Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant – NODARI (C)

NODARI, Paulo César. Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. Paulus, 2014. Resenha de: RECH, Moisés João. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 2, p. 401-407, maio/ago, 2017.

A tarefa que Paulo César Nodari se coloca é, em grande medida, ambiciosa, para dizer o mínimo. Sua pesquisa de tese de Pósdoutoramento que se constituiu na presente obra, tem como mote o “projeto filosófico da paz no contratualismo moderno” (2014, p. 298), na qual Nodari empreende profundos estudos acerca de autores clássicos do pensamento político-moral da modernidade: Hobbes, Locke, Rousseau e Kant – com notória ênfase no pensador de Königsberg. O inovador enfoque elaborado em Ética, direito e política… é justamente olhar sob um novo prisma os autores destacados, qual seja, o prisma da paz. Desse modo, Nodari desembaraçar-se da carga pessimista que os autores contratualistas carregam consigo, no que diz respeito à propensão da natureza humana à guerra.

Para tanto, o texto se desenvolve a partir de duas partes, que se dividem em seis capítulos. A Primeira Parte, intitulada: “O contratualismo moderno e o projeto filosófico da paz: Hobbes, Locke e Rousseau” é subdividido em três capítulos, que, igualmente, são divididos em partes de contextualização e de inovação. Leia Mais

La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal – VINCIGUERRA(CE)

VINCIGUERRA, Lucien. La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 2013. Resenha de: KONTIC, Sacha Zilber Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.31, jul./dez., 2014.

O estudo do estatuto da representação nos filósofos seiscentistas é um ponto recorrente em toda a fortuna crítica que aborda a filosofia da época e, deste ponto de vista, a obra de Lucien Vinciguerra retoma um tema clássico. Entretanto, ao invés de se colocar de partida no interior do discurso filosófico, o autor se propõe a analisar o problema da representação nos filósofos em questão a partir de operações e dispositivos que não são ele s mesmo s filosófico s. É o caso da s equações cartesianas das curvas e de seu regime de diferenças, de metáforas, como a do cego da dióptrica de Descartes, do sonho de Teodoro na Teodiceia de Leibniz, do espelho e da anamorfose como modelo das ideias confusas em Locke, da figura do hexagrama místico e da interpretação da bíblia em Pascal.

Por este procedimento, Vinciguerra visa estabelecer um debate direto com As palavras e as coisas de Foucault. Enquanto Foucault se propunha a fazer uma história filosófica das transformações da cultura na era clássica buscando o fundamental destas transformações no exterior da própria filosofia, ou seja, uma arqueologia do pensamento e não uma história da filosofia, Vinciguerra busca na arqueologia foucaltiana um ponto de partida para se voltar à história da filosofia.Ao romper as continuidades aparentes entre as filosofias clássicas e as modernas a partir de conhecimentos estrangeiros à própria filosofia, Foucault demonstra haver entre elas familiaridades enganosas, levantando problemas que a história da filosofia não possuía métodos para trazer à superfície. Ao mesmo tempo, a importância das diferenças entre as diversas filosofias são minimizadas em favor de um elemento que resta implicitamente comum a elas. A arqueologia do saber dissolve assim o trabalho do historiador da filosofia em favor de uma história mais ampla do pensamento.

A mudança do regime representativo dos signos, que é a marca da episteme clássica, leva Foucault a privilegiar a análise da linguagem no discurso filosófico e na produção do saber, mas, observa Vinciguerra, deixa de lado a relação deste regime dos signos com a matemática. É partindo da relação entre a matemática e a linguagem que o autor vai interrogar os filósofos em questão para tentar elaborar como, apesar das diferenças radicais em suas concepções representação, os quatro filósofos podem compartilhar de uma mesma episteme. Ela mostrará que o regime dos signos no saber clássico aponta – talvez contra a intenção dos pensadores em questão – para uma concepção de representação na qual o signo se anula enquanto signo e traz em si a presença mesma daquilo que é representado. Em outras palavras, a representação excede – se a si mesma.

