Posts com a Tag ‘Revista de História Regional (RHR)’
Crônica/memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia | Erivaldo Fagundes Neves
O livro Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia1 do professor da Universidade Estadual de Feira de Santana Erivaldo Fagundes Neves, a principal referência para pesquisa em história dos sertões da Bahia, é um livro esperado para aqueles que acompanham a produção do autor. Erivaldo Neves já havia abordado o tema de teoria e metodologia da história regional2, que complementava e desenvolvia argumentos apresentados em texto sobre corografia e historia regional3. Crônica, memória e história abrange estes estudos e contempla as incursões do autor aos temas da escravidão4, ocupação territorial5, caminhos coloniais6, história regional e local7, cultura8, sertão9, história da família, pecuária10 e historiografia11 desde o período colonial, passando pelo império e república, até a produção contemporânea. Além de um exaustivo levantamento bibliográfico, o trabalho é um comentário desenvolvido para o longo percurso de textos históricos apresentados.
A obra tem um prefácio do professor Paulo Santos Silva da UNEB, uma introdução, considerações finais e se divide em três partes, i) leituras sobre a colonização dos sertões baianos, ii) as crônicas, memórias e histórias sobre os mesmos no império e primeira república e iii) as perspectivas historiográficas posteriores a 1930, todas subdivididas em seções. Crônica, memória e história se justificaria por várias razões, mas julgamos duas de vulto: a tipologia apresentada para um extensivo levantamento de textos sobre os sertões baianos que abrange cinco séculos e a história do pensamento histórico sobre um tema que se desenvolve desde crônicas e memórias até uma historiografia técnica e disciplinar produzida em programas de pós-graduação em história de universidades. A polissemia do livro revela a paciência com a qual o mesmo foi gestado: o livro é resultado de um projeto de 25 anos que se desdobrou em outros trabalhos do autor, cuja obra é referência para uma geração de historiadores dos sertões baianos que lhe seguiram e que retornaram ao livro como exemplares de novas perspectivas historiográficas. Leia Mais
Lugares para a história – FARGE (RHR)
FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. Resenha de: ESTACHESKI, Dulceli de Loures Tonet. Relações de gênero nos lugares para a história. Revista de História Regional n.21 v.2, p.735-739, 2016.
Uma das características dos estudos de gênero é a pluralidade teórica, metodológica e temática. São diversas possibilidades reflexivas que refletem a própria essência de tais estudos, que visam não apenas produções acadêmicas consistentes, mas principalmente, objetivam reflexões que possibilitem transformações nas práticas sociais. O intuito é a construção de um mundo mais justo que, como os estudos de gênero, valorize a diversidade. Teorias e metodologias diversas para pensar práticas diversas de pessoas diversas, essa é a essência.
Arlette Farge é uma historiadora francesa que se dedica aos estudos do século XVIII. No Brasil temos duas de suas importantes obras publicadas, o primeiro, ‘O sabor do arquivo’, de 20091 é uma escrita quase poética sobre a pesquisa arquivística. Trata do contato com o documento, do encantamento pela descoberta na pesquisa histórica que utiliza como fontes os documentos judiciais. Pessoas, queixas, delinquência, vigilância, controle, narrativas, são elementos que constituem tais documentos e revelam histórias, costumes, o cotidiano de pessoas que não queriam suas vidas expostas de tal forma, mas que por terem sido assim documentadas, ajudam a pensar sobre as relações de poder. Os arquivos judiciários expressam os ajustes e os impasses nas relações do sujeito com seu grupo social e com os poderes estabelecidos. E quando pensamos em relações de poder, pensamos em gênero, que “é um primeiro modo de dar significado”2 a elas e, mesmo que a autora não cite especificamente o termo, ela salienta que as mulheres são encontradas nesses arquivos que, para ela, desvendam também “o funcionamento do confronto do masculino e do feminino”3. A segunda obra, mais recente, publicada em 2015, é ‘Lugares para a História’4 e novamente ela não escreve especificamente sobre gênero, mas então, como sua obra pode ser importante para as pesquisas na área? Afinal, de que ela trata? Em sua introdução Farge ressalta que a historiografia precisa ocupar-se de escritas que interessem à comunidade social e que confrontem o passado e o presente. Quando pesquisamos as relações hierárquicas de gênero por uma perspectiva histórica, é isso que fazemos, é o que queremos, confrontar o passado, as formas como foram constituídas essas relações para melhor argumentar em nossas problematizações em relação ao presente. As questões de gênero são essenciais para a comunidade social e por isso devem ser escritas, lidas e refletidas.
Em sete capítulos a autora apresenta o que chama de ‘lugares para história’, que são situações que encontram eco na atualidade, como o sofrimento, a violência e a guerra, ou que consideram sujeitos e experiências singulares, como a fala, o acontecimento, a opinião e a diferença dos sexos. Para ela Esses dois conjuntos se religam pela presença hoje de configurações sociais violentas e sofridas, e de dificuldades sociais que desqualificam o conjunto das relações entre o um e o coletivo, entre o homem e a mulher, o ser singular e sua – ou suas – comunidade social, entre o separado e sua história.5 No primeiro capítulo, ‘Do sofrimento’, Farge questiona se a historiografia pode dar conta do sofrimento humano. O sofrer pode ser um tema para a história ou o sofrimento um lugar para ela? A história tem dado conta de grandes “catástrofes humanas” fazendo com que a dor que elas causam nos sujeitos seja pensada como se fosse apenas fatalidade, consequência de eventos maiores que merecem a total atenção. Dificilmente a história se volta para os “ditos do sofrimento”, para as palavras de dor, à exceção, como aponta a autora, da história do tempo presente que valoriza os relatos de pessoas que vivenciaram momentos históricos tensos e apresentam as suas percepções sobre eles. Um bom exemplo disso é o texto de Wollf6 que analisa relatos de familiares de desaparecidos políticos da América Latina, evidenciando que os apelos aos sentimentos da opinião pública foram utilizados para fins políticos, para desacreditar regimes militares e fortalecer a luta por direitos humanos.
Para Farge é possível e preciso entender que “a dor significa, e a maneira como a sociedade a capta ou a reusa é extremamente importante”.7 Os grandes eventos como guerras e revoluções afetam a vida das pessoas de formas muito distintas, dependendo do lugar social que elas ocupam. Farge salienta a necessidade de se pensar na tristeza de mulheres que sofrem em um mundo caracteristicamente masculino e de pobres que vivem em sociedades tão desiguais. Ela enfatiza que há racionalidade nessas distorções, nessas diferenciações que causam dor e pesquisar sobre isso, escrever a partir desse entendimento, é uma forma de buscar erradicar o sofrimento dos que hoje são atingidos pelos ecos dessas situações históricas. Para Wolff8 emoções e gênero se entrelaçam, pois fazem parte da experiência humana. É sobre essa experiência, essencialmente a que causa sofrimento, que Farge nos convida a escrever e é por isso que sua obra é tão importante para pensar as relações de gênero. A racionalização do sofrimento nessas relações sendo historicamente analisados pode explicar os dispositivos que fizeram surgir tais sentimentos e práticas, podendo “fornecer os meios intelectuais de suprimi-los ou de evitá-los”9 Há uma insatisfação em relação aos discursos históricos sobre a violência.
“A interpretação histórica da violência, dos massacres passados, dos conflitos e das crueldades, praticamente não permite, na hora atual, ‘captar’ em sua desorientadora atualidade o que se passa sob nossos olhos”10. Em seu capítulo ‘Da violência’, a autora convida a não nos dobrarmos ao sentimento de fatalidade ou impotência diante da violência e ressalta que é legítimo buscar outras interpretações históricas, como o fazem as pesquisas sobre as emoções que destacam sujeitos, gestos e falas. Para ela, a historiografia pode, não apenas, apresentar o conhecimento, mas indicar caminhos para a luta, para o enfrentamento à violência.
A violência tem racionalidade. A violência de gênero é pautada numa racionalidade em relação a uma sociedade hierarquizada na qual homens devem ser dominadores e mulheres submissas, contrariar essa lógica pode levar ao ato violento. Entender a racionalidade da violência, para Farge, é um caminho para evitá-la, transformando a realidade com outras formas de racionalização.
‘Da guerra’ problematiza a ideia de que a guerra é inevitável e questiona a “estranha disposição que nos fez considerar esse fenômeno como normal”11.
No capítulo seguinte, ‘Da fala’, Farge afirma que o/a historiador/a dá sentido à fala para que o passado se torne inteligível ao leitor e alerta para o fato de que “a história pode ser dita rápido demais”12 e dessa forma invisibilizar as pessoas que a fazem. A escrita da história pode dar lugar aos sujeitos, como Foucault o fez em ‘A vida dos homens infames’13 ou em ‘Eu, Pierre Riviere…’14, como Davis fez com Martin Guerre15, Esteves com as ‘meninas perdidas’16 e Wolff com as mães de desaparecidos políticos17.
A história pode pensar a resistência pelas vozes de quem transgride a ordem. Estas percepções são apresentadas nos capítulos seguintes, ‘Do acontecimento’ e ‘Da opinião’. Em seguida, a autora dedica um capítulo para pensar a ‘diferença dos sexos’ como um lugar para a história. Como salientado acima, Farge não parte dos estudos de gênero, então não se ocupa em pensar as categorias de análise sexo e gênero e suas problematizações. Ela parte de discussões propostas por uma história das mulheres da França, para acusá-la de pessimista, marcada por uma inércia que apresenta as diferenças entre homens e mulheres como algo estável, não tendo como intuito mover o leitor a pensar a necessidade de mudança. A autora critica, assim como o fazem os estudos de gênero, esse caráter fixo das coisas. A ordem hierárquica, desigual, deve ser pensada pelas transgressões que sofre, pois “reconstituir os momentos em que a instabilidade, o desequilíbrio, as recusas”18, ocorrem pode demonstrar a possibilidade de novas estruturas.
Farge conclui que “buscando conhecer outro tempo, não escapamos do nosso, e, se este último, como o faz hoje, se arranca brutalmente do passado, a história se engaja também nessa ‘realidade’ para encontrar seu sentido”.19 Ao propor uma reflexão histórica que dê conta das dores humanas, sem entendê-las apenas como fatalidades, mas embrenhando-se pelo que move as ações, os sentimentos, as inquietações e os desejos, que transformam as pessoas, fazem sofrer ou lutar, submeter-se ou transgredir, ‘Lugares para História’ ajuda a pensar a categoria gênero como essencial para as reflexões históricas, mesmo que não a cite. Os estudos de gênero possibilitam compreensões que podem gerar mudança social, que se configuram em uma história engajada, como almeja a autora.
Notas
1 FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: EDUSP, 2009.
2 SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil para análise histórica. Educação e realidade. Porto Alegre. Vol. 20. N. 2. Jul/dez, 1995. p. 14.
3 FARGE, op. cit.,p. 43.
4 FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
5 FARGE, Lugares… Op. cit. p. 9-10.
6 WOLFF, Cristina Scheibe. Pedaços da alma: emoções e gênero nos discursos da resistência. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 23(3), setembro/dezembro, 2015.
7 Ibidem. p. 19.
8 WOLFF, op. cit.
9 FARGE, Lugares… Op. cit., p. 23.
10 Ibidem. p. 25.
11 Ibidem. p. 43.
12 FARGE, Lugares… Op. cit., p. 61.
13 FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2006.
14 FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
15 DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
16 ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
17 WOLFF, op. cit.
18 FARGE, Lugares… Op. cit., p. 114.
19 Ibidem, p. 129.
Dulceli de Loures Tonet Estacheski – Doutoranda em História pela UFSC. Professora do curso de História da UNESPAR, campus de União da Vitória. E-mail: dulce_tonet@yahoo.com.br.
A identidade Nacional – MATTOSO (RHR)
MATTOSO, José. A identidade Nacional. Lisboa: Gradiva Publicações, 1998. 114p. Coleção da Fundação Mário Soares. Resenha de: SANTOS, Marcos Pais Neves dos. A identidade nacional: inseparável da própria percepção coletiva, mas mutável consoante os grupos humanos e a época. Revista de História Regionalv.19, n.1, p.251-261, 2014.
José Mattoso aborda a problemática da identidade nacional, e procura demonstrar o desenvolvimento da consciência de pertença a um coletivo nacional, particularizando o caso português. Antes de mais, refere que uma nação é uma determinada população humana, que partilha um território histórico, mitos e memórias comuns, uma economia comum, uma cultura de massas comum, politicamente é soberana, e possuí um conjunto de códigos legais que regulam a ação de todos os membros.1 José Mattoso começa por definir identidade nacional como o resultado da noção que os cidadãos possuem de constituírem uma coletividade humana, mutável consoante os grupos humanos e a época. Refere que a melhor forma de abordar esta questão é considerar que, as condições para a compreender, são as mesmas de qualquer outro objeto, seja ele individual ou coletivo. Paralelamente, esboçou alguns temas que serão tratados de forma mais aprofundada e apresentou a organização da obra, dividindo-a em duas partes: a primeira parte consiste nos capítulos 1-3 e a segunda parte nos capítulos 4-8. Esta será também a divisão a ter em conta nesta análise, para que o resultado seja um comentário crítico, lógico e coerente.
A primeira divisão consiste na percepção das diferentes etapas da manifestação da identidade nacional, desde a fundação do Estado até à atualidade. Deste modo, o primeiro capítulo, denominado “O processo de categorização da identidade nacional”, refere que a consciência de pertença a um país se pode refletir na expressão: “nós somos portugueses; os outros são estrangeiros”,2 embora este facto outrora não fosse evidente para todos os sectores sociais.
Estabelecendo uma relação com Orvar Löfgren,3 e partindo do princípio que o culto dos sentimentos de pertença nacional no seio de um determinado país é da máxima importância nos modos de construção da nação, a comunicação externa ocupa também aí um lugar decisivo. Entende-se, nesse sentido, que a prova de uma identidade nacional é inócua se restringida às próprias fronteiras e que uma nação só se consegue afirmar, se for aceite enquanto tal pelas restantes comunidades internacionais. É a necessidade de tal reconhecimento que explica, por sua vez, a relevância de eventos como as exposições universais, para a afirmação da nação.4 De acordo com José Mattoso,5 foi lentamente que “os nacionais” se foram consciencializando da sua pertença à categoria dos portugueses através de fenómenos históricos, normalmente, confrontações militares com estrangeiros ou civilizações distantes, explicados cronológica e pormenorizadamente pelo autor. Tal como refere Tilly, “a guerra faz o Estado e o Estado faz a guerra”.6 Contudo, este refere que a generalização da noção de identidade nacional só se deu após o desenvolvimento da escrita, da imprensa e da participação dos indivíduos na vida política. Neste seguimento, não parece de todo correto extrapolar este conceito para toda a população no estudo de um período ancestral, por oposição ao que ocorre na atualidade.
