Entre Sertões e Representações: Ensaios e Estudos | Antônio Fernando de Araújo Sá

SA FERNANDO 2 Entre Sertões e Representações
Antônio Fernando de Araújo Sá | Foto: Acervo pessoal

SA F Entre sertoes Entre Sertões e RepresentaçõesA primeira resenha de livro que produzi foi em 2007, um comentário crítico da obra de Terry Eagleton, “Depois da Teoria: Um olhar sobre os Estudos Culturais e o Pós-Modernismo”. Na ocasião, fui convidado pelo Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá a proferir palestra sobre esse livro em um Curso de Extensão promovido pelo Grupo de Pesquisa “História Popular do Nordeste”, na Universidade Federal de Sergipe. Livro complexo, que me exigiu um bom esforço intelectual para criticá-lo.

O desafio agora recai sobre um livro escrito pelo próprio Professor Antônio Fernando de Araújo Sá e lançado ano passado. O empenho exigido nesta resenha não foi inferior ao dedicado ao livro produzido pelo filósofo e crítico literário britânico. Leia Mais

O Belo em Platão – QUINÁLIA (RA)

QUINÁLIA, R. O Belo em Platão. São Paulo: Liber Ars, 2019. Resenha de: DINUCCI, Aldo Lopes. Revista Archai, Brasília, n.30, p 1-4, 2020.

O livro intitulado O Belo em Platão, de Rineu Quinália, parte do diálogo platônico Hípias Maior. Até algum tempo atrás colocado em os diálogos espúrios de Platão, a obra apresenta uma interessante interseção entre elementos ‘socráticos’, dentro de uma tradição de comentário que considerava que os diálogos da juventude de Platão reproduziam o pensamento do Sócrates histórico.

Segundo importante s e influentes comentadores, como Terence Irwin e Gregory Vlastos, o s diálogo socráticos, ou da juventude de Platão (Apologia, Críton, Carmides, Eutífron, Eutidemo, Hípias Menor, Íon, Górgias, Protágoras e Livro I da República), se caracterizariam sobretudo pela ausência de argumentos em favor da imortalidade da alma, por apresentarem uma concepção monista da alma humana (a alma humana possuiria apenas a motivação racional, pelo que a tese da impossibilidade da akrasia – fraqueza da vontade – é afirmada diversas vezes), por serem exclusivamente morais e por serem aporéticos. Em todos eles, o inquérito socrático (elenchos) é aplicado, e os diálogos terminam sempre com a demonstração de que o  interlocutor de  Sócrates não  sabe  o  que  pensava  saber. A justificativa para a aplicação de tal inquérito nos é dada por Sócrates na Apologia, que se considera como o primeiro escrito filosófico de Platão. Nesta obra, Sócrates explica que, a partir do oráculo délfico que afirmara não haver humano mais sábio que ele, começara a investigar se aqueles (políticos, generais, artesão s) que tinham a pretensão e a fama de serem sábios de fato o eram. E, após aplicar-lhes o inquérito, descobriu a diferença entre ele e os supostos sábios: ele sabia não saber, enquanto eles pensavam saber o que não sabiam. Disso, Sócrates conclui que todo humano que compreenda não possuir sabedoria completa, acabada e divina, atinge a mesma sabedoria que ele, Sócrates, reconhecendo que a sabedoria humana é pouco ou nada se comparada à sabedoria dos Deuses.

Ora, a partir deste cenário, a tese que Rineu Quinália procurará demonstrar que o Hípias Maior não se enquadra nos ditos diálogos socráticos ou aporéticos de Platão. Para Rineu, o Hípias Maior não faz parte de tais diálogos da juventude, pois não se limita a “representar uma forma primitiva do diálogo socrático na sua estrutura mais simples”: no Hípias Maior, Platão dá os primeiros passos no desenvolvimento de uma teoria que será fundamental em seu pensamento: a teoria da Ideia do Belo, pelo que a discussão no referido diálogo, embora partindo de um panorama moral e prático comum  aos  diálogos  da  juventude  de  Platão,  aporta  em  uma discussão metafísica, indo além da comum aporia dos diálogos socráticos. Demonstrar tal tese, portanto, é a tarefa a que se propõe nosso Rineu Quinália no presente trabalho.

U m dos méritos do presente trabalho é partir de um genuíno e interessante  problema  dentro  do  campo  das  investigações plantonistas. O diálogo Hípias Menor, por ser problemático em aspectos taxonômicos, ficou por boa parte do século XX relegado ao esquecimento pelos plantonistas, embora, como Rineu destaca, seja de extrema importância dentro desses estudos por representar uma ponte entre o Platão socrático e o Platão maduro.