Ordem de exposição escolhida por Vinciguerra já evidencia o tipo de história da filosofia que é proposto neste livro: não se trata de um estudo cronológico ou genético de um conceito, mas sim a tentativa de encontrar dispositivos que evidenciem um elemento comum na concepção de representação entre os quatro filósofos. O exame se inicia com a descrição do sonho de Teodoro, alegoria narrada por Leibniz nas últimas páginas da Teodiceia na qual, guiado por Palas, Teodoro é levado à pirâmide de infinitas salas, cada uma representando um mundo possível, e nas quais se encontram os livros, cujas páginas contém o destino de cada pessoa de cada mundo possível. Basta que ele passe as mãos sobre as letras deste s livros para que lhe seja representado visivelmente, como que em uma olhadela, o que é dito pelas palavras escritas, assim como o destino destas pessoas, tudo aquilo que elas fazem, percebem, pensam, suas posteridades. O mundo representado pelas letras de desdobra em um mundo visível, em uma presença ilimitada que é representada por aqueles caracteres presentes no livro.

O que interessa o autor nesta alegoria é menos a sua importância como parte da teoria leibniziana dos mundos possíveis ou de sua noção d e representação como expressão do que o caráter “exemplar” que o signo toma no seu interior. Ao ser lido, ele nos leva a uma presença que está além dele mesmo, uma presença que é em si ilimitada. É esse mote de um “signo excessivo” que guia a sua busca por uma episteme comum entre a filosofia da representação destes quatro filósofos. Mas aquilo que pode ser facilmente identificado em Leibniz como uma consequência de seu sistema filosófico, e principalmente de sua concepção de expressão, é visivelmente mais difícil encontrar nos demais, e principalmente no caso de Descartes.

Não é, portanto, por acaso que a análise da questão da representação em Descartes ocupe a maior parte do livro.

Ao mesmo tempo em que ela é fundamental para sua tese, considerando o papel evidentemente fundamental que Descartes possui na filosofia seiscentista, essa noção de uma representação excessiva não pode ser encontrada no local onde a questão da representação aparece de forma mais clara, a saber, na sua teoria da ideia. A ideia para Descartes é representativa justamente por ser como a coisa mesma no intelecto. Ela não é um signo, mas sim a realidade objetiva da coisa tal como se encontra em nossa mente.

Consciente desta limitação, Vinci guerra busca inicialmente na equação das curvas da Geometria e, em seguida, na descrição da linguagem e d a percepção sensível no Mundo, na Dióptrica e na regra XII das Regulae o mesmo princípio que regra a concepção de signo e de representação que encontra no sonho de Teodoro de Leibniz. Na equação da curva, a sua decomposição em curvas cada vez mais simples permite com que, no final da série, a curva mais complexa seja reencontrada e descrita de um modo claro e distinto. A série em sua totalidade de curvas mais simples representa a curva mais complexa sem, entretanto, contê – la em sua totalidade. É por este mesmo paradigma que o autor passa à interpretação do papel das diferenças nas impressões sensíveis tal como descritas por Descartes, para quem toda a representação sensível não é a representação de uma diversidade, mas que em si não possui relação com o objeto percebido.

É assim que na regra XII das Regulae as diversidades das cores podem ser comparadas às diversidades das figuras. O que percebemos é apenas a codificação desta diversidade, tal como ela se relaciona com nós, e não as coisas mesmas. O mesmo princípio é explorado pelo autor a partir da metáfora cartesiana do cego com sua bengala, presente no primeiro e quarto discurso da Dióptrica . O cego, ao tocar o solo com sua bengala, reconhece pela vibração transmitida pela bengala até a sua mão a diferença entre o solo duro, a terra e a areia. É de forma análoga, diz Descartes, que recebemos a diversidade de coisas que afetam nossos olhos, como simples vibrações que em nada de assemelham à coisa percebida. Para considerar as sensações na filosofia cartesiana como signos legíveis tais como as letras dos livros do sonho de Teodoro, Vinciguerra centra a sua análise na possibilidade de encontrar n essa diversidade a leitura de um signo que, decifrado, nos remeta à verdade das coisas, mesmo que confusamente. De fato, Descartes afirma que há uma instituição da natureza – que diz respeito sobretudo à vida prática – pela qual nos guiamos pelo mundo sensivelmente percebido. Face, nas palavras do autor, a essa “metalinguagem desconhecida”, cabe descobrir se há um espaço na filosofia cartesiana pelo qual possamos dizer que é possível reencontrar essa metalinguagem e descobrir na diversidade presente na impressão sensível uma transparência tal como no sonho de Teodoro. Segundo o autor, podemos afirmar isso partindo da descrição de Descartes, feita no início do Mundo, entre as sensações e as palavras, cuja relação com as coisas significadas se dá unicamente pela instituição humana. Por mais que não haja semelhança, ao ouvir uma frase ou ler um texto podemos compreender o seu sentido por mais que não haja semelhança alguma entre o discurso percebido sensivelmente (seja pelo som, seja pela vista) e o seu significado. É claro que no caso de Descartes não se pode falar de uma interpretação – dado que para ele o entendimento é sempre passivo – mas, sim, defende Vinciguerra, de um apagamento do signo que desaparece enquanto coisa ao nos representar seu objeto . Diversos comentadores já notaram o caráter contraditório desta comparação entre a linguagem e a sensação em relação ao restante da filosofia cartesiana, em geral explicado pelo caráter mais físico do que metafísico do tratado. Vinciguerra assume ser, ao lado de Pierre Guénancia, um dos únicos a atribuir uma relação estreita tão entre a linguagem e a sensação. Isto permite com que o autor considere tanto as diferenças entre as sensações da regra XII quanto a metáfora da bengala do cego ao mesmo nível da linguagem no interior da filosofia cartesiana. O seu método de história da filosofia parece desobrigá – lo de analisar a coerência desta tese com o restante da filosofia cartesiana, o que certamente o levaria a considerar obra de Descartes contraditória ou, ao menos, defender uma posição bastante heterodoxa sobre o problema do conhecimento sensível .

