O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira – VENANCIO; POTENGY (HU)

VENANCIO, A.T.A.; POTENGY, G.F. (org.). O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira. Rio de Janeiro: Garamond, 2015. 336 p. Resenha de: PETRINI, Abigail Duarte. Colônia Juliano Moreira: seus sujeitos e lugares na história da psiquiatria e da loucura. História Unisinos 22(2):317-319, Maio/Agosto 2018.

O livro O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira, composto por nove capítulos, é apresentado e introduzido pelo texto de suas organizadoras Ana Teresa Acatauassú Venancio – pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz – e Gisélia Franco Potengy – pesquisadora sênior do Programa CNPq/Fiocruz. As organizadoras desse livro reuniram um florilégio de pesquisas que versaram sobre a Colônia Juliano Moreira e sua imersão na vida urbana e no imaginário social da cidade do Rio de Janeiro. Essa composição de textos está, em grande medida, comprometida com o rompimento de noções estagnantes ou simplificadoras da compreensão das relações sociais decorrentes do cotidiano e das experiências entre os diversos atores, individuais e coletivos, dessa instituição de assistência psiquiátrica. Contudo, as reflexões propostas ultrapassam os propósitos de suas organizadoras, colaborando para aprofundar questões sobre a operacionalização estatal das instituições psiquiátricas, sob a inserção de prismas nos quais os sujeitos da equação ganham espaço, independentemente de sua localização na teia traçada.

São trazidas para o centro das discussões as complexidades dos cuidados formais para com pessoas em sofrimento mental por vieses como a estruturação psiquiátrica e seu vínculo ao Estado, expressados pelas ações de diversos atores sociais; a situação daqueles sujeitos que lá foram reunidos pela premissa do cuidado, mas também do rompimento de suas vidas pregressas; a de todos aqueles que assistiram cotidianamente à presença desse singular espaço de sociabilidades em que claramente as relações de poder eram hierárquicas e desiguais; o albergamento de moradores naquele espaço, mantendo suas trajetórias individuais vinculadas ao passado vivido naquela instituição, e os conflitos gerados posteriormente à sua desativação e à ressignificação daquele lugar.

Com olhares que partiram de áreas diversas, incluindo Planejamento Urbano e Regional, Sociologia Rural, Antropologia Social, Ciências Sociais, Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural, História e História das Ciências, os/as pesquisadores/as devotaram suas investigações à Colônia Juliano Moreira na busca da formação social dessa instituição e de sua participação na história da cidade do Rio de Janeiro.  No artigo que inicia a coletânea, intitulado “Memória e história da ocupação e dos conflitos de terra do Sertão Carioca”, Renato de Souza Dória objetivou fazer um levantamento das imagens constituídas sobre o lugar onde foi instalada a Colônia Juliano Moreira – a região de Jacarepaguá, então pertencente à zona rural do Distrito Federal, nas primeiras décadas do século XX.

Buscou também situá-las em seus contextos histórico e social, para através delas perceber transformações daquela região quanto à sua estrutura fundiária, com atenção aos atores e grupos sociais que se inseriram nesse processo de resistência. Segundo o autor, a historiografia sobre a zona oeste do Rio de Janeiro procedeu a “[…] um silenciamento que obscureceu as experiências de organização e luta de trabalhadores que contestaram e desafiaram as relações de dominação e exploração […]” (p. 57), no conflito gerado pelas ofensivas de despejo engendradas por banqueiros, advogados, juízes, policiais, agentes da administração estatal e empresários, de um lado, e a oposição das famílias de pequenos lavradores e pescadores que habitavam a região, de outro.

