares. A década que se seguiu aos anos 2000 foi marcada pela ascensão ao poder de presidentes que tiveram algum tipo de militância contra esses governos. Deste modo, veio à baila, em graus diferentes e sobre temas diversos (seja a questão da abertura de arquivos, seja a punição de militares), o debate acerca da revisão do passado, no sentido de se fazer justiça às vítimas desses regimes.

A eleição presidencial de 2009 no Uruguai foi acompanhada de dois plebiscitos polêmicos. Todavia, o que nos importa aqui é o que se refere à aprovação de um projeto de lei apresentado pela Frente Ampla, que previa a anulação da Ley de Caducidad,1 promulgada em dezembro de 1986. Se, por um lado, as eleições deram vitória a Jose Mujica, candidato da Frente Ampla (cujo passado fora de militância na guerrilha urbana dos Tupamaros), por outro, o plebiscito foi marcado pela derrota do referido projeto de lei, tirando de cena a possibilidade, naquele momento, de se levarem os militares ao banco dos réus.

É neste contexto histórico que Clara Aldrighi lançou Memorias de insurgencia no ano de 2009. A historiadora atualmente é docente de História Contemporânea na Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación da Universidad de la República, e na juventude também integrou o Movimiento de Liberación Nacional Tupamaros.

A organização guerrilheira MNL-Tupamaros foi a mais destacada dentre as demais organizações uruguaias. Sua gênese ocorreu antes mesmo do período militar (1973-1985). Ela surgiu no ano de 1962, congregando em seu corpo de militantes diversos segmentos da sociedade, tais como profi ssionais liberais, professores, operários e estudantes. Apesar da infl uência cubana, sua opção de luta armada foi via guerrilha urbana. O auge da organização – que naquele momento conquistou a simpatia de grande parcela da população – ocorreu em 1968, após uma série de ações bem-sucedidas que evitavam o enfrentamento direto com a polícia e não faziam uso indiscriminado da violência.

Suas principais operações consistiam em denúncias de corrupção do governo, demonstrações de força e poder de fogo, bem como expropriações fi nanceiras. A partir da década de 1970, houve um refl uxo do apoio popular, dada a guinada para a militarização por parte do grupo (Padrós, 2005, f. 289-299).

É por meio de trajetórias individuais, tendo a história oral como metodologia de investigação, que Clara Aldrighi reconstrói a experiência tupamara e lança luzes no ambiente político e cultural em que surgiu o grupo.

Citando Isaiah Berlin, a historiadora justifi ca sua opção teórico-metodológica: “comprender la historia es comprender lo que los hombres hicieron en el mundo en que se encontraron, lo que exigieron de él. Cuales fueron las necesidades sentidas, las metas, los ideales.” (p. 8).

O livro é uma compilação de 17 entrevistas com antigos militantes tupamaros, sendo cinco delas realizadas com integrantes da direção do grupo.

Este conjunto de entrevistas é parte de um montante que a autora levou cerca de uma década para coletar, e que foram utilizadas para a elaboração de dois outros trabalhos: o livro La izquierda armada: ideología, ética e identidade en el MNL-Tupamaros (2001), e o artigo “Chile, la gran ilusión” (2006). A seleção dos depoimentos publicados forma um mosaico de experiências e opiniões, por vezes contraditórias, sobre temas sensíveis acerca do período, como a repulsa ou a reivindicação desse passado guerrilheiro.

Os depoimentos foram divididos em dois blocos, sendo o primeiro com oito entrevistas, abarcando o período de 1965 a 1972, de forma que vislumbra a fundação do grupo, seu auge em 1968, suas ações exemplares, as relações intersujeitos, a vida privada e as experiências traumáticas de cárcere e tortura. O segundo bloco abrange os anos entre 1973 e 1975, e trata de temas variados, tais como os exílios chileno, cubano e argentino, questões de gênero, a fragmentação do grupo e a formação de outros, desaparecimentos forçados e a tentativa de reorganização do agrupamento no Uruguai.

A iniciativa deste tipo de obra é válida e importante, na medida em que há carência de publicações de fontes orais, primárias, na íntegra. Tais fontes possibilitam aos historiadores, sobretudo aos que se dedicam ao estudo da memória e seus usos políticos, refl etirem sobre questões inerentes à memória, a exemplo das suas ressignifi cação e construção social que dão forma à identidade do grupo (Groppo, 2002, p. 190).