Essa omissão o permite passar facilmente da comparação da linguagem com o sensível no Mundo para a consideração da sensibilidade em toda a obra cartesiana como o decifrar de um signo, cujo conteúdo representativo reconduziria a coisa representada. É também no conhecimento confuso que o autor encontra esta noção de signo e de representação em Locke, mas agora na metáfora da anamorfose e do espelho contida no capítulo 29 do livro II do Ensaio sobre o entendimento humano . Nela, as figuras deformadas que dependem de um espelho especial para serem vistas correspondem às ideias que, ao serem relacionadas com uma linguagem inadequada a elas, são confusas até que essas palavras sejam corrigidas. Aqui Vinciguerra encontra novamente a figura da representação que excede o signo na imagem anamórfica que Locke compara à ideia confusa e a possibilidade de encontrar nela a imagem realmente representativa.

No caso de Pascal, apesar de não possuir propriamente um questionamento filosófico sobre a representação, é o mesmo dispositivo matemático da anamorfose que o autor encontra em jogo na análise das secções do cone, a saber, a geometria projetiva inspirada por Desargues. Ela permite com que Pascal postule uma identidade entre figuras diferentes (por exemplo, entre o círculo e a parábola) através das relações que se conservam a partir de sua produção como secção do mesmo cone. Assim, uma mesma figura pode conter representativamente, a partir das relações invariantes, uma infinidade de figuras relacionadas. É o mesmo regime de representação que, segundo o autor, se encontra na concepção de Pascal da exegese bíblica, pela qual o movimento interpretativo permite encontrar o sentido imanente no interior das escrituras. Ao se propor a pensar o problema da representação na filosofia seiscentista a partir de uma reflexão foucaultiana, Vinciguerra faz um louvável exercíc io de repensar o papel e os métodos da história da filosofia. Entretanto, suas análises, ao buscarem em cada um dos autores tratados apenas o suficiente para encontrar a episteme que propõe para a época, não fornecem um aprofundamento da questão, assim com o não pensam o seu papel no interior do pensamento de cada filósofo. Também, ao deixar de lado a influência que cada um dos filósofos teve sobre o demais, assim como as críticas aos seus antecessores, Vinciguerra perde a oportunidade de analisar as por vez es singelas continuidades e rupturas presentes nas teorias da representação em questão. Para as quais Leibniz, mais do que fornecedor de uma “fantasia exemplar”, seria pela natureza dialógica de sua filosofia um campo de análise privilegiado.

Referência

VINCIGUERRA, Lucien. La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 2013. Resenha de: KONTIC, Sacha Zilber Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.31, Jul – dez 2014.

Sacha Zilber Kontic – Doutorando, Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Reference and existence: the John Locke lectures – KRIPTE (M)

KRIPTE, Saul A.. Reference and existence: the John Locke lectures. [?]: Oxford University Press, 2013, xiii + 170p. Resenha de: SANTOS, César Schirmer dos. Manuscrito, Campinas, v.36 n.2 July/Dec. 2013.

Após quarenta anos, as conferências John Locke de 1973, proferidas por Saul Kripke entre o final de outubro e o início de dezembro daquele ano, foram finalmente publicadas pela Oxford University Press. Durante todo este tempo, essas conferências circularam entre alguns poucos felizardos na forma de cópias de cópias de cópias. Agora, esse trabalho seminal está finalmente disponível ao merecido público mais amplo.