O artigo subsequente, de Renato Gama-Rosa e Ana Paula Casassola Gonçalves, intitula-se “Evolução urbana da Colônia Juliano Moreira”. Os autores partem da identificação de momentos-chave da ocupação do espaço para refletir sobre o exame da arquitetura hospitalar no âmbito das políticas de saúde engendradas na Colônia Juliano Moreira, mesmo antes desta ser conhecida como tal. São foco da discussão os anos de 1750, 1912, 1941 e 1980, num trabalho analítico que parte dos mapas da área da Colônia nos séculos XVIII e XIX, e nos anos de 1922, 1936, 1941, 1945, 1953, 1964, 1975, 1984 e 2000. Estes mapas embasam a percepção de questões de maior complexidade sobre a ocupação daquele espaço, como a implantação do modelo pavilhonar europeu e do monobloco nas edificações da instituição, bem como a concretização do caráter urbano na área da instituição frente ao modelo heterofamiliar inicialmente adotado na ocupação do sítio da Colônia.

O terceiro artigo do livro, “‘E eu sei doutor?’: experiências de doença e falas sobre o Estado Novo em internos da Colônia Juliano Moreira (1941-1942)”, de Janis Alessandra Pereira Cassília, investiga as narrativas dos próprios internos sobre suas experiências de doença através de documentos clínicos, citando 19 casos e 52 Fichas de Observação de internos. Atentando para o filtro da transcrição médica que essas narrativas muitas vezes sofreram no processo de sua documentação, a autora explora a circularidade de ideias produzidas pelos internos enquanto excluídos e marginalizados tanto da história oficial quanto da própria sociedade. Quanto a seus sofrimentos e perturbações mentais, os internos expressaram seu cotidiano enquanto doentes por noções mais generalizantes e leigas do que as noções médicas sobre doença mental. Junto com esses relatos, eles também se manifestaram sobre temas como o Estado populista, as políticas trabalhistas e a cultura em que estavam inseridos, tornando Getúlio Vargas, a quinta-coluna, o comunismo e o integralismo participantes de suas narrativas de vida: “São histórias de vida e interpretações sobre o mundo que os cercava que apontam tanto para as tensões políticas do Estado Novo, quanto para as novidades culturais da época” (p. 123), esclarece a autora.

“Memórias coletivas e identidades sociais na história do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios (Colônia Juliano Moreira, RJ)” é o capítulo de autoria de Ana Teresa Acatauassú Venancio, Laurinda Rosa Maciel, Anna Beatriz de Sá Almeida, Bruno Dallacort Zilli e Silvia Monnerat. Destinado inicialmente a tratar a loucura e a tuberculose de suas internas, o Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios é abordado desde sua criação em 1940 até seu declínio e desativação enquanto unidade hospitalar, transformando-se em lugar de moradia para outras pessoas que não as internas, na década de 1970, e enfim seu desligamento final enquanto lugar de moradia em 2006, momento em que a área da Colônia Juliano Moreira já fazia parte da Fundação Osvaldo Cruz. “Mesmo antes de morar no Pavilhão, muitas daquelas famílias já viviam na Colônia e lá se enraizaram, fazendo daquele local um espaço físico e simbólico que dava sentido à sua existência” (p. 158). As relações tanto de internos e trabalhadores quanto de posteriores moradores do Pavilhão foram atravessadas por problemas como a falta de profissionais na fase em que foi devotado aos internamentos e a carência de infraestrutura básica durante todo o período em que foi ocupado, questões essas presentes nas discussões abordadas pelos pesquisadores.

No quinto capítulo, “Doença mental e tuberculose nas mulheres internas do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios da Colônia Juliano Moreira, 1940-1973”, escrito por Anna Beatriz de Sá Almeida, Ana Carolina de Azevedo Guedes e Pedro Henrique Rodrigues Torres, os autores seguem o rastro de internas da Colônia Juliano Moreira que foram possivelmente internas do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios, para construir entendimentos sobre os motivos de suas internações e a forma que suas vidas tomaram enquanto estiveram internadas na Colônia.

Ao explorar essas vidas e as relações históricas em que o gênero feminino se vinculava às perturbações mentais, as pesquisadoras e o pesquisador investigaram os parâmetros que foram preenchidos nas fichas de internamento (cor, idade, estado civil, profissão, diagnóstico) e as trajetórias de algumas internas. Perscrutaram, assim, “[…] não apenas as concepções médico-científicas a respeito, mas o imaginário social mais amplo que se fazia presente nas falas transcritas dos diferentes atores sociais envolvidos” (p. 192).

