O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira – VENANCIO; POTENGY (HU)

VENANCIO, A.T.A.; POTENGY, G.F. (org.). O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira. Rio de Janeiro: Garamond, 2015. 336 p. Resenha de: PETRINI, Abigail Duarte. Colônia Juliano Moreira: seus sujeitos e lugares na história da psiquiatria e da loucura. História Unisinos 22(2):317-319, Maio/Agosto 2018.

O livro O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira, composto por nove capítulos, é apresentado e introduzido pelo texto de suas organizadoras Ana Teresa Acatauassú Venancio – pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz – e Gisélia Franco Potengy – pesquisadora sênior do Programa CNPq/Fiocruz. As organizadoras desse livro reuniram um florilégio de pesquisas que versaram sobre a Colônia Juliano Moreira e sua imersão na vida urbana e no imaginário social da cidade do Rio de Janeiro. Essa composição de textos está, em grande medida, comprometida com o rompimento de noções estagnantes ou simplificadoras da compreensão das relações sociais decorrentes do cotidiano e das experiências entre os diversos atores, individuais e coletivos, dessa instituição de assistência psiquiátrica. Contudo, as reflexões propostas ultrapassam os propósitos de suas organizadoras, colaborando para aprofundar questões sobre a operacionalização estatal das instituições psiquiátricas, sob a inserção de prismas nos quais os sujeitos da equação ganham espaço, independentemente de sua localização na teia traçada.

São trazidas para o centro das discussões as complexidades dos cuidados formais para com pessoas em sofrimento mental por vieses como a estruturação psiquiátrica e seu vínculo ao Estado, expressados pelas ações de diversos atores sociais; a situação daqueles sujeitos que lá foram reunidos pela premissa do cuidado, mas também do rompimento de suas vidas pregressas; a de todos aqueles que assistiram cotidianamente à presença desse singular espaço de sociabilidades em que claramente as relações de poder eram hierárquicas e desiguais; o albergamento de moradores naquele espaço, mantendo suas trajetórias individuais vinculadas ao passado vivido naquela instituição, e os conflitos gerados posteriormente à sua desativação e à ressignificação daquele lugar.

Com olhares que partiram de áreas diversas, incluindo Planejamento Urbano e Regional, Sociologia Rural, Antropologia Social, Ciências Sociais, Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural, História e História das Ciências, os/as pesquisadores/as devotaram suas investigações à Colônia Juliano Moreira na busca da formação social dessa instituição e de sua participação na história da cidade do Rio de Janeiro.  No artigo que inicia a coletânea, intitulado “Memória e história da ocupação e dos conflitos de terra do Sertão Carioca”, Renato de Souza Dória objetivou fazer um levantamento das imagens constituídas sobre o lugar onde foi instalada a Colônia Juliano Moreira – a região de Jacarepaguá, então pertencente à zona rural do Distrito Federal, nas primeiras décadas do século XX.

Buscou também situá-las em seus contextos histórico e social, para através delas perceber transformações daquela região quanto à sua estrutura fundiária, com atenção aos atores e grupos sociais que se inseriram nesse processo de resistência. Segundo o autor, a historiografia sobre a zona oeste do Rio de Janeiro procedeu a “[…] um silenciamento que obscureceu as experiências de organização e luta de trabalhadores que contestaram e desafiaram as relações de dominação e exploração […]” (p. 57), no conflito gerado pelas ofensivas de despejo engendradas por banqueiros, advogados, juízes, policiais, agentes da administração estatal e empresários, de um lado, e a oposição das famílias de pequenos lavradores e pescadores que habitavam a região, de outro.

O artigo subsequente, de Renato Gama-Rosa e Ana Paula Casassola Gonçalves, intitula-se “Evolução urbana da Colônia Juliano Moreira”. Os autores partem da identificação de momentos-chave da ocupação do espaço para refletir sobre o exame da arquitetura hospitalar no âmbito das políticas de saúde engendradas na Colônia Juliano Moreira, mesmo antes desta ser conhecida como tal. São foco da discussão os anos de 1750, 1912, 1941 e 1980, num trabalho analítico que parte dos mapas da área da Colônia nos séculos XVIII e XIX, e nos anos de 1922, 1936, 1941, 1945, 1953, 1964, 1975, 1984 e 2000. Estes mapas embasam a percepção de questões de maior complexidade sobre a ocupação daquele espaço, como a implantação do modelo pavilhonar europeu e do monobloco nas edificações da instituição, bem como a concretização do caráter urbano na área da instituição frente ao modelo heterofamiliar inicialmente adotado na ocupação do sítio da Colônia.

O terceiro artigo do livro, “‘E eu sei doutor?’: experiências de doença e falas sobre o Estado Novo em internos da Colônia Juliano Moreira (1941-1942)”, de Janis Alessandra Pereira Cassília, investiga as narrativas dos próprios internos sobre suas experiências de doença através de documentos clínicos, citando 19 casos e 52 Fichas de Observação de internos. Atentando para o filtro da transcrição médica que essas narrativas muitas vezes sofreram no processo de sua documentação, a autora explora a circularidade de ideias produzidas pelos internos enquanto excluídos e marginalizados tanto da história oficial quanto da própria sociedade. Quanto a seus sofrimentos e perturbações mentais, os internos expressaram seu cotidiano enquanto doentes por noções mais generalizantes e leigas do que as noções médicas sobre doença mental. Junto com esses relatos, eles também se manifestaram sobre temas como o Estado populista, as políticas trabalhistas e a cultura em que estavam inseridos, tornando Getúlio Vargas, a quinta-coluna, o comunismo e o integralismo participantes de suas narrativas de vida: “São histórias de vida e interpretações sobre o mundo que os cercava que apontam tanto para as tensões políticas do Estado Novo, quanto para as novidades culturais da época” (p. 123), esclarece a autora.

“Memórias coletivas e identidades sociais na história do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios (Colônia Juliano Moreira, RJ)” é o capítulo de autoria de Ana Teresa Acatauassú Venancio, Laurinda Rosa Maciel, Anna Beatriz de Sá Almeida, Bruno Dallacort Zilli e Silvia Monnerat. Destinado inicialmente a tratar a loucura e a tuberculose de suas internas, o Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios é abordado desde sua criação em 1940 até seu declínio e desativação enquanto unidade hospitalar, transformando-se em lugar de moradia para outras pessoas que não as internas, na década de 1970, e enfim seu desligamento final enquanto lugar de moradia em 2006, momento em que a área da Colônia Juliano Moreira já fazia parte da Fundação Osvaldo Cruz. “Mesmo antes de morar no Pavilhão, muitas daquelas famílias já viviam na Colônia e lá se enraizaram, fazendo daquele local um espaço físico e simbólico que dava sentido à sua existência” (p. 158). As relações tanto de internos e trabalhadores quanto de posteriores moradores do Pavilhão foram atravessadas por problemas como a falta de profissionais na fase em que foi devotado aos internamentos e a carência de infraestrutura básica durante todo o período em que foi ocupado, questões essas presentes nas discussões abordadas pelos pesquisadores.

No quinto capítulo, “Doença mental e tuberculose nas mulheres internas do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios da Colônia Juliano Moreira, 1940-1973”, escrito por Anna Beatriz de Sá Almeida, Ana Carolina de Azevedo Guedes e Pedro Henrique Rodrigues Torres, os autores seguem o rastro de internas da Colônia Juliano Moreira que foram possivelmente internas do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios, para construir entendimentos sobre os motivos de suas internações e a forma que suas vidas tomaram enquanto estiveram internadas na Colônia.

Ao explorar essas vidas e as relações históricas em que o gênero feminino se vinculava às perturbações mentais, as pesquisadoras e o pesquisador investigaram os parâmetros que foram preenchidos nas fichas de internamento (cor, idade, estado civil, profissão, diagnóstico) e as trajetórias de algumas internas. Perscrutaram, assim, “[…] não apenas as concepções médico-científicas a respeito, mas o imaginário social mais amplo que se fazia presente nas falas transcritas dos diferentes atores sociais envolvidos” (p. 192).