Metodologicamente, torna-se um desafi o lidar com depoimentos. Atualmente, a historiografi a latino-americana tem trabalhado no sentido de dar atenção ao testemunho, todavia, não o tomando como “ícone da verdade”, a exemplo do que ocorreu nos primeiros anos após as ditaduras militares (Sarlo, 2007, p. 56). De acordo com Florencia Levin, “o testemunho não pode tomar o lugar da explicação, da argumentação e da construção argumentativa do historiador, senão não haveria História, somente memória”, ou melhor, completa, “nem sequer é História Oral, é mais bem uma memória do testemunho” (Levin, 2009, p. 7).

As dinâmicas de lembrar e esquecer ocorrem no momento presente, todavia, sua temporalidade é subjetiva. A todo tempo se remete ao passado, enquanto cobra vínculo com o presente e busca projeções para o futuro; por isso, há a necessidade de se historicizar a memória, analisado as transformações pelas quais passa cada um dos atores sociais e o que recordam ou esquecem ( Jelin, 2002, p. 3). Para além destes dramas, esse conjunto de fontes nos dá indicações acerca da realidade de outros países que lidaram com a mesma experiência – no caso, a autoritária – e como a memória deste passado (aqui, de guerrilha) vem sendo tratada, como os envolvidos lidam com a questão.

Referências

GROPPO, B. Las políticas de la memoria. Revista Sociohistórica: Dossier Las políticas de la memoria, n. 11-12, p. 187-198, 2002.

JELIN, E. Comemoraciones: las disputas em las fechas in-felices. Madrid: Siglo XXI, 2002.

PADRÓS, E. S. Como el Uruguay no hay…: terror de Estado e segurança nacional no Uruguai. Tese (Doutorado em História)–Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

SARLO, B. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

URUGUAY. Ley Nº 15.848. Funcionarios militares y policiales. Se reconoce que ha caducado el ejercicio de la pretension punitiva del Estado respecto de los delitos cometidos hasta el 1º de marzo de 1985. Montevideo, 1986. Disponível em: <http://nulidadleycaducidad.org.uy/node/4>. Acesso em: 18 jul. 2011.

1 “Se reconoce que há caducado el ejercicio de la pretension punitiva del Estado respecto de los delitos cometidos hasta el 1 de marzo de 1985.” (Uruguay, 1986).

Isabel Cristina Leite – Doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Diário da Campanha Naval do Paraguai / Manuel C. Rocha

O diário cuja resenha ora apresentamos, o qual abrange o período de 08 de fevereiro a 31 de dezembro de 1866, é de autoria do Capitão-Tenente Manuel Carneiro da Rocha, que pertenceu ao Estado-Maior do Vice-Almirante Joaquim Marques Lisboa, conhecido como Visconde de Tamandaré; ambos foram combatentes na Guerra do Paraguai (1864-1870), evento que envolveu Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai.

A Guerra do Paraguai foi um momento específico da história nacional no qual um inimigo externo, mas também forjado, colaborou em certa medida para a valorização de qualidades e atributos, tais como: coragem, bravura e heroísmo. Os estímulos para a luta foram criados em função do embate contra um adversário que se mostrava aos olhos do governo imperial como desumano e cruel.

Os diários e memórias escritos durante a Guerra do Paraguai (1865- 1870) são ricas fontes para a interpretação da identidade nacional brasileira no século XIX, revelando condutas e comportamentos dos homens da Esquadra brasileira em luta contra o Paraguai. Ao investigá-los, nos deparamos com a instigante discussão sobre as múltiplas manifestações, representações e apropriações do conceito tempo. As fontes informam não somente o desenrolar do tempo histórico (cronológico), mas, também, atrelam o tempo da natureza à lógica e ao desenrolar dos combates.

Manuel Carneiro da Rocha nasceu na Bahia em 1833. No ano de 1865 é nomeado ajudante-de-ordens do comandante em Chefe da esquadra em operações no Rio do Prata. É destacado para o comando da embarcação Itajaí, em 1866, sua missão: organizar expedições de reconhecimento ao Alto do Rio Paraná. Em 1889, é promovido ao posto de Contra-Almirante, dirigindo a Escola Naval no anos de 1890 a 1892; vinculado ao Quartel-General da Marinha com o posto de Vice-Almirante. Seu falecimento deu-se em 1894.