De autoria de Sigrid Hoppe, o capítulo “Práticas católicas na Colônia Juliano Moreira: a igreja da instituição e a festa de São Cristóvão” parte de fontes como entrevistas e conversas com moradores da Colônia Juliano Moreira, do Livro de Ocorrências da Capela Nossa Senhora dos Remédios e da observação de rituais para analisar as relações entre catolicismo, vida social e cuidados psiquiátricos. Conduzida pela narrativa deixada pelo Padre Joaquim del Rodrigues entre as décadas de 1950 e 1990, e pela presença e registro dos rituais entre 2011 e 2012, a autora analisa a atuação da igreja católica sobre os funcionários residentes na Colônia e em relação aos internos, bem como as disputas em torno de diferentes formas de professar a fé.

Na sequência, “‘O filho do povo’ de Jacarepaguá: o médico da Colônia e as lutas sociais no Sertão Carioca (1945-1962)”, capítulo de Renato de Souza Dória e Leonardo Soares dos Santos, acompanha a trajetória de vida do médico Jacinto Luciano Moreira, que, filiado ao Partido Comunista Brasileiro, militou pelo reconhecimento dos trabalhadores da saúde pública em sua atuação nas lutas sociais vivenciadas por lavradores, pescadores e demais categorias de trabalhadores no sertão carioca na primeira metade do século XX. Acompanhar a vida de Jacinto colabora para perceber as dinâmicas em jogo em diversos planos sociais, considerando tratar-se de um homem negro que de auxiliar de lavoura e guarda de sanatório passou a atendente da instituição e, posteriormente, a médico da Colônia Juliano Moreira. Da mesma forma interveio enquanto militante em diferentes esferas de atuação, tanto no comitê do bairro quanto como candidato a vereador ou no movimento de médicos do Distrito Federal.

O oitavo capítulo, “A assistência psiquiátrica da Colônia Juliano Moreira no governo JK”, de André Luiz de Carvalho Braga, explora o período entre 1956 e 1960 e a atuação do Serviço Nacional de Doenças Mentais no Distrito Federal, focando especialmente a Colônia Juliano Moreira, mas atentando também para as demais instituições psiquiátricas federais localizadas na cidade do Rio de Janeiro, como o Centro Psiquiátrico Nacional e o Ambulatório de Higiene Mental de Jacarepaguá. As políticas assistenciais do governo Kubitschek são exploradas em relação à potencialização dos investimentos, tais como o aparato de ambulatórios, o incentivo à terapia ocupacional e os procedimentos terapêuticos (como o eletrochoque e as injeções), mas também em relação às dificuldades encontradas pela direção da Colônia Juliano Moreira.

Encerrando o livro, o capítulo de Gisélia Franco Potengy e Sigrid Hoppe, “Identidade e apropriações do espaço no bairro Colônia”, seguiu o rastro das lembranças na recuperação de vivências dos moradores da Colônia Juliano Moreira, escutando outras versões das histórias sobre o bairro e a Colônia, sem prender-se às narrativas oficiais, na valorização de conhecimentos e práticas esquecidos.

“A convivência entre as famílias de funcionários e os pacientes era compulsória, no cotidiano da vida, devido à própria concepção terapêutica do hospital […]” (p. 284).

Além destes, também ocorreram ocupações do lugar por parte de outras pessoas, o que pode ser percebido no conflito entre os antigos moradores e os novos, enunciados como os “de dentro” e os “de fora”. Essas manifestações revelam conflitos surgidos em decorrência das mudanças das pautas do Estado para com os doentes mentais e as instituições psiquiátricas – a reforma antimanicomial e antipsiquiátrica – e também para com o funcionalismo público, integrando o lugar da então Colônia Juliano Moreira à cidade, visando à democratização de direitos.