De autoria de Sigrid Hoppe, o capítulo “Práticas católicas na Colônia Juliano Moreira: a igreja da instituição e a festa de São Cristóvão” parte de fontes como entrevistas e conversas com moradores da Colônia Juliano Moreira, do Livro de Ocorrências da Capela Nossa Senhora dos Remédios e da observação de rituais para analisar as relações entre catolicismo, vida social e cuidados psiquiátricos. Conduzida pela narrativa deixada pelo Padre Joaquim del Rodrigues entre as décadas de 1950 e 1990, e pela presença e registro dos rituais entre 2011 e 2012, a autora analisa a atuação da igreja católica sobre os funcionários residentes na Colônia e em relação aos internos, bem como as disputas em torno de diferentes formas de professar a fé.

Na sequência, “‘O filho do povo’ de Jacarepaguá: o médico da Colônia e as lutas sociais no Sertão Carioca (1945-1962)”, capítulo de Renato de Souza Dória e Leonardo Soares dos Santos, acompanha a trajetória de vida do médico Jacinto Luciano Moreira, que, filiado ao Partido Comunista Brasileiro, militou pelo reconhecimento dos trabalhadores da saúde pública em sua atuação nas lutas sociais vivenciadas por lavradores, pescadores e demais categorias de trabalhadores no sertão carioca na primeira metade do século XX. Acompanhar a vida de Jacinto colabora para perceber as dinâmicas em jogo em diversos planos sociais, considerando tratar-se de um homem negro que de auxiliar de lavoura e guarda de sanatório passou a atendente da instituição e, posteriormente, a médico da Colônia Juliano Moreira. Da mesma forma interveio enquanto militante em diferentes esferas de atuação, tanto no comitê do bairro quanto como candidato a vereador ou no movimento de médicos do Distrito Federal.

O oitavo capítulo, “A assistência psiquiátrica da Colônia Juliano Moreira no governo JK”, de André Luiz de Carvalho Braga, explora o período entre 1956 e 1960 e a atuação do Serviço Nacional de Doenças Mentais no Distrito Federal, focando especialmente a Colônia Juliano Moreira, mas atentando também para as demais instituições psiquiátricas federais localizadas na cidade do Rio de Janeiro, como o Centro Psiquiátrico Nacional e o Ambulatório de Higiene Mental de Jacarepaguá. As políticas assistenciais do governo Kubitschek são exploradas em relação à potencialização dos investimentos, tais como o aparato de ambulatórios, o incentivo à terapia ocupacional e os procedimentos terapêuticos (como o eletrochoque e as injeções), mas também em relação às dificuldades encontradas pela direção da Colônia Juliano Moreira.

Encerrando o livro, o capítulo de Gisélia Franco Potengy e Sigrid Hoppe, “Identidade e apropriações do espaço no bairro Colônia”, seguiu o rastro das lembranças na recuperação de vivências dos moradores da Colônia Juliano Moreira, escutando outras versões das histórias sobre o bairro e a Colônia, sem prender-se às narrativas oficiais, na valorização de conhecimentos e práticas esquecidos.

“A convivência entre as famílias de funcionários e os pacientes era compulsória, no cotidiano da vida, devido à própria concepção terapêutica do hospital […]” (p. 284).

Além destes, também ocorreram ocupações do lugar por parte de outras pessoas, o que pode ser percebido no conflito entre os antigos moradores e os novos, enunciados como os “de dentro” e os “de fora”. Essas manifestações revelam conflitos surgidos em decorrência das mudanças das pautas do Estado para com os doentes mentais e as instituições psiquiátricas – a reforma antimanicomial e antipsiquiátrica – e também para com o funcionalismo público, integrando o lugar da então Colônia Juliano Moreira à cidade, visando à democratização de direitos.

O conjunto dos textos que compõem o livro “O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira” expôs as ramificações sociais em diversos contextos e períodos daqueles que passaram pela instituição, seja como internos, funcionários ou mesmo moradores daquele lugar, acompanhando os significados da Colônia Juliano Moreira em suas vidas, tal como um sujeito maior de suas histórias.

O livro aponta para novas perspectivas de compreensão das dinâmicas sociais engendradas pelos asilos manicomiais, seja em suas relações com as políticas públicas de saúde mental, seja quanto às práticas culturais que perpassam as vidas daqueles que são recebidos sob seus auspícios, seja do ponto de vista dos conflitos decorrentes da instalação, manutenção e desenvolvimento de suas estruturas. A obra ultrapassa, assim, concepções superficiais como a de que o asilo é meramente um depósito de loucos, separados do mundo por seus muros, expandindo com riqueza o entendimento sobre as instituições psiquiátricas.

Abigail Duarte Petrini – Doutoranda no Programa de Pós- -Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Rua Pernambuco, 1777, 85960-000, Marechal Cândido Rondon, PR, Brasil. E-mail: [email protected].

Historia cultural de la psiquiatría – HUERTAS (HCS-M)

HUERTAS, Rafael. Historia cultural de la psiquiatría. Madrid: Catarata. 2012. 224p. Resenha de: RIBEIRO, Daniele Corrêa. Da história da psiquiatria à construção de uma nova clínica: as contribuições de Rafael Huertas para os debates historiográficos. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22  supl. Dec. 2015.

Desde a década de 1960, com a publicação e repercussão de História da loucura na Idade Clássica, de Michel Foucault (2010), os olhares sobre a loucura e os saberes que dela se apropriavam foram se diversificando e tornando complexos. O privilégio da narrativa médica sobre seus próprios fenômenos foi avassalado pelos mais diversos vieses, desencadeados a partir da contribuição do filósofo, trazendo à tona a ideia da loucura como produto cultural. Diante dessa abordagem, que desconstruía a naturalização da loucura como doença, abriu-se um mar de articulações teóricas e metodológicas que, apoiando as teorias foucaultianas ou questionando-as, se apropriaram da loucura como objeto, seja no campo da história, da filosofia, das demais ciências humanas ou da própria psiquiatria.

O impacto daquela e de outras obras de Foucault acabou por criar um cenário de reprodução ou de negação daquele aporte teórico. Mais recentemente, essa dicotomia vem sendo superada por meio de análises que têm retomado e problematizado os argumentos foucaultianos, ao mesmo tempo que os articulam com novas interpretações, abrangendo outros contextos temporais e geográficos. Rafael Huertas, médico psiquiatra, fundador da Red Iberoamericana de Historia de la Psiquiatría, é um dos autores que têm contribuído para esse debate. No seu livro de 2012, Historia cultural de la psiquiatría, oferece uma sistematização de algumas das correntes teórico-metodológicas que têm desenvolvido novas propostas para a historiografia da ciência psiquiátrica e de seus objetos.

Além de apresentar as análises de alguns autores e obras fundamentais para o campo, Huertas aponta uma agenda de temas, objetos, fontes e questões, demonstrando sua preocupação com a construção de saberes que possam enriquecer o debate historiográfico, mas também impactar e qualificar a clínica psiquiátrica. Ainda que a maioria das análises apresentadas diga respeito à historia da psiquiatria no contexto europeu – especialmente França e Espanha –, a clareza com que aborda os temas e questões relativos às obras nos permite refletir sobre a trajetória da ciência, dos seus saberes, atores e instituições no Brasil.

Segundo o próprio autor, muitas das reflexões que apresenta em Historia cultural de la psiquiatría vêm sendo por ele desenvolvidas desde 1991, quando o congresso “Penser la folie”, realizado em Paris, marcava os 30 anos da publicação deHistória da loucura – o que aponta a importância atribuída por Huertas à obra de Foucault. No entanto, apesar de reconhecer as inovações da literatura crítica inaugurada pelo pensamento do filósofo, em contraposição à historiografia memorialística, escrita pelos próprios psiquiatras que destacavam seus feitos, Huertas enfatiza o comprometimento ideológico de ambas as vertentes. Para ele, tanto os médicos que vangloriavam a evolução de sua própria ciência quanto os novos historiadores, que denunciavam os vínculos entre a produção científica e os preceitos culturais e morais de determinada época, incorriam em erros metodológicos, justamente por não esclarecer seus objetivos e comprometimentos, já que considera impossível anulá-los. Nesse sentido, Huertas defende que os objetivos de cada autor sejam sempre muito claros e explicitados nas obras e segue a análise das várias vertentes.

