A invenção dos direitos humanos: uma história | Lynn Hunt

A autora de A invenção dos direitos humanos, Lynn Avery Hunt, nasceu em 1945 no Panamá e cresceu no estado de Minnesota nos Estados Unidos da América. Atualmente, leciona História europeia na Universidade da Califórnia e utiliza os pressupostos da História Cultural em suas produções acadêmicas.

Vinculada à História Cultural, em A invenção dos direitos humanos Lynn Hunt salienta a importância de abordar as transformações das mentes individuais ao trabalhar os processos históricos. Sendo assim, nos capítulos iniciais do livro a autora busca elucidar as novas formas de compreensão de mundo surgidas no século XVIII que possibilitaram a construção de pressupostos como os presentes na Declaração de Independência Americana (1776) e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

A Declaração de Independência dos Estados Unidos, ao se desfazer da subordinação política para com a Coroa Britânica, fez uso das idéias iluministas ao declarar verdades auto-evidentes como igualdade de todos os homens e seus direitos inalienáveis: “Vida, liberdade e busca da felicidade”. Já a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi adiante e traçou que todos os homens são iguais perante a lei e que todos possuem o mesmo direito independente de sua origem ou nascimento. Pressupôs-se, então, a tolerância religiosa e a liberdade, além da autonomia e da independência dos homens.

Para as declarações, os direitos eram universais e iam além de classe, cor ou religião. No ato da escrita, já se partia da idéia de auto-evidência dos direitos, o que aponta para uma mudança radical nos pensamentos ao longo do século XVIII e insere uma problemática: se os direitos são auto-evidentes por que precisam ser declarados? Ao responder a essa questão Hunt salienta que a construção dos direitos é contínua.

As declarações são a materialização das discussões que haviam interpelado o século XVIII e rompiam com a estrutura tradicional de sociedade. Um novo contrato social foi forjado, centrado nas relações entre os próprios homens sem contar com o intermédio religioso: era o fim do absolutismo e a desconstrução do Direito Divino dos Reis de Jacques Bossuet. O fundamento de toda a autoridade se deslocou de uma estrutura religiosa para uma estrutura humana interior: o novo acordo social se dava entre um homem autônomo e outros indivíduos igualmente autônomos.

A montagem dessa nova estrutura só é possível devido a uma nova visão do homem: agora visto como alguém livre que tem domínio de si, que pode tomar decisões por si e viver em sociedade. A autonomia individual nada mais é do que a aposta na maturidade dos indivíduos. A partir dessa nova visão, nasce-se uma nova vertente educacional: modelada pelas influências de Locke e Rousseau, a teoria educacional deixa de focar na obediência reforçada pelo castigo para o cultivo cuidadoso da razão para formar esse novo homem crítico e independente.

Paralelo a isso, nasce-se uma nova visão de corpo. O corpo passa a ser algo de domínio privado, individual e não mais como algo pertencente ao corpus social ou religioso. Os corpos também se tornaram autônomos, invioláveis, senhores de si e individualizados.

Como um importante mecanismo de transformação, Hunt aponta a popularização dos chamados romances epistolares. As cartas enviadas pelas protagonistas abordam as emoções humanas para todos os leitores. As lutas de Clarissa e Pâmela, criadas por Richardson, além das questões de Júlia, escrita por Rousseau, fizeram com que os leitores reconhecessem que todos tem seus sonhos, almejam tomar suas próprias decisões e dirigir a própria vida. O desenvolvimento de um sentimento de empatia tornou possível a construção de pressupostos básicos como a autonomia, a liberdade e a independência, além da igualdade.

Outro exemplo de transformação social ocorrida no século XVIII foi a campanha contra a tortura. Hunt cita o caso Callas como disparador de um processo que espelhou a nova visão de corpo na sociedade francesa do século XVIII. Para Hunt, ler relatos de tortura ou romances epistolares causou “mudanças cerebrais” que voltaram para o social como uma nova forma de organização.

Houve uma queda na visão do pecado original, na qual todos são pecadores e duvidosos, para a ascensão do modelo de homem rousseauniano que aposta na bondade de cada indivíduo. Essa concepção, aliada ao novo conceito de corpo, agora dentro do limite privado, formulou um posterior novo código penal que gradualmente aboliu a tortura e deu ênfase à ressocialização do indivíduo. O corpo já não era punível com a dor para vingar o social e estabelecer um exemplo ao restante da população. O corpo agora era privado e o foco se tornou a honra social do indivíduo.