O conjunto dos textos que compõem o livro “O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira” expôs as ramificações sociais em diversos contextos e períodos daqueles que passaram pela instituição, seja como internos, funcionários ou mesmo moradores daquele lugar, acompanhando os significados da Colônia Juliano Moreira em suas vidas, tal como um sujeito maior de suas histórias.

O livro aponta para novas perspectivas de compreensão das dinâmicas sociais engendradas pelos asilos manicomiais, seja em suas relações com as políticas públicas de saúde mental, seja quanto às práticas culturais que perpassam as vidas daqueles que são recebidos sob seus auspícios, seja do ponto de vista dos conflitos decorrentes da instalação, manutenção e desenvolvimento de suas estruturas. A obra ultrapassa, assim, concepções superficiais como a de que o asilo é meramente um depósito de loucos, separados do mundo por seus muros, expandindo com riqueza o entendimento sobre as instituições psiquiátricas.

Abigail Duarte Petrini – Doutoranda no Programa de Pós- -Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Rua Pernambuco, 1777, 85960-000, Marechal Cândido Rondon, PR, Brasil. E-mail: [email protected].

La ciencia del alma: locura y modernidad en la cultura española del siglo XIX – NOVELLA (HCS-M)

NOVELLA, Enric. La ciencia del alma: locura y modernidad en la cultura española del siglo XIX. Madrid: Iberoamericana; Frankfurt: Vervuert, 2013. 224p. Resenha de: FREITAS, Ricardo Cabral de. Novas percepções sobre a loucura e os primeiros passos da psiquiatria na Espanha. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22 n.2 Rio de Janeiro Apr./June 2015.

De autoria de Enric Novella, médico, filósofo e pesquisador da Universidade de Luxemburgo, a obra procura dar conta dos primeiros passos da psiquiatria na Espanha. Tomando como ponto de partida a mudança de atitude da opinião pública do país em relação à loucura, ocorrida na esteira da ascensão da ordem liberal nos anos 1830 e 1840, Novella analisa a presença crescente de discursos sobre a medicina mental em vários ramos da cultura letrada espanhola e o modo como, na segunda metade do século, esses mesmos discursos se tornaram parte de uma ordem moral de teor progressivamente autoritário e universalizante.

O livro se divide em quatro capítulos, e, ao fim, o leitor pode contar com um índice onomástico bastante útil que dá conta da variedade dos temas abordados no texto. O primeiro capítulo, “Ciudadanos y locos”, é dedicado a uma breve análise da cultura letrada espanhola desde o final do século XVIII, demonstrando a influência do romantismo sobre a mudança de percepção da loucura em curso desde então. No segundo, “Los paisajes del alma”, Novella explora a ascensão do liberalismo espanhol para mostrar como a noção de individualidade que se afirma a partir da década de 1830 contribui para disseminar de modo definitivo o interesse pela loucura e pelas ciências da mente no país. No terceiro, “La medicina del espíritu”, a ênfase recai sobre os debates médicos da época e a presença marcante de questões relativas à alma e às paixões, como forma de tentar desvendar seus efeitos sobre o físico e o moral humanos. O quarto e último capítulo, “El malestar en la cultura”, aponta como a assimilação dessas noções de enfermidade, loucura e desordem pelo discurso médico espanhol se transmutam num diagnóstico pessimista da civilização, combatido através de um discurso marcadamente moralizante e repressor.

A narrativa se desenvolve a partir de um estreito diálogo com as transformações sociopo-líticas que marcaram a vida intelectual do país na primeira metade do Oitocentos, sendo constantes as referências a romances, relatos de escritores da época e debates na imprensa médica que evidenciam o crescente interesse do público letrado espanhol pelo psiquismo. Segundo o autor, o louco era cada vez menos representado como um indivíduo completamente alheio à realidade e destituído de humanidade, e passava a ser visto como um indivíduo enfermo que necessitava de ajuda. Sobre esse aspecto, é sintomático o horror dos letrados espanhóis ao constatar o péssimo tratamento dispensado aos loucos do país, como descrito no primeiro capítulo.