O capítulo “Atribuição de significado” procura constituir um conjunto de noções que atribuem sentido à identidade nacional. Para tal foram tidos em conta e explicitados os seguintes conceitos: reino, naturalidade, pátria, fronteira, sucessão régia e o poder sagrado do rei. A seleção destes últimos prende-se com o facto de se terem constituído na Idade Média e influenciado de forma significativa o fortalecimento da consciência da identidade nacional.
É de ressaltar a associação destes conceitos ao poder político, tido como o mais relevante para a formação da identidade nacional. Os itens enunciados anteriormente foram influenciando lentamente a população: inicialmente, apenas os mais próximos da corte, do poder administrativo e clérigos; sendo que, possivelmente, os restantes habitantes foram mais influenciados pelo uso “símbolos de referência colectiva”,7 tais como: “o escudo de armas do rei, a bandeira nacional e a moeda”.8 Em concordância com Mattoso9 está Löfgren,10 que definiu o nacionalismo num período mais contemporâneo como um gigantesco “Do it Yourself Kit” (faça você mesmo), acrescentando que as ideias circulam primeiramente pelas elites intelectuais e resultam numa espécie de “check list”, fundamentada em: todas as nações têm que ter uma linguagem comum, um passado e destino comum, uma cultura popular, valores de nacionalismo de mentalidade e carácter, galeria de mitos e heróis nacionais e respetivos vilões, e um conjunto de símbolos que incluem bandeiras, brasão, textos e imagens sagradas.
No último capítulo (do conjunto a que inicialmente designámos de primeira parte), denominado “Atribuição de valor”, o autor afirma que o “valor” concedido à identidade nacional é superior caso se procure defendê-la em virtude do benefício dos sujeitos que nela interferem, podendo mesmo tornar-se supremo, quando tidos em consideração os interesses da coletividade.
Estas noções são indissociáveis do conceito de “pátria”, problemática desenvolvida neste capítulo, que apresenta a sua evolução ao longo do tempo, até atingir a sua expressão atual. O autor salienta ainda que a atribuição de valor à identidade nacional foi um fenómeno lento, procurando reconstituir alguns pontos da sua formação com base em testemunhos históricos. Em suma, a análise da identidade nacional por meio de uma visão histórica é indissociável da noção coletiva. Deu-se um longo caminho na formação da consciência de pertença a um coletivo nacional, partindo de um fator político (apropriação do poder por um chefe com autoridade própria sobre os vassalos), que se expandiu para sectores não só do mesmo domínio, mas também sociológicos e psicológicos.
A segunda delimitação da obra, de uma forma geral, baseia-se na análise profunda dos elementos que caracterizam a identidade nacional, através do estudo de caracteres: geográficos, políticos, sociológicos e comportamentais.
Marco Pais Neves dos Santos Do ponto de vista geográfico e como referido por A. H. de Oliveira Marques, “não faz hoje sentido falar de uma unidade do território português (…) ou de uma individualidade geográfica de Portugal dentro do conjunto da Península Ibérica”.11 Efetivamente a identidade geográfica de base física é muito ténue, uma vez que a originalidade morfológica é praticamente insignificante.
Portugal localiza-se no extremo sudoeste da Península Ibérica partilhando da morfologia da mesma, relativamente ao resto do continente europeu, formando deste modo, uma unidade geográfica bem individualizada. Assim, Portugal integra-se na morfologia peninsular, integração tanto mais evidente quanto é certo que, como mostra qualquer mapa físico, as grandes linhas de relevo de Portugal não são mais do que a continuação das linhas de relevo de Espanha, as superfícies planálticas constituem a bordadura ocidental dos grandes planaltos ibéricos e os grandes rios que desaguam na nossa costa têm a maior parte do seu percurso em território espanhol. Deste modo, é de todo pertinente afirmar que o País foi uma construção dos homens e não da natureza.
Todavia, e apesar de Portugal apresentar uma certa homogeneidade em termos físicos, como constata, e bem, o autor, é possível observar contrastes regionais, não só entre as áreas a norte e a sul, mas também entre as do litoral e as do interior. Assim, importa individualizar as condições geográficas, que muito embora não sendo suficientes para conferir ou não identidade nacional, acabam por influenciar, dar suporte e impulsionar as transformações socioeconómicas, que moldaram a evolução regional do País, uma vez que em conjunto determinam o grau de atração ou repulsão que a terra exerce sobre as comunidades humanas, evidenciando certas especificidades regionais.
Observando as diferentes regiões de Portugal Continental em termos de relevo, verifica-se que o Minho interior apresenta relevos acentuados com topos aplanados entre os 1300 m e os 1600 m. É o caso das serras da Peneda, Gerês, Soajo e Amarela, cortados pelos rios Minho, Lima, Cávado, Homem e Ave. O Minho litoral é mais plano, cortado por rios que se espraiam em planícies aluviais largas para em seguida desaguarem no oceano. Trás-os-Montes apresenta áreas planálticas separadas por vales e depressões. As serras mais importantes são a de Alvão e Padrela, sendo entre elas que corre o rio Corgo. O rio Douro constitui como que uma fronteira para as Beiras.
O relevo das Beiras é influenciado pelos diversos deslocamentos tectónicos e entre eles encontramos a cordilheira central, que separa a Meseta norte da Meseta sul. Esta superfície vai-se prolongando pelo sul, onde se encontram as serras de S. Mamede, Marvão e Ossa, estabelecendo-se a separação com o Baixo Alentejo. No Algarve encontram-se as serras de Monchique, Caldeirão e Espinhaço de Cão. De facto, cerca de 60% das terras baixas, ou seja, com menos de 200m de altitude, situam-se a sul do Tejo. Em contrapartida, cerca de 95% das terras altas localizam-se a norte do rio Tejo.12 Tal como o relevo, também o clima de Portugal é marcado pelo contraste entre o norte e o sul, e o litoral e o interior, divisões afloradas e aceites pelo autor, ainda que com base noutros autores. Assim, o norte caracteriza-se pela ocorrência de invernos frios e chuvosos, com queda de neve, durando o período chuvoso e nebuloso cerca de seis meses. O sul apresenta temperaturas mais elevadas ao longo de todo o ano. O período chuvoso e nebuloso é mais curto do que a norte, durando cerca de três meses.
Sendo Portugal, como refere o autor, um país cuja atividade económica predominante foi sempre, até há pouco tempo, a agricultura, facilmente se depreende que as condições naturais não favorecem esta prática, já que um dos maiores problemas para o desenvolvimento das espécies vegetais é a irregularidade da precipitação. Outro aspeto de grande importância é o relevo, uma vez que a altitude é um fator que condiciona a agricultura. Os declives acentuados das encostas contribuem para uma maior erosão dos solos, fazendo com que os detritos minerais e vegetais, que os compõem, sejam arrastados pelas vertentes e levando a que os solos se apresentem pouco espessos e pobres em húmus. Outro fator muito importante é a natureza do solo arável. Pois o clima mediterrâneo não permite a formação de solos profundos. Os baixos totais pluviométricos e a distribuição irregular da precipitação ao longo do ano, coincidindo a estação mais seca com a de temperaturas mais elevadas, não favorecem a alteração química da rocha-mãe. Por isso, uma das regiões que reúne melhores condições naturais, e que por isso sempre atraiu os cultivadores, é o norte litoral, mais concretamente o Minho, como refere o autor. Todavia, como já ficou demonstrado a favor da tese do autor, a proporção de terras com pouco rendimento é muito superior às terras com grande rendimento. Assim, verificaram-se, na história portuguesa, várias tentativas para aproveitar melhor os recursos agrícolas, nomeadamente por desbravamento de terras desocupadas, aproveitamento de solos incultos e secagem de terrenos pantanosos, nos séculos XI, XII e XIII respetivamente, como menciona o autor. No entanto, a crise demográfica e a crise económica dos séculos XIV e XV promoveram o abandono de muitos terrenos pouco produtivos.
Assim, o clima, o relevo, a fertilidade dos solos ou os recursos hídricos são alguns exemplos de fatores naturais que condicionam a distribuição espacial da população portuguesa, uma vez que era nos locais que reuniam melhores condições que as pessoas se fixavam, para além da fixação em pontos elevados por motivos defensivos e na região fronteiriça, nomeadamente entre Castelo de Vide e Serpa.
Por outro lado, os fatores humanos ganharam importância, e a existência de recursos naturais, a acessibilidade e o desenvolvimento industrial deram origem à concentração de um elevado número de centros urbanos na faixa litoral, exceto ao longo da costa alentejana, sendo responsáveis pela desigual distribuição espacial da população no nosso país.
Na segunda metade do século XX, verificou-se uma nova dinâmica: a suburbanização, originando o crescimento de novos centros urbanos. Este processo gera um conjunto de problemas nas áreas metropolitanas, cujas estruturas não estão preparadas para tanta população, entrando em rutura. Por outro lado, contribuem para o despovoamento do interior do país. A última década tem, no entanto, evidenciado uma nova dinâmica na concentração populacional, resultante do desenvolvimento da rede rodoviária no interior do País, do dinamismo económico de certas regiões, e da fixação de jovens pela existência de Universidades e Politécnicos, nomeadamente nas capitais de distrito, o que de acordo com o autor vem confirmar a influência das funções administrativas, mas que, na verdade, os fatores justificativos são bem mais abrangentes, como já se evidenciou.
Assim, aglomerações urbanas como Castelo Branco, Viseu, Covilhã ou Évora conheceram um dinamismo muito significativo, contrariando a tendência de perda populacional que se mantinha há alguns anos.
O capítulo “O factor político” coloca o político como o elemento em análise mais importante na construção da identidade nacional. José Mattoso vai explicitar as repercussões do poder político, analisando o próprio nome de “Portugal”. Deste modo, problematiza o porquê da extensão do nome “Porto” a todo o país, refere a importância deste centro urbano em épocas ancestrais, e apresenta acontecimentos históricos, percorrendo superficialmente um hiato temporal que vai desde a ocupação dos povos bárbaros até ao conde D. Henrique. Salienta que a origem de Portugal reside em factos político-administrativos e não na etnia, e que o Estado português nunca procurou fazer prevalecer nenhuma etnia ancestral, sobrepondo-se “a elas como uma entidade política”13. Aborda teorias de outros autores que procuraram as origens nacionais em povos cujos atuais principais representantes são os minhotos, beirões ou alentejanos, o que contraria a ideia que formulou no trabalho, e por isso refere que essas teorizações são consideradas pouco credíveis, uma vez que este é um fenómeno do domínio administrativo, político e estatal, e não do plano cultural ou étnico.
No sexto capítulo “O poder político e as regiões” o autor indica que as teorias referidas no parágrafo anterior, relacionadas com os nomes que designam as províncias nacionais, permitem constatar a vertente política da construção portuguesa. Considerando que as designações não estão associadas a antepassados étnicos, pressupõe-se a existência de uma administração central. O autor explora ainda os contrastes das diversas regiões do território nacional e retoma as duas dicotomias (norte-sul e litoral-interior), remetendo para exemplos históricos e concretos que materializam as afirmações que enuncia. Em suma, “o que cria e sustenta a identidade nacional é, de facto, o Estado”,14 justificando o lento desenvolvimento da consciência nacional e a sua manifestação tardia em termos populares.
O capítulo “Configuração do poder político e a sua relação com as forças sociais”, procura associar, tal como o próprio título indica, o poder político ao domínio social. Esta temática é, principalmente, desenvolvida segundo as tentativas de determinados reis portugueses consolidarem o seu poder, pelo que o autor apresenta as medidas políticas tomadas, que permitiram o desenvolvimento de instrumentos de centralização da monarquia. Mais tarde, a superioridade do Estado continuou a aumentar e os poderes públicos e administrativos foram, progressivamente, passando para o monopólio do Estado. José Mattoso explora a situação de diversos estratos sociais, tais como: os que usufruem de regalias régias e estão associados à corte (nobreza e clero), os camponeses, a burguesia mercantil e citadina e os fidalgos.
No capítulo final da obra “Identidade Sociológica”, o autor refere, citando uma afirmação de Boaventura Sousa Santos, que: “o excesso mítico de interpretação [do processo da identidade nacional] é um mecanismo de compensação do défice da realidade”,15 criando na mente dos autores, características ilusórias dos nacionais.
Estabelecendo um paralelo com Benedict Anderson,16 pode complementar-se a informação incontestável de José Mattoso.17 Anderson, no seu trabalho, definiu a nação como uma comunidade política imaginada; imaginada inerentemente quer como limitada quer soberana. Isto porquê? De facto, nem os membros da mais pequena nação se conhecem todos, mesmo que na mente de cada um deles viva a imagem da sua comunhão, o que significa que todas as comunidades são imaginadas e que a distinção se faz pela forma como são imaginadas; a forma que cada indivíduo utiliza para interpretar e idealizar a sua comunidade e constituir um sentimento nacional. Igualmente, é limitada (a nação tem fronteiras físicas que a delimitam de outras nações), e é soberana, apesar de este termo somente ter surgido a partir das luzes e da revolução de 1789, porque foi destruída a legitimidade da ordem divina, do domínio dinástico hierárquico. Contudo, é percetível que o ponto fulcral do último capítulo de Mattoso18 reside na imutabilidade da identidade nacional dos portugueses, por comparação à constante modificação dos caracteres sociais. Revela-se necessária a existência de uma consciência coletiva, baseada numa compreensão das diferenças nacionais relativamente aos “estrangeiros” e na percepção da existência de um passado comum. Deste modo, a História revela um dos elementos mais importantes na consolidação da memória coletiva e, consequentemente, da consciência de identidade, fortalecendo também sentimentos patrióticos.
Para finalizar, fazendo uma apreciação metodológica sumária, importa referir que: (1) a obra foi organizada de forma hierarquizada desde a introdução até ao último capítulo, e toda a massa argumentativa está bem inserida dentro de cada capítulo; (2) a forma como o autor se expressou é relevante em termos científicos, mas não tanto em termos pedagógicos, uma vez que a informação não deve estar somente acessível à comunidade científica, a quem é claramente destinado este trabalho, mas também à população em geral. Assim, julga-se que será um importante argumento para motivar uma ligeira alteração textual a ter lugar numa próxima reedição.
No âmbito da análise do conteúdo, tal como referido anteriormente, esta obra pretende explicar a evolução da consciência de identidade nacional, nos seus vários domínios. Para tal, José Mattoso recorre, sistematicamente, a referências históricas que ilustram as teorias por ele apresentadas e, paralelamente, apresenta opiniões e citações de muitos outros autores, por vezes, problematizando-as.
A consciência de pertença a uma coletividade nacional em períodos ancestrais era muito menos abrangente, comparativamente à atualidade. Contudo, tal não significa que não existam antecedentes históricos da consciência nacional. Este foi um processo que se desenvolveu de forma gradual, impulsionado por determinados acontecimentos históricos.
