Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann – GAY (C)

GAY, Peter. Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 157-162, maio/ago, 2013.

Literatura e história: aproximações teóricas e divergências metodológicas

A narração não podia ter uma condição própria, pois, conforme os casos, estava submetida às disposições e às figuras da arte retórica, ou seja, era considerada como o lugar onde se revelava o sentido dos próprios fatos ou era percebida como um obstáculo importante para o conhecimento verdadeiro. […] Só o questionamento dessa epistemologia da coincidência e a tomada de consciência sobre a brecha existente entre o passado e sua representação, entre o que foi e o que não é mais e as construções narrativas que se propõem ocupar o lugar desse passado permitiram o desenvolvimento de uma reflexão sobre a história, entendida como uma escritura sempre construída a partir de figuras retóricas e de estruturas narrativas que também são as da ficção. (CHARTIER, 2009, p. 12).

Assim, Roger Chartier, em seu livro A história ou a leitura do tempo, resumia as contendas entre historiadores, críticos literários e filósofos nos anos 1960 e 1970, e que se desdobraria na “crise da história” dos anos 1980 e 1990. Na década de 1970, o historiador Peter Gay não deixou de lado essas questões, mas seu caminho seguiu um rumo também peculiar. Em suas obras: O estilo na História: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt (de 1974), Arte e ação: as causas na história – Manet, Gropius, Mondrian (de 1976) e Freud para historiadores (de 1985), além de “pagar seu tributo à historiografia”, com uma trilogia não planejada, o autor também revisou o campo dos estudos históricos, ao propor articular novamente arte e ciência na escrita da história, em uma abordagem inovadora sobre o estudo da história social das ideias, utilizando-se das contribuições da Psicologia (em especial, da Psicanálise), para entender os homens e as sociedades do passado.

Ao publicar, em 1974, O estilo na história, ele não destacava especial apreço, ou atenção, sobre as discussões a respeito da “virada linguística”, proporcionada pela recepção do estruturalismo e do pós-estruturalismo francês nos Estados Unidos. Como ele próprio indica no livro, destinava maior consideração aos trabalhos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), Ferdinand de Saussure (1857-1913), Claude Lévi-Strauss (1908-2008) e Erich Auerbach (1892-1957). Principalmente o último, que o marcou profundamente, ao ler seu livro: Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, de 1946. Ao tratar da composição do estilo na obra de cinco historiadores: Edward Gibbon (1737-1794), Leopold von Ranke (1795-1886), Thomas Macaulay (1800-1859), Jacob Burckhardt (1818- 1897) e Theodor Mommsen (1817-1903), discutido na conclusão do livro, acentuaria de modo sutil sua crítica a Roland Barthes (1915-1980). Primeiro, porque o estilo não se encontrava apenas no campo da escrita, mas na sua interação com o escritor, sua época e seu meio. Segundo, porque as metáforas que lhe seriam inerentes não inviabilizavam a representação do princípio da realidade, antes a destacaria com maior sensibilidade e profundidade. Isso porque, ao ser o próprio homem, como o definiu Georges-Louis Leclerc (1707-1778), (mais conhecido como) conde de Buffon, o estilo demarcaria a matéria, a retórica, a maneira e as estratégias da escrita, mas ao ser também mais do que ele, como destacou Peter Gay, o estilo “nem sempre é o homem, decerto não o homem por inteiro”, mostraria sua relação com o “contexto de produção”, com o “lugar social ocupado pelo autor”, suas “leituras” e sua “formação”. Com isso, o estilo “por vezes, é menos do que o homem; com frequência é mais que ele”. (1990, p. 193).

Por isso, também, o estilo “é a arte da ciência do historiador”. Não foi por acaso, nesse sentido, que a continuidade de seus estudos, nesse campo, o levasse a analisar a “causalidade na história”, e a maneira como se apresentava na escrita, mas tendo em vista seus contornos em “artistas”, e não, nesse caso, em “historiadores”, como mostrou em seu livro: Arte e ação: as causas na história – Manet, Gropius, Mondrian (de 1976). No início dos anos de 1980, o autor prolonga tal esforço metodológico, apresentando sua proposta de aproximar a escrita da história, com a análise do “inconsciente”, exposta pela Psicanálise – tendo em vista a obra de Sigmund Freud (1856-1939), de seus seguidores e intérpretes (GAY, 1989b).