Após abordar as transformações que tornaram possíveis as declarações, Lynn Hunt se ateve às aplicações e ao processo de formação das sociedades ao tentarem aplicar esses direitos. Uma assertiva importante que a autora faz nesse capítulo é que declarar é um ato político de alteração da soberania: esta passou a ser nacional, pautada no contrato entre homens iguais perante a lei, sem intermédio da religião. Declarar significava consolidar o processo de mudanças que vinham ocorrendo ao longo do século.

Mesmo dizendo que naquele momento os direitos já eram auto-evidentes, os deputados criaram algo inteiramente novo que era a justificatição de um governo a partir de sua capacidade de garantir os direitos universais. Entretanto, nessa fase encontram-se os problemas inerentes a aplicação desses conceitos generalistas: declarar os direitos universais significava conceder direitos políticos às mais variadas minorias, e proclamar a liberdade colocava em cheque a escravidão colonial.

A partir daí muitos direitos específicos começaram a vir à tona na esteira: liberdade de culto aos protestantes significava direito religioso também aos judeus, bem como participação política; o mesmo acontecia com algumas profissões, além da situação das mulheres, defendida de maneira inovadora por Condorcet e Olympe de Gouges. Os direitos foram sendo concedidos gradualmente, a liberdade religiosa e os direitos políticos iguais às minorias religiosas foram concedidos no prazo de dois anos, bem como a libertação dos escravos.

A discussão da universalidade dos direitos foi caindo ao longo do século XIX. Alguns grupos assumiram as lutas políticas do século seguinte às declarações como os trabalhadores e as mulheres. O nacionalismo foi um protagonista importante da luta por direitos ao longo do século XIX, os pressupostos franceses internacionalizados pela expansão napoleônica surtiram o efeito inverso.

Após a dominação que caracterizou o período napoleônico, nos territórios ocupados se criou uma aversão a tudo que viesse dos franceses em detrimento do que simbolizasse uma identidade nacional. Com o tempo o nacionalismo foi tomando características defensivas e passou a ser xenófobo e racista, baseando-se cada vez mais em inferências de caráter étnico.

Teorias da etnicidade representaram um enorme retrocesso ao ideal de igualdade pois partiam para determinação biológicas da diferença, montando hierarquias e justificando a subordinação, e, por conseguinte, o colonialismo. Houve uma falência do novo modelo educacional, visto que dentro da nova ideologia social só algumas raças poderiam chegar à civilização rompendo também com o ideal de universalidade.

O ápice dessa visão nacionalista e racista foi a Segunda Guerra mundial, que com os milhões de civis mortos representou a falência dos direitos humanos, principalmente com os seis milhões de mortos por intolerância religiosa e discurso de raça. As estatísticas assombrosas e o julgamento de Nuremberg trouxeram à tona a necessidade de um compromisso internacional com os direitos humanos.

Apesar de reconhecimento da urgência desse compromisso, foi preciso estimular as potências aliadas a assinar a Declaração dos Direitos Humanos, visto que havia um receio de perder colônias e áreas de influência. Sendo assim, a Declaração de 1948 só foi assinada porque deixava claro que a Organização das Nações Unidas (ONU), ali criada, não influenciaria nos assuntos internos de cada país. Ao longo do tempo, as Organizações Não-Governamentais foram mais importantes para a manutenção dos direitos humanos ao redor do mundo do que a própria ONU.

A discussão acerca dos direitos humanos feita por Hunt termina por ressaltar o quão paradoxal é esse tópico, além da dificuldade de conter “atos bárbaros” até os dias atuais. Hunt (2009, p. 214) fala de “gêmeos malignos” trazidos pela noção de direitos universais: “A reivindicação de direitos universais iguais e naturais estimulava o crescimento de novas e às vezes até fanáticas ideologias da diferença”. Há uma cascata contínua de direitos repleta de paradoxos como o direito da mãe ao aborto ou o direito do feto ao nascimento.

Para Hunt, a noção de “direitos do homem”, bem como a própria Revolução Francesa, abriu espaço para essa discussão, conflito e mudanças. A promessa de direitos pode ser negada, suprimida ou simplesmente não cumprida, entretanto jamais morre.

Anny Barcelos Mazioli – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo; bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo. E-mail: [email protected].


HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 288p. Resenha de: MAZIOLI, Anny Barcelos. Um panorama da história dos direitos humanos: uma construção necessária. Revista Ágora. Vitória, n.25, p.142-145, 2017. Acessar publicação original [IF].

Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann – GAY (C)

GAY, Peter. Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 157-162, maio/ago, 2013.

Literatura e história: aproximações teóricas e divergências metodológicas

A narração não podia ter uma condição própria, pois, conforme os casos, estava submetida às disposições e às figuras da arte retórica, ou seja, era considerada como o lugar onde se revelava o sentido dos próprios fatos ou era percebida como um obstáculo importante para o conhecimento verdadeiro. […] Só o questionamento dessa epistemologia da coincidência e a tomada de consciência sobre a brecha existente entre o passado e sua representação, entre o que foi e o que não é mais e as construções narrativas que se propõem ocupar o lugar desse passado permitiram o desenvolvimento de uma reflexão sobre a história, entendida como uma escritura sempre construída a partir de figuras retóricas e de estruturas narrativas que também são as da ficção. (CHARTIER, 2009, p. 12).

Assim, Roger Chartier, em seu livro A história ou a leitura do tempo, resumia as contendas entre historiadores, críticos literários e filósofos nos anos 1960 e 1970, e que se desdobraria na “crise da história” dos anos 1980 e 1990. Na década de 1970, o historiador Peter Gay não deixou de lado essas questões, mas seu caminho seguiu um rumo também peculiar. Em suas obras: O estilo na História: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt (de 1974), Arte e ação: as causas na história – Manet, Gropius, Mondrian (de 1976) e Freud para historiadores (de 1985), além de “pagar seu tributo à historiografia”, com uma trilogia não planejada, o autor também revisou o campo dos estudos históricos, ao propor articular novamente arte e ciência na escrita da história, em uma abordagem inovadora sobre o estudo da história social das ideias, utilizando-se das contribuições da Psicologia (em especial, da Psicanálise), para entender os homens e as sociedades do passado.

Ao publicar, em 1974, O estilo na história, ele não destacava especial apreço, ou atenção, sobre as discussões a respeito da “virada linguística”, proporcionada pela recepção do estruturalismo e do pós-estruturalismo francês nos Estados Unidos. Como ele próprio indica no livro, destinava maior consideração aos trabalhos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), Ferdinand de Saussure (1857-1913), Claude Lévi-Strauss (1908-2008) e Erich Auerbach (1892-1957). Principalmente o último, que o marcou profundamente, ao ler seu livro: Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, de 1946. Ao tratar da composição do estilo na obra de cinco historiadores: Edward Gibbon (1737-1794), Leopold von Ranke (1795-1886), Thomas Macaulay (1800-1859), Jacob Burckhardt (1818- 1897) e Theodor Mommsen (1817-1903), discutido na conclusão do livro, acentuaria de modo sutil sua crítica a Roland Barthes (1915-1980). Primeiro, porque o estilo não se encontrava apenas no campo da escrita, mas na sua interação com o escritor, sua época e seu meio. Segundo, porque as metáforas que lhe seriam inerentes não inviabilizavam a representação do princípio da realidade, antes a destacaria com maior sensibilidade e profundidade. Isso porque, ao ser o próprio homem, como o definiu Georges-Louis Leclerc (1707-1778), (mais conhecido como) conde de Buffon, o estilo demarcaria a matéria, a retórica, a maneira e as estratégias da escrita, mas ao ser também mais do que ele, como destacou Peter Gay, o estilo “nem sempre é o homem, decerto não o homem por inteiro”, mostraria sua relação com o “contexto de produção”, com o “lugar social ocupado pelo autor”, suas “leituras” e sua “formação”. Com isso, o estilo “por vezes, é menos do que o homem; com frequência é mais que ele”. (1990, p. 193).

Por isso, também, o estilo “é a arte da ciência do historiador”. Não foi por acaso, nesse sentido, que a continuidade de seus estudos, nesse campo, o levasse a analisar a “causalidade na história”, e a maneira como se apresentava na escrita, mas tendo em vista seus contornos em “artistas”, e não, nesse caso, em “historiadores”, como mostrou em seu livro: Arte e ação: as causas na história – Manet, Gropius, Mondrian (de 1976). No início dos anos de 1980, o autor prolonga tal esforço metodológico, apresentando sua proposta de aproximar a escrita da história, com a análise do “inconsciente”, exposta pela Psicanálise – tendo em vista a obra de Sigmund Freud (1856-1939), de seus seguidores e intérpretes (GAY, 1989b).