O Diário de Campanha Naval do Paraguai: 1866 apresenta uma introdução e algumas anotações do Capitão-de-Mar-e-Guerra, Lauro Nogueira Furtado de Mendonça, que sintetiza os temas e os objetivos de Manuel Carneiro da Rocha ao descrever os acontecimentos vistos durante as contendas navais do conflito platino.

Lauro Nogueira ressalta a importância destas memórias para o estudo da guerra: as idas e vindas das embarcações; o tratamento nem sempre eficaz aos enfermos e feridos; a luta feroz dos homens contra as intempéries da natureza. Manuel Carneiro evidencia as tensões e as angústias dos combates, a ansiedade das esperas e o desencontro das informações; reforçando o combate às chatas paraguaias, espetáculo nem sempre tranqüilo do estrondar dos canhões, a tristeza pela perda de amigos e companheiros de guerra. Ou seja, seu Diário colabora para a enunciação dos elementos cotidianos do conflito, se convertendo em rica documentação para a análise dos encaminhamentos históricos da Guerra do Paraguai.

Além da descrição e comentários das fainas executadas nos rios paraguaios, Rocha apresenta alguns dados estatísticos relativos aos alcances de alguns tipos de canhões utilizados pelos navios brasileiros, três mapas com o número de combatentes mortos, feridos e extraviados durante a primeira quinzena do mês de abril de 1866. Há também uma listagem das embarcações utilizadas durante o período de sua atuação na guerra.1 O diário descreve a atuação da Marinha na guerra durante o período de 08 de fevereiro a 31 de dezembro de 1866. Os escritos de Manuel Carneiro contêm informações de cunho privado, detalhes sobre a composição e organização da Esquadra, além da descrição minuciosa do cotidiano naval no decorrer do período relatado. Sendo assim, esta fonte apresenta uma série significativa de elementos sociais, econômicos, políticos e culturais pertinentes para o entendimento de alguns rumos históricos da Guerra do Paraguai (1864-1870).

Vale ressaltar que a interpretação desta fonte se apóia sobre dois patamares analíticos. Em primeiro lugar, tentar perceber a fronteira que sugere a união entre duas dimensões temporais: do tempo histórico e do tempo natu relações sociais cotidianas que pareciam fomentar atitudes e comportamentos específicos.

Ao indicar a convivência entre o tempo cronológico (guiado pela história) e o tempo natural (orientado pela ação da natureza), devemos considerar as facetas das experiências que envolvem o próprio conceito de tempo e como a fonte pesquisada apresenta a relação entre estas dimensões e como os atores sociais as recepcionaram.

Manuel Carneiro da Rocha indica a importância que as manifestações da natureza tinham para a tripulação dos navios em guerra. O autor não parece dissociar os acontecimentos históricos da lógica natural, indicando a possível força com que a natureza interferia nas experiências vividas no front.

O tempo histórico desenrolava-se e incidia sobre a vida dos combatentes, direcionando condutas a partir dos sentidos e ações que a guerra ia ganhando.

A longa duração do embate competiu para a adoção de comportamentos e atitudes no interior dos navios. Como exemplo, as reclamações contra a longevidade e insalubridade dos combates e a presença constante de doenças geravam certo desânimo entre os embarcados.

A descrição do quadro natural e dos significados que a natureza atribuía à vida dos tripulantes foi preocupação constante do capitão Rocha. As condições climáticas e a relação que os combatentes navais estabeleciam diariamente com a natureza se transformaram em tema presente em quase todos os dias relatados pelo autor do diário.

A natureza parecia interferir de maneira significativa sobre o dia-a-dia dos embarcados. Manuel da Rocha utiliza-se de linguagem metafórica para descrever as condições climáticas da noite de 21 de fevereiro de 1866, comparando as alterações do tempo natural a uma rajada de balas, no prenúncio, considerado perigoso, de chuva intensa. Para tanto, os combatentes colocaramse de prontidão em posições de luta, pois as intempéries naturais, de acordo com Rocha, eram consideradas inimigas dignas de respeito.

Nossa fonte foi elaborada a partir do uso de linguagem específica e recorrente entre os pares da Marinha brasileira durante o conflito. A linguagem se convertia em fator de comunicação e parecia agregar alguns homens em torno de elementos comuns e da construção de espaços compartilhados.