No primeiro capítulo, Huertas analisa as abordagens foucaultianas, a partir da produção do próprio filósofo, mas também de um dos seus principais seguidores, Robert Castel. Essas interpretações teriam sido marcadas pelo enfoque nos discursos de ordem e controle social. Para ele, a principal questão desses e de outros autores naquele contexto1 era o controle social. A loucura teria ganhado destaque justamente por ser o resíduo do que não se enquadrava nas sociedades liberais, desde o fim do Antigo Regime.

Rafael Huertas apresenta, então, muitas das críticas dirigidas a esse enfoque teórico, especialmente as voltadas para a centralidade do poder atribuído aos médicos psiquiatras. Além de apontar as fragilidades empíricas dessas abordagens foucaultianas, destaca a necessidade de um maior investimento na pesquisa sobre a resistência que se estabelecia em relação a esse poder e sobre os interesses diversos, incluídos os profissionais, que moviam esses atores sociais.

Duas críticas nos parecem, no entanto, mais relevantes nesse capítulo. A primeira delas diz respeito ao pilar científico das instituições psiquiátricas, negligenciado por Foucault e Castel. Em relação ao caso brasileiro, na perspectiva de uma revisão historiográfica, Gonçalves (2010) apresentou o modo como os médicos da corte do Rio de Janeiro tinham a preocupação frequente com o papel terapêutico e curativo do Hospício de Pedro II. A autora demonstra que, apesar de entraves, a reivindicação do papel terapêutico e científico da instituição sempre esteve em pauta nos debates médicos.

Outro aspecto que merece destaque está relacionado ao poder psiquiátrico. Apesar de criticar a visão mais geral da abordagem foucaultiana, que enxerga um poder médico estabelecido, com objetivo claro de dominação, Huertas enfatiza as matizações elaboradas pelo próprio Foucault. Aponta, então, os momentos da obra do filósofo em que o poder aparece de forma mais fluida, como uma rede de relações. Nessa rede de relações, sobressai a ideia de subjetivação da norma, já trabalhada por Huertas (2009), dando conta de como os pacientes pactuavam e corroboravam determinadas normas. Em dissertação de mestrado, trabalhamos essa perspectiva em relação à participação das famílias nas internações no Hospício de Pedro II, buscando dar conta da apropriação que a sociedade fazia daquele espaço (Ribeiro, 2012).

Já no segundo capítulo, Rafael Huertas trata de uma das principais releituras do contexto francês fora do viés foucaultiano, principalmente a partir das análises de Marcel Gauchet e Gladys Swain. Segundo Huertas, nesse caso, a quebra teórica em relação à literatura foucaultiana é justamente explorar um projeto terapêutico ou, ao menos, de conhecimento do subjetivo, que teria permeado a construção do pensamento psiquiátrico. Assim, demonstra como, por detrás da medicalização das paixões, do exercício de um determinado controle e das estratégias disciplinares, estava em voga uma preocupação com o sujeito da loucura.

Huertas nos apresenta detalhadamente o debate entre Gladys Swain e Foucault, apontando suas contribuições para a historiografia. Para o autor, a lente lançada sobre a subjetividade proporcionou outro panorama para a história francesa, opondo-se, pelo menos nas conclusões mais gerais, à tese foucaultiana. Se, para o filósofo, o mito fundador do alienismo teria justamente significado uma libertação para a posterior exclusão social, Swain demonstra como o pensamento pineliano inaugura uma nova concepção de indivíduo, a partir do momento em que o louco deixa de ser visto como “o outro” e passa a constituir o próprio eu moderno. Essa visão está relacionada à perspectiva defendida por Pinel de uma parcialidade da loucura, que contava com um “resto” de razão e seria, portanto, passível de cura. O debate brasileiro com essa perspectiva se apresenta nos trabalhos de Duarte (1986, p.57) e de Venancio (1993, p.123-124)

Esse viés analítico traz também uma nova visão sobre as instituições psiquiátricas e o tratamento moral. Para Swain, citado no livro aqui resenhado, o asilo, por meio do tratamento moral, objetivava a “reconstrução da individualidade do sujeito”, justamente pelo que lhe sobrara de racionalidade (p.56). Tanto nessa abordagem quanto nas críticas de Huertas à perspectiva foucaultiana, o que podemos destacar é uma tentativa de reconstruir o pensamento psiquiátrico, buscando entender em seus próprios meandros, o projeto terapêutico que estava sendo defendido.

A terceira linha teórica abordada por Rafael Huertas estaria diretamente relacionada à superação do debate internalismo x externalismo na história e na sociologia das ciências. Embora já fosse problematizada por autores como Nietzsche e Foucault, a ideia da verdade científica como convenção e contingência ganhou força com o Programa Forte em Sociologia das Ciências, representado pelas obras de Steven Shapin (1999), David Bloor e Barry Barnes. À medida que as normas universais são questionadas como padrões puros da produção científica, emergem aspectos de foro social, cultural e, principalmente, profissional, que ganham relevo nesse viés analítico.

A contribuição de Jan Goldstein sobre as políticas de patronagem na consolidação profissional do alienismo francês é uma das mais enfatizados por Huertas. A patronagem configuraria estruturas informais nas quais um profissional de reconhecida projeção na comunidade científica se torna defensor de discípulos que, em troca, disseminariam suas ideias, sendo, portanto, decisiva para o sucesso ou fracasso das teorias científicas (p.76). Essa abordagem é relevante como agenda teórica posto que aponta a importância de círculos sociais e interesses profissionais para a produção científica. O destaque a esse tipo de interesse faz ainda mais complexa a análise sobre as teorias e interpretações científicas que se tornam consensuais em determinados contextos. Ian Dowbiggin, segundo Huertas, teria demonstrado, por exemplo, como as teorias hereditárias foram imprescindíveis para a legitimação profissional em um momento de crise de legitimidade dos manicômios, uma vez que remetiam o fracasso à incurabilidade da loucura.

Esse tipo de abordagem nos parece relevante e merece destaque especial para as análises sobre a construção do Hospício de Pedro II e a consolidação da psiquiatria no Brasil. Embora a ideia de patronagem, em Goldstein, apareça mais relacionada aos círculos científicos, trazer os interesses profissionais para o debate pode ser interessante, especialmente se articulados a outros círculos sociais. Como alguns autores têm analisado (Engel, 2001Meyer, 2010Ribeiro, 2012;Teixeira, 2012), o Hospício de Pedro II tem uma carga simbólica bastante expressiva em relação ao seu vínculo com a corte imperial e a Irmandade da Misericórdia. Parece-nos que o entrecruzamento dos círculos científicos, caritativos e senhoriais da corte teve papel definitivo na consolidação daquela instituição e do saber psiquiátrico ao longo da segunda metade do século XIX.

No quarto capítulo, Huertas elabora uma análise sobre o construtivismo e a ideia da loucura como construção social. Embora esse aspecto já aparecesse em Foucault e alguns de seus contemporâneos e também tangencie o questionamento sobre a verdade científica, o autor trata mais especificamente da elaboração dos diagnósticos. Primeiro, ele apresenta Charles Rosenberg (1977) e sua teoria do enquadramento das doenças, na qual são tratadas como acontecimentos biológicos, mas também como repertórios de construções verbais que refletem o contexto social e cultural em que os diagnósticos são elaborados.