As conferências John Locke de 1973 de Kripke tratam exatamente dos conceitos que dão título ao livro: referência e existência. Nessas conferências, Kripke desenvolve, estende e elabora ideias que haviam sido apresentadas nas conferências de 1970, sobre referência e identidade, que foram posteriormente publicadas sob o título Naming and necessity.

A principal contribuição das conferências de Kripke de 1973 está no tratamento da semântica dos termos singulares e dos substantivos vazios, como “Hamlet”, “Zeus” e “unicórnio”. Para tanto, Kripke inicia revisando o estado da semântica, desde Frege e Russell até Donnellan. Frege e Russell viram “existir” como um verbo que é usado legitimamente em predicados de segunda ordem. Assim, eles viram a existência como uma propriedade de propriedades, não de coisas singulares, pois não há razão para se usar um predicado que não pode ser falso de coisa alguma, como Russell defende em A filosofia do atomismo lógico, e Frege defende em “Função e conceito” (p. 6-7).

Kripke não concorda com essa visão. Para ele, é legítimo atribuir existência a indivíduos, pois é inteligível que se diga que algo existe ou não (p. 36). Isso não quer dizer, contudo, que Kripke defenda que a existência é uma propriedade de primeira ordem, pois ele simplesmente não trata a existência como uma propriedade. Para apresentar esse ponto, precisamos partir da sua semântica da ficção e do discurso mitológico.

Para Kripke, os quantificadores da linguagem comum atravessam o domínio de entidades fictícias ou mitológicas. Isso não quer dizer, no entanto, que essas entidades são reais num sentido meinonguiano. Em vez disso, o ponto é que se trata de uma questão empírica descobrir se essas entidades existem ou não, pois se há, na ficção ou mitologia, um personagem fictício mitológico que faz, na ficção ou mitologia, tal e tal coisa, então esse personagem existe, dado que a ficção ou mitologia dá existência ao personagem (p. 71). Assim, Kripke não defende que a existência é uma propriedade. Tudo o que ele diz é que, através da ficção ou da mitologia, se inventa entidades as quais se pode atribuir propriedades (p. 146). Por exemplo, o personagem Huckleberry Finn existe, pois há obras de Mark Twain que lhe dão existência. De modo que a existência desse personagem é uma questão empírica, bem diferente do que se dá quanto à existência de entidades matemáticas, e bem diferente da proposta de Meinong de atribuir aos entes fictícios um tipo diferente de realidade (p. 72). Um personagem de ficção é uma entidade abstrata que existe em virtude de atividades concretas, no caso narrativas. O caso é análogo ao da existência de nações, as quais existem em virtude de relações concretas entre as pessoas. O que torna verdadeiros os enunciados sobre as nações são as atividades das pessoas. De maneira análoga, o que torna verdadeiros os enunciados sobre personagens fictícios são as atividades dos narradores, pois personagens fictícios não são entidades meinonguianas que existem automaticamente, pois só existem por causa das atividades dos narradores. E, é claro, um personagem fictício não é uma pessoa, de modo que Sherlock Holmes não foi e não deveria ser contado no censo dos habitantes de Londres, pois há diferenças entre entes fictícios e entes não-fictícios (p. 73-74). Em cada caso, o teste de realidade é ligar o verbo existir a uma propriedade, de preferência um sortal. Tome o sortal “pessoa”, querendo dizer uma pessoa de carne e osso. Levando em conta esse sortal (e desconsiderando acasos históricos), a frase “Existiu na Dinamarca um príncipe chamado ‘Hamlet’” é falsa. Agora tome o sortal “personagem teatral”. Nesse caso, a frase “Existiu um personagem teatral chamado ‘Hamlet’” é verdadeira (p. 150). Essas duas questões fazem sentido, o que estabelece a legitimidade de se tomar a existência como algo que se pode atribuir a indivíduos, sem no entanto se estabelecer com isso que a existência é uma propriedade, pois Russell tem razão ao dizer que uma propriedade legítima não é verdadeira de todas as coisas. O que se dá é justamente que algo se apresenta como quantificável, e ser quantificável não é possuir uma propriedade, mas sim estar aí para receber propriedades.