Assim, a sua “justificativa para a história como uma ciência elegante, razoavelmente rigorosa, apoiava-se fortemente […] no [s]eu comprometimento com a psicologia, em particular com a psicanálise”. Para o autor, a maior contribuição a ser encontrada nessa aproximação, outrora iniciada pelas descobertas de Marc Bloch (1886-1944) e de Lucien Febvre (1878-1956), com o movimento que geraram a partir da revista Annales, é que a “história psicanalítica pode entrar para expandir a nossa definição de história total decisivamente ao incluir o inconsciente, e o incessante tráfico entre a mente e o mundo, no território legítimo da pesquisa do historiador”.

(1989a, p. 165). Apesar de não dialogar diretamente, até este momento, com os filósofos franceses dos anos 60, que contribuíram para desencadear “a virada lingüística”, que nos Estados Unidos trouxe um grande impacto, ao questionarem a maneira pela qual os estudos históricos eram apresentados em suas formas narrativas, a obra de Peter Gay, nem por isso, deixou de reiterar a incontornável ligação entre a arte e a ciência, sobre os estilos da escrita da história apreendidos pelo historiador.

Quase duas décadas depois de concluir sua trilogia, sobre o estilo e suas relações com a história e sua escrita, o autor volta-se agora com maior atenção para o que até então havia deixado um pouco de lado, o romance e sua representação da realidade. Por que não só de divergências são constituídos os discursos histórico e literário. E seu livro Represálias selvagens (originalmente publicado em 2002), neste caso, não é apenas uma reconciliação do autor com o campo da produção literária, mas também um avanço quanto as suas análises sobre o estilo e a maneira pela qual caracteriza autor e obra, ao abordar o “princípio de realidade” contido na escrita – tanto da narrativa histórica, quanto na do romance. Contudo, o estudo da produção literária exige certa cautela, porque o romance encontra-se na “intersecção estratégica entre a cultura e o indivíduo, o macro e o micro, apresentando ideias e práticas políticas, sociais, religiosas, desenvolvimentos portentosos e conflitos memoráveis, num cenário íntimo”.

(GAY, 2010, p. 16). Apesar de os leitores quererem confiar “nos escritores de ficção tanto quanto acham que querem confiar nos historiadores”, ambos constroem representações peculiares sobre a realidade. Ainda que as aproximações teóricas, sobre os espaços de análise do romancista e do historiador sejam evidentes, há divergências metodológicas significativas na maneira como cada um procede com as fontes e reconstrói o vivido.

Para realizar seu estudo, o autor pautou-se na trajetória de três romancistas representativos do século XIX e início do XX: Charles Dickens (1812-1870), Gustave Flaubert (1821-1880) e Thomas Mann (1875-1955), dando destaque, respectivamente, aos seus romances: Casa sombria (de 1852- 1853), Madame Bovary (de 1857), e Os Buddenbrook (de 1900). Poderíamos resumir seus objetivos, neste livro, em três questionamentos principais, a saber: 1 – De que maneira a Literatura (e a História) (re)constrói uma representação peculiar da realidade?; 2 – Como uma visão de mundo molda uma linguagem e forja uma prática discursiva?; 3 – E de que modo a linguagem é perpassada por ideologias (ou por componentes ideológicos)? Para ele, Dickens teria sido um anarquista zangado (ao criticar e satirizar a sociedade inglesa da Era Vitoriana), Flaubert um anatomista fóbico (por ver os pormenores das relações sexuais e ironizar a maneira pela qual a sociedade francesa da Belle Époque viam-nas como um tabu) e Mann um aristocrata rebelde (ao viver silenciosamente sua homossexualidade e expor o cotidiano da aristocracia alemã oitocentista), em suas formas específicas de apreenderem o princípio de realidade nos seus romances históricos.

Apesar das evidentes contribuições que esses romances, e seus autores, possam trazer para a pesquisa histórica, o historiador deve ter claro que seu uso “é severamente limitado”, ainda que o “mundo que o romancista realista cria [seja] o mesmo do historiador, apenas alcançado por seus próprios caminhos” (p. 141), e que ambos tenham também em comum “o estudo das mentes individuais e das mentalidades coletivas”. (p. 144).