No entanto, o grande avanço em termos de possibilidades de análise, segundo Huertas, está na abordagem de Ian Hacking e sua aproximação com as teorias de rotulação. A novidade aqui seria a ultrapassagem do estudo dos diagnósticos, conforme proposto por Rosenberg, para estudar-se o impacto que as classificações e nomeações das doenças promovem sobre os indivíduos. O making of people de Hacking busca dar conta do processo de constituição de uma nova classe de indivíduos, a partir do momento em que um grupo é diagnosticado (rotulado). Ao mesmo tempo, a nova classe de indivíduos interagiria com a produção do conhecimento sobre si, por meio do looping effect, ou efeito looping. O destaque para esse aspecto interativo entre especialista, diagnóstico e rotulado, enfatizando a violência dos diagnósticos e da estigmatização da loucura, é a contribuição crucial dessa linha de trabalho.

Em seguida, no capítulo cinco, o autor trata basicamente da proposta de história conceitual da psiquiatria, elaborada por Germán Berrios, corroborando a importância desse tipo de abordagem para transformações na clínica psiquiátrica atual. Depois de apresentar um histórico da psicopatologia descritiva no século XIX, Huertas corrobora a argumentação de Berrios de que, nos dias atuais, haveria certa degradação das construções teóricas por parte da clínica psiquiátrica, que estaria rigidamente vinculada a classificações impostas por manuais e compilações de diagnósticos.

Na agenda metodológica da história conceitual, a análise das teorias descritivas das psicopatologias deveria estar articulada e complementando as análises de filósofos, sociólogos e historiadores. Berrios critica a postura de muitos dos cientistas sociais pelo fato de eles se apropriarem da loucura sem se aprofundarem nas questões conceituais a ela relacionadas. Embora não apareça explicitamente na análise de Huertas, o enfoque nas questões conceituais tem sido explorado por autores da história de outras ciências, como pelo próprio Bruno Latour, citado em outros capítulos.

A proposta de articular conteúdo científico e “ruído de fundo”, como chama Berrios, é uma das grandes bandeiras dos dois autores. Para eles, essa aproximação nos estudos históricos seria a chave para trazer as mesmas reflexões para o presente. A partir do diálogo entre psiquiatras e historiadores sobre os conceitos psicopatológicos do passado, seria possível estimular o aprofundamento e a reflexão teórica entre os estudantes de psiquiatria. A proposta de Berrios e Huertas se apresenta promissora, mas também corre o risco de retomar o debate internalismo/externalismo que parece presente na ideia do “ruído de fundo”, de Berrios, conforme apresentada por Huertas: como se existisse algo de universal e puro na ciência, mas que estaria sujeito a deturpações por fatores externos. Em perspectivas mais recentes da história das ciências, incluindo outras apresentadas no mesmo livro, fica claro que não existe um ruído de fundo, mas que o contexto social e cultural é totalmente decisivo na conformação dos próprios pressupostos científicos, que, por sua vez, também conformam o mundo.

Com relação à história da psiquiatria no Brasil, Facchinetti (2010) dialoga com essa bandeira ao reunir uma série de análises históricas sobre diagnósticos debatidos por psiquiatras brasileiros nas primeiras décadas do século XX. Adotando suportes teóricos diferenciados, os trabalhos escritos por historiadores, antropólogos, psiquiatras e psicanalistas analisam conceitos científicos observando-os na sociedade; a sociedade certamente podendo ser expressa de diferentes formas: ela pode ser as posições políticas e de prestígio social adotadas pelos médicos em questão, exatamente devido à importância desses atores na conformação de uma elite com projetos para a nação brasileira; pode ser também as representações sociais sobre o humano e sobre o estatuto de seus estados físico, mental e moral; ou pode estar expressa nos mecanismos de controle coletivo.

No capítulo seis, Huertas apresenta a relação entre a exploração de fontes documentais relativamente inéditas, que são as histórias clínicas de internos, e as diversas abordagens teóricas delas decorrentes. O autor demonstra como histórias clínicas, livros de registro, além de cartas e outros documentos que muitas vezes são encontrados junto desses registros, e outras fontes que deem conta do cotidiano das instituições psiquiátricas, podem contribuir para a construção de novas questões. Para ele, os primeiros trabalhos com esse tipo de material já apontam perspectivas interessantes para pensar a diferença entre o que os médicos defendiam em seus tratados e artigos científicos e o que era executável na prática.

O mais interessante da análise de Huertas nesse capítulo é a diversidade de possibilidades que ele apresenta em relação às fontes. A primeira grande chave interpretativa seria a da história vista de baixo, justamente pela polifonia dessecorpus documental, que daria conta da vida cotidiana e de diversos atores sociais, e não apenas dos teóricos mais renomados da psiquiatria. Por conta dos dados seriados que podem ser mapeados, os registros clínicos são apontados como ferramentas interessantes também para estudos demográficos e para a história social. Podem ser valiosos também para a chave do controle social, além dos estudos de gênero.

Mesmo para a história conceitual da psiquiatria, o registro seriado de diagnósticos e as transformações nos modelos das histórias clínicas aparecem como aspectos inovadores nos estudos sobre os pressupostos teóricos. Por meio da análise em recortes temporais mais longos, seria possível mapear importantes transformações, tanto das classificações diagnósticas quanto da terapêutica posta em prática.

Ainda em relação às fontes clínicas, Huertas destaca o viés consagrado por Roy Porter, que aborda o ponto de vista dos pacientes. Para esses autores, essas fontes são inovadoras por permitir, direta (cartas ou narrativas transcritas) ou indiretamente (pela fala do médico), abordar a visão do louco sobre a loucura e a sua própria experiência no manicômio. Assim, entrando no cotidiano da instituição, seria possível enxergar os pacientes e suas famílias, até então silenciados pela fala da autoridade médica.

No Brasil, as abordagens com esse tipo de material têm se ampliado consideravelmente, contribuindo muito para a historiografia. Maria Clementina Pereira Cunha (1986) inaugurou esse projeto teórico-metodológico, fazendo uma história social do Hospício do Juqueri, justamente amplificando a fala e o olhar do louco. Mais recentemente, temos tentado explorar os arquivos médicos do Hospício de Pedro II e reconstruir o perfil dos alienados, além de mapear as redes sociais que eram ali manejadas (Ribeiro, 2012). Cassília (2011) utilizou as fontes clínicas da antiga Colônia Juliano Moreira para demonstrar o modo como pacientes daquela instituição pensavam sua própria loucura e sua internação a partir da sociedade em que viviam. Wadi (2006) reconstruiu trajetórias de vida com a documentação do Hospício São Pedro. Lorenzo (2007)mapeou aspectos do controle social com base nos livros de entrada da Santa Casa de Misericórdia do Rio Grande do Sul. Muitas outras pesquisas têm usado esse material como fonte acessória.

Concordamos aqui com Rafael Huertas em relação aos problemas metodológicos encontrados para o trabalho com esse tipo de material, especialmente em relação às condições de preservação e organização. No entanto, pelo menos no Rio de Janeiro, temos assistido a iniciativas interessantes, mas ainda lentas, de preservação dessa memória.

No sétimo e último capítulo, Rafael Huertas apresenta um compêndio das contribuições analisadas anteriormente, propondo sua questão-chave, que é a articulação entre história da psiquiatria e clínica psiquiátrica. O grande fio condutor da obra de Huertas é a preocupação com a construção de um novo modelo de clínica, cuja solução passe pela pesquisa histórica. Segundo ele, a clínica vem se conformando como mera reprodutora de práticas, das quais está ausente a reflexão teórica e, logo, o conhecimento das várias determinações sociais, culturais, históricas e biológicas ali implicadas.

Para Huertas, a necessidade exponencial dessa reflexão estaria relacionada à frágil objetividade dessa ciência e, especialmente ao objeto incerto, que é o ser humano e suas condutas. Esse fator tornaria a psiquiatria mais vulnerável às condições políticas, sociais e econômicas. Se mesmo os estudos históricos das ciências chamadas “duras” têm demonstrado essa vulnerabilidade, de fato, talvez essa seja uma preocupação ainda maior, tendo em vista a complexidade do objeto.