Em suma, Kripke defende que tudo aquilo que é quantificável existe, sem que a existência seja uma propriedade. Além disso, se algo existe (é quantificável), e é designado, então há referência. De modo que designadores de indivíduos fictícios ou mitológicos não são vazios. Não é o caso que “Hamlet” não tem referência, mas sim que com “Hamlet” o autor pretende que há uma referência, e através de tal pretensão se estabelece uma referência, pois essa referência de faz de conta é um tipo de referência, de modo que na teoria de Kripke é errado dizer que “Hamlet” é um nome vazio (p. 103). Assim, é errado dizer que o nome “Hamlet” não designa nada, pois designa alguma coisa, não no mundo real, nem em um mundo meinonguiano, mas sim uma entidade abstrata que ganha existência através da narrativa de Shakespeare, e a qual se pode dar propriedades (p. 78).

A teoria esboçada acima tem inúmeros detalhes que não podem ser apresentados nessa resenha, além de diversos complicadores. Uma complicação é um certo duplo uso da predicação, pois podemos dizer que Hamlet é um personagem muito debatido, e também que Hamlet era melancólico. O predicado “é um personagem muito debatido” leva em conta o personagem Hamlet, enquanto o predicado “era melancólico” leva em conta o que se dá na narrativa, e a confusão entre esses predicados traz ruído à teoria semântica (p. 74).

Há também problemas relacionados à identidade das entidades mitológicas. Zeus e Júpiter eram o mesmo deus? Empregando a proposta já presente em Naming and necessity, isso depende das origens dos seus respectivos panteões. Caso as origens sejam independentes, são dois deuses diferentes, caso contrário, são o mesmo deus. O importante é que essas questões sobre a identidade de entidades fictícias ou mitológicas se respondem com investigações empíricas, no caso pesquisas históricas (p. 77). Algo análogo vale para predicados vazios que se suspeita possuidores de extensão no mundo real, pois para provar que unicórnios existem é preciso provar que há conexão histórica entre os bichos que satisfazem a descrição e o mito que nos foi legado (p. 50).

Outro ponto explorado na obra, mas ao qual apenas farei menção, sem explorar minimamente, é a semântica dos substantivos. Nisso se mantém o paralelismo com Naming and necessity, pois quanto a essa obra é muito discutida a questão de se a teoria da designação rígida, pouco discutível no caso dos nomes próprios, como “Túlio” ou “Cícero”, pode ser estendida ao caso dos substantivos, como “ouro” ou “tigre”. Sem nos aprofundarmos na questão, indico apenas que, na obra que resenhamos, Kripke considera o discurso sobre predicados vazios é tão problemático quanto o discurso sobre nomes vazios, e digno de soluções análogas (p. 43).

Nas palestras mais adiantadas, Kripke propõe aplicações da sua teoria a outras áreas da filosofia, como a epistemologia. Em suma, Kripke propõe a seguinte analogia: o discurso histórico sobre um personagem real está para o discurso fictício sobre um personagem real de maneira análoga ao modo como as propriedades reais de um objeto estão para as propriedades percebidas perspectivamente desse objeto. Apresentarei os elementos centrais dessa proposta, adiantando apenas que, na melhor das hipóteses, o que Kripke nos apresenta é insuficiente para estabelecer a analogia.

Kripke apresenta uma analogia entre sense data e personagens fictícios que funciona da seguinte maneira. Algumas pessoas reais, como Napoleão, também são personagens de filmes e outras obras de ficção. Assim, podemos dizer dessas pessoas que elas têm propriedades que podem ser descobertas pelos historiadores, e também que certos narradores lhes atribuíram outras propriedades, deixando claro que se tratava de propriedades fictícias. Algo análogo se daria com os sense data. Uma casa, vista de longe ou de perto, tem as mesmas propriedades, isto é a mesma altura, área etc. Mas a percepção dessa casa por uma pessoa que se aproxima tem outras propriedades, pois se pode dizer que se trata de algo que fica cada vez maior. A propriedade de crescer pertence à casa na percepção, assim como certas propriedades pertencem a Napoleão na ficção (p. 98-99). Assim, pela analogia de Kripke, o contexto perceptual possibilita que se atribua certas propriedades a coisas reais, tal como se dá quando fazemos ficção sobre coisas reais. O caso das alucinações seria diferente, pois aqui haveria analogia com o caso no qual se tem um personagem fictício desde o início. Por exemplo, minha prima Josefina alucina um fantasma. Se é assim, então há um fantasma na alucinação, assim como há um personagem na ficção (p. 99).