De certo modo, podemos dizer que o processo explorado por Novella é uma expressão mais localizada das reformulações das concepções sobre a loucura ocorridas no século XVIII, como apontadas por Foucault (2012) em História da loucura na idade clássica. Ao deixar de ser vista como um estado irreversível de completo descolamento da realidade, a loucura passa a ser entendida como uma desordem das ideias, passível de reversão mediante intervenção externa. Apontada pela historiografia da psiquiatria como condição fundamental para o alienismo, essa transformação, em outras palavras, marca o fim do entendimento da mente como um domínio inacessível e abre espaço para sua apropriação pelo discurso médico, num processo que tem como um de seus principais marcos o tratamento moral pineliano na França da virada do século XVIII para o XIX.

No contexto espanhol, essa transformação só tomaria contornos sociais e institucionais mais definitivos nas décadas de 1830 e 1840. Para o autor, a morte de Fernando VII em setembro de 1833 põe fim a uma longa crise política no país e marca o sepultamento defini-tivo do antigo regime espanhol, abrindo caminho para o assentamento das bases de um regime de caráter liberal:

Assim, os anos e as décadas seguintes certificaram a progressão de uma série de fenômenos tão significativos da transição ao mundo contemporâneo, como a substituição do Estado patrimonial do absolutismo por uma monarquia constitucional sustentada em fórmulas de soberania compartilhada; a emergência de uma incipiente economia capitalista e a implantação de um modelo classista de organização social, baseado na hegemonia normativa dos princípios de liberdade, igualdade e, sobretudo, propriedade (p.78).

Para o autor, é somente a partir dessa entrada “tardia” da Espanha na modernidade que se forma uma conjuntura favorável à difusão de novas concepções sobre a relação mente/corpo no país, caracterizada pela reunião de quatro elementos fundamentais: (a) a paulatina extensão dos ideais democráticos, filantrópicos e emancipadores articulados na opinião pública liberal; (b) crescente projeção e problematização cultural de uma subjetividade dividida entre o cultivo de si mesma e sua constituição como o objeto de um conjunto de novas doutrinas e disciplinas científicas; (c) circulação dos pressupostos conceituais, ideológicos e culturais das novas ciências da mente; (d) ampla percepção de uma crise permanente na cultura moderna que exigia uma profunda regeneração moral e uma ilimitada intervenção dos médicos na regulação dos assuntos humanos (p.42).

Em parte, o interesse do público letrado espanhol pela medicina mental está relacionada à afirmação da sensibilidade romântica naquele ambiente intelectual, expressa num modelo de individualidade ligado às ideias liberais e marcado por uma preocupação maior com a “verdade interior” e a “experiência individual”. A afirmação desse interesse pelo que Novella chama de “esfera moral” foi sacramentada na aprovação pela rainha Isabel II do “Plano General de Estudios” em 1845. O plano, proposto pelo ministro Pedro José Pidal, criou a disciplina “Princípios de psicologia, ideologia y lógica”, que marca a entrada definitiva dos debates psicológicos no ensino secundário espanhol, em detrimento da religião e da moral.

Nesse amplo contexto, o autor identifica uma circulação alargada de teorias médicas que eram debatidas com força em outros círculos letrados europeus desde o fim do século XVIII – sobretudo na França – a exemplo da frenologia e do magnetismo. Destaca-se também a proliferação dos manuais e obras de inspiração espiritualista, representados por Elementos de psicologia (1848), de Pedro Felipe Monlau, que se tornou o livro de psicologia mais recomendado durante os governos isabelinos.

Segundo Novella, esse estado de coisas na cultura letrada espanhola desse período marca a aceitação definitiva do projeto ilustrado de reconhecimento da consciência. Assim, o saber médico apresenta-se cada vez mais como um saber de caráter antropológico, o que leva a uma ordenação da moral – pelo menos no plano discursivo – direcionada pela ciência. Um sintoma desse novo cenário é a entrada em território espanhol dos postulados da science de l’homme francesa, que passa a impregnar vários escritos médicos espanhóis da primeira metade do Oitocentos. A abordagem holística sobre o homem, característica fundamental desse discurso, contribui para o teor fortemente pedagógico dessas obras, fundamentadas na noção de que só o profundo conhecimento da natureza humana poderia gerar uma sociedade justa.