Outro mérito do trabalho de Rineu é a precisão e a simplicidade da linguagem, pelo que a presente obra, embora confeccionada para a Academia, é acessível a qualquer pessoa que tenha interesse pelas questões da Antiguidade em particular e da Humanidade de modo geral.

Por fim, tive o privilégio de ter Rineu como colega há alguns anos na Universidade Federal de Sergipe. E era sempre um prazer vê-lo em sua sala, afundado entre livros, como um nobre renascentista, dedicando-se a pesquisar por horas e dias a fio, com amor pela tarefa. Este trabalho é fruto d estes esforços que testemunhei.

Este livro, tanto pela linguagem ao mesmo tempo acessível e tecnicamente correta, é de interesse seja para especialistas da área de filosofia antiga seja para o leitor comum.

Referências

QUINÁLIA, R. (2019). O Belo em Platão. São Paulo, Liber Ars.

Aldo Lopes Dinucci – Universidade Federal de Sergipe – Aracaju – SE – Brasil. E-mail: [email protected]

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Ensaios no feminino – NUNES DA COSTA (EL)

NUNES DA COSTA, Marta. Ensaios no feminino. São Paulo: LiberArs, 2018. Resenha de: HEUSER, Ester Maria Dreher. Eleuthería, Campo Grande, v. 3, n. 4, p. 105 – 112, jun./nov., 2018.

Em seu Ensaios no feminino, Marta Nunes da Costa ensaia sobre uma ausência na Filosofia e busca compreendê-la: a ausência das mulheres. Nessa busca, Nunes da Costa se encontra com categorias específicas, as mesmas que os movimentos feministas encontram em outros espaços culturais e sociais, naquilo que se refere às mulheres. Trata-se das categorias de invisibilidade; patriarcado; violência e desigualdade. Dá a ver que a Filosofia não é um campo assim tão distinto dos demais, como se gostaria de supor, afinal trata-se de um espaço de suposto uso da razão esclarecida. São ensaios que repensam e reconstroem criticamente nossa herança filosófica, social e política e que questionam: por que, apesar de os movimentos feministas que alcançaram reconhecimento pela dignidade das mulheres, as mulheres filósofas ainda estão nas margens da discussão filosófica dominante? Impulsionada pela teoria crítica, Nunes da Costa (2018, p. 17) traz elementos problemáticos e contraditórios presentes na nossa condição atual, para ela, “não é possível olhar para a história da filosofia e escolher ignorar a ausência das mulheres”, pois não só o que aparece e é dito são importantes, também, ou mais que isso, o invisível e o não dito merecem atenção.

Ausência é um sinal, diz ela (2018, p. 7): sinal de luta e de relações de poder. Não é que nós mulheres não estejamos presentes na Filosofia, sim, estamos ali, mas às margens. Como não estaríamos se a filosofia é a atividade de reflexão e busca de sentido que constitui experiência fundamental da existência humana? Existência esta que é partilhada por homens e mulheres que também questionam pelo sentido de si mesmas (cf. 2018, p. 11), tanto ou mais que os homens – afinal, são elas que mais leem1, que mais frequentam consultórios médicos2, os bancos escolares3 e também as igrejas4. Ainda assim, estamos ausentes porque rodeamos, perifericamente, aquilo que é central na Filosofia; são os homens, sobretudo, que conferem visibilidade à atividade filosófica, porque detém o poder também nessa instituição.