Apesar de defender essa agenda de pesquisa, o autor de Historia cultural de la psiquiatría ressalta os problemas metodológicos dela decorrentes, especialmente aqueles relacionados ao risco do anacronismo, uma vez que defende o passado como ferramenta de transformação do presente. No entanto, ele sustenta que existiriam dois tipos de anacronismo. O primeiro deles, que seria totalmente prejudicial, é julgar a ciência do passado partindo das categorias do presente. Já o outro anacronismo, do qual não poderíamos fugir, ele relaciona ao anacronismo estrutural de Marc Bloch, já que sempre analisaremos o passado imbuídos do universo mental do presente.

Nesse sentido, Huertas defende uma teoria da prática, ou seja, que o olhar para o passado seja feito a partir de perguntas do presente, mas que isso sirva para dotar a prática de um aporte teórico que seja transformador. Ainda que, de certa maneira, esse utilitarismo possa ser visto com certa estranheza por nós, historiadores, não podemos deixar de concordar com o autor quando defende que esses objetivos estejam claros. E, nesse quesito, Huertas não deixa a desejar, apresentando com bastante clareza o seu projeto. Aliás, o próprio autor destaca que os objetivos de médicos e historiadores sempre serão diferentes, justamente pelo universo mental em que estão inseridos. No entanto, é inegável que a interação dinâmica entre historiadores e psiquiatras, por ele defendida, tem belíssimos frutos a gerar.

A obra de Rafael Huertas tem muito a contribuir para os historiadores e para os clínicos em formação. Para os primeiros, os vieses teóricos e metodológicos didaticamente apresentados são uma importante e facilitadora porta de entrada nos estudos sobre a história da psiquiatria. Para os clínicos, o livro pode ser ponto de partida para as muitas reflexões propostas por Huertas. Os exemplos perfeitamente escolhidos, tanto para demonstração dos autores quanto para seus questionamentos e proposições, transitando entre quase dois séculos de história, abrem um mar de possibilidades para quem quer que se interesse pelas temáticas da mente.

Referências

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Notas

1 Robert Nye (2003) também comenta a relação entre esse tipo de abordagem e a esfera política e cultural contestatória dos anos 1960-1970.

Daniele Corrêa Ribeiro – Doutoranda, Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz; coordenadora de História e Memória, Centro de Estudos/Instituto Municipal Nise da Silveira. E-mail: [email protected]

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La ciencia del alma: locura y modernidad en la cultura española del siglo XIX – NOVELLA (HCS-M)

NOVELLA, Enric. La ciencia del alma: locura y modernidad en la cultura española del siglo XIX. Madrid: Iberoamericana; Frankfurt: Vervuert, 2013. 224p. Resenha de: FREITAS, Ricardo Cabral de. Novas percepções sobre a loucura e os primeiros passos da psiquiatria na Espanha. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22 n.2 Rio de Janeiro Apr./June 2015.

De autoria de Enric Novella, médico, filósofo e pesquisador da Universidade de Luxemburgo, a obra procura dar conta dos primeiros passos da psiquiatria na Espanha. Tomando como ponto de partida a mudança de atitude da opinião pública do país em relação à loucura, ocorrida na esteira da ascensão da ordem liberal nos anos 1830 e 1840, Novella analisa a presença crescente de discursos sobre a medicina mental em vários ramos da cultura letrada espanhola e o modo como, na segunda metade do século, esses mesmos discursos se tornaram parte de uma ordem moral de teor progressivamente autoritário e universalizante.

O livro se divide em quatro capítulos, e, ao fim, o leitor pode contar com um índice onomástico bastante útil que dá conta da variedade dos temas abordados no texto. O primeiro capítulo, “Ciudadanos y locos”, é dedicado a uma breve análise da cultura letrada espanhola desde o final do século XVIII, demonstrando a influência do romantismo sobre a mudança de percepção da loucura em curso desde então. No segundo, “Los paisajes del alma”, Novella explora a ascensão do liberalismo espanhol para mostrar como a noção de individualidade que se afirma a partir da década de 1830 contribui para disseminar de modo definitivo o interesse pela loucura e pelas ciências da mente no país. No terceiro, “La medicina del espíritu”, a ênfase recai sobre os debates médicos da época e a presença marcante de questões relativas à alma e às paixões, como forma de tentar desvendar seus efeitos sobre o físico e o moral humanos. O quarto e último capítulo, “El malestar en la cultura”, aponta como a assimilação dessas noções de enfermidade, loucura e desordem pelo discurso médico espanhol se transmutam num diagnóstico pessimista da civilização, combatido através de um discurso marcadamente moralizante e repressor.

A narrativa se desenvolve a partir de um estreito diálogo com as transformações sociopo-líticas que marcaram a vida intelectual do país na primeira metade do Oitocentos, sendo constantes as referências a romances, relatos de escritores da época e debates na imprensa médica que evidenciam o crescente interesse do público letrado espanhol pelo psiquismo. Segundo o autor, o louco era cada vez menos representado como um indivíduo completamente alheio à realidade e destituído de humanidade, e passava a ser visto como um indivíduo enfermo que necessitava de ajuda. Sobre esse aspecto, é sintomático o horror dos letrados espanhóis ao constatar o péssimo tratamento dispensado aos loucos do país, como descrito no primeiro capítulo.

De certo modo, podemos dizer que o processo explorado por Novella é uma expressão mais localizada das reformulações das concepções sobre a loucura ocorridas no século XVIII, como apontadas por Foucault (2012) em História da loucura na idade clássica. Ao deixar de ser vista como um estado irreversível de completo descolamento da realidade, a loucura passa a ser entendida como uma desordem das ideias, passível de reversão mediante intervenção externa. Apontada pela historiografia da psiquiatria como condição fundamental para o alienismo, essa transformação, em outras palavras, marca o fim do entendimento da mente como um domínio inacessível e abre espaço para sua apropriação pelo discurso médico, num processo que tem como um de seus principais marcos o tratamento moral pineliano na França da virada do século XVIII para o XIX.

No contexto espanhol, essa transformação só tomaria contornos sociais e institucionais mais definitivos nas décadas de 1830 e 1840. Para o autor, a morte de Fernando VII em setembro de 1833 põe fim a uma longa crise política no país e marca o sepultamento defini-tivo do antigo regime espanhol, abrindo caminho para o assentamento das bases de um regime de caráter liberal:

Assim, os anos e as décadas seguintes certificaram a progressão de uma série de fenômenos tão significativos da transição ao mundo contemporâneo, como a substituição do Estado patrimonial do absolutismo por uma monarquia constitucional sustentada em fórmulas de soberania compartilhada; a emergência de uma incipiente economia capitalista e a implantação de um modelo classista de organização social, baseado na hegemonia normativa dos princípios de liberdade, igualdade e, sobretudo, propriedade (p.78).

Para o autor, é somente a partir dessa entrada “tardia” da Espanha na modernidade que se forma uma conjuntura favorável à difusão de novas concepções sobre a relação mente/corpo no país, caracterizada pela reunião de quatro elementos fundamentais: (a) a paulatina extensão dos ideais democráticos, filantrópicos e emancipadores articulados na opinião pública liberal; (b) crescente projeção e problematização cultural de uma subjetividade dividida entre o cultivo de si mesma e sua constituição como o objeto de um conjunto de novas doutrinas e disciplinas científicas; (c) circulação dos pressupostos conceituais, ideológicos e culturais das novas ciências da mente; (d) ampla percepção de uma crise permanente na cultura moderna que exigia uma profunda regeneração moral e uma ilimitada intervenção dos médicos na regulação dos assuntos humanos (p.42).

Em parte, o interesse do público letrado espanhol pela medicina mental está relacionada à afirmação da sensibilidade romântica naquele ambiente intelectual, expressa num modelo de individualidade ligado às ideias liberais e marcado por uma preocupação maior com a “verdade interior” e a “experiência individual”. A afirmação desse interesse pelo que Novella chama de “esfera moral” foi sacramentada na aprovação pela rainha Isabel II do “Plano General de Estudios” em 1845. O plano, proposto pelo ministro Pedro José Pidal, criou a disciplina “Princípios de psicologia, ideologia y lógica”, que marca a entrada definitiva dos debates psicológicos no ensino secundário espanhol, em detrimento da religião e da moral.