Tal como José Mattoso procurou demonstrar nesta obra, estes fenómenos de carácter histórico encontram-se, maioritariamente, associados a uma coletividade humana unificada e sujeita a um mesmo poder político soberano, embora influenciando, principalmente, por aqueles que estão associados ao poder central. No entanto, a realidade é que são estas minorias “que contam a história e a transformam em epopeia colectivas”.19 Concretiza que o poder político é crucial na construção da identidade nacional. A origem de Portugal e, com ele da consciência de pertença a um país, consiste em fenómenos político-administrativos. Só posteriormente este conceito se difunde a outros domínios, atingindo a sua plenitude atual.
São várias as questões em aberto ao longo do texto. Primeiramente, o autor indica que os linguistas têm um longo caminho a percorrer, de forma a documentarem de forma precisa as diversidades dialetais e as suas expressões históricas.20 Outra questão que se encontra em aberto, e que certamente levará à escrita de várias monografias não só por sociólogos, mas por todas as ciências sociais (sociólogos, psicólogos, filósofos, antropólogos, entre outros), é a evidente mutação do sentimento da identidade nacional, por força de um sentimento de exclusão – quebra de receitas financeiras, levando à desagregação dos grupos sociais e inerentemente à adoção de outros valores identitários. Esta questão que o autor colocou é muito pertinente e deve ser complementada em relação às novas dinâmicas culturais, que surgem enraizadas no fenómeno da globalização, e que, efetivamente, também estão ligadas com a questão anterior, forçando a seguinte questão: tendo por base que o sentimento de pertença a um coletivo é feito com base num conjunto de valores,21 a atual “mentalidade” mundial baseada no processo da globalização, será favorável a esta manutenção? Será que os valores que caracterizam a identidade nacional, sobretudo aqueles mais ligados às questões culturais, como a língua e costumes, permaneceram inalterados ao longo tempo? Ou será que podem desaparecer levando consigo o sentimento nacionalista? É também uma questão pertinente na análise política da atualidade, para a concretização do sonho europeu, que não poderíamos deixar de referir: a identidade supranacional que decorre do federalismo. Numa situação de federalismo, questão que há muito tempo excita os políticos europeus,22 será possível a salvaguarda do valor intrínseco da diversidade cultural e política? 23 Será que os portugueses vão identificar-se como cidadãos europeus, em primeiro, e como cidadãos portugueses, em segundo? Ou seja, vão primeiro apelar à sua identidade supranacional, e só depois à sua identidade nacional (é que sem a emergência de um povo europeu não haverá estado federal europeu)?24 Será que a mutação para uma identidade supranacional, a efetivar-se, é o resultado da salvaguarda da diversidade cultural e política dos países membros? Lembra-nos, desde logo, o efeito que esta decisão pode produzir nos doze países europeus com monarquias, com símbolos de referência coletiva, por extensão da ideia de José Mattoso (ex. o escudo de armas do rei),25 e com uma linguagem e um passado comum, valores de nacionalismo de mentalidade e carácter, galeria de mitos e heróis, e um conjunto de símbolos que incluem brasão, textos e imagens sagradas, por extensão do pensamento de Orvar Löfgren.26 O federalismo é um modelo governativo que, a bem da identidade nacional e da vontade individual, deve representar o último recurso da salvação do projeto europeu. A sua materialização só deve ocorrer após referendada a população de todos os Estados membros, com aprovação mínima da maioria de cada um dos Estados (e da maioria dentro das minorias), e a sua manutenção deverá depender de objetivos, segundo o princípio de Dusan Sidjanski, “garantindo o desenvolvimento das riquezas culturais e das identidades nacionais e regionais num conjunto susceptível de criar uma comunidade de destino e unir os Europeus numa grande aventura ao serviço do homem”.27 Serão estas as questões a ter em conta num futuro próximo e que certamente irão dinamizar a questão da identidade nacional.
Todavia, nesta matéria existem algumas respostas. Segundo Inda e Rosaldo,28 o que se verifica atualmente é a desterritorialização da cultura, ou seja, a globalização transportou os elementos culturais para fora do limite territorial da nação, provocando uma alteração profunda desses valores culturais, bem como o significado do que para os cidadãos de um determinado lugar é a identidade nacional. Isto explica-se por uma constante absorção e reinterpretação de valores em todo o mundo, resultando numa reteritorialização final, que no fundo é um composto de várias culturas que se traduzem em formas diferentes de abordar as questões de identidade nacional, apesar de estas não se extinguirem nem se alterarem na totalidade, somente são alvo de uma mutação.
Tal como José Mattoso afirmou em outra obra, por si coordenada e dirigida, “o fenómeno da consciência nacional é um problema importante da história de um país e tem de ser estudado também como um fenómeno que se desenvolve através de um processo lento e complexo, de cuja interpretação é necessário excluir preconceitos ideológicos ou a projeção no passado de conceções peculiares da época moderna”.29 É uma obra que provoca o intemporal, apesar de publicada há alguns anos, motivo suficiente desta Nota de Leitura.
Notas
1 MATTOSO, José. A identidade Nacional. Lisboa: Gradiva Publicações, 1998. O mesmo enquadramento, quanto à determinação da nação, é apresentado por SMITH, Anthony. Identidade Nacional. Lisboa: Gradiva Publicações, 1997 [1991].
Notas
2 MATTOSO, op. cit, p.13.
3 LÖFGREN, Orvar. The Great Christmas Quarrel and Other Swedish Traditions. MILLER, D. (ed.), Unwrapping Christmas. Oxford: Clarendon Press, 1993, p. 217-234.
4 Ibidem.
5 MATTOSO, op. cit.
6 TILLY, Charles. The formation of National States in Western Europe. United States: Princeton, University Press, 1975, p. 42.
7 MATTOSO, op. cit., p. 15.
8 Ibidem, p. 28.
9 Ibidem.
10 LÖFGREN, op. cit.
11 MARQUES, A. H. de Oliveira. História de Portugal. Das Origens ao Renascimento. Vol. I. Lisboa: Editora Presença, 1997, p. 17.
12 RIBEIRO, Orlando. Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1998.
13 MATTOSO, op. cit, p. 67.
14 Ibidem, p. 83.
15 Ibidem, p. 98.
16 ANDERSON, Benedict. Imagined communities. Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. New York: Editora Gopal Balakrishnan, 1991 [1983].
17 MATTOSO, op. cit.
18 MATTOSO, op. cit.258
19 MATTOSO, José (dir.). História de Portugal, Vol. I – Antes de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitora, 1992, p. 15.
20 MATTOSO, José. A identidade Nacional. Lisboa: Gradiva Publicações, 1998.
21 LÖFGREN, Orvar. The Nationalization of Culture. In: Ethnologia Europaea, N.º XIX, p. 5-24, 1989; ANDERSON, op.cit.; SMITH, Anthony. Identidade Nacional. Lisboa: Gradiva Publicações, 1997 [1991]; MATTOSO, José. A identidade Nacional. Lisboa: Gradiva Publicações, 1998.
22 SIDJANSKI, Dusan. Para um Federalismo Europeu – Uma perspetiva inédita sobre a União Europeia. Cascais: Principia, Publicações Universitárias e Cientificas, 2001, p. 7.
23 Como é natural, no debate do federalismo há que ter em conta as questões latentes da equidade na retribuição e redistribuição de recursos entre os Estados membros, e nos esforços orçamentais, salvaguardando a não germanização da Europa. Portanto, assuntos muito importantes, mas que não são centrais a este ensaio.
24 De alguma forma, os europeus já se vêm a si próprios enquanto europeus, o que resulta, desde logo, da Europa ser uma criação com vista à harmonia política, num continente com uma longa história de guerras entre os Estados.
25 MATTOSO, José, A identidade Nacional, p. 15; 28.
26 LÖFGREN, op. cit.260
27 SIDJANSKI, op. cit., p. 109-110.
28 INDA, Jonathan; ROSALDO, Renato. Introduction. In: INDA, Jonathan; ROSALDO, Renato (Eds.), The Anthropology of Globalization. A Reader. MA-Oxford: Blackwell Publishers, 2002.
29 MATTOSO, José (dir.). História de Portugal, Vol. I – Antes de Portugal, op. cit., p. 15-16.
Marco Pais Neves dos Santos – Doutorando em Desenvolvimento Social e Sustentabilidade pela Universidade Aberta de Portugal. Técnico Superior no Instituto da Construção Civil e do Imobiliário (InCI). E-mail: marco.santos@inci.pt
Ensaio de história das ciências no Brasil: das Luzes à nação independente – KURY; GESTEIRA (RHR)
KURY, L.; GESTEIRA, H. (orgs.) Ensaio de história das ciências no Brasil: das Luzes à nação independente. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012. 328p. Resenha de: MOSCATO, Daniela Casoni. Revista de História Regional v.18, n.1, p. 262-266, 2013.
Em dezembro de 2012, a Revista História da Historiografia1 dedicou seu 10° número ao dossiê Diálogos Historiográficos: Brasil e Portugal. Com apresentação da brasileira Iris Kantor e do português Thiago C.P. Dos Reis Miranda, o dossiê confirmou novas reflexões históricas acerca da clássica relação Brasil/Portugal ou, nas palavras dos apresentadores, “novos espaços de interação acadêmica luso-brasileira”.2 O livro Ensaios de História das Ciências no Brasil: das Luzes à nação independente, da EdUERJ, publicado em 2012, ao trazer também essa característica, reafirma o avanço dos estudos dedicados às históricas relações luso-brasileiras. A cuidadosa edição é abundante em belas ilustrações/desenhos de naturalistas, mapas e pinturas, que dão início às cinco partes da obra. Alguns dos artigos trazem cartas geográficas, plantas baixas e imagens em perspectiva, em elegante impressão, o que, certamente, colabora para a apreciação da leitura.
A obra, que compreende vinte artigos, discorre sobre a época pombalina, de 1750 a 1777, período em que o Marquês de Pombal exerceu o cargo de primeiro ministro português, e sobre o reinado joanino, iniciado em 1808 e se estendeu até a Independência do Brasil. Desta forma, textos sobre o Iluminismo português, a transferência da corte para a América e as relações que envolveram a Independência estão permeados de reflexões acerca de temas caros à história das ciências no Brasil.
Resenhar vinte artigos de vinte e dois autores é um trabalho laborioso. No caso dessa obra, cada autor, com suas particularidades, ofereceu uma leitura prazerosa de textos fundamentados em diversas fontes históricas, mas com o propósito de produzir uma obra comum. Assim, apresentar cada parte deste livro foi a solução encontrada para ser fi el ao objetivo de um Ensaio: reunir estudiosos e suas reflexões acerca das ciências e suas técnicas no Brasil oitocentista.
A primeira parte, intitulada A arte de curar no Brasil: entre novos e velhos saberes, de autoria de Cristina Deckmann Fleck, expõe as práticas curativas jesuíticas nos séculos XVII-XVIII. A análise destaca as proibições médicas na ordem jesuítica, o largo emprego de uma terapêutica mágica de cunho cristão e outras situações de cura baseadas em tradições guaranis, um misto de mística e razão que acabaria “por conferir incontestável originalidade __ pela inegável capacidade de síntese entre a tradição e inovação __ à Companhia de Jesus nos séculos XVII e XVIII” (p.29). Este estudo prepara o leitor para o artigo seguinte: Rumo ao Brasil: a transferência da corte e as novas trilhas do pensamento médico. Nele, Márcia Moisés Ribeiro, ao apontar os avanços médicos nos séculos XVII e XVIII, mostra como a modernização do Império português possibilitou “o fomento de atividades práticas de indivíduos ligados ao mundo das ciências por meio de estímulos às viagens exploratórias, como também a publicação de obras de autores luso-brasileiros e a tradução de estrangeiros” (p. 34). A transferência da corte para a colônia americana intensificou a circulação de conhecimentos médicos e trouxe teorias em voga na Europa, como algumas modificações nas práticas curativas. As mudanças nas práticas de cura e as especificidades de um estudo histórico dedicado às ciências podem ser identificadas na análise da própria concepção de História das ciências apresentada no artigo Os dilemas da História social das ciências no Brasil: as artes de curar no início do século XIX, de Betânia Gonçalves Figueiredo e Graciela de Souza Oliver.
A parte A ciência e a arte no Rio de Janeiro traz temas ambientados na cidade brasileira da corte portuguesa e, posteriormente, capital do Império. O primeiro artigo traça um panorama da medicina nas primeiras décadas do século XIX, e Tânia Salgado Pimenta discorre acerca dos caminhos percorridos para a oficialização das artes de curar, no texto As artes de curar e a Fiscatura-Mor na época de D. João VI. Os dois textos seguintes demonstram, em suas particularidades, como as modifi cações da paisagem, no Rio de Janeiro, estavam estritamente relacionadas aos discursos médicos vigentes na época. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro e as paisagens da Corte, de Ana Rosa de Oliveira, analisa essa premissa com base no Jardim Botânico e as representações que o envolveram. Lorelay Kury, em Rio de Janeiro Joanino: entre o mar e o mangue, aborda os debates acerca da organização urbana da cidade e as modificações realizadas e, desse modo, alcança o que se propôs nos primeiros parágrafos do texto: “Minha abordagem aqui pretende ser diferente. Acredito que a noção de ‘necessidade’ deve ser historicamente pensada[…]. Ou seja, as soluções para os problemas só aparecem quando os problemas são colocados como tal” (p. 86).
A terceira parte da obra, Inventários e utilização da natureza, apresenta, nos três primeiros textos, aspectos que envolveram as viagens científi cas portuguesas nos séculos XVIII e XIX. Em Instructio Peregrinatoris. Algumas questões referentes aos manuais portugueses sobre métodos de observação filosófica e preparação de produtos naturais da segunda metade do século XVIII, Maguns Roberto de Mello Pereira e Ana Lúcia Rocha Barbalho Cruz exploram como eram idealizados e realizados os manuais de instrução para viagens científi – cas destinadas a naturalistas do império português, inclusive, luso-brasileiros.
A elaboração e o uso desses manuais confi rmam o entusiasmo científico pelo qual passava o setecentos, basta lembrarmos o papel que a Universidade de Coimbra desempenhou no crescimento das ciências no reino luso.
Um dos refl exos dessa ebulição da ciência foi a internacionalização das relações científicas. João Carlos Brigola, em O colecionismo científico em Portugal nos fi nais do Antigo Regime (1768-1808), atesta como as instituições portuguesas mantinham um imenso intercâmbio científico com instituições como: Real Jardim Botânico de Madri; Jardim Real de Kew e Royal Society, em Londres; Universidade de Amsterdã; Universidade e Jardim Botânico de Copenhague e tantas outras (p.137). A fabricação da pólvora e trabalhos sobre o salitre: Portugal e Brasil de fi nais do século XVIII às primeiras décadas do século XIX é o título do estudo apresentado por Márcia Helena Mendes Ferraz, que, valendo-se de documentação impressa e de manuscritos, analisa o debate acerca dos métodos utilizados para a obtenção e purificação do salitre, assim como, o avanço e a circulação das práticas e das análises científi cas. Neil Safi er, com o texto Instruções e impressões transimperiais: Hipólito da Costa, Conceição Veloso e a ciência joanina, demonstra como a circulação de ideias científi cas se deu por “(…) canais menos institucionais de circulação do conhecimento em relação ao mundo natural” (p. 169). Igualmente, em Naturalista e homem público: a trajetória do ilustrado Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1796-1823), Alex Gonçalves Varela apresenta um lado pouco estudado desse político que também foi grande naturalista.