A linguagem cotidiana utilizada pelos combatentes navais foi constitutiva das relações sociais estabelecidas a bordo dos navios. As “maneiras de falar” acumulavam experiências históricas elaboradas com o intuito de diferenciar aspectos da corporação Marinha de outros segmentos sociais. A linguagem maruja fornecia arcabouços concretos para a possível construção de uma identidade marinheira que se fazia considerando um corpo lingüístico peculiar.

A especificidade da linguagem usada pelos profissionais da Marinha brasileira no front evidencia-se ainda mais com os vocábulos que serviam para caracterizar o meio ambiente e a natureza que os circundava. O relacionamento dos homens da Esquadra com o tempo natural mostrava-se marcante e freqüente.

As relações sociais estabelecidas nos espaços cotidianos também pareciam considerar a proximidade dos homens do mar com as lógicas naturais.

Tal cenário aparece nos escritos de Manuel Carneiro da Rocha quando descreve as bruscas mudanças climáticas ocorrida nos rios platinos. Num primeiro momento, tendemos a direcionar as análises afirmando que o clima se converteu em empecilho dificultador das ações a bordo, pois parecia abater os ânimos dos embarcados. O autor do Diário não apresenta indícios claros de que as reviravoltas naturais realmente pudessem ocasionar grandes perdas e derrotas.

Manuel Carneiro da Rocha descreve a necessidade de uma embarcação buscar carne em terra como o objetivo de alimentar a guarnição do navio.

Apesar da “trovoada”, os tripulantes ignoraram os avisos da natureza e procuraram cumprir a missão que lhes foi atribuída, apesar do espanto revelado pelo autor que por vezes estranhava a escuridão do céu e a quantidade significativa de chuvas que acometiam a região.

Importante notar que as dificuldades impostas pelas ações da natureza no ambiente de luta chegam a gerar no autor uma predileção pelos estampidos dos canhões e pelo tilintar dos fuzis em detrimento aos sons causados por raios e trovões. Neste momento, Manuel Carneiro indica uma dose de pessimismo com relação aos rumos que a guerra ia trilhando.

Além dos altos índices de chuvas, o diário de guerra apresenta a preocupação de seu autor com a hidrografia da região platina. O espaço fluvial paraguaio se mostrava inadequado à navegação dos navios brasileiros; os mesmos possuíam grande calado e não foram bem adaptados para atuarem em rios. Novamente, nosso narrador aponta algumas queixas com relação ao cenário natural durante os combates. Desta vez, o motivo registrado gira ao redor das poucas condições de navegabilidade dos rios do Prata.

Além dos altos índices de chuvas, o diário de guerra apresenta a preocu pação do seu autor com as características dos rios platinos. O espaço fluvial paraguaio se mostrava inadequado à navegação dos navios brasileiros, pois os mesmos possuíam grande calado e não foram bem adaptados para atuarem em rios. O narrador reitera queixas com relação ao cenário natural durante os combates. Desta vez, o motivo apresentado gira ao redor das baixas condições de navegabilidade dos rios platinos.

O diário analisado informa um detalhe logístico considerado por seu autor como imprescindível para o alcance do sucesso nas batalhas: a boa navegabilidade na região do conflito. Sendo assim, Manuel Carneiro da Rocha desejava que as chuvas aumentassem o volume das águas nos rios platinos, ma parecia torcer contra o excesso das precipitações climáticas que poderiam trazer problemas para os embarcados.

Vale reafirmar que os entrelaçamentos das manifestações naturais e dos comportamentos verificados a bordo dos navios podem ser refletidos a partir das relações sociais cotidianas, ou seja, diuturnamente eram criadas e/ou recriadas convivências, reciprocidades, desligamentos e afastamentos, considerando o ritmo diário que o evento guerra ia pouco a pouco adquirindo.

Nosso intuito com estas reflexões é contribuir para a análise da Guerra do Paraguai pautado no reconhecimento que o tempo da natureza e o tempo histórico andavam de mãos dadas e atuavam decisivamente nas tomadas de decisões de alguns atores históricos como é o caso do próprio Manuel Carneiro da Rocha.

Ao aventar o entrelaçamento do tempo natural com o tempo histórico na fonte analisada, gostaríamos de sinalizar para a construção de entendimentos específicos com relação à lógica temporal. O autor do diário insiste em comunicar a força com a qual a natureza orientava os feitos dos atores envolvidos nos embates. Na fonte pesquisada, natureza e história confundem-se, os guarnecidos percebem o desenrolar dos dias e das noites orientados pelos desígnios e “caprichos” naturais.