Nesse amplo contexto, o autor identifica uma circulação alargada de teorias médicas que eram debatidas com força em outros círculos letrados europeus desde o fim do século XVIII – sobretudo na França – a exemplo da frenologia e do magnetismo. Destaca-se também a proliferação dos manuais e obras de inspiração espiritualista, representados por Elementos de psicologia (1848), de Pedro Felipe Monlau, que se tornou o livro de psicologia mais recomendado durante os governos isabelinos.

Segundo Novella, esse estado de coisas na cultura letrada espanhola desse período marca a aceitação definitiva do projeto ilustrado de reconhecimento da consciência. Assim, o saber médico apresenta-se cada vez mais como um saber de caráter antropológico, o que leva a uma ordenação da moral – pelo menos no plano discursivo – direcionada pela ciência. Um sintoma desse novo cenário é a entrada em território espanhol dos postulados da science de l’homme francesa, que passa a impregnar vários escritos médicos espanhóis da primeira metade do Oitocentos. A abordagem holística sobre o homem, característica fundamental desse discurso, contribui para o teor fortemente pedagógico dessas obras, fundamentadas na noção de que só o profundo conhecimento da natureza humana poderia gerar uma sociedade justa.

Ao final, Novella (p.165) procura mostrar como, ao longo do século, essa retórica médica renovada se transmuta no que chama de “moralização da medicina, em vez de medicaliza- ção da moral”. Diante da percepção de uma profunda crise social, na qual a civilização era apontada pelo discurso conservador espanhol como um “um manancial de excitações cerebrais” (p.165), a medicina se apresenta como instância capaz de intervir em prol da manutenção da coesão social. Por meio dos acalorados debates em torno dos efeitos da imaginação, da vontade e das paixões sobre a condição física e moral dos indivíduos, Novella demonstra o progressivo avanço médico sobre os processos de definição de padrões de conduta moral aceitáveis, de teor progressivamente universalizante.

O epílogo foi reservado para um esboço dos caminhos tomados pela psiquiatria espanhola a partir da segunda metade do XIX. Chama a atenção o fato de que só nos últimos parágrafos, Novella (p.177) dá pistas sobre as resistências enfrentadas pelo nascente discurso psiquiátrico espanhol, citando um único caso no qual médicos foram presos por ordem do governador civil de Valência após terem internado uma mulher pertencente a uma família abastada da cidade, sob o diagnóstico de “monomanía razonante”. Sem dúvida, a presença de controvérsias dessa natureza ao longo do livro teria sido de grande valia para dar a devida dimensão do alcance das transformações discursivas tratadas pelo autor.

Por outro lado, o recurso à produção literária de época – além das teses médicas – foi fundamental para dimensionar o alcance que o vocabulário do psiquismo teve em setores variados da elite letrada espanhola no período. Novella é bem-sucedido ao mostrar que a mudança de postura em relação à loucura foi um processo amplo, que apesar de dialogar intensamente com a esfera médica, nunca se limitou a ela.

Por fim, apesar da ênfase nas décadas centrais no século XIX, o autor mostrou preocupação em expor as conexões da nascente psiquiatria espanhola com o contexto iluminista das últimas décadas do século XVIII. Em certa medida, as referências à science de l’homme francesa localizam o início da psiquiatria na Espanha na esteira das concepções sobre a natureza humana e a relação corpo/alma forjadas nos debates médicos franceses a partir da segunda metade do Setecentos. São esses debates que, ao conceber o homem a partir da noção de “sensibilidade”, turvam os limites entre os domínios da alma e do corpo, rompendo com a intocabilidade da alma, tal como foi definida pela tradição cartesiana.

Ao analisar o alienismo a partir dessa perspectiva Novella oferece uma abordagem mais abrangente, que não se contenta em tomar o tratamento moral pineliano como ponto partida para o nascimento da psiquiatria. Além disso, ao trazer essas questões para um contexto ibérico, contribui para a compreensão de assunto ainda pouco explorado.

Referências

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva. 2012. [ Links ]

Ricardo Cabral de Freitas – Doutorando do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. [email protected]

A incrível história de Von Meduna e a filha do sol e do equador | Edmar Oliveira

Edmar Oliveira médico psiquiatra piauiense nos traz, em sua narrativa, seus percursos ao acompanhar o programa de saúde mental do Piauí. Edmar aborda a história do sanatório Von Meduna junto à trajetória do médico Clidenor Freitas Santos, importante nome da psiquiatria na história do estado. A experiência do trabalho de implantação do programa de saúde mental no Piauí foi transformada em livro e nos possibilita conhecer um pouco do que foi a constituição da psiquiatria na capital. Teresina foi uma das primeiras capitais brasileiras a ter uma “casa de doidos”. Ladislas Joseph Von Meduna, inventor da convulsão provocada pela medicação cardiazol, inspirou o nome do hospital psiquiátrico de Teresina, mais conhecido como sanatório Von Meduna.

Inicialmente o autor apresenta uma pequena introdução fazendo uma incursão histórica local, referenciando à composição étnica do Piauí, citando a presença dos “dois Domingos”: Domingos Jorge Velho e Domingos Afonso Mafrense, tidos pela historiografia tradicional e mais conservadora como heróis locais. Edmar ressalta a necessidade de repensarmos tal afirmação a esses personagens, uma vez que, dentre muitas de suas ações pelas terras dos meio-norte brasileiro, juntaram forças pra exterminar parte dos índios que ocupavam esse território. Dentro desta retomada histórica, também cita o importante papel da miscigenação junto à composição étnica do estado.

A criação do primeiro centro psiquiátrico do Piauí foi um feito do médico Areolino de Abreu, que teve a ideia de fundar uma casa para loucos, batizando esse centro como “asilo de alienados”. Mas, como o próprio texto aponta, a criação desse centro psiquiátrico não aconteceu devido à preocupação com os alienados – pois a alienação mental não parecia ser compreendida como um problema de saúde pública na época – mas sim com intuito de aferir uma condição asséptica à cidade e, concomitantemente, com a ambição de tornar Teresina uma cidade civilizada e “limpa”, servindo também para enaltecer o nome de seu criador, Areolino de Abreu.

Em 1940, o primeiro psiquiatra do Piauí, Clidenor Freitas, assume a direção do asilo e elabora um relatório denunciando as condições em que o mesmo se encontrava, propondo melhorias de acordo com o conhecimento da época. Entre os métodos defendidos pelo novo médico ganha-se destaque a retirada das correntes dos pacientes, substituindo esta prática pela inserção de métodos novos, como a malarioterapia (inoculação do vírus da malária em pacientes com demência paralítica causada pela sífilis) criada pelo cientista J. Wagner Jauregg, a insulinoterapia e a convulsão cardiazólica, de Von meduna.

Clidenor Freitas procurou modernizar o tratamento psiquiátrico no estado desde os métodos utilizados e até mesmo se preocupou em alterar o nome da casa de tratamento na tentativa de redimensionar o conceito que o nome impelia à instituição e sua prática, substituindo o nome “Hospital de Alienados” para “Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu”, já que, segundo ele, nem todo alienado podia ser considerado louco.

Em 1954, Clidenor inaugura o sanatório Von Meduna. Este mesmo foi construído no terreno de sua propriedade bem longe do perímetro urbano da capital. Outro marco na psiquiatria piauiense desta época foi a substituição dos tratamentos de choques insulínico e cardiazólico pelo aparelho de eletrochoque. A criação do Meduna foi considerada um marco, enquanto dispositivo modernizador dentro do movimento sociopolítico que engrenava os processos civilizatórios da cidade.

O sanatório Von Meduna, em Teresina, era a própria “encarnação da loucura”, dizia o autor, mas também trazia consigo os desejos e os projetos de trabalho e vida almejados pelo seu criador. Edmar Oliveira reproduz alguns trechos do discurso de inauguração e retratações pessoais feitos por Clidenor Freitas.