Os quatro primeiros textos agrupados na parte seguinte, As ciências e a construção do território do Brasil, concentram-se em apresentar, minuciosamente, como se deu a elaboração dos espaços científicos brasileiros. Os artigos de Beatriz Piccoloto Siqueira Bueno, Heloisa Gesteira, Nelson Sanjad e Iris Kantor demonstram como a construção do território português, na América, se fez, também, pela relação entre ciência e política. Nessa perspectiva, os autores identificam elementos importantes: a herança iluminista portuguesa, a necessidade de construção do território ultramarino, a circulação de diferentes profissionais da ciência e a americanização do Império português. Já, Ângela Domingues, em Viagens e viajantes europeus e descrição do Brasil: correspondência de Leopoldina e o paradisíaco Brasil, atesta, pelo olhar da jovem Imperatriz, algumas representações acerca do processo de construção territorial que permeavam o XIX: Tal como outros viajantes anteriores a ela, como Spix e Martius, John Luccock ou Johann Emanuel Pohl, Leopoldina desenvolveu, logo após sua chegada ao Brasil, uma admiração genuína e sincera pelas belezas naturais e pelas potencialidades econômicas contidas na natureza de seu Brasil (p. 257).
A última parte, Instituições e Letras, apresenta artigos dedicados à circulação dos saberes científicos entre Portugal e no Brasil. Portugal- Brasil, 1808. Trânsito de saberes, de Maria de Fátima Nunes, aborda a relação transimperial dos saberes científicos acumulados até 1808 e sua continuidade após a mudança da família real portuguesa: […] a ida da corte para o Rio de Janeiro com o embarque de um patrimônio científico e cultural extremamente valioso: bibliotecas (individuais, institucionais e públicas) e instrumentos científicos para a colônia Brasil (…) Desse embarque nasceram os (futuros) espaço de ciências e das bibliotecas coloniais emergiram as bibliotecas da (futura) nação do Império brasileiro (p. 268).
No artigo, Natureza, ciência e política no mundo luso-brasileiro de inícios do século XIX, Guilherme Pereira das Neves argumenta como o Iluminismo português engessou-se pela forte tradição social e cultural do mundo luso- -brasileiro: […] parece-me muito difícil deixar de considerar o lugar limitado ocupado pelas Luzes no mundo luso-brasileiro (…). No entanto, se elas, as Luzes, não deixaram de desempenhar um papel instrumental no que diz respeito ao conhecimento da natureza, em termos de política, em seu sentido mais amplo, o fi zeram no ‘interior das estruturas mentais que [as] dominam e enquadram’, em vez de se mostrarem […] (p. 289) A institucionalização das práticas científi cas na corte do Rio de Janeiro, de Maria Rachel Fróes da Fonseca, apresenta como os espaços institucionais, em especial, no Rio de Janeiro, expressavam os interesses pelas diversas áreas científicas, como a medicina. Finalizando o livro, o artigo, A gênese moderna do artigo de fundo e da campanha de imprensa: o Correio Braziliense ou Armazem, de José Augusto de Santos Alves, evidencia a importância desse periódico para o nascimento da imprensa moderna em Portugal e no Brasil.
Os artigos aqui resenhados apresentam a história luso-brasleira pautada na relação transimperial que se estabeleceu a partir do momento que os navegantes lusos aqui atracaram. Entretanto, os textos orientam que tal relação não se limita à comparação entre locais de um mesmo Império, mas abrange o compartilhamento de elementos comuns, ou seja, os aspectos das ciências e suas práticas não foram somente apropriados e reproduzidos, mas se tornaram parte de saberes contínuos do Império Português. Ao aprofundar essas questões, alguns textos trazem a história de intelectuais e de instituições, num debate necessário e urgente para a apreensão da história das ciências e da história de Portugal e do Brasil. Esse “retorno” a estudos acerca de intelectuais e instituições é também a indicação de que as reflexões sobre determinadas práticas são importantes para a construção do saber científico e das ciências, entre elas, da própria História.
Notas
1 Diálogos Historiográfi cos: Brasil e Portugal. In: Revista de História e Historiografi a vol. 10. Disponível em<http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/issue/current>. Acesso em:15 mar. 2013
2 KANTOR, I.; MIRANDA, C.P.D.C.R. Apresentação. In: Revista de História e Historiografia vol. 10. Disponível em<http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/issue/current>. Acesso em:15 mar. 2013.
Daniela Casoni Moscato – Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: historiar7@gmail.com.
Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia nos entremeios de uma pretensa revolução | Eudes Fernando Leite
A publicação do livro Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia nos entremeios de uma pretensa revolução pela Editora da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) facilita o acesso a um importante estudo sobre a história recente de Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul). Antes só era possível ter acesso às páginas desta pesquisa por meio da dissertação de mestrado apresentada pelo autor em 1994, junto ao Programa de Pós Graduação em História da Unesp, Campus de Assis-SP, ou então através de artigos publicados em periódicos e em anais de eventos acadêmicos.
O autor atualmente é professor do curso de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e tem se debruçado em pesquisas e orientações relacionadas a assuntos inerentes à história regional. É interessante notar que o texto ora resenhado traz características que marcaram as contribuições posteriores deste historiador sul- -mato-grossense, principalmente no que se refere ao diálogo interdisciplinar e à utilização de fontes orais. Leia Mais
História da África: uma introdução – LOPES; ARNAUT (RHR)
LOPES, Ana Mónica; ARNAUT, Luís. História da África: uma introdução. Belo Horizonte: Crisálida, 2005. Resenha de: SILVA, José Alexandre da. Revista de História Regional, v.16, n.1, p. 304-310, Verão, 2011.
Desde 2003, quando o Presidente Lula sancionou a lei nº 10.639, vários títulos dedicados à história afro-brasileira e africana têm surgido no mercado editorial brasileiro. O conteúdo da referida lei torna obrigatório o ensino de História Africana e Afro-brasileira nas escolas públicas e particulares de nosso país. Nesse sentido, ela cria uma demanda de materiais que sirvam de subsídio para professores da Educação Básica, alunos de graduação e a quem mais interessar. Uma das formas em que o mercado editorial vem respondendo a essa necessidade é trazendo a público livros de caráter introdutório.1 Uma dessas obras é História da África: uma introdução.
De autoria de Ana Mónica Lopes, africana nascida em Lubango, doutora em História das Culturas, e Luís Arnaut, professor de História da África na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Este livro de dimensões modestas visa introduzir o leitor ao conhecimento acerca da história da África. Não obstante, cumpre seu papel construindo um panorama do continente amparado em pesquisadores brasileiros e africanos e, seu principal mérito, traz as principais concepções historiográficas acerca do continente africano.
A conquista dos movimentos negros que representa essa lei, a nosso ver, passa por alguns dilemas. Embora algumas unidades da federação organizadas com suas Secretarias de Educação, oficialmente possuam um discurso no sentido de efetivar a lei, é outra história afirmar que ela seja de fato levada até seu objetivo final, a sala de aula. Quando se fala de história africana, logo nossas lembranças escolares nos remetem à história da escravidão, com as imagens de negros em ambiente de trabalho ou sendo açoitados. Pensando na história da África, o conteúdo escolar mais recorrente é o das navegações do século XVI, quando portugueses e holandeses contornam o continente. Essa visão repousa na representação do dominador, civilizado e possuidor de um aparato tecnológico mais sofisticado, o europeu. Em contrapartida, temos a representação do africano submisso, colonizado e destituído de objetos que remetam à ideia de tecnologia. Assim, a visão mais difundida da África continente torna-se um obstáculo.
Ao longo do tempo, esses elementos presentes nos materiais escolares e nas salas de aulas, se cristalizaram em nosso imaginário. Romper com a narrativa do negro vitimizado vindo de um lugar desconhecido pode ser um passo essencial para que os afrodescendentes se assumam como tal. Entretanto, também é importante lembrar que construir uma narrativa na qual os africanos e os afro-brasileiros figurem de forma digna não significa fomentar ódio racial ou um país cindido entre brancos e negros.2 Nosso país é composto por várias etnias, e que cada uma tenha sua história não implica em animosidade entre as mesmas.
Já na introdução da obra, os autores justificam a necessidade de seu livro apresentando a questão de como os professores ensinarão a seus alunos algo que não aprenderam nos bancos da universidade, considerando que nos cursos de licenciatura o continente aparece como secundário e marginal em relação a alguns processos históricos. No primeiro capítulo, são abordadas as várias construções acerca da ideia de África, em fontes como os textos de Heródoto, Plínio e a cartografia medieval, desde o período da Antiguidade, passando pela Idade Média e Moderna. No geral, prevalece a noção de “território de monstros”, continente associado ao “Bestiário” e região de “clima inóspito”.
O segundo capítulo questiona o termo África que, utilizado de forma genérica, como identidade estabelecida pelo europeu, para todos os habitantes do continente não permite uma matização de suas diferenças físicas, culturais e sociais, tendo sido utilizado como sinônimo de atraso. Os autores pontuam que os habitantes da África devem ser pensados como membros de civilizações e culturas que realizaram migrações, trocas culturais com outras civilizações e com padrões de sociabilidade que tornam inadequadas sua caracterização pela ótica ocidental. Há que se destacar a importância da reflexão empreendida pelos autores sobre os conceitos de raça, etnia e formação humana.
No capítulo 3, intitulado “Religiões”, Lopes e Arnaut traçam um perfil do continente africano no que tange a essa questão. A introdução das religiões monoteístas, como o cristianismo e o islamismo, é analisada de forma atenta pelos autores, os quais destacam que esta última se encontra na melhor posição para se tornar a religião do continente, devido ao seu ritmo de crescimento. No que se refere às religiões nativas, consideramos importante citar:
“[…] tentam responder às mesmas indagações que as demais religiões. Apresentam um deus superior que criou o universo e, em algumas, verificamos a presença de entidades menores […] Outro elemento importante é a ligação com os ancestrais […].” 3
O quarto capítulo trabalha a questão de como as diferentes tradições intelectuais se posicionaram diante do continente africano. A concepção hegeliana de negação de história para a África prevaleceu favorecida pela noção, superada, de se considerar o que é histórico vinculado ao surgimento da escrita. Nos dias de hoje, acredita-se que a humanidade está vinculada ao princípio da ereção corporal que possibilitou pensar outros registros, iconográficos e artísticos, como fontes de pesquisa. Os autores também mencionam a importância de alguns centros de pesquisa, que mesmo estando atrelados ao colonialismo europeu, deram uma contribuição importante para aspectos da história e geografia africana, assim como a realização do projeto História Geral da África coordenado pela na década de 1960.
O quinto capítulo versa sobre as organizações políticas. Nele, os autores trabalham com categorias de império e reinos e classificam a organização política dos povos africanos em três fases distintas até o período da colonização.
Uma se estende até o século VI da era cristã, marcada pela constituição de grandes culturas na faixa mediterrânea e na extensão do Nilo. Uma segunda até o século XV, marcada pela presença islâmica. A terceira fase vai até 1880 e é caracterizada pela presença europeia no continente.
O capítulo 6 é referente ao fenômeno que chamamos também de neocolonialismo. Até o final do século XIX, o contato dos europeus com o continente africano estava mais restrito ao litoral. Com as independências das nações latino- -americanas, voltaram sua atenção para continente que até então funcionava principalmente como repositório de escravos, partilhando-o entre si. As explicações mais comuns para esse fenômeno são realizadas a partir da perspectiva europeia, com a concentração de capital e formação de monopólios nos países colonizadores.
O livro aqui analisado traz uma perspectiva diferente, amparada na teoria da dimensão africana. Segundo essa, uma expansão do capital privado desencadeou uma ocupação militar no continente africano frente à ação de resistência dos habitantes nativos à colonização. Os europeus de fato tiveram motivos de ordem econômica para essa expansão, mas os povos do continente africano também estavam passando por transformações antes da presença europeia, de modo que a resistência dessas populações ao domínio comercial desencadeou o domínio militar. Essa resistência é categorizada pelos autores em: primária, primária retardada e intermediária. Em suas palavras: A resistência primária foi uma reação direta à ameaça representada pelos invasores europeus. Os reis buscavam através dos diversos meios disponíveis, tanto militares quanto diplomáticos, conter a invasão, ou pelo menos impedir que resultasse na extinção dos reinos. Após os europeus já terem estabelecido sua presença e sua autoridade no território africano, desenvolveu-se a resistência primária retardada.
Apesar da diferença da presença ou não do europeu, as duas resistências são chamadas de primária, na medida em que traduzem um confronto entre povos distintos […] A resistência intermediária revela uma acomodação entre as antigas estruturas africanas e as novas estruturas coloniais. A partir da década de 1920, assistimos a uma acomodação e a um ajustamento à nova situação na qual os africanos e os europeus participam, de forma assimétrica, é verdade, da mesma configuração social.4 O domínio colonial é tema do capítulo 7. Lopes e Arnaut explicam o êxito do domínio militar dos europeus com cinco razões: superioridade militar e logística; maior estabilidade; maiores recursos materiais e financeiros; maior conhecimento do continente; e o avanço da medicina tropical. As primeiras e principais preocupações dos europeus foram no sentido de coagir mão de obra para abastecer os portos com produtos nativos e expropriação da propriedade da terra em favor dos colonos.
A violência, o extermínio biológico e cultural são apenas algumas das facetas da colonização europeia na África. Lopes e Arnaut destacam outros elementos que necessitam ser considerados ao se analisar esse processo histórico. A colonização europeia trouxe transformações significativas para os africanos tais como: a urbanização, propagação da educação formal e formação de uma nova identidade. Esse último elemento foi fundamental no processo de luta pela independência dos países africanos. Essas independências são tema do capítulo 8, no qual os autores problematizam a forma como a temática é apontada nos livros didáticos. O termo independência é apresentado como forma de pensar o processo de fim de domínio de nações europeias sobre o continente africano, em contraposição ao termo descolonização.
Essa última designação, também utilizada por professores de História em sala de aula, elimina vestígios da luta africana nesse processo e fortalece uma visão etnocêntrica do processo histórico em questão.