Ao final, Novella (p.165) procura mostrar como, ao longo do século, essa retórica médica renovada se transmuta no que chama de “moralização da medicina, em vez de medicaliza- ção da moral”. Diante da percepção de uma profunda crise social, na qual a civilização era apontada pelo discurso conservador espanhol como um “um manancial de excitações cerebrais” (p.165), a medicina se apresenta como instância capaz de intervir em prol da manutenção da coesão social. Por meio dos acalorados debates em torno dos efeitos da imaginação, da vontade e das paixões sobre a condição física e moral dos indivíduos, Novella demonstra o progressivo avanço médico sobre os processos de definição de padrões de conduta moral aceitáveis, de teor progressivamente universalizante.

O epílogo foi reservado para um esboço dos caminhos tomados pela psiquiatria espanhola a partir da segunda metade do XIX. Chama a atenção o fato de que só nos últimos parágrafos, Novella (p.177) dá pistas sobre as resistências enfrentadas pelo nascente discurso psiquiátrico espanhol, citando um único caso no qual médicos foram presos por ordem do governador civil de Valência após terem internado uma mulher pertencente a uma família abastada da cidade, sob o diagnóstico de “monomanía razonante”. Sem dúvida, a presença de controvérsias dessa natureza ao longo do livro teria sido de grande valia para dar a devida dimensão do alcance das transformações discursivas tratadas pelo autor.

Por outro lado, o recurso à produção literária de época – além das teses médicas – foi fundamental para dimensionar o alcance que o vocabulário do psiquismo teve em setores variados da elite letrada espanhola no período. Novella é bem-sucedido ao mostrar que a mudança de postura em relação à loucura foi um processo amplo, que apesar de dialogar intensamente com a esfera médica, nunca se limitou a ela.

Por fim, apesar da ênfase nas décadas centrais no século XIX, o autor mostrou preocupação em expor as conexões da nascente psiquiatria espanhola com o contexto iluminista das últimas décadas do século XVIII. Em certa medida, as referências à science de l’homme francesa localizam o início da psiquiatria na Espanha na esteira das concepções sobre a natureza humana e a relação corpo/alma forjadas nos debates médicos franceses a partir da segunda metade do Setecentos. São esses debates que, ao conceber o homem a partir da noção de “sensibilidade”, turvam os limites entre os domínios da alma e do corpo, rompendo com a intocabilidade da alma, tal como foi definida pela tradição cartesiana.

Ao analisar o alienismo a partir dessa perspectiva Novella oferece uma abordagem mais abrangente, que não se contenta em tomar o tratamento moral pineliano como ponto partida para o nascimento da psiquiatria. Além disso, ao trazer essas questões para um contexto ibérico, contribui para a compreensão de assunto ainda pouco explorado.

Referências

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva. 2012. [ Links ]

Ricardo Cabral de Freitas – Doutorando do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. [email protected]

A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura – WADI (RHR)

WADI, Yonissa Marmitt. A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura. Uberlândia: EDUFU, 2009. 464 p. Resenha de: CONEGLIAN, Lucimar. Revista de História Regional v.15, n. 2, p.283-287, Inverno, 2010.

A História de Pierina: subjetividade, crime e loucura é resultado do trabalho de doutorado de Yonissa Marmitt Wadi, professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. A autora tem como temáticas de pesquisa: história da loucura e da psiquiatria; cultura, gênero e memória; sociedade e desenvolvimento regional; e práticas culturais e identidades.