Carta aos meus filhos:

Quando houverdes atingindo a maturidade da vida, saberia compreender, em profundidade, os sentimentos que nessa data dominam o vosso pai. Sabereis que foi constante labor consciente de um homem que decidiu agir para concretizar um plano objetivo, real e tangível, destinado a amparar no conforto e na segurança, aqueles que perderam a razão (…) (FREITAS apud OLIVEIRA, 2010, p.43).

Em outro momento, Clidenor procura justificar os enormes gastos feito para a construção de sua obra maior, com o testemunho de Câmara Cascudo presente na inauguração.

Materialmente seu valor atual e bem elevado com, diria como dizem os medíocres para ‘fazer a independencia’ de um homem (…). O que importa não são os milhões que vale o sanatório, mas o objetivo a que ele se destina, (FREITAS apud OLIVEIRA, 2010, p.45).

Quatro anos após a inauguração do sanatório, Clidenor Freitas se envolve com a vida política e com outros empreendimentos empresariais. Durante esse tempo a direção do sanatório fica nas mãos de seu irmão mais novo. Clidenor Freitas morreu aos 87 anos, e, como o próprio autor diz, é necessário ressaltar sua importância na constituição da psiquiatria piauiense, anunciando novos métodos de tratamentos, defendendo a condição humana, considerando outras tentativas de inovações de cuidados para a época.

Alinhado a essa descrição histórica, Edmar Oliveira também não se exime de promover um propício debate sobre a crise de desumanização que os hospícios estão sujeitos: “por mais que se humanize um hospício ele tende a se desumanizar na sequencia, basta só um recorte de tempo”.

Menos de dez anos depois das reformas implantadas no hospício em Teresina, os pacientes voltaram a ser tratados de acordo com sua posição social. Muitos considerados indigentes, tratados de forma desumana, vivendo em ambientes com péssimas condições, tanto na área estrutural quanto na parte da alimentação, higiene, no isolamento total. Posteriormente com administração de Carlos Alves Araújo essa situação é revertida, melhorando a condição dos “indigentes”.

Em parte intermediária da obra, o autor promove um debate sobre a “competição” comercial que o capitalismo moderno suplantou nas “empresas médicas do estado”. Nesse sentido, Edmar menciona a restrição comercial que a “empresa” Von Meduna sofreu ao não participar das competições mercantis das empresas médicas do sistema de saúde de Teresina. Pois o esse sistema se tornou um ramo empresarial de grande porte à custa da maioria da população do estado, que dependeu na maioria das vezes do atendimento médico da capital. Nesse contexto ele cita como exemplo atual do Sistema Único de Saúde (SUS) que também tem suas inúmeras deficiências, até mesmo por não suportar a demanda de dependentes. Mas, por outro lado, o SUS permitiu que os hospitais Areolino de Abreu e Von Meduna dividissem a clientela de maneira igualitária, longe da concorrência das empresas médicas.

Entre as discussões propostas por Oliveira estão também os apontamentos que permeiam “novas” compreensões acerca do tratamento mental. Alguns pensadores como Foucault, Castel e Basaglia contribuíram pra que houvesse uma reforma no campo psiquiátrico no Brasil, entre os princípios que regem a reforma está a “devolução” ao paciente internado os direitos fundamentais de pessoa humana, devido a situação degradante dos sujeitos que são longamente internados e esquecidos. No Piauí, a luta por melhoria da condição humana dos pacientes, só irá se manifestar no inicio do século XXI, foi apenas em 2003 que pela primeira se comemorou “o dia da luta antimanicomial”.

A partir de 2004, surgiu o “serviço substitutivo” que ficou conhecido como Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSin), esse serviço tornou-se passivo de determinadas críticas por trazer consigo os mesmos vícios das políticas manicomiais. Em 2005, foi aberto o CAPS Norte e o CAPS Leste, essas instituições tinham serviços contrários ao modelo hospitalar das casas Areolino de Abreu e do Von Meduna.

A diminuição dos leitos implantados pelo ministério da saúde desencadeou na implantação de serviços residenciais de terapia em comunidades. Enquanto isso, os hospitais Areolino de Abreu e Von Meduna continuavam a funcionar sem tomar conhecimento dos novos métodos implantados. Esses novos serviços, segundo o autor, proporcionavam o enfrentamento da doença mental de maneira mais saudável e ampla. A utilidade dos hospitais Von Meduna e o Areolino de Abreu foram questionados por uma nova política de assistência pública.

Nos últimos capítulos, Edmar relata de maneira bem pessoal a sua volta aos sanatórios Areolino de Abreu e Von Meduna como consultor do ministério da saúde, enfatizando o fechamento do Von Meduna. A situação encontrada neste recinto não revelava nem de longe o esmero próximo àquele da época de sua fundação. Para justificar o “triste fim” que o hospital sofreu, Edmar Oliveira fez menção ao discurso escrito de inauguração do Von Meduna, feito por seu criador, Clidenor de Freitas, onde assevera que uso do dinheiro só fazia sentido a uma causa nobre. (OLIVEIRA, 2010, p.111)

Continuando, Edmar registra suas participações nas conferências nacionais de saúde mental, e os debates em relação ao fechamento do Von Meduna, situação que gerou muitas discurções, já que havia uma preocupação por algumas partes em relação ao destino dos “loucos” que lá estavam. Entretanto para Edmar Oliveira o fechamento do hospital Von Meduna significava a libertação do antigo regime manicomial e assim ele conclui com suas palavras:

Não se pode construir o existir quando é seqüestrado o seu lugar no mundo. E hospital não é morado de ninguém. Von Meduna retira-se sem fazer falta a uma cidade que passou, a saber, conviver e a tratar seus loucos na diversidade e na acolhida que os novos tempos anunciam… (OLIVEIRA, 2010, p. 132)

O fechamento do Von Meduna ainda foi alvo de questionamentos, o que ocasionou em dificuldades na consolidação dos novos modelos de tratamento psiquiátrico. Edmar oliveira encerra seu livro falando dos loucos que escaparam das ações psiquiátricas de Teresina, e que fazem parte da memória dos filhos da terra, também relata de maneira bem tocante à história dos loucos que estão na memória de sua infância, citando seus três preferidos: Manelão, Bibelô e Nicinha “eles eram da cidade, das ruas, das aglomerações. Nossos. Sem eles Teresina não tem sentido pra mim”.

A obra de Edmar Oliveira não se caracteriza apenas pela descrição histórica das instituições médicas e o tratamento da doença mental do estado. A obra é também uma abordagem crítica sobre as condições de tratamento dos sujeitos que são atravessados por uma maneira distinta de ver o mundo. O livro, em sua plenitude, é composto por uma visão crítica que compõe um posicionamento antimanicomial. Nele também observamos uma incursão pela história do Piauí, e da cidade capital, Teresina, palco de muitos dos personagens desterritorializados e marginalizados que fizeram parte da vida do autor. É um livro que também tematiza sobre experiência pela cidade e as memórias que retratam esse passado.

Referência

OLIVEIRA, Edmar. A incrível história de Von Meduna e a filha do sol e do equador. Teresina: oficina da palavra, 2010.

Valéria Santana Sousa – Discente do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí.


OLIVEIRA, Edmar. A incrível história de Von Meduna e a filha do sol e do equador. Teresina: oficina da palavra, 2010. Resenha de: SOUSA, Valéria Santana. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.2, n.1, p. 325-329, 2013. Acessar publicação original [DR]

 

A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura – WADI (RHR)

WADI, Yonissa Marmitt. A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura. Uberlândia: EDUFU, 2009. 464 p. Resenha de: CONEGLIAN, Lucimar. Revista de História Regional v.15, n. 2, p.283-287, Inverno, 2010.

A História de Pierina: subjetividade, crime e loucura é resultado do trabalho de doutorado de Yonissa Marmitt Wadi, professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. A autora tem como temáticas de pesquisa: história da loucura e da psiquiatria; cultura, gênero e memória; sociedade e desenvolvimento regional; e práticas culturais e identidades.