Também destacamos a importância de um item ao final livro que apresenta uma lista de filmes cuja temática é África. Os comentários que acompanham cada filme podem bem auxiliar professores numa eventual escolha para trabalhar com seus alunos. Nesse mesmo item, também pode ser encontrada uma cronologia detalhada das independências africanas, trazendo dados como ano, data, chefe de governo, principais partidos e fatos ligados ao evento. Na sequência, encontra-se uma considerável lista de sugestões bibliográficas agrupadas em torno de grandes temas que podem servir como roteiro de um estudo mais aprofundado. Também observamos a presença de alguns erros gráficos que esperamos sejam corrigidos em edições posteriores.
A obra ora resenhada cumpre bem seu papel de introduzir ao conhecimento de história da África. Pode ser bastante útil tanto a professores do Ensino Fundamental e Médio, bem como a acadêmicos das Ciências Humanas e ao público em geral. Trata-se de um trabalho introdutório que oferece ao leitor um panorama historiográfico, e não meramente informativo, do tema abordado, a África, o que pode ser destacado como ponto forte da obra. Outro elemento que merece atenção diz respeito à forma como os autores abordam o impacto da colonização europeia no continente não de forma maniqueísta, colonizador versus colonizado, mas como elementos que integram um processo histórico que cotidianamente desafia os africanos na busca de novos rumos para o seu continente.
Notas
1 Sobre algumas dessas obras traçamos algumas reflexões: SILVA, José Alexandre. África e Brasil Africano para a sala de aula. Históriae-História. In: http://www. historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=resenhas&id=21; _____ Ancestrais: uma introdução à História da África Atlântica. Revista África e Africanidades. Ano I – n. 4 – Fev. 2009. In: http://www.africaeafricanidades.com/documentos/ Ancestrais_uma_introducao_a_historia_da_Africa.pdf
2 Este argumento é defendido por alguns autores, entre os quais destacamos: MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue. São Paulo: Contexto, 2009. Ver: SILVA, José Alexandre. Históriae-História. In: http://www.historiaehistoria. com.br/materia.cfm?tb=resenhas&id=60
3 LOPES, Ana Mónica; ARNAUT, Luís. História da África: uma introdução. Belo Horizonte: Crisálida, 2005, p. 30-31.
4 LOPES, Ana Mónica; ARNAUT, Luís. História da África: uma introdução. Belo Horizonte: Crisálida, 2005, p. 64.
José Alexandre da Silva – Professor de História da Secretaria de Estado de Educação do Paraná, e mestrando em educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: sjosealexandre@ymail.com.
O jogo de Deus, do homem e do bicho – GOMES (RHR)
GOMES, Frederico (Org.). O jogo de Deus, do homem e do bicho. Rio de Janeiro: Ed. UERJ/Léo Christiano Editorial, 2011. Resenha de: BENATTE, Antonio Paulo. 300 Revista de História Regionalv.16, n.1, p.298-303, 2011.
Acaba de vir a lume um pequeno e precioso livro intitulado O jogo de Deus, do homem e do bicho. Além de textos de Léo Christiano, Alexei Bueno, Italo Moriconi, Cássio Loredano, Leonardo Filipo e Frederico Gomes, a obra traz uma amostragem da poesia e da iconografia do jogo do bicho na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e inícios do XX. A cuidadosa impressão em papel couchê, com design e projeto gráfico de Mary Paz Guillén, valoriza as estampas coloridas de um artista anônimo, garimpadas no acervo dos colecionadores Carlos Augusto Ribeiro de Camargo e Julio Diniz Andrade Pinheiro.
As imagens representam animais humanizados e colocados em situações antagônicas – como nas fábulas de Esopo, Fedro e La Fontaine – e remetem a variadas situações do cotidiano carioca e brasileiro: a falta de ética na política, as relações desiguais de poder, as conjunturas econômicas que penalizam os mais pobres, os dramas das relações amorosas, etc. Os poemas, curtos e ao gosto popular, são invariavelmente acompanhados por um palpite para uma “fezinha” (“veja o n. 8”, “veja o n. 14”) e também aludem com humor a situações do dia-a-dia. Ambos, poemas e imagens, vinham de brinde nos maços de cigarros Veado, produzidos e comercializados pela Companhia Manufactora de Fumos, situada numa cidade que não existe mais (muito embora alguns personagens e situações persistam até os dias de hoje). Eis, por exemplo, “O elefante e o camelo”:
O câmbio, senhor Camelo, Não passa duma alcatéia De lobos que nos rodeia.
É o nosso pesadelo! Para o baixar, ou mantê-lo, Dos espertos à feição, Roda, gira, corcoveia Mente, engana, trapaceia, Uma enorme multidão Desde o banqueiro ao zangão! Adivinha, ó Zé Pacato Onde diabo está o gato! (Veja o n. 8) Ou este outro, “O cachorro e o gato”: Só política ou dinheiro Podem entre gato e cão Formar a concentração E ser o casamenteiro.
Passeiam de braço dado Os figadais inimigos Parecem velhos amigos, Ou um casal bem casado.
Com eles ninguém se estrompe Quem não conhecer que os compre. (Veja o n. 14)
O livro é muito bem vindo. Primeiro porque, como dizia o poeta Murilo Mendes, o homem é o único animal que joga no bicho (o bicho, portanto, fala do que é humano e social); segundo, porque é apresentado como o primeiro de uma coleção, a Memória iconográfica do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Quando nos damos conta de que muitos dos grandes ilustradores cariocas e brasileiros – como Angelo Agostini, J. Carlos e outros – empunharam penas e pincéis para Antonio Paulo Benatte representarem o universo lúdico, onírico e mágico do dito jogo, podemos esperar outras publicações de importância não apenas estética como histórica. Tratam-se, em suma, de fontes importantes para a compreensão de um dos fenômenos socioculturais mais complexos do Brasil moderno e contemporâneo. Terceiro porque, simplesmente, não se pode compreender o Brasil dos últimos 120 anos, sua cultura e instituições, sem compreender o denso imaginário associado ao jogo do bicho. E não vai aqui nenhum exagero, que este resenhista não joga, nem é cambista ou bicheiro.
Apesar de combatido e de ter perdido quase que completamente sua aura “romântica”, o bicho faz parte da realidade brasileira desde a década de 1890, acompanhando de perto todos os percalços de nossa atribulada história republicana.
Esse jogo – a maior contribuição do homo brasiliensis ao patrimônio lúdico e contravencional da humanidade – é um fato social total, enraizado profundamente em nossa cultura; ele faz rizoma com uma ampla camada de real e de imaginário, de concreto e de simbólico, de prosaico e de poético, de patético e de onírico; inextirpável, é uma verdadeira instituição tupiniquim, articulada a muitas outras instituições, como o carnaval, o futebol, a música popular, a política, a religião, a economia, a polícia, a malandragem, a bandidagem e por aí vai.
Cedo os observadores chamaram a atenção para a complexidade de um fenômeno que, no começo do século passado, já se espalhara por todo o país. Em 1935, o folclorista Oswaldo Cabral aludia a uma prática já solidamente estruturada: O jogo é feito por toda a parte, quando as autoridades policiais não se encontram nas fases agudas das perseguições…
Há cambistas, agentes, book-makers, “bicheiros”, como se diz na linguagem popular, pelas ruas, praças, nos cafés, em casas lotéricas, em cigarrarias e engraxatarias, nos mercados, nos negócios, nas “vendas” e “verduras”, em toda a parte, afi nal […]1
O jogo de Deus, do homem e do bicho Alguns observadores associaram o jogo à alma do brasileiro, um de seus traços de caráter e signos de identidade.
Em Brasil, país do futuro (1941), o escritor austríaco Stefan Zweig admirou-se do “quão profundamente [a] paixão pelo azar corresponde ao caráter sonhador deste povo”. Ele se refere de modo geral às loterias e particularmente ao bicho: Esse jogo, talvez precisamente por ser proibido, invadiu todos os círculos sociais: toda criança no Rio, mal havia aprendido na escola a contar, já sabia que número correspondia a cada bicho e sabia dizer toda a série de bichos melhor do que o alfabeto.2 O sociólogo francês Roger Caillois, no fi nal dos anos 1950, reelaborou uma ideia tornada então verdade científica: Jogar é renunciar ao trabalho, à persistência, à poupança e aguardar a jogada feliz, que, num ápice, proporciona aquilo que uma extenuante vida de labor e privação não concede, se não se tiver sorte ou não se recorrer à especulação, que, por sua vez, depende da sorte.
Caillois considera que “O jogo brasileiro tem a vantagem de mostrar claramente as relações entre a alea e a superstição”; e, referindo-se à sociedade brasileira, conclui: A paciência e o esforço, que proporcionam um lucro pequeno, mas seguro, são substituídos pela miragem de uma fortuna instantânea, a possibilidade súbita do ócio, da riqueza e do luxo. Para a multidão que trabalha penosamente sem acrescentar algo de visível a um bem-estar muito relativo, a oportunidade do grande prêmio aparece como a única forma de um dia poder sair de uma condição humilhante e miserável.
O jogo escarnece do trabalho e representa uma solicitação rival que, pelo menos nalguns casos, assume importância bastante para determinar em parte o estilo de vida de uma sociedade.3
Poder-se-ia multiplicar os exemplos da problematização do jogo no pensamento social brasileiro, de Gilberto Freyre a Roberto DaMatta, de Afonso Arinos de Melo Franco a Vianna Moog, sem que se esgotem as possibilidades de análise. A historiografia, como de praxe, chegou atrasada (não era um tema academicamente digno, nem à direita nem à esquerda, no tempo em que essas palavras ainda significavam alguma coerência ideológica); felizmente, alguns historiadores mais livres de preconceitos vêm se detendo sobre a trajetória do bicho, cientes de que é impossível compreender as práticas e representações em torno do jogo sem apreender- lhe a dinâmica cultural específica: não se trata, é óbvio, de apenas mais um caso de polícia, repressão e resistência.
Por isso, a publicação de textos e imagens como os resgatados nessa obra é importante, pois evidencia a presença do jogo na cultura por um viés muito diferente dos discursos jurídico-policiais, da imprensa “burguesa” ou dos moralistas que trataram da questão da jogatina desde o final do século XIX.
Os discursos mais cientificistas não deixaram de associar a invenção do Barão de Drummond a “elementos psicológicos” das raças “primitivas” que compuseram, junto com o branco europeu, o substrato étnico e cultural da população brasileira. A crença na sorte, atitude mental essencial na prática dos “jogos de azar” ou de alea (e o bicho é essencialmente uma loteria ou um “jogo de azar”), foi vista como incompatível com uma mentalidade esclarecida e com uma atitude racional perante a vida e o mundo, a começar pelo mundo do trabalho.
Para as elites modernizadoras e os sacerdotes da nova religião do progresso, a crença na sorte – a ideia mesma de “salvação pelo acaso” – foi interpretada como uma forma de persistência residual de um modo de pensar tradicional, espécie de “mentalidade pré-lógica” que obstava o progresso do país e a sua inclusão no concerto das nações modernas, industrializadas e civilizadas. Nas práticas lúdicas populares, esses “pedagogos da prosperidade” (como diria Sérgio Buarque de Holanda) liam um sintoma do atraso psicológico e cultural que separava o povo brasileiro do homo oeconomicus capitalista, representado como modelo virtuoso do trabalhador ideal, produtivo e econômico. Nesse sentido, o fim da religião do progresso, a crise dos grandes modelos explicativos e a falência dos valores, ideários e imaginários da modernidade têm propiciado uma melhor compreensão do que anteriormente só se nos aparecia como um obstáculo à mudança ou um signo do arcaísmo das massas ignaras.
Muitas explicações têm sido dadas sobre o complexo do bicho; não é o lugar aqui para ensaiar uma própria. Mas, sem querer endossar nenhuma metafísica, é possível afirmar que a crença na sorte é uma dessas atitudes profundas, uma constante antropológica de longuíssima duração na história, e para as quais chamaram a atenção os historiadores das mentalidades; atitudes inseridas em quadros mentais resistentes aos movimentos da sociedade, e que se transformam mais lentamente que as conjunturas econômicas e os acontecimentos políticos.
Seja como for, o livro O jogo de Deus, do homem e do bicho é uma contribuição de relevo para os leitores curiosos de nossas coisas, boas ou ruins, e principalmente para os eruditos estudiosos de nossa zoologia cultural. Em tempo: a obra é também uma comemoração dos 60 anos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o que por si só justificaria sua publicação.
Antonio Paulo Benatte – Pós-Doutor em História pela UNICAMP; pesquisador-colaborador da mesma instituição. Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: apbenatte@uepg.br.
A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura – WADI (RHR)
WADI, Yonissa Marmitt. A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura. Uberlândia: EDUFU, 2009. 464 p. Resenha de: CONEGLIAN, Lucimar. Revista de História Regional v.15, n. 2, p.283-287, Inverno, 2010.
A História de Pierina: subjetividade, crime e loucura é resultado do trabalho de doutorado de Yonissa Marmitt Wadi, professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. A autora tem como temáticas de pesquisa: história da loucura e da psiquiatria; cultura, gênero e memória; sociedade e desenvolvimento regional; e práticas culturais e identidades.
Pierina Cechini – a protagonista do livro – nasceu no ano de 1880, foi a sexta fi lha de Antonio e Maria, italianos imigrantes. Na manhã da segunda feira, dia 26 de abril de 1909, no dia da missa de sétimo dia da morte de seu pai, ela cumpriu a promessa que vinha fazendo há alguns meses: matou sua fi lha de dezessete meses de idade através do afogamento em uma tina de lavar roupa. Esse ato desencadeou no indiciamento de Pierina e posteriormente sua internação no Hospício de São Pedro, de Porto Alegre.
Mas o que traz de relevante Pierina para que, quase um século depois de sua existência, estimular uma pesquisadora a produzir uma tese de doutorado sobre sua história? Nas palavras de Wadi, o resgate da história de “uma mulher singular” mostra “quão amplas e diversas, confl itantes, tensas e controversas podem ser as dimensões e possibilidades de uma vida” e contribui “na tarefa de desvelar como é múltiplo o social e quanto podem ser enganosas as impressões sobre a ‘importância’ de certos sujeitos sociais” (p. 25). Pelo olhar de Wadi, Pierina oportuniza a descrição da vida quotidiana de uma mulher pobre, fi lha de imigrantes italianos, que viveu nos primeiros anos do século XX, no município de Garibaldi, no Estado do Rio Grande do Sul.
Fato interessante a destacar é que, ainda que o livro tenha rendido 464 páginas, as fontes diretamente ligadas à biografada foram poucas: o registro policial de um crime e algumas cartas escritas por Pierina quando interna em um hospital psiquiátrico. Com essas parcas fontes, associada a uma farta pesquisa histórica sobre a dimensão de gênero e de loucura naquele período, a autora desvela com maestria a condição do feminino das imigrantes. A pesquisa contribui com informações sobre diferentes aspectos do viver dos imigrantes no início do século XX: a forma de organização da família; as condições econômicas; as questões de distribuição das terras; o acesso aos serviços de saúde; a prática da medicina convivendo com as práticas e crendices populares; o tratamento mental nos hospícios da época.