Pierina Cechini – a protagonista do livro – nasceu no ano de 1880, foi a sexta fi lha de Antonio e Maria, italianos imigrantes. Na manhã da segunda feira, dia 26 de abril de 1909, no dia da missa de sétimo dia da morte de seu pai, ela cumpriu a promessa que vinha fazendo há alguns meses: matou sua fi lha de dezessete meses de idade através do afogamento em uma tina de lavar roupa. Esse ato desencadeou no indiciamento de Pierina e posteriormente sua internação no Hospício de São Pedro, de Porto Alegre.

Mas o que traz de relevante Pierina para que, quase um século depois de sua existência, estimular uma pesquisadora a produzir uma tese de doutorado sobre sua história? Nas palavras de Wadi, o resgate da história de “uma mulher singular” mostra “quão amplas e diversas, confl itantes, tensas e controversas podem ser as dimensões e possibilidades de uma vida” e contribui “na tarefa de desvelar como é múltiplo o social e quanto podem ser enganosas as impressões sobre a ‘importância’ de certos sujeitos sociais” (p. 25). Pelo olhar de Wadi, Pierina oportuniza a descrição da vida quotidiana de uma mulher pobre, fi lha de imigrantes italianos, que viveu nos primeiros anos do século XX, no município de Garibaldi, no Estado do Rio Grande do Sul.

Fato interessante a destacar é que, ainda que o livro tenha rendido 464 páginas, as fontes diretamente ligadas à biografada foram poucas: o registro policial de um crime e algumas cartas escritas por Pierina quando interna em um hospital psiquiátrico. Com essas parcas fontes, associada a uma farta pesquisa histórica sobre a dimensão de gênero e de loucura naquele período, a autora desvela com maestria a condição do feminino das imigrantes. A pesquisa contribui com informações sobre diferentes aspectos do viver dos imigrantes no início do século XX: a forma de organização da família; as condições econômicas; as questões de distribuição das terras; o acesso aos serviços de saúde; a prática da medicina convivendo com as práticas e crendices populares; o tratamento mental nos hospícios da época.

O livro está dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado Caminhos, a autora se aplica na explicação de como era o quotidiano de trabalho dos imigrantes italianos, especialmente das mulheres. Contempla como se dava a relação das famílias com a terra e as distribuições dos lotes feitas pelo governo do Rio Grande. Ainda, nele é apresentada a história pessoal da protagonista – a escolha do noivo, o casamento e as relações com o marido, o nascimento da fi lha.

Wadi contextualiza muito bem aspectos do viver quotidiano da biografada e muito do que está contido nesse capítulo refere-se às possibilidades de existência naquele período histórico. Seguindo Ginzburg (1989), a autora reconstitui a biografi a de Pierina a partir da história de outros “homens e mulheres do mesmo tempo e lugar” (p. 48).

Como a história de tantas outras mulheres suas contemporâneas, Pierina trabalhava nas lidas domésticas e em serviços ligados a terra, cumprindo o papel cultural dado à mulher naquele período histórico. Cabia às mulheres fazer as tarefas domésticas acrescidas de algumas das tarefas na lavoura: o preparo, o plantio e o cuidado das plantações. As tarefas domésticas incluíam não apenas a arrumação da casa e o preparo dos alimentos, mas também a confecção das roupas, do sabão, do artesanato, entre outros, contribuindo, sobremaneira, com a economia doméstica. Sobre esse período de sua vida, Pierina registra, nas suas cartas, o desconforto e o desencanto de viver a vida de uma mulher pobre no início do século XX.

No Capítulo 2, Loucuras…, a autora problematiza aspectos sobre a ‘perturbação e sofrimento’ de Pierina. Existia difi culdade de compreensão, por parte dos familiares e da comunidade de entorno, no entendimento de suas queixas relacionadas ao desgosto e tristeza que sentia. Wadi aponta “que ela queria morrer e que achava que todos da família também deveriam, pois eram muito pobres” (p. 184), sentimento esse que Pierina registrou em seus escritos através da “hideia de querer morer de fome” (p. 198).