Dito isso, o autor passa a verificar por que a crítica pós-moderna, ao delinear o espaço de produção da história e do romance, estabelece uma fronteira tênue quanto ao significado da verdade, e seu alcance entre esses diferentes discursos narrativos. Se Jacques Derrida (1930-2004) foi o guru do movimento, Hayden White foi, sem dúvida, “o mais influente entre os historiadores pós-modernistas”, e “levou a perspectiva relativista a seus limites” (p. 145-46), ao ver indistintamente o discurso histórico e o discurso literário: “Ele converte a história num tipo de romance (geralmente não reconhecido) sobre o passado.” (p. 176). Para dar maior consistência aos seus argumentos, Peter Gay demonstra por que foi importante para Hayden White alinhar sua trajetória com os apontamentos centrais da virada linguística, estabelecendo uma relação direta com as obras de Michel Foucault e Friedrich Nietzsche. O que, em suas palavras, se constituiria como o mestre desse autor, “como de outros pós-modernistas, é (além de Friedrich Nietzsche, o favorito de todo mundo nesta escola de pensamento) Michel Foucault. Mas, o “principal problema com as excursões pós-modernistas de Foucault na história é que sua psicologia é irremediavelmente reducionista: para ele, é tudo uma questão de poder, de uma conspiração meio involuntária dos que têm contra os que não têm [o poder em suas mãos]”. (p. 176-77).

Para ele, as mesmas ressalvas seriam válidas para outros pós-modernistas (como: Jacques Lacan, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Jean Baudrillard). De acordo com ele: Para os pós-modernistas, os fatos não são descobertos, mas criados; seus ancestrais intelectuais, remontando ao menos até Goethe, insistiram por muito tempo que todo fato já é uma interpretação.

Como uma interpretação social, é inerentemente modelado pelos mitos dominantes que mantêm o historiador (bem como o romancista) preso em sua garra de ferro. Vieses, antolhos, estreiteza de visão, pontos cegos, toda espécie de impedimentos à objetividade são essenciais na própria natureza de todos os esforços humanos para conhecer; o estudioso do passado é o prisioneiro de sua própria história pessoal. Nessa visão, escrever história é apenas outra maneira de escrever ficção. (p. 146, grifo nosso).

Postura frágil, o pós-modernismo, para o autor estabeleceria sutilmente: À parte seu absurdo inerente, a tentativa pós-modernista de reduzir à irrelevância a busca da verdade empreendida pelo historiador tem conseqüências práticas. Forçaria os escritores de fatos e os escritores de ficção a um casamento indesejado sob a mira de uma arma. […] O que significa que os historiadores não precisam dos pós-modernistas para lhes dizer que o ponto de vista de profissionais individuais, em parte inconsciente, pode impedir um tratamento objetivo do passado. Eles assim afirmariam ao desmascarar alegremente a parcialidade dos outros. Mas tratariam essas armadilhas no caminho para a verdade antes como obstáculos a ser superados do que como leis da natureza humana a ser humildemente seguidas. (p. 146-148).

O que significa que os “debates dos historiadores (sem os quais a profissão seria reduzida a um tedioso relato de fatos universalmente aceitos) fazem parte de um interminável empreendimento coletivo que tenta se aproximar do exato ideal de lorde Acton: um acordo inteiramente bem informado sobre o passado”. Além disso, nenhuma “das objeções propostas contra esse ideal é válida”, por que para “falar sem rodeios: pode haver história na ficção, mas não haver ficção na história”. (p. 150).

Após resumirmos os principais pontos da discussão do autor nos anos 1970 e 1980, e o modo como avança sobre eles neste livro (ainda que nos aspectos fundamentais não tenha mudado sua perspectiva de análise), podemos passar a algumas constatações: a) mesmo não considerando todos os argumentos provenientes da virada linguística nos anos 1970 e 1980, o autor não deixou de lado tal questão, e ao voltar sobre ela, além de resumir as principais fragilidades dessa postura, e do empreendimento pós-moderno (que lhe deu continuidade), também demonstrou a importância dos romances para a pesquisa histórica; b) ao indicar as especificidades metodológicas do discurso histórico e do discurso literário, o autor também mostrou que os caminhos como cada um chega à, ou pensa, a verdade são diversos; c) como diversos são ainda os recursos que ambos têm à disposição para, a partir do princípio de realidade, construir suas narrativas.