Creio que a proposta de Kripke para o caso da percepção poderia ser estendida para o caso da memória, pois se uma coisa é o objeto percebido, e outra coisa (igualmente existente) é o objeto na percepção (o qual seria análogo a um personagem de ficção), então uma coisa é o objeto lembrado, e outra coisa (igualmente existente) seria o objeto na memória (o qual também seria análogo a um personagem de ficção). Mas tenho dúvidas sobre o quanto esta proposta nos ajuda a entender a percepção, a memória e outros estados epistêmicos.

Em outras conferências, Kripke apresenta sérias reservas ao modo como Keith Donnellan analisa as descrições definidas. Como é bem-sabido, Donnellan distingue entre dois usos das descrições definidas: referencial e atributivo. Alguém diz, apontando para um homem que está ao lado de uma mulher, “O marido dela é um homem gentil”. Mas o homem não é o marido da mulher, de modo que a descrição não é satisfeita. Isso é um problema no uso atributivo de uma descrição definida, mas não no uso referencial, pois podemos ter sucesso em referir ao homem através da descrição “o marido dela” mesmo que ele não seja o marido dela. Donnellan diz que, se é assim, então há um problema na análise de Russell das descrições definidas, pois a mesma supõe que toda descrição funciona atributivamente. Kripke, no entanto, não vê qual seria a pertinência semântica das distinções de Donnellan como bases para a crítica a Russell, pois Donnellan não teria mostrado que as descrições definidas são semanticamente ambíguas, sendo que tudo o que Russell quis foi apresentar uma análise semântica das descrições definidas. Donnellan diz que as descrições definidas podem ser usadas de maneira referencial ou semântica. Mas, se é assim, então sua proposta é meramente pragmática, e não conta para a rejeição da análise semântica proposta por Russell (p. 110-111). Para Kripke, o que pode haver, e Donnellan não notou, é uma diferença entre a referência semântica e a referência do falante. Levando em conta o idioleto de um falante, podemos distinguir entre as intenções gerais do falante no uso de um termo singular (incluindo nomes próprios e descrições definidas), e suas intenções específicas em um determinado contexto. No entanto, esses não são dois sentidos de um termo singular, pois se trata de uma distinção pragmática, dado que se apoia nas intenções do falante. Assim, Donnellan não teria nenhum argumento semântico contra Russell (p. 118-123).

A partir dessa discussão, Kripke mostra que há casos nos quais um elemento pragmático pode ganhar força semântica. Tome um caso no qual uma expressão usada com o significado do falante é o antecedente de um anafórico. Por exemplo: “O marido dela é um homem gentil, ele sempre a trata com carinho”. Em um caso como esses, a descrição definida ganha um papel semântico, ainda que o homem referido não seja marido da mulher em questão. Logo, apesar de ser uma noção pragmática, a noção de referência do falante é relevante para a semântica, pois nada impede que uma referência do falante seja transmitida pela anáfora ou pela comunicação, e que ganhe valor semântico através da transmissão, podendo provocar uma mudança linguística (p. 128-136).

As críticas de Kripke a Donnellan não cessam aí, pois, ao contrário de Russell e Frege, Donnellan não analisou como sua proposta funcionaria no caso do discurso indireto. Considere a atribuição de atitude proposicional “Marcos pensa que o marido dela é um homem gentil”. Nesse caso, a descrição definida estaria sendo usada referencialmente ou atributivamente? Nenhuma das duas coisas. E, ainda assim, as análises semânticas das descrições definidas propostas por Russell e Frege se manteriam operantes (p. 134).

Nesse conjunto de conferências, Kripke não pretende ter resolvido todos os problemas semânticos envolvidos na questão dos termos singulares vazios. Em vez disso, sua proposta pretende apenas ser menos ruim do que as alternativas. Há problemas. Por exemplo, dado que a análise semântica de um nome vazio, como “Hamlet”, requer que se considere as intenções do narrador para se concluir que há pretensão de referir, disso segue que é preciso considerar o conteúdo de um nome para se estabelecer sua análise semântica correta. Mas isso é intolerável (p. 147) Não deveria haver diferentes análises para frases com nomes de entes fictícios e frases com nomes de entes não-fictícios (p. 150). Apesar desse problema, as conferências de Kripke continuam atuais, pois nos trazem ganhos na compreensão da referência e da existência.

César Schirmer dos Santos – Departamento de Filosofia. Universidade Federal de Santa Maria. Av. Roraima, 1000 – Prédio 74A, sala 2311. 97105-900 Santa Maria, RS. BRASIL. [email protected]

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