Ainda neste capítulo, são retratadas as difi culdades dos imigrantes pobres em relação aos tratamentos médicos, e as relações que interconectavam a medicina, o uso de plantas medicinais e as crendices populares ligadas ao curandeirismo.

No caso de Pierina existiu indícios de a família ter recorrido a várias práticas usuais na época: chamaram o médico que “parece não ter encontrado doença em Pierina” (p. 185), mas, mesmo assim, receitou-lhe remédios. Recorreram ao saber popular manifestado pela atitude de afastar a fi lha da mãe com o intuito de interromper a amamentação, vista como causa do enfraquecimento de Pierina. Foi ainda ministrada a técnica da sangria, “baseando-se na acepção de que o alívio das tensões, provocado pela saída do sangue, poderia restabelecer o equilíbrio de um corpo desequilibrado, portanto doente” (p. 241). Ocorreu também a tutela de cuidados efetivada pelas freiras do convento local, numa mistura de práticas higienista com religiosidade na busca da cura.

Cada uma dessas intervenções pretensamente terapêuticas são discutidas por Wadi em profundidade, resultando esse capítulo em importante fonte de pesquisa histórica nessa temática. O terceiro e último capítulo, descreve a trajetória da protagonista a partir do assassinato de sua fi lha, Elvira Maria. Este capítulo demonstra como as questões de gênero estão imbricadas no inquérito policial, que chamou para testemunhar apenas fi guras masculinas. Isso também direcionou o destino de Pierina, uma vez que Wadi sugere que a lógica masculina à época desconsiderou as queixas de infelicidade que ela há meses manifestava para sua família e conhecidos. Apesar de Pierina ser incansável em sua tentativa de não ser vista como louca – “eu não so loca, eu so criminosa” (p.327) -, fato repetido em suas cartas, na data de 05 de julho de 1909 ela foi internada no Hospício São Pedro.

“A mística de um amor materno inato à natureza feminina surgiu, invocada pelos peritos, para comprovar o caráter distorcido de Pierina” (p. 370). Crime ou ato de loucura? Considerar a ação de Pierina como crime implicaria em qualifi car as razões apresentadas por ela para explicar o ato cometido.

Considero este capítulo especialmente interessante no que diz respeito à descrição da lógica presente naquele tempo histórico sobre a loucura. O quotidiano de tratamento no Hospício São Pedro, com sua ‘terapêutica moral’; as manifestações de insatisfação dos médicos diretores e tentativas de melhoria dos serviços; a laborterapia, geralmente atrelada às questões de gênero, reforçando a normatização dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres; estas são questões importantes na compreensão da história da psiquiatria no país.

Pierina queria ser ouvida e, para isso, escreveu. Porém, as cartas de Pierina foram interpretadas como sintomas de doença, frustrando seu intuito de comunicar-se e expor as razões de seu crime. Seu “projeto de comunicação foi totalmente ingênuo, como o de todo escrevente que acredita ser a explicação contida em seus escritos, irreversível ou incontestável” (p. 37). Seu discurso e suas ações foram classificados, como está registrado no Prontuário do Hospício São Pedro como “depressão melancólica com idéias delirantes místicas associadas à perversão dos sentimentos afetivos – psicopatia constitucional” (p. 351). Com o diagnóstico posto, a fala de Pierina ficou desqualificada e silenciada. As razões de a pena ter sido cumprida no hospício e não na cadeia envolve uma série de análises vinculadas às questões de gênero, já que a história das mulheres e a experiência social da loucura, são “espaços onde se cruzam, misturam e confundem-se as relações de gênero, as relações sociais e as relações de poder” (p. 44).

A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura é um trabalho exemplar no que diz respeito à conjugação de “sinais, vestígios e pistas tênues deixados pela escritura de Pierina” (p. 25). Wadi, ao retirar Pierina da invisibilidade histórica, qualifica-a como sujeito social importante na compreensão das relações sociais, de gênero e de loucura nos anos iniciais do século XX.

Lucimar Coneglian – Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – PR. Psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial de Castro. E-mail: luconeglian@ uol.com.br.