O livro está dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado Caminhos, a autora se aplica na explicação de como era o quotidiano de trabalho dos imigrantes italianos, especialmente das mulheres. Contempla como se dava a relação das famílias com a terra e as distribuições dos lotes feitas pelo governo do Rio Grande. Ainda, nele é apresentada a história pessoal da protagonista – a escolha do noivo, o casamento e as relações com o marido, o nascimento da fi lha.
Wadi contextualiza muito bem aspectos do viver quotidiano da biografada e muito do que está contido nesse capítulo refere-se às possibilidades de existência naquele período histórico. Seguindo Ginzburg (1989), a autora reconstitui a biografi a de Pierina a partir da história de outros “homens e mulheres do mesmo tempo e lugar” (p. 48).
Como a história de tantas outras mulheres suas contemporâneas, Pierina trabalhava nas lidas domésticas e em serviços ligados a terra, cumprindo o papel cultural dado à mulher naquele período histórico. Cabia às mulheres fazer as tarefas domésticas acrescidas de algumas das tarefas na lavoura: o preparo, o plantio e o cuidado das plantações. As tarefas domésticas incluíam não apenas a arrumação da casa e o preparo dos alimentos, mas também a confecção das roupas, do sabão, do artesanato, entre outros, contribuindo, sobremaneira, com a economia doméstica. Sobre esse período de sua vida, Pierina registra, nas suas cartas, o desconforto e o desencanto de viver a vida de uma mulher pobre no início do século XX.
No Capítulo 2, Loucuras…, a autora problematiza aspectos sobre a ‘perturbação e sofrimento’ de Pierina. Existia difi culdade de compreensão, por parte dos familiares e da comunidade de entorno, no entendimento de suas queixas relacionadas ao desgosto e tristeza que sentia. Wadi aponta “que ela queria morrer e que achava que todos da família também deveriam, pois eram muito pobres” (p. 184), sentimento esse que Pierina registrou em seus escritos através da “hideia de querer morer de fome” (p. 198).
Ainda neste capítulo, são retratadas as difi culdades dos imigrantes pobres em relação aos tratamentos médicos, e as relações que interconectavam a medicina, o uso de plantas medicinais e as crendices populares ligadas ao curandeirismo.
No caso de Pierina existiu indícios de a família ter recorrido a várias práticas usuais na época: chamaram o médico que “parece não ter encontrado doença em Pierina” (p. 185), mas, mesmo assim, receitou-lhe remédios. Recorreram ao saber popular manifestado pela atitude de afastar a fi lha da mãe com o intuito de interromper a amamentação, vista como causa do enfraquecimento de Pierina. Foi ainda ministrada a técnica da sangria, “baseando-se na acepção de que o alívio das tensões, provocado pela saída do sangue, poderia restabelecer o equilíbrio de um corpo desequilibrado, portanto doente” (p. 241). Ocorreu também a tutela de cuidados efetivada pelas freiras do convento local, numa mistura de práticas higienista com religiosidade na busca da cura.
Cada uma dessas intervenções pretensamente terapêuticas são discutidas por Wadi em profundidade, resultando esse capítulo em importante fonte de pesquisa histórica nessa temática. O terceiro e último capítulo, descreve a trajetória da protagonista a partir do assassinato de sua fi lha, Elvira Maria. Este capítulo demonstra como as questões de gênero estão imbricadas no inquérito policial, que chamou para testemunhar apenas fi guras masculinas. Isso também direcionou o destino de Pierina, uma vez que Wadi sugere que a lógica masculina à época desconsiderou as queixas de infelicidade que ela há meses manifestava para sua família e conhecidos. Apesar de Pierina ser incansável em sua tentativa de não ser vista como louca – “eu não so loca, eu so criminosa” (p.327) -, fato repetido em suas cartas, na data de 05 de julho de 1909 ela foi internada no Hospício São Pedro.
“A mística de um amor materno inato à natureza feminina surgiu, invocada pelos peritos, para comprovar o caráter distorcido de Pierina” (p. 370). Crime ou ato de loucura? Considerar a ação de Pierina como crime implicaria em qualifi car as razões apresentadas por ela para explicar o ato cometido.
Considero este capítulo especialmente interessante no que diz respeito à descrição da lógica presente naquele tempo histórico sobre a loucura. O quotidiano de tratamento no Hospício São Pedro, com sua ‘terapêutica moral’; as manifestações de insatisfação dos médicos diretores e tentativas de melhoria dos serviços; a laborterapia, geralmente atrelada às questões de gênero, reforçando a normatização dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres; estas são questões importantes na compreensão da história da psiquiatria no país.
Pierina queria ser ouvida e, para isso, escreveu. Porém, as cartas de Pierina foram interpretadas como sintomas de doença, frustrando seu intuito de comunicar-se e expor as razões de seu crime. Seu “projeto de comunicação foi totalmente ingênuo, como o de todo escrevente que acredita ser a explicação contida em seus escritos, irreversível ou incontestável” (p. 37). Seu discurso e suas ações foram classificados, como está registrado no Prontuário do Hospício São Pedro como “depressão melancólica com idéias delirantes místicas associadas à perversão dos sentimentos afetivos – psicopatia constitucional” (p. 351). Com o diagnóstico posto, a fala de Pierina ficou desqualificada e silenciada. As razões de a pena ter sido cumprida no hospício e não na cadeia envolve uma série de análises vinculadas às questões de gênero, já que a história das mulheres e a experiência social da loucura, são “espaços onde se cruzam, misturam e confundem-se as relações de gênero, as relações sociais e as relações de poder” (p. 44).
A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura é um trabalho exemplar no que diz respeito à conjugação de “sinais, vestígios e pistas tênues deixados pela escritura de Pierina” (p. 25). Wadi, ao retirar Pierina da invisibilidade histórica, qualifica-a como sujeito social importante na compreensão das relações sociais, de gênero e de loucura nos anos iniciais do século XX.
Lucimar Coneglian – Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – PR. Psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial de Castro. E-mail: luconeglian@ uol.com.br.
As guerras dos índios Kaingang. A História épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924) – MOTA (RHR)
MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang. A História épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924). 2ed revisada e ampliada. Maringá: EDUEM, 2009. 301 p. Resenha de: NOELLI, Francisco Silva. Revista de História Regional, v.15, n.2, p.280-282, 2010.
A segunda edição revisada e ampliada deste livro é muito bem-vinda. Sua trajetória começou em 1992, quando foi apresentado e defendido como dissertação de mestrado. Em 1994, foi modificado e preparado para edição, sendo um dos primeiros títulos publicados pela EDUEM, Editora da Universidade Estadual de Maringá, no Paraná. Após dezesseis anos, é possível dizer que se tornou uma obra de referência de história indígena no Brasil, sobretudo dos Kaingang e da Região Sul do país. Foi o ponto de partida para um amplo projeto de história regional, tendo o Paraná como espaço principal e uma série de temas desenvolvidos posteriormente por Lúcio Tadeu Mota, como a tese de doutorado O aço, a cruz e a terra: índios e brancos no Paraná provincial (1853-1889), defendida em 1998; e os livros: As colônias indígenas no Paraná Provincial (2000) e Os Kaingang do vale do rio Ivaí-PR: História e relações interculturais (2008), co-autoria com Éder Novak; e vários livros e artigos sobre a história dos Kaingang e outros povos indígenas, sem contar as publicações dos seus alunos e parceiros de pesquisa.
Foram duas prolíficas décadas e um exemplo bem sucedido de interiorização da pesquisa, com a participação de Mota na criação do Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações da Universidade Estadual de Maringá, em 1997.
Além de analisar um período de 163 anos, As guerras dos índios Kaingang estabelece as linhas gerais para uma história dos Kaingang, sobre suas relações interculturais e alguns dos seus principais líderes. Também mostra possibilidades na ampliação de temas mais comuns da historiografia paranaense, sobretudo na atualização teórica e metodológica de caráter multidisciplinar. Um aspecto decisivo da abordagem desenvolvida é a crítica à historiografia hegemônica produzida no Paraná até o início dos anos 1990, que defendia teses anacrônicas sobre um “vazio demográfico” anterior à presença européia. Sua crítica foi construída a partir de uma farta documentação obtida em fontes publicadas e inéditas, desmistificando uma construção “arquitetada e divulgada” pelos intelectuais paranaenses.
O principal mérito do livro está no levantamento de dados e na sua articulação, a partir de uma perspectiva póscolonial, dedicada a transformar os Kaingang em sujeitos capazes de defender sua autodeterminação nos diversos embates e contatos com os “brancos”. Mota conseguiu alterar um padrão historiográfico que se pautou por omitir, sabotar e diminuir o papel das sociedades indígenas na formação das sociedades paranaenses desde o período colonial até as primeiras décadas da República.
A parte 1 analisa as principais idéias de historiadores, geógrafos e sociólogos, debatendo as noções de vazio demográfico, terra de ninguém e terras devolutas. O autor analisa o impacto dessas perspectivas nos livros didáticos e na obras que cantaram a apologia à colonização regional, a partir do século 19.
A parte 2 trata das populações indígenas no Paraná, descrevendo suas principais características e delimitando seus territórios. Constitui uma das descrições mais completas dos territórios Kaingang, sendo aperfeiçoada e ampliada nas pesquisas posteriores do autor. Resume os principais elementos das várias estratégias Estatais estabelecidas para o tratamento político e fundiário dos Kaingang, que foram da guerra à diplomacia, mas ao fi m e ao cabo, acabaram por submeter os direitos e a autodeterminação indígena aos interesses dos agentes do Estado, ao confinamento em verdadeiros campos de concentração e ao descaso com os direitos mais básicos da cidadania. Além disso, foram acrescentados mais dados de arqueologia, ampliando e atualizando o texto em relação à primeira edição.
A parte 3 apresenta detalhes sobre os Kaingang, centrando- se em aspectos mais tradicionais da etnografia, sobretudo dos equipamentos e táticas usados para resistir aos enfrentamentos bélicos com as forças coloniais. Mostra as principais guerras e a resistência às tentativas de desterritorialização e confinamento, tentadas pelos diversos representantes do poder público desde 1769 até o período republicano.
Também apresenta as estratégias não militares de resistência e uma lista de caciques, descrevendo suas ações em relação aos “brancos”.
É um livro importante que merece ser lido e debatido, pois apresenta vários temas que devem ser mais pesquisados e desenvolvidos sobre a formação da sociedade e do território do Paraná. É possível declarar que, em termos de ruptura com as perspectivas coloniais da historiografia paranaense, este trabalho é um divisor de águas e a abertura para o caminho da história indígena. Há vinte anos Lúcio Tadeu Mota trouxe uma novidade científica e política. Novidade, por que refletia o papel efetivo dos Kaingang na história paranaense, com uma abordagem ainda hoje pouco usual no estado. Política, por que considerou os Kaingang como sujeitos reais do passado e do presente do Paraná, dignos de serem vistos e tratados como cidadãos.
Francisco Silva Noelli – Arqueólogo e Historiador. Prof. aposentado do Departamento de Fundamentos da Educação. Pesquisador do Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações, Universidade Estadual de Maringá.
Descoberta de Foz do Iguaçu e a fundação da Colônia Militar – José Maria de Brito
BRITO, José Maria de. Descoberta de Foz do Iguaçu e a fundação da Colônia Militar. Curitiba-PR: Travessa dos Editores, 2005. Resenha de: SBARDELOTTO, Kloeckner. Revista de História Regional, v.14, n.2, p.206-211, Inverno, 2009.
Uma obra inédita e rica em detalhes, a “Descoberta de Foz do Iguaçu e a fundação da Colônia Militar”, foi escrita por José Maria de Brito no ano de 1938, quando, já no fi nal de sua vida, se incumbiu de deixar registrado aquilo que presenciou como membro da Expedição Militar designada pela Comissão Fundadora da Colônia Militar do Iguassu, instalada onde hoje se situa a cidade de Foz do Iguaçu, considerada o centro urbano “pioneiro”2 do Oeste do estado do Paraná. Publicada pela primeira vez em 1938, em tiragem muito pequena – encontramos um exemplar original apenas no Arquivo Público do Paraná –, esta obra é rara e retrata na forma de testemunho parte da história do estado do Paraná e principalmente de sua região Oeste. Foi reorganizada e reeditada no ano de 2005, pela Travessa dos Editores, sob apresentação do jornalista e escritor Beto Maciel e do editor Fábio Campana. Nesta segunda edição foi acrescentado um anexo: a transcrição de um manuscrito de audiências particulares com colonos da Colônia Militar do Iguassu, datado de 1907, encontrado no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e pertencente aos relatórios do Ministério do Exército.
A história a que se dedica o piauiense José Maria de Brito se confunde com sua própria história de vida. Ele fez parte do Destacamento da Expedição Militar, chefiado pelo 2º tenente José Joaquim Firmino, e acompanhou todo o penoso percurso da viagem e a fundação da Colônia Militar do Iguassu. Depois da fundação, Brito voltou à cidade de Guarapuava onde foi incumbido de aldear e catequizar índios Guaranis, encontrados durante a Expedição e reunidos em Catanduvas e Formigas. Posteriormente, regressou à Foz do Iguaçu onde exerceu a função de sargento Almoxarife da Colônia Militar do Iguassu e Agente da Companhia de Vapores – La Platense. A seguir, exerceu outros cargos públicos, até mesmo de professor da zona rural do município de Foz do Iguaçu. Nos seus últimos anos de vida José Maria de Brito adoeceu e passou por sérias dificuldades financeiras – em 11 de outubro de 1939, através do Decreto Municipal n.º 4, Brito passou a receber uma pensão anual, por ser na época o único membro ainda vivo da Expedição que fundou a Colônia Militar do Iguassu. Em Foz do Iguaçu, conheceu uma índia, casou-se, constituiu família, fi xou raízes e ali faleceu em 1942. É importante observar que a obra de Brito não se caracteriza como um relato de viagem. Ele só se empenhou neste registro muitos anos depois dos fatos vivenciados – há quem diga que a pobreza e o abandono foram os elementos que o impulsionaram a esta tarefa. Como resignado militar que era, Brito o fez também obedecendo ao sentimento de “prestar mais um serviço ao meu país”.
No primeiro capítulo, “A fronteira no fim do Império”, o autor contextualiza o cenário histórico-político-social dos anos finais do regime Imperial e início do regime Republicano. Explica que a ideia de “descobrir” a foz do Iguaçu, ocupar a região estratégica da tríplice fronteira fundando uma Colônia Militar e construir um forte e uma flotilha3 da Marinha Nacional já eram assuntos muito discutidos durante os anos finais do Império, mas, por razões políticas, permaneceram por muito tempo no esquecimento.