Assim, a sua “justificativa para a história como uma ciência elegante, razoavelmente rigorosa, apoiava-se fortemente […] no [s]eu comprometimento com a psicologia, em particular com a psicanálise”. Para o autor, a maior contribuição a ser encontrada nessa aproximação, outrora iniciada pelas descobertas de Marc Bloch (1886-1944) e de Lucien Febvre (1878-1956), com o movimento que geraram a partir da revista Annales, é que a “história psicanalítica pode entrar para expandir a nossa definição de história total decisivamente ao incluir o inconsciente, e o incessante tráfico entre a mente e o mundo, no território legítimo da pesquisa do historiador”.

(1989a, p. 165). Apesar de não dialogar diretamente, até este momento, com os filósofos franceses dos anos 60, que contribuíram para desencadear “a virada lingüística”, que nos Estados Unidos trouxe um grande impacto, ao questionarem a maneira pela qual os estudos históricos eram apresentados em suas formas narrativas, a obra de Peter Gay, nem por isso, deixou de reiterar a incontornável ligação entre a arte e a ciência, sobre os estilos da escrita da história apreendidos pelo historiador.

Quase duas décadas depois de concluir sua trilogia, sobre o estilo e suas relações com a história e sua escrita, o autor volta-se agora com maior atenção para o que até então havia deixado um pouco de lado, o romance e sua representação da realidade. Por que não só de divergências são constituídos os discursos histórico e literário. E seu livro Represálias selvagens (originalmente publicado em 2002), neste caso, não é apenas uma reconciliação do autor com o campo da produção literária, mas também um avanço quanto as suas análises sobre o estilo e a maneira pela qual caracteriza autor e obra, ao abordar o “princípio de realidade” contido na escrita – tanto da narrativa histórica, quanto na do romance. Contudo, o estudo da produção literária exige certa cautela, porque o romance encontra-se na “intersecção estratégica entre a cultura e o indivíduo, o macro e o micro, apresentando ideias e práticas políticas, sociais, religiosas, desenvolvimentos portentosos e conflitos memoráveis, num cenário íntimo”.

(GAY, 2010, p. 16). Apesar de os leitores quererem confiar “nos escritores de ficção tanto quanto acham que querem confiar nos historiadores”, ambos constroem representações peculiares sobre a realidade. Ainda que as aproximações teóricas, sobre os espaços de análise do romancista e do historiador sejam evidentes, há divergências metodológicas significativas na maneira como cada um procede com as fontes e reconstrói o vivido.

Para realizar seu estudo, o autor pautou-se na trajetória de três romancistas representativos do século XIX e início do XX: Charles Dickens (1812-1870), Gustave Flaubert (1821-1880) e Thomas Mann (1875-1955), dando destaque, respectivamente, aos seus romances: Casa sombria (de 1852- 1853), Madame Bovary (de 1857), e Os Buddenbrook (de 1900). Poderíamos resumir seus objetivos, neste livro, em três questionamentos principais, a saber: 1 – De que maneira a Literatura (e a História) (re)constrói uma representação peculiar da realidade?; 2 – Como uma visão de mundo molda uma linguagem e forja uma prática discursiva?; 3 – E de que modo a linguagem é perpassada por ideologias (ou por componentes ideológicos)? Para ele, Dickens teria sido um anarquista zangado (ao criticar e satirizar a sociedade inglesa da Era Vitoriana), Flaubert um anatomista fóbico (por ver os pormenores das relações sexuais e ironizar a maneira pela qual a sociedade francesa da Belle Époque viam-nas como um tabu) e Mann um aristocrata rebelde (ao viver silenciosamente sua homossexualidade e expor o cotidiano da aristocracia alemã oitocentista), em suas formas específicas de apreenderem o princípio de realidade nos seus romances históricos.

Apesar das evidentes contribuições que esses romances, e seus autores, possam trazer para a pesquisa histórica, o historiador deve ter claro que seu uso “é severamente limitado”, ainda que o “mundo que o romancista realista cria [seja] o mesmo do historiador, apenas alcançado por seus próprios caminhos” (p. 141), e que ambos tenham também em comum “o estudo das mentes individuais e das mentalidades coletivas”. (p. 144).