Referências

CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

GAY, P. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

____. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Resenha recebida em 21 de setembro de 2012 e aprovada em 5 de outubro de 2012.

Diogo da Silva Roiz – Mestre em História pela Unesp. Professor na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campo Grande – MS – Brasil. E-mail:[email protected]

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A Invenção dos Direitos Humanos: uma história – HUNT (CTP)

HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos: uma história. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Resenha de: MOURA, Luyse Moraes. A Invenção dos Direitos Humanos: uma História de Lynn Hunt. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 03 – 03 de abril de 2011.

Os direitos humanos constituem fundamentos essenciais para o exercício da universalidade, assim como valores que asseguram as liberdades individuais, sendo, por isso, considerados inquestionáveis. Entretanto, a nossa percepção do que são esses direitos e a quais indivíduos estão direcionados muda constantemente. Ao contrário do que muitos imaginam, os direitos humanos não podem ser plenamente definidos, na medida em que permanecem sujeitos à discussão e passíveis de transformações contínuas.

Estudos sobre essa temática despertam o interesse de diversos pesquisadores e configuram uma área em franco desenvolvimento, resultando na produção e publicação de um grande número de obras. Para reproduzir o longo processo histórico que originou as ideias e práticas desses direitos, a consagrada historiadora norte-americana Lynn Hunt, autora do livro A Invenção dos Direitos Humanos: uma história, baseou-se em três documentos fundamentais: a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão surgida na Revolução Francesa (1789) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos publicada oficialmente pelas Nações Unidas (1948).

Ao narrar a fascinante saga dos direitos humanos, Lynn Hunt articula os conhecimentos da filosofia à crônica dos eventos políticos e à história do cotidiano e, dessa maneira, não apresenta os direitos humanos tão somente como uma doutrina formulada em documentos, mas principalmente como um conjunto de convicções sobre como são as pessoas e como elas distinguem o certo e o errado.

Diferindo de quase tudo que já foi mencionado a respeito do assunto, a autora argumenta que a evolução dos direitos humanos e o surgimento de noções básicas como a liberdade de expressão, a tolerância religiosa e a inviolabilidade dos corpos são frutos de mudanças nas práticas de vida e de novas experiências individuais, que vão desde visitas à exposições públicas de imagens à leitura de romances epistolares sobre o amor.

Na visão de Hunt, o papel exercido pelos romances epistolares nesse processo evolutivo foi de crucial importância, visto que suas narrativas apresentavam a ideia de que todos os indivíduos eram essencialmente semelhantes, em razão de suas emoções íntimas. Os romances incitavam o sentimento de empatia entre os leitores, pois à medida que se identificavam com os personagens, tornavam-se mais compreensivos em relação a terceiros, em vez de apenas centrados em si mesmos. E nesse sentido, “os direitos humanos só puderam florescer quando as pessoas aprenderam a pensar nos outros como seus iguais, como seus semelhantes em algum modo fundamental”. (p.58)  A difusão da empatia contribuiu decisivamente para o estabelecimento de princípios (direitos) que regeriam uma nova ordem política e social. Entretanto, o sentimento de compreensão, por si só, não era suficiente para impulsionar tão grandes mudanças. Era preciso que houvesse, também, um novo interesse pelo corpo humano, ou seja, uma percepção da separação e do autocontrole dos corpos. Quando se atribuiu aos corpos um valor mais positivo, no sentido de se tornarem mais individualizados, a violação desses corpos despertou reações negativas. A tortura, por exemplo, foi abolida como consequência do surgimento de uma nova estrutura, “na qual os indivíduos eram donos de seus corpos, tinham direitos relativos à individualidade e à inviolabilidade desses corpos, e reconheciam em outras pessoas as mesmas paixões, sentimentos e simpatias que viam em si mesmos”. (p.112)  Em sua obra, Hunt também observa que os direitos são comumente apresentados em uma declaração devido ao poder inerente a uma afirmação formal e pública de confirmar as mudanças que ocorreram em uma sociedade. Além de assinalar as transformações na atitudes e comportamentos gerais, as declarações de direitos de 1776 e 1789 se destacaram ao criar panoramas políticos inovadores, onde os governos eram justificados pela garantia dos direitos universais.