A tentativa deste labor foi alvitar reflexões sobre a Guerra do Paraguai (1864-1870) que possam contemplar matizes históricas múltiplas e variadas, não se atendo somente às descrições minuciosas de feitos militares e de batalhas.

A faina se faz em torno da exigência não menos audaciosa de vociferarmos o passado, de fornecer visibilidades aqueles ou aquelas que outrora foram silenciados e/ou emudecidos, numa atividade igualmente complexa de construção discursiva e plausível sobre a história, na qual apontamos nossas próprias e mais íntimas visões e apreciações sobre as experiências um dia vivenciadas.

Thiago Gomes de Araújo – Doutorando em História na UnB. Professor-Coordenador nas Faculdades IESA – DF.


ROCHA, Manuel Carneiro da. Diário da Campanha Naval do Paraguai: 1866. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 1999. 351p. Resenha de: ARAÚJO, Thiago Gomes de. Textos de História, Brasília, v.17, n.1, p.191-196, 2009. Acessar publicação original. [IF]

Estudios Históricos | CDHRPBVR | 2009

Estudios Historicos Uruguai

Estudios Históricos (Rivera, 2009-) é a revista eletrônica no Centro de Documentación Histórica del Río de la Plata y Brasil Dr. Walter Rela (Rivera-Uruguay).

Es con enorme placer que nos dirigimos a ustedes para hacerles llegar el primer ejemplar de la revista digital Estudios Históricos, medio de comunicación académica que hemos creado en el ámbito del Centro de Documentación Histórica del Río de la Plata y que está abierto a la participación y colaboración de todos ustedes desde este momento.

Estudios Históricos es un nuevo espacio académico destinado a la difusión de los conocimientos, investigaciones, ensayos, seminarios, encuentros, entrevistas, proyectos de investigación en curso, en los campos de la Historia, Geo-Historia y Antropología, en sus aspectos sociales, económicos, políticos y culturales, que se desarrollan en la cuenca del Plata, entendiendo por tal a Argentina, Brasil, Paraguay y Uruguay, sin perjuicio de divulgar trabajos provenientes de América, Europa y otros partes del mundo.

La pluralidad de ideas y miradas sobre los diferentes temas nos anima a pensar que este será un espacio de reflexión crítica, sobre nuestras disciplinas, un punto de encuentro y enlace entre investigadores de diferentes lugares.

[Periodicidade semestral]

ISSN 1688 5317

Acesso livre

Acessar resenhas

Acessar dossiês

Acessar sumários

Acessar arquivos

Fronteiras culturais. Brasil-Uruguai-Argentina – MARTINS (

MARTINS, Maria Helena (org.). Fronteiras culturais. Brasil-Uruguai-Argentina. São Paulo: Ateliê Editorial; Prefeitura de Porto Alegre; Centro de Estudos de Lieteratura e Psicanálise Cyro Martins, 2002. Resenha de OLIVEIRA, Maria da Glória de. Anos 90, Porto Alegre, v.10, n.18, p.163-165, 2003.

Maria da Glória de Oliveira – Graduanda do Bacharelado em História UFRGS.

Acesso apenas pelo link original

[IF]

 

Pólvora y Tintas. Andanças de Bandoleros Anarquistas – NEVES; COUTURE (RBH)

NEVES, Salvador; COUTURE, Pérez. Pólvora y Tintas. Andanças de Bandoleros Anarquistas. Montevideo: Banda Orientas, 1993, 141 p. (ilust.). Resenha de: SILVA JÚNIOR, Adhemar Lourenço da. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.17 n. 34, 1997.

Pouco conhecida por profissionais brasileiros, a historiografia uruguaia vem produzindo interessantes trabalhos. Diferentemente do Brasil, onde a pós-graduação é locus privilegiado da produção científica, as exigências da graduação no Uruguay levam a investigações comparáveis a dissertações de mestrado. Tal é o caso da monografia de Neves e Pérez, cuja história inicia-se em outubro de 1927, quando o Comité Pro Presos y Deportados argentino, sem dinheiro, soluciona o problema assaltando o Hospital Rawson, em Buenos Aires. O butim compensa o risco, mas a morte de um guarda em meio ao tiroteio leva a polícia à caça dos assaltantes, predominantemente catalães. Enquanto a polícia mobiliza infrutiferamente agentes e informantes, o grupo atravessa clandestinamente o Prata rumo a Montevideo, local seguro para fugitivos políticos latino-americanos e europeus. A polícia argentina pressiona as autoridades uruguaias para encontrar os assaltantes, mas estas, ciosas da soberania nacional, não cedem facilmente aos apelos portenhos.