Três questões foram responsáveis pelo atraso da “descoberta” da foz do Iguaçu: a “Questão Militar”, a luta abolicionista e os ideais propagandistas civis-republicanos. Brito afirma que, quando o Exército uniu-se aos abolicionistas e aos civis-republicanos, estes ideais se tornaram mais fortes.
Em 1888, quando a “Questão Militar” foi resolvida e João Alfredo Corrêa de Oliveira assumiu o Ministério da Guerra, a classe militar passou a ser vista com bons olhos pelo governo e, com esta harmonia, o estado do Paraná se tornou um terreno mais confortável para as ações do Exército.
No segundo capítulo, “A Expedição”, Brito apresenta em riqueza de detalhes a fauna, a fl ora e os principais acontecimentos durante a longa viagem à foz do Iguaçu. Em 1888, um dos primeiros atos do novo Ministro de Guerra foi a criação de uma Comissão Militar sob o comando do capitão Bellarmino Augusto de Mendonça Lobo. A Comissão tinha uma grande lista de encargos, dentre eles “descobrir a foz do Iguaçu; fundar uma Colônia Militar na mesma foz.” Esta Comissão foi oficializada no Rio de Janeiro e enviada à Guarapuava, escolhida para ser a cede por ser o centro urbano mais próximo da região em que os trabalhos seriam realizados. A Comissão compôs uma Expedição Militar, sob o comando do 2º tenente José Joaquim Firmino e começou seus trabalhos no Km 16 da estrada que ligava Guarapuava à Colônia Militar do Chopim.
É interessante como o autor associa a aventura da Expedição e o papel de Firmino aos grandes feitos da história dos bravos e grandes homens que, tais como Napoleão, Colombo e César, enfrentavam seus medos e todas as adversidades em prol de uma causa nobre. Apesar de a história para ele ser apenas a história dos vencedores, de fato, as adversidades do trajeto foram reais: dias de constantes chuvas, caudalosos e intransponíveis rios, barracas muito pequenas, roupas mofadas, desenvolvimento de bronquites e outras moléstias, terrenos acidentados, ataques de tigres e falta de alimentos.
Brito não relata a resistência indígena, mas apenas a colaboração às necessidades da Expedição e se refere a eles como “selvagens”, “filhos das selvas”, “irmãos das selvas” – sob forte influência católica, o que demonstra a união da Igreja ao poder do Exército. Sua concepção era ainda aos moldes jesuíticos: de catequizá-los, civilizá-los e pacificá-los, para que fossem chamados “ao centro da civilização”. A obra apresenta apenas vantagens do “grande feito” do Exército ao “descobrir” a foz do Iguaçu – aumento da população, domínio de um ponto estratégico, fonte de rendas, estreitamento de laços de amizade com o Paraguai e a Argentina –, porém não considera os prejuízos que a ocupação brasileira causou aos povos indígenas que ali já habitavam.
No terceiro capítulo, “A Fundação da Colônia Militar”, o autor retoma detalhes sobre a longa viagem da Expedição e relata as providências tomadas logo após a “descoberta” da foz do Iguaçu. Recém chegados, após 69 dias de viagem, Firmino tornou público que já havia autoridade na foz do Iguaçu e que esta assumiria a competência de conceder lotes aos colonos interessados – embora esses títulos nunca chegassem às mãos dos colonos. Além disso, Firmino tratou de tomar “providências com o fi m de coibir abusos no território descoberto” e avisar que “daquela data por diante não seria mais permitido explorações nas matas brasileiras sem prévia autorização do Governo.” Quanto a estes abusos, Brito se referia aos estrangeiros, principalmente argentinos e paraguaios, que durante anos devastaram o Oeste do Paraná com a extração de erva-mate e de madeira. Portanto, a “descoberta” da foz do Iguaçu foi uma iniciativa de salvaguardar a região geograficamente estratégica da tríplice fronteira e tomar a posse efetiva de um território que pertencia legalmente ao Brasil.
Brito se propõe a corrigir erros cometidos por algumas publicações de sua época, em português e espanhol e que, segundo ele, não exprimiam a verdade sobre certos fatos.
Cita a questão da data de fundação da Colônia Militar que, segundo ele, alguns autores equivocaram-se afirmando ter ocorrido no ano de 1888. Além disso, explica que a Colônia foi instalada em um local diferente do que previam as Instruções devido ao fato de que, diante da seca daqueles meses e a falta de água, os Diretores da Colônia resolveram deslocá-la “provisoriamente” – que acabou sendo definitivo – para um local mais perto da barra do arroio. Os equívocos em relação ao ano de chegada e o local da cidade foram esclarecidos por Brito, entretanto sua narração cai em outras contradições.
No segundo capítulo, o autor afirma que a turma exploradora teria chegado ao seu objetivo, à foz do Iguaçu, no dia 15 de julho de 1889 e, no terceiro capítulo, afirma que a Expedição chegou ao Iguaçu em 22 de novembro de 1889! Outro ponto contraditório é em relação à partida da Expedição: no primeiro capítulo Brito afirma que ela teria começado seus trabalhos em 25 de Novembro de 1888 e que os trabalhos anteriores à partida ocorreram em 7 meses e 20 dias. Mas, se foram 7 meses e 20 dias, como Brito pode afirmar, no terceiro capítulo, que a Expedição partiu de Guarapuava em 16 de Setembro de 1889? Além destas contradições, o livro mostra a versão dos fatos de um ângulo decididamente militar e elitista. Com demasiado saudosismo, a obra enaltece o papel do Exército, cuja presença para o autor era a única garantia de “ordem e progresso”. Ao término do terceiro capítulo, Brito apresenta os últimos avanços de Foz do Iguaçu e associa-os às ações do Governo Federal. O faz com um ufanismo característico da década de 1930, típico de um membro militar que vê no retorno do Exército ao poder – a chamada “Revolução de 30” – a possibilidade de renovar suas esperanças patrióticas e de marchar rumo ao progresso.
O manuscrito de audiências particulares do Ministério de Guerra é ainda mais revelador. Mostra os conflitos existentes na Colônia, quem mandava e quem obedecia. Revela que os “negociantes” e extratores de erva-mate e de madeira mais abastados – dentre eles o Coronel Jorge Schimmelpfeng – eram aqueles que decidiam quem permaneceria com lote, quem receberia ajuda ou permaneceria na Colônia. E mais. Os “poderosos” economicamente desrespeitavam as leis da Colônia, apossavam-se ou exploravam lotes alheios e não recebiam punição alguma da Diretoria da Colônia.
Apesar das contradições, o livro de José Maria de Brito tem implicações indiretas significativas para pesquisa e para educação na região de Foz do Iguaçu e de todo o Oeste do Paraná.
Os materiais bibliográficos desenvolvidos sobre a educação nesta região ainda são escassos, tanto quanto o são os materiais de fontes primárias, documentais e fotográficos.
Portanto, as pesquisas no âmbito da Pós-Graduação em história, história da educação e outras diversas áreas, podem encontrar no trabalho de José Maria de Brito uma importante fonte explicativa da gênese da sociedade iguaçuense, que não deixa de exercer inf uência em todo o território do Oeste do Paraná. Os professores e estudantes de graduação também encontrarão nesta obra uma significativa fonte de pesquisa sobre esta região. Além disso, o texto de José Maria de Brito pode ser explorado em especial nos cursos de licenciatura, nos quais existem orientações no sentido de se conhecer a história do Paraná, para posteriormente ensiná-la nas escolas. Portanto, o ensino da história local nas escolas, principalmente nas séries iniciais do Ensino Fundamental de Foz do Iguaçu, só tem a ser enriquecido considerando os importantes dados registrados por José Maria de Brito.
Trata-se de um único registro existente de um membro fundador da Colônia Militar do Iguassu. É um livro pequeno no tamanho, mas apresenta uma riqueza de detalhes e uma fonte riquíssima para historiadores, pesquisadores, professores e alunos, na medida em que contextualiza – mesmo que de um ângulo tendencioso, militarista e elitista, pois isso não deixa de ser um elemento histórico a ser considerado – o início da história do Município de Foz do Iguaçu e a história do Oeste do estado do Paraná.
2 Os termos “pioneiro (a)”, “descobrir” e “descoberta” serão utilizados entre aspas, indicando que nos referimos à ocupação brasileira do século XIX e XX e que não nos valemos de concepções eurocêntricas. Não desconsideramos a legitimidade das ocupações ocorridas em períodos históricos anteriores, incluindo a ocupação indígena do Oeste do Paraná pelos povos Guarani e Caingangue.
3 Forma de velejar em grupo com outros barcos.
Denise Kloeckner Sbardelotto – Especialista em História da Educação Brasileira pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG e Professora Colaboradora nesta mesma Universidade. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Estado, Educação e Trabalho – GEEPET e do Grupo de Pesquisa em História, Sociedade e Educação no Brasil – GT da Região Oeste do Paraná/HISTEDOPR/UNIOESTE. Áreas de interesse: Fundamentos da Educação; História e História da Educação Regional; História da Educação do Paraná e do Oeste do Paraná.
Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia – NEVES (RHR)
NEVES, Erivaldo Fagundes. Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia. Feira de Santana: UEFS Editora, 2016. Resenha de: MARTINS, Flavio Dantas. Revista de História Regional, v.24, n.1, p.213-221, 2019.
O livro Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia1, do professor da Universidade Estadual de Feira de Santana Erivaldo Fagundes Neves, a principal referência para pesquisa em história dos sertões da Bahia, é um livro esperado para aqueles que acompanham a produção do autor. Erivaldo Neves já havia abordado o tema de teoria e metodologia da história regional2, que complementava e desenvolvia argumentos apresentados em texto sobre corografia e historia regional.3 Crônica, memória e história abrange estes estudos e contempla as incursões do autor aos temas da escravidão4, história regional e local7 desde o período colonial, passando pelo império e república, até a produção contemporânea. Além de um exaustivo levantamento bibliográfico, o trabalho é um comentário desenvolvido para o longo percurso de textos históricos apresentados.
A obra tem um prefácio do professor Paulo Santos Silva da UNEB, uma introdução, considerações finais e se divide em três partes, i) leituras sobre a colonização dos sertões baianos, ii) as crônicas, memórias e histórias sobre os mesmos no império e primeira república e iii) as perspectivas historiográficas posteriores a 1930, todas subdivididas em seções. Crônica, memória e história se justificaria por várias razões, mas julgamos duas de vulto: a tipologia apresentada para um extensivo levantamento de textos sobre os sertões baianos que abrange cinco séculos e a história do pensamento histórico sobre um tema que se desenvolve desde crônicas e memórias até uma historiografia técnica e disciplinar produzida em programas de pós-graduação em história de universidades. A polissemia do livro revela a paciência com a qual o mesmo foi gestado: o livro é resultado de um projeto de 25 anos que se desdobrou em outros trabalhos do autor, cuja obra é referência para uma geração de historiadores dos sertões baianos que lhe seguiram e que retornaram ao livro como exemplares de novas perspectivas historiográficas.
Vamos às partes. A primeira delas recua para crônicas, registros históricos e memórias coloniais sobre os sertões baianos. Aqui a produção textual que versa sobre o tema se confunde com a escrita da história no período colonial e são comentados Gabriel Soares de Souza, frei Martinho de Nantes, André Antonio Antonil, Miguel Pereira da Costa, Joaquim Quaresma Delgado, Sebastião da Rocha Pita, Luiz dos Santos Vilhena, entre outros. Além da exegese dos trabalhos destes autores no tocante ao que escreveram sobre os sertões baianos, Erivaldo Neves embasa seus comentários na historiografia contemporânea que investiga temas correlatos.
A segunda seção aborda os trabalhos escritos no Império sobre a colonização, se detém especialmente em estudo das memórias históricas e políticas da Província da Bahia de Ignácio Accioli de Cerqueira da Silva. Para Erivaldo Neves, faltam obras abrangentes com a pretensão do trabalho de Ignácio Accioli e a já datada e importante reedição comentada de Braz do Amaral demandaria uma nova edição crítica desse texto fundamental para a história da Bahia e dos seus sertões, bem como de sua importância como empreendimento historiográfico.
A seguir, Neves trata das obras históricas sobre a colonização dos sertões produzidas na primeira república. É uma seção que inicia com a análise da obra de João Capistrano de Abreu, e Basílio de Magalhães. O autor destaca a importância do discurso histórico do bandeirante teve na historiografia sobre os sertões baianos devido a centralidade paulista na primeira república. O historiador Pedro Calmon é abordado como alguém que dialogará com o pensamento histórico paulista, sobretudo a partir dos anos 1920, no tema do bandeirantismo, entre outros de sua vasta obra. Neves também analisa a obra de Urbino Viana. É desse período, destaca o autor, que começa uma repetição de “informações sem origem conhecida” retiradas das obras de Francisco Borges de Barros12.
Na seção posterior Erivaldo Neves apresenta as leituras históricas sobre a colonização entre as décadas de 1930 e 1960, levando em conta o contexto de produção, a recepção que fazem dos trabalhos que lhes precederam, sua inovação, sobretudo conceitual e metodológica e dialogando com a bibliografia contemporânea sobre o tema. Nesse período surge um gênero novo de escrita, chamada pelo autor de memória histórico-descritiva de municípios baianos. São analisadas mais detidamente as obras de Pedro Celestino da Silva sobre Caetité, Lycurgo de Castro Santos Filho sobre a fazenda Campo Seco em Rio de Contas. Nesse período, em decorrência da profusão, Erivaldo Neves analisa com mais atenção obras que representaram inovação teórica e metodológica, caso do estudo de Santos Filho que é uma história do cotidiano de uma fazenda no sertão riquíssima em dados empíricos graças à excepcionalidade dos registros particulares que teve acesso. É desse período em que pautas como a questão Nordeste e a questão hidráulica de aproveitamento do rio São Francisco ganham importância, e o pensamento histórico regional floresce.
São testemunhos dessa época de busca por definições regionais, embora sejam produções às vezes demasiado frágeis em termos metodológicos e empíricos, alguns estudos apresentados no Congresso de História da Bahia13 ou dos trechos sobre história dos municípios nos verbetes da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros do IBGE14
No última seção da primeira parte, Erivaldo Neves trata das elaborações historiográficas sobre a colonização posteriores a 1970. Nesse período marcado pela profissionalização da historiografia, pelo aumento quantitativo da produção, pelas modificações dos enfoques temáticos que deixam de lado a prioridade sobre a nação, a região e o município, surgem novas abordagens teóricas e metodológicas e uma profícua historiografia sobre os sertões baianos do período colonial, embora ainda relativamente limitada se comparados com outros períodos. Nesse capítulo, Erivaldo Neves resenha uma profusão de dissertações e teses que revelam os enfoque plurais que as inovações da pesquisa historiográfica permitiram no tratamento do passado colonial dos sertões.