Dito isso, o autor passa a verificar por que a crítica pós-moderna, ao delinear o espaço de produção da história e do romance, estabelece uma fronteira tênue quanto ao significado da verdade, e seu alcance entre esses diferentes discursos narrativos. Se Jacques Derrida (1930-2004) foi o guru do movimento, Hayden White foi, sem dúvida, “o mais influente entre os historiadores pós-modernistas”, e “levou a perspectiva relativista a seus limites” (p. 145-46), ao ver indistintamente o discurso histórico e o discurso literário: “Ele converte a história num tipo de romance (geralmente não reconhecido) sobre o passado.” (p. 176). Para dar maior consistência aos seus argumentos, Peter Gay demonstra por que foi importante para Hayden White alinhar sua trajetória com os apontamentos centrais da virada linguística, estabelecendo uma relação direta com as obras de Michel Foucault e Friedrich Nietzsche. O que, em suas palavras, se constituiria como o mestre desse autor, “como de outros pós-modernistas, é (além de Friedrich Nietzsche, o favorito de todo mundo nesta escola de pensamento) Michel Foucault. Mas, o “principal problema com as excursões pós-modernistas de Foucault na história é que sua psicologia é irremediavelmente reducionista: para ele, é tudo uma questão de poder, de uma conspiração meio involuntária dos que têm contra os que não têm [o poder em suas mãos]”. (p. 176-77).

Para ele, as mesmas ressalvas seriam válidas para outros pós-modernistas (como: Jacques Lacan, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Jean Baudrillard). De acordo com ele: Para os pós-modernistas, os fatos não são descobertos, mas criados; seus ancestrais intelectuais, remontando ao menos até Goethe, insistiram por muito tempo que todo fato já é uma interpretação.

Como uma interpretação social, é inerentemente modelado pelos mitos dominantes que mantêm o historiador (bem como o romancista) preso em sua garra de ferro. Vieses, antolhos, estreiteza de visão, pontos cegos, toda espécie de impedimentos à objetividade são essenciais na própria natureza de todos os esforços humanos para conhecer; o estudioso do passado é o prisioneiro de sua própria história pessoal. Nessa visão, escrever história é apenas outra maneira de escrever ficção. (p. 146, grifo nosso).

Postura frágil, o pós-modernismo, para o autor estabeleceria sutilmente: À parte seu absurdo inerente, a tentativa pós-modernista de reduzir à irrelevância a busca da verdade empreendida pelo historiador tem conseqüências práticas. Forçaria os escritores de fatos e os escritores de ficção a um casamento indesejado sob a mira de uma arma. […] O que significa que os historiadores não precisam dos pós-modernistas para lhes dizer que o ponto de vista de profissionais individuais, em parte inconsciente, pode impedir um tratamento objetivo do passado. Eles assim afirmariam ao desmascarar alegremente a parcialidade dos outros. Mas tratariam essas armadilhas no caminho para a verdade antes como obstáculos a ser superados do que como leis da natureza humana a ser humildemente seguidas. (p. 146-148).

O que significa que os “debates dos historiadores (sem os quais a profissão seria reduzida a um tedioso relato de fatos universalmente aceitos) fazem parte de um interminável empreendimento coletivo que tenta se aproximar do exato ideal de lorde Acton: um acordo inteiramente bem informado sobre o passado”. Além disso, nenhuma “das objeções propostas contra esse ideal é válida”, por que para “falar sem rodeios: pode haver história na ficção, mas não haver ficção na história”. (p. 150).

Após resumirmos os principais pontos da discussão do autor nos anos 1970 e 1980, e o modo como avança sobre eles neste livro (ainda que nos aspectos fundamentais não tenha mudado sua perspectiva de análise), podemos passar a algumas constatações: a) mesmo não considerando todos os argumentos provenientes da virada linguística nos anos 1970 e 1980, o autor não deixou de lado tal questão, e ao voltar sobre ela, além de resumir as principais fragilidades dessa postura, e do empreendimento pós-moderno (que lhe deu continuidade), também demonstrou a importância dos romances para a pesquisa histórica; b) ao indicar as especificidades metodológicas do discurso histórico e do discurso literário, o autor também mostrou que os caminhos como cada um chega à, ou pensa, a verdade são diversos; c) como diversos são ainda os recursos que ambos têm à disposição para, a partir do princípio de realidade, construir suas narrativas.

Referências

CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

GAY, P. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

____. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Resenha recebida em 21 de setembro de 2012 e aprovada em 5 de outubro de 2012.

Diogo da Silva Roiz – Mestre em História pela Unesp. Professor na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campo Grande – MS – Brasil. E-mail:[email protected]

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