Utilizando-se de uma narrativa elegante e envolvente, a historiadora narra os eventos políticos e sociais que desembocaram no surgimento das declarações de direitos dos Estados Unidos e da França, permitindo ao leitor observar que, enquanto os norte-americanos seguiram uma tradição particularista dos direitos humanos, priorizando os direitos específicos de um povo ou tradição nacional, os franceses adotaram a versão universalista, que pretendia assegurar os direitos inalienáveis de todos os homens. A autora ressalta que mesmo em meio às diferenças, o exemplo americano influenciou significativamente na elaboração dos Direitos do Homem e do Cidadão, tendo em vista que a Declaração de Independência firmou entre a população francesa o senso de que o seu governo também poderia ser estabelecido sobre novos fundamentos, tornando assim mais fácil o emprego dos direitos humanos.

As declarações emprestavam maior urgência a determinados assuntos, como o direito das minorias religiosas ou daqueles que não tinham propriedade, e propunham novas questões sobre grupos, até então não cogitadas, como as mulheres e os escravos. À medida que essas questões eram anunciadas, tornava-se evidente que conceder direitos a alguns grupos(aos protestantes, por exemplo) era mais aceitável do que concedê-los a outros (às mulheres). Entretanto, a propagação dos direitos humanos tornou a manutenção da escravidão e da subserviência da mulher ao homem mais difíceis. Ainda que fossem considerados por muitos inadmissíveis ou indiscutíveis, os direitos civis das mulheres começaram a ser conquistados e a abolição da escravatura converteu-se em realidade.

Lynn Hunt chama a atenção do leitor para a longa lacuna na história dos direitos humanos, de sua enunciação inicial nas revoluções americana e francesa até a Declaração Universal promulgada pelas Nações Unidas em 1948. Segundo a autora, a ascensão do nacionalismo transformou a discussão dos direitos humanos e os tornou dependentes da autodeterminação nacional. Ao tornar-se cada vez mais fechado e defensivo, o nacionalismo assumiu uma postura xenófoba e racista, e a partir desse momento os debates sobre os direitos universais do homem diminuíram consideravelmente.

O mundo assistiu ao crescimento alarmante de inúmeras formas de sexismo, antissemitismo e racismo. O desrespeito e o desprezo pelos direitos humanos resultaram em atos de uma barbaridade sem igual. As atrocidades cometidas durante as duas grandes guerras, não só evidenciaram isso, mas também impeliram os indivíduos a pressionar as autoridades no intuito de restabelecer o cumprimento universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais a todos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada como resposta à humanidade que clamava por mudanças, constituindo apenas o primeiro passo de um processo extremamente tenso e conflituoso que persiste até os dias de hoje.

Em A Invenção do Direitos Humanos, a reflexão iniciada pela autora revela-se extremamente pertinente. Ainda hoje, constatamos em muitas sociedades práticas de racismo, tortura, desvalorização da mulher, escravidão e intolerância religiosa. Os mesmos veículos de comunicação que tornaram possível que mais pessoas sintam empatia por indivíduos que vivem em lugares distantes e realidades diferentes, anunciam a todo momento o total desrespeito do homem para com ele próprio e para com seus semelhantes. Tudo isso justifica e confirma o discurso de Hunt de que os direitos humanos ainda precisam ser resgatados.

Nesse sentido, o livro possibilita ao leitor constatar que o descaso para com direitos é fruto de uma humanidade que, apesar de caracterizada pela diferença, não aprendeu a lidar com a experiência da alteridade.

A Invenção dos Direitos Humanos é um relato singular que revela o quão paradoxal é a noção dos direitos humanos. Afinal, ao mesmo tempo em que propôs resguardar os valores mais preciosos da pessoa humana, como solidariedade, igualdade e fraternidade, estimulou o crescimento de fanáticas e intolerantes ideologias da diferença. Uma obra de estilo literário e caráter científico, que propicia uma ampla reflexão sobre o futuro dos direitos humanos, e que através de uma fascinante história mostrou que essa bandeira é defendida principalmente pelos sentimentos e convicções de indivíduos, e não pela morosidade e distanciamento de estruturas políticas.

Referência

HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos: uma história. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Luyse Moraes Moura – Bolsista PIBIC/FAPITEC. Graduanda em História/UFS. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente. Email:[email protected]. Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard (DHI/UFS). Este texto resulta das atividades do Projeto A cibercultura e suas apropriações pela nova extrema-direita sul-americana”, apoiado pela FAPITEC/SE através do edital 10/2009.

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