A segunda parte do livro do livro trata da produção de pensamento histórico sobre o império e a primeira república. Erivaldo Neves inicia com uma seção sobre as crônicas e memórias históricas produzidas durante o período. Aborda autores como Tranquilino Leovigildo Torres, Gonçalo de Athayde Pereira, João Paulo da Silva Carneiro, Francisco Borges de Barros e mesmo a inusitada memória de Anísio Teixeira sobre o sertão. A análise de Francisco Borges de Barros é importante porque Erivaldo Neves identifique nele a fonte para vários autores posteriores que tomaram suas metáforas como fatos – por exemplo, Antonio Guedes de Brito ter sido o regente do São Francisco – ou mesmo reproduzirem suas afirmações sem embasamento documental. O autor desenvolve uma discussão sobre os desenvolvimentos teóricos e metodológicos da ciência histórica no império e na primeira república, o desenvolvimento institucional e as influências dos autores que trabalharam nesse período sobre o sertão baiano, destacando o IHGB e o IGHB.
Na seção seguinte, Neves trabalha com as crônicas e memórias produzidas após 1930 sobre os sertões baianos do período imperial e da primeira república. Ele destaca a influência da retórica euclidiana nas construções narrativas. Aí são analisados Wilson Lins, Marieta Lobão Gumes,
Flávio Neves, Helena Lima Santos, Mozart Tanajura e Pedro Pereira e seus escritos sobre o médio São Francisco, Caetité, Brumado e Livramento. Depois, Neves trata da historiografia posterior a 1930 e destaca a importância inicial, de Caio Prado Júnior. São analisados os trabalhos de Walfrido de Moraes, Américo Chagas, Fernando Machado Leal, todos sobre a Chapada Diamantina, e destaca o estudo de Eul-Soo Pang sobre o coronelismo baiano15. A seguir, uma profusão de artigos, teses e dissertações é comentada pelo autor – a seção tem o total de 76 páginas – agrupando-as em textos sobre coronelismo e poder local, economia, ocupação, desenvolvimento de comunidades rurais e municípios, conflitos sociais, entre outros temas. A novidade é o desenvolvimento de programas de pós-graduação em história, inicialmente em Salvador, mas não só já que muitos trabalhos foram desenvolvidos em outras universidades, e posteriormente nos programas de pós-graduação nas universidades estaduais sediadas em Feira de Santana e Santo Antônio de Jesus, além de cursos universitários de história em Vitória da Conquista, Alagoinhas, Itabuna, Conceição do Coité, Jacobina, Eunapólis, alguns deles com mestrados interdisciplinares que abrangem pesquisa histórica ou mestrado em história. Neves destaca a importância da interiorização do ensino universitário para a pesquisa histórica.
A terceira parte do livro trata das perspectivas historiográficas posteriores a 1930 sobre os sertões da Bahia. A primeira seção aborda as crônicas, memórias históricas sobre o período posterior a 1930 e inicia com algumas páginas sobre da questão do rio São Francisco a partir das memórias de Manoel Novaes, recuperando outros estudos sobre o rio desde o século XIX – como Orvile Derby, Teodoro Sampaio – passando pelos contemporâneos de Novaes como Geraldo Rocha e Wilson Lins. Em outra seção, Neves analisa os estudos técnicos sobre o período posterior a 1930 com destaque para pesquisadores oriundos dos Estados Unidos, como Rollie Poppino, Charles Wagley, Donald Pierson em colaboração com pesquisadores brasileiros como Thales de Azevedo, Eduardo Galvão e Luiz Antônio da Costa Pinto. Também são abordados estudos técnicos da Comissão de Planejamento Econômico da Bahia e pesquisas acadêmicas sobre o período.
As duas últimas seções abordam os fundamentos historiográficos entre o período 1930 e 1970 e as perspectivas historiográficas desde 1970, destacando a profissionalização da pesquisa histórica, o desenvolvimento de programas de pós-graduação e a diversificação e sofisticação conceitual e metodológica ocorridas no campo. Mais uma vez, Neves analisa livros, artigos, dissertações, teses e outros tipos de trabalho, especialmente as crônicas e memórias que não cessam de aparecer, mas se desenvolvem em paralelo à pesquisa acadêmica, sobre temas diversos como independência, escravidão, ocupação, modernização, família escrava, negros no pós-abolição, redes familiares, religião, cotidiano, vida material, relações de gênero, poder local, secas, mineração, identidades nos sertões baianos, entre outros temas.
Percebemos algumas questões importantes que podem ser levantadas pelo livro de Erivaldo Neves. Primeiro, a problemática do sertão, investigada não só pelos historiadores, mas também pela literatura e antropologia. Percebemos no exaustivo levantamento do autor, considerado “introdutório” pelo mesmo16 a crescente mudança que há entre o sertão pelo olhar estrangeiro, especialmente na colonização e no império, quando os produtores de textos são estranhos aos espaços objeto do discurso, e o sertão que fala de si, sobretudo no século XX, com destaque para a crescente lavra feita por historiadores oriundos dos sertões, caso do próprio Erivaldo Neves. Embora seja um dos temas fundamentais do pensamento nacional e há muita gente que ainda o aborda numa perspectiva exógena, inclusive autores que nasceram nas áreas consideradas sertanejas, a pesquisa de Erivaldo Neves parece indicar uma transição de uma identidade atribuída para uma identidade reivindicada. Quando a identificação de sertão e sertanejo é exógena, os sertanejos são simplórios, violentos, incivilizados – incivilizáveis para alguns autores -, exóticos, folclorizados e romantizados. Com a proliferação dessa identidade reivindicada, a fala de dentro do sertão aos poucos vai abandonando os estereótipos herdados dessa literatura anterior, sobretudo os euclidianos, e vai ganhando complexidade, sofisticação, contradição e conflito. O final da linha é o desaparecimento do sertão e a multiplicação dos sertões cada vez menos sertanejos e mais barranqueiros, catingueiros, brejeiros, alto-sertanejos, geraizeiros, quilombolas, serranos, chapadenses entre outros. O trabalho particular, sobre o pensamento histórico acerca dos sertões baianos, permite uma formulação de uma hipótese geral, a transição entre a identidade atribuída ao outro pelo olhar estrangeiro para uma identidade reivindicada – que reconstrói-se numa diversidade de formas a partir das atualizações dos conflitos – pelos olhares de dentro do sertão.
Essa transição ocorre, na hipótese aqui levantada a partir da análise de Crônica, memória e história de Erivaldo Fagundes Neves, pela apropriação por parte dos sujeitos internos aos sertões, inicialmente das classes médias e abastadas, posteriormente das classes subalternas, daquilo que Johann Michel chama de tecnologias discursivas de si17.
A partir de uma síntese das contribuições de Michel Foucault e Paul Ricoeur, Michel define a tecnologia discursiva de si como a capacidade de formulação de uma identidade narrativa individual ou coletiva a partir de uma configuração poética que inova ao mesmo tempo em que se utiliza do acervo cultural disponível para o autor enquanto leitor e agente do mundo. Daí a importância decrescente de Euclides da Cunha para as identidades narrativas reivindicadas que em algum momento, em alguns textos e autores, reproduzem estereótipos, mas devido a influências externas, terminam por criticá-los e expurgá-los das definições de sertão. Erivaldo Neves destaca que as primeiras elaborações do século XX eram influenciadas pela retórica euclidiana, mas ela perde relevo à medida em que as novas produções, sobretudo as acadêmica, se ancoram em conceitos, teorias e metodologias produzidas na disciplina da história e em outros campos do conhecimento, o que contribui para a complexificação e sofisticação dos sertões como objeto de estudo histórico. Com isso não pretendemos que a produção historiográfica seja apenas entendida como uma expressão identitária. Ao contrário, é a história que é demandada pela identidade narrativa de modo que aquela lhe fundamente, isso ocorre tanto no sentido de demandar um modo de escrita, quanto na própria interpretação realizada na leitura da obra. Quando poucos podiam escrever e dispunham de poder de representar os outros que não podiam ser representados, aí tínhamos uma identidade atribuída no sentido de estabelecimento de características homogêneas a grande grupo humano. Com o desenvolvimentismo da historiografia e com a democratização da escrita, as novas produções historiográficas implodiram a identidade do sertão e do sertanejo. No lugar do idêntico, estabeleceram o diverso e substituíram o local pelo universal, o singular pela pluralidade. Ao mesmo tempo, negar a existência de vínculos entre essa produção historiográfica interna dos sertões e processos de luta e resistência que passam pela reivindicação de identidades e busca por reconhecimento – não mais representadas por outros, mas capazes de se representar – seria ocultar uma das forças motrizes da demanda por novas histórias que são as transformações do presente que exigem novas narrativas.
É possível, graças à tipologia da pesquisa de Neves, perceber como mesmo os primeiros sertanejos que produzem isso que chamamos de identidade reivindicada, já no século XX, como Geraldo Rocha, Anísio Teixeira ou Wilson Lins, eram oriundos dos grupos dominantes daquilo que em outro estudo Neves chamou de “oligarquia fardada”18
Com o passar dos anos, acessam ao universo da produção escrita da história novos sujeitos, de classe média rural e urbana, mas também das classes populares. A sofisticação e diversificação da escrita sobre o passado dos sertões vem também da mudança dos sujeitos que a escrevem, agora destacando-se mulheres, mas também filhos e netos dos vaqueiros, remeiros, quilombolas, trabalhadores rurais e das pequenas cidades e vilas.
O livro também instiga uma reflexão conceitual importante. Neves define a crônica como “registro de fatos em ordem cronológica”, recurso muito utilizada no período colonial para a produção de conhecimentos sobre os sertões para fins políticos e administrativos da Coroa19
Ao contrário, memória já é um conceito mais problemático. Neves a define como “capacidade intelectual fundamentada em um conhecimento que permite sistematizar informações, através das quais se podem atualizar impressões ou saberes do passado, tanto individuais quanto coletivos”.20
A dificuldade reside em utilizar o termo que define uma faculdade mental para designar um gênero de escrita da história distinto da história ou historiografia – mais técnicas e institucionalizadas, digamos assim – e da crônica. O uso do termo memorialista, para designar um escritor que produz textos que não são nem história, nem crônica, dá uma definição mais precisa que a utilização de memória para o gênero, mas não exclui a problemática de encaixar textos individuais na tipologia. Para textos distanciados no tempo, podemos perceber principalmente um registro escrito do passado a partir de uma memória individual e/ou coletiva, sem esmero técnico ou metodológico com pretensões objetivas para além da verdade do testemunho, mas o mesmo não pode ser dito para textos produzidos mais recentemente. Com o surgimento de um campo disciplinar da história e um mercado editorial de nicho, muitos escritores que preocupam-se em registrar suas histórias municipais a partir de uma memória individual e coletiva terminam por ler de forma assistemática obras históricas e realizarem pesquisas documentais. Se esses textos não podem ser considerados historiografia devido à ausência do crivo dos pares – geralmente os memorialistas lançam obras com edição do autor – por meio de bancas, congressos ou avaliação em periódicos ou por pareceristas anônimos, não é possível dizer que estes alguns desses textos não obedecem a certa “operação historiográfica”, já que há pesquisa de documentos, confronto de testemunhos e uso de metodologias ou conceitos explicativos. Daí, talvez, tratarem-se de memórias híbridas com a história acadêmica, para além de testemunhos ou registros de memórias comunitárias compartilhadas – ainda que selecionadas às conveniências dos interesses e da visão de mundo do autor. Todavia, isso trata-se apenas de um levantamento de hipótese a partir da leitura do livro de Neves e não da identificação de uma lacuna. Apenas pesquisas mais pormenorizadas desse gênero poderiam confirmar essa afirmação. Outra dificuldade adicional é que o termo memória, utilizado para gênero de escrita, tem o problema de não distinguir um registro de testemunho pessoal ou familiar de uma pretensa história municipal.
Memória, crônica e história local de Erivaldo Fagundes Neves é uma contribuição relevante para a história da historiografia e obra que deve se tornar referência para pesquisadores dos mais diversos campos que tenham os sertões baianos – ou fronteiriços – como objeto de estudo.
Notas
2 NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição da história na crise da modernidade. Feira de Santana: UEFS; Salvador: Arcádia, 2002.
3 NEVES, Erivaldo Fagundes. Narrativa e interpretação: da corografia à história regional e local. In ARAÚJO, Delmar Alves de; NEVES, Erivaldo Fagundes; SENNA, Ronaldo de Salles. Bambúrrios e quimeras (olhares sobre Lençóis: narrativa de garimpos e interpretações da cultura. Feira de Santana: UEFS, 2002.
4 NEVES, Erivaldo Fagundes. Escravidão, pecuária e policultura: Alto Sertão da Bahia, século XIX. Feira de Santana: UEFS Editora, 2012 , ocupação territorial5 5 NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura fundiária e dinâmica mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos XVIII e XIX. Salvador: EDUFBA, 2005. , caminhos coloniais6 6 NEVES, Erivaldo Fagundes; MIGUEL, Antonieta (org.). Caminhos do sertão: ocupação territorial, sistema viário e intercâmbios coloniais nos sertões da Bahia. Salvador: Arcádia, 2007.
7 NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). 2 ed. Revista e ampliada. Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS Editora, 2008. , cultura8
8 NEVES, Erivaldo Fagundes. O Barroco: substrato cultural da colonização. Politeia: História e sociedade. Vitória da Conquista, 2007, vol. 7, n. 1. , sertão9
9 NEVES, Erivaldo Fagundes. Sertão recôndito, polissêmico e controvertido. KURRY, Lorelai Brilhante (org.). Sertões adentro: viagens nas caatingas séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobson, 2012 , história da família, pecuária10
10 NEVES, Erivaldo Fagundes (org.). Sertões da Bahia: formação social, desenvolvimento econômico, evolução política e diversidade cultural. Salvador: Arcádia, 2011. e historiografia11
11 NEVES, Erivaldo Fagundes. Perspectivas historiográficas baianas: esboço preliminar de elaborações recentes e tendências hodiernas de escrita da História da Bahia. In: OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos (org.); REIS, Isabel Cristina Ferreira dos (org.). História regional e local: discussões e práticas. Salvador: Quarteto, 2010.
12 NEVES, Crônica, memória e história, op. cit. p. 100.
13 IGHB – Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Anais do Primeiro Congresso de História da Bahia. Salvador: Tipografia Manú Editora Ltda, 1955. 5 volumes.
14 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: Edição do IBGE, 1957. 36 volumes.
15 NEVES, op. cit. p. 211.
16 NEVES, op. cit. p. 15,
17 MICHEL, Johann. Sociologie du soi – essais d’herméneutique appliquée. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2012. p. 60.
18 NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). op. cit. .
19 NEVES, Crônica, memória e história, op. cit. p. 18 .
20 NEVES, Crônica, memória e história, op. cit. p. 16.
Flavio Dantas Martins – Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Centro das Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: flaviusdantas@gmail.com.