Pierina Cechini – a protagonista do livro – nasceu no ano de 1880, foi a sexta fi lha de Antonio e Maria, italianos imigrantes. Na manhã da segunda feira, dia 26 de abril de 1909, no dia da missa de sétimo dia da morte de seu pai, ela cumpriu a promessa que vinha fazendo há alguns meses: matou sua fi lha de dezessete meses de idade através do afogamento em uma tina de lavar roupa. Esse ato desencadeou no indiciamento de Pierina e posteriormente sua internação no Hospício de São Pedro, de Porto Alegre.

Mas o que traz de relevante Pierina para que, quase um século depois de sua existência, estimular uma pesquisadora a produzir uma tese de doutorado sobre sua história? Nas palavras de Wadi, o resgate da história de “uma mulher singular” mostra “quão amplas e diversas, confl itantes, tensas e controversas podem ser as dimensões e possibilidades de uma vida” e contribui “na tarefa de desvelar como é múltiplo o social e quanto podem ser enganosas as impressões sobre a ‘importância’ de certos sujeitos sociais” (p. 25). Pelo olhar de Wadi, Pierina oportuniza a descrição da vida quotidiana de uma mulher pobre, fi lha de imigrantes italianos, que viveu nos primeiros anos do século XX, no município de Garibaldi, no Estado do Rio Grande do Sul.

Fato interessante a destacar é que, ainda que o livro tenha rendido 464 páginas, as fontes diretamente ligadas à biografada foram poucas: o registro policial de um crime e algumas cartas escritas por Pierina quando interna em um hospital psiquiátrico. Com essas parcas fontes, associada a uma farta pesquisa histórica sobre a dimensão de gênero e de loucura naquele período, a autora desvela com maestria a condição do feminino das imigrantes. A pesquisa contribui com informações sobre diferentes aspectos do viver dos imigrantes no início do século XX: a forma de organização da família; as condições econômicas; as questões de distribuição das terras; o acesso aos serviços de saúde; a prática da medicina convivendo com as práticas e crendices populares; o tratamento mental nos hospícios da época.

O livro está dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado Caminhos, a autora se aplica na explicação de como era o quotidiano de trabalho dos imigrantes italianos, especialmente das mulheres. Contempla como se dava a relação das famílias com a terra e as distribuições dos lotes feitas pelo governo do Rio Grande. Ainda, nele é apresentada a história pessoal da protagonista – a escolha do noivo, o casamento e as relações com o marido, o nascimento da fi lha.

Wadi contextualiza muito bem aspectos do viver quotidiano da biografada e muito do que está contido nesse capítulo refere-se às possibilidades de existência naquele período histórico. Seguindo Ginzburg (1989), a autora reconstitui a biografi a de Pierina a partir da história de outros “homens e mulheres do mesmo tempo e lugar” (p. 48).

Como a história de tantas outras mulheres suas contemporâneas, Pierina trabalhava nas lidas domésticas e em serviços ligados a terra, cumprindo o papel cultural dado à mulher naquele período histórico. Cabia às mulheres fazer as tarefas domésticas acrescidas de algumas das tarefas na lavoura: o preparo, o plantio e o cuidado das plantações. As tarefas domésticas incluíam não apenas a arrumação da casa e o preparo dos alimentos, mas também a confecção das roupas, do sabão, do artesanato, entre outros, contribuindo, sobremaneira, com a economia doméstica. Sobre esse período de sua vida, Pierina registra, nas suas cartas, o desconforto e o desencanto de viver a vida de uma mulher pobre no início do século XX.

No Capítulo 2, Loucuras…, a autora problematiza aspectos sobre a ‘perturbação e sofrimento’ de Pierina. Existia difi culdade de compreensão, por parte dos familiares e da comunidade de entorno, no entendimento de suas queixas relacionadas ao desgosto e tristeza que sentia. Wadi aponta “que ela queria morrer e que achava que todos da família também deveriam, pois eram muito pobres” (p. 184), sentimento esse que Pierina registrou em seus escritos através da “hideia de querer morer de fome” (p. 198).

Ainda neste capítulo, são retratadas as difi culdades dos imigrantes pobres em relação aos tratamentos médicos, e as relações que interconectavam a medicina, o uso de plantas medicinais e as crendices populares ligadas ao curandeirismo.

No caso de Pierina existiu indícios de a família ter recorrido a várias práticas usuais na época: chamaram o médico que “parece não ter encontrado doença em Pierina” (p. 185), mas, mesmo assim, receitou-lhe remédios. Recorreram ao saber popular manifestado pela atitude de afastar a fi lha da mãe com o intuito de interromper a amamentação, vista como causa do enfraquecimento de Pierina. Foi ainda ministrada a técnica da sangria, “baseando-se na acepção de que o alívio das tensões, provocado pela saída do sangue, poderia restabelecer o equilíbrio de um corpo desequilibrado, portanto doente” (p. 241). Ocorreu também a tutela de cuidados efetivada pelas freiras do convento local, numa mistura de práticas higienista com religiosidade na busca da cura.

Cada uma dessas intervenções pretensamente terapêuticas são discutidas por Wadi em profundidade, resultando esse capítulo em importante fonte de pesquisa histórica nessa temática. O terceiro e último capítulo, descreve a trajetória da protagonista a partir do assassinato de sua fi lha, Elvira Maria. Este capítulo demonstra como as questões de gênero estão imbricadas no inquérito policial, que chamou para testemunhar apenas fi guras masculinas. Isso também direcionou o destino de Pierina, uma vez que Wadi sugere que a lógica masculina à época desconsiderou as queixas de infelicidade que ela há meses manifestava para sua família e conhecidos. Apesar de Pierina ser incansável em sua tentativa de não ser vista como louca – “eu não so loca, eu so criminosa” (p.327) -, fato repetido em suas cartas, na data de 05 de julho de 1909 ela foi internada no Hospício São Pedro.

“A mística de um amor materno inato à natureza feminina surgiu, invocada pelos peritos, para comprovar o caráter distorcido de Pierina” (p. 370). Crime ou ato de loucura? Considerar a ação de Pierina como crime implicaria em qualifi car as razões apresentadas por ela para explicar o ato cometido.

Considero este capítulo especialmente interessante no que diz respeito à descrição da lógica presente naquele tempo histórico sobre a loucura. O quotidiano de tratamento no Hospício São Pedro, com sua ‘terapêutica moral’; as manifestações de insatisfação dos médicos diretores e tentativas de melhoria dos serviços; a laborterapia, geralmente atrelada às questões de gênero, reforçando a normatização dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres; estas são questões importantes na compreensão da história da psiquiatria no país.

Pierina queria ser ouvida e, para isso, escreveu. Porém, as cartas de Pierina foram interpretadas como sintomas de doença, frustrando seu intuito de comunicar-se e expor as razões de seu crime. Seu “projeto de comunicação foi totalmente ingênuo, como o de todo escrevente que acredita ser a explicação contida em seus escritos, irreversível ou incontestável” (p. 37). Seu discurso e suas ações foram classificados, como está registrado no Prontuário do Hospício São Pedro como “depressão melancólica com idéias delirantes místicas associadas à perversão dos sentimentos afetivos – psicopatia constitucional” (p. 351). Com o diagnóstico posto, a fala de Pierina ficou desqualificada e silenciada. As razões de a pena ter sido cumprida no hospício e não na cadeia envolve uma série de análises vinculadas às questões de gênero, já que a história das mulheres e a experiência social da loucura, são “espaços onde se cruzam, misturam e confundem-se as relações de gênero, as relações sociais e as relações de poder” (p. 44).

A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura é um trabalho exemplar no que diz respeito à conjugação de “sinais, vestígios e pistas tênues deixados pela escritura de Pierina” (p. 25). Wadi, ao retirar Pierina da invisibilidade histórica, qualifica-a como sujeito social importante na compreensão das relações sociais, de gênero e de loucura nos anos iniciais do século XX.

Lucimar Coneglian – Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – PR. Psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial de Castro. E-mail: luconeglian@ uol.com.br.