A partir daí se desenvolve o livro, estruturado como uma novela policial. A narração percorre, em idas e vindas que deixam o leitor sem fôlego, redes de solidariedade e normas de segurança que permitem aos fugitivos políticos anarquistas abrigarem-se clandestinamente no Uruguay, envolvendo militantes e criminosos comuns (inclusive uma rede capaz de falsificar dinheiro dentro da prisão). Mas o momento não era propício: a aproximação das eleições legislativas apontava para o asedio conservador que vinha ocorrendo desde 1925, e o governo uruguaio via-se pressionado também pelos jornais católicos que exigiam a deportação dos anarquistas, ateus e assassinos.

O panorama, desenhado por meio de fontes jornalísticas, poderia assemelhar-se a outros em que argentinos atravessavam o Prata e buscavam abrigo na Banda Oriental. Mas os assaltantes do Hospital Rawson violaram a regra de ouro prescrita pelos militantes uruguaios: a de não praticar ilegalidades no país. O alvo escolhido foi a casa de câmbio Messina, situada na Plaza Independencia. O assalto, financiado com parte do auferido no Hospital Rawson, foi longamente planejado e executado em outubro de 1928, mas, aos erros cometidos, somou-se o azar dos assaltantes: não só a casa de câmbio tinha pouco dinheiro em caixa, como houve reação. O assalto rendeu, no máximo, conforme estimativas, 2.000 pesos – o valor de um automóvel, ou de 33 novilhos -, mas o custo fora alto: três mortos, vários feridos e um problema para os anarquistas uruguaios. Com o assalto em Montevideo, a polícia uruguaia investigou as redes de solidariedade – o que produziu as fontes utilizadas pelos autores – e conseguiu prender parte dos anarquistas.

Se a narrativa é um dos méritos do livro, também lhe traz problemas. Um deles refere-se à necessidade de produzir análises sobre o contexto histórico, imprescindíveis em trabalhos acadêmicos. As análises feitas quebram o ritmo da narração, apresentando-se como colagens pouco articuladas com o caso tratado, fazendo a obra oscilar entre a perspectiva que toma casos como elucidativos exemplos de um fenômeno mais geral (criminalidade, relações políticas transplatinas, solidariedade internacional, etc.) e a que toma o contexto como explicativo do caso, não sendo, portanto, necessário tanto detalhamento nessa análise. As análises do contexto no livro remetem antes a um pano de fundo da ação do que a um universo de relações sociais mediado e reatualizado pela conduta dos agentes. Um segundo problema restringe-se aos leitores lusófonos: o abuso da gíria policial (a de hoje ou a da época?), que facilita o clima narrativo mas dificulta a leitura.

Trabalhos como o de Neves e Pérez não se limitam a abordar aspectos localizados da história operária uruguaia e argentina: fornecem, no mínimo, subsídios para pesquisadores do Brasil compararem formas de organização, quando não sugerem possibilidades de pesquisa. Com efeito, militantes anarquistas como Manuel Moscoso, Nino Martins e Antônio Nalepinski circularam por vários países e Estados, cabendo-nos interrogações sobre a influência dessa circulação de trabalhadores na conformação de sua experiência de organização. Por outro lado, traz-nos uma questão mais geral que abre possibilidades a investigações biográficas e prosopográficas: o que são esses ideais políticos, capazes de fazer alguém sacrificar sua vida pessoal? O que se ganha em troca desse sacrifício?

Sem querer adiantar respostas, tampouco o epílogo do livro, basta dizer que, dentre os condenados pelo assalto no Uruguay, houve os que cumpriram sua pena na prisão de Punta Carretas e os que, por meio de um estratagema que mereceria outro estudo monográfico das redes de solidariedade, conseguiram fugir poucos anos depois.

Notas

1 NEVES, Salvador; COUTURE, Pérez. Montevideo: Banda Orientas, 1993, 141 p. (ilust.).

Mestre pela UFRGS, Professor da UFPel.

Adhemar Lourenço da Silva Júnior – Universidade Federal de Pelotas

Acessar publicação original

[IF]