CULTURA PATRIARCAL

Para a autora, ocuparmos apenas as suas bordas indica que a Filosofia repete a ordem vigente da sociedade, a qual é orientada pela (quase) naturalizada lógica patriarcal e capitalista. O que “conduz a uma reprodução do valor masculino que só se faz à custa da violência contra o seu outro, a mulher” (2018, p. 26) e ecoa o “discurso do capital que parece assentar sobre um princípio sexualmente neutro” (2018, p. 27) elaborado por uma “visão androcêntrica que se impõe como neutra e não tem necessidade de se enunciar” com vistas à sua legitimidade, uma vez que é hegemônica. Segundo a autora (2018, p. 28), essa visão androcêntrica e hegemônica precisa ser contestada. Contestação que Nunes da Costa (2018, p. 31ss) faz também por meio da apresentação de números e dados acerca da legislação, brasileira em especial, que refletem a cultura patriarcal, “essa lógica de dominação em que o homem teve até muito recentemente total domínio sobre a mulher”. Isto do ponto de vista cultural e legal, pois só com a Constituição de 1988 que a mulher passou a ter “igualdade de funções” no âmbito familiar. A autora, no ensaio “Patriarcado, violência, injustiça – sobre as (im)possibilidades da democracia(?)”, informa que até a década de 70, no Brasil, se debatia se “o marido poderia ser sujeito ativo do crime de estupro, já que era dever da mulher cumprir com as suas funções e manter relações sexuais”, e que até 2009, “o estupro era tipificado como crime de ação privada contra os costumes” e não contra a mulher que sofreu o estupro. Há menos de uma década “o estupro passou a ser um crime contra a dignidade e liberdade sexual” (2018, p. 32 [os grifos são nossos]). Portanto, somente 25 anos depois da “abertura democrática” é que o direito à igualdade foi reconhecido no Brasil, este valor que “diz respeito ao fundamento da própria democracia: a dignidade da pessoa humana” (2018, p. 33). Se trata, porém, não de uma igualdade completa, pois aindahoje, em 2018, não temos o direito legal sobre o nosso próprio corpo, uma vez que as leis brasileiras ainda restringem os casos de aborto. Muitas mulheres, por lei, ainda não são “sujeito de sua própria vida e narrativa” (2018, p. 64) – algo que, na Rússia foi garantido durante a revolução de 1917. Mais de um século separa a condição das mulheres russas de nós, brasileiras, em termos de direitos (ao menos das mulheres da Revolução Russa). Apesar deste caso, o mais alarmante ainda, entretanto, é que “a violência continuada contra as mulheres” e as “relações desiguais de poder entre homens e mulheres” não são “privilégios” brasileiros. A autora expõe dados de países nórdicos, como a Dinamarca e a Suécia, que, apesar de se apresentarem em números inferiores, “não estão imunes à lógica da dominação da qual o Brasil se torna exemplar” (2018, p. 35).

O patriarcado, e as decorrentes desigualdade, injustiça e violência que fomentam a cultura do estupro, é real e geral, não se trata de exclusividade nem privilégio brasileiro. Embora mais gritante em algumas sociedades do que noutras, os efeitos do patriarcado, concebido “como sistema social de dominação via categoria de gênero” (2018, p. 26), está presente não só nos escandalosos números dos registros policiais feitos a partir dos boletins de ocorrências, os quais denunciam que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil, mas também na “linguagem quotidiana, músicas e ditos populares […] manifestações artísticas e culturais” (2018, p. 31). Para a autora, os países que partilham da “grelha conceitual” do Ocidente têm em comum a violência contra a mulher naturalizada e culturalmente aceita. Caso contrário, não teríamos, por exemplo, listas sem fim de letras de músicas que trabalham “a ideia fundamental de que mulheres querem ser violentadas, que pedem esta violência, que a violência faz parte do ‘jogo’ do relacionamento, do sexo, do prazer ou do amor” (2018, p. 40). Letras e músicas que, inclusive, recebem prêmios! Entretanto, a autora compreende que enquanto a representação da mulher não for positiva, enquanto as produções culturais perpetuarem o status quo que parte do olhar do homem sobre a mulher, ao qual a mulher se esforça para corresponder, a luta por emancipação, “no sentido de superação da dominação ou opressão”, não terá êxito. Sim, Marta Nunes da Costa não interpreta simplificadamente que se trata da modificação de apenas um lado; por se tratar de uma cultura, reconhece que muitas mulheres “promovem uma cultura de degradação da sua própria imagem, contestam a sua autonomia e os seus direitos objetivando-se deliberadamente” (2018, p. 40). Para a autora, a cultura patriarcal será desconstruída se o meio for “usado para desconstruir e reconstruir efetivamente as identidades de gênero e as ideologias culturais que tentam cooptar esses esforços, integrando-os novamente na lógica globalizante e totalizadora do sistema e da ideologia dominante e patriarcal” (2018, p. 41).

Para que a modificação aconteça, nos homens e nas mulheres, Nunes da Costa afirma a necessidade de uma “revolução realmente revolucionária”, a “revolução no feminino” que implica a “reinvenção de um feminismo radical” (2018, p. 59) capaz de confrontar abertamente a lógica patriarcal e expor a ilegitimidade das práticas culturais, tradicionais, consideradas normais e até naturais, sustentadas pelo neoliberalismo capitalista. Para a autora, de mãos dadas com Arendt, a revolução no feminino “é a mudança radical que cria um novo início” sem “compromisso com a ordem existente” (2018, p. 62; p. 65). Porisso também, essa reinvenção de um feminismo radical é questão e dever das mulheres e dos homens, porque implica a conquista da liberdade também deles, pois “onde existe dominação não há liberdade”, nem para quem se considera livre e que domina, nem para quem é dominado, uma vez que a experiência da liberdade é interditada “para quem não tem um igual” (2018, p. 61). Este feminismo radical compreende que “os iguais que se reconhecem e têm relações de reciprocidade constroem um mundo que é deles, de inclusão, de diálogo, de partilha, um mundo feito por nós e não por ‘eus’, como prega o capitalismo neoliberal” (p. 2018, p. 57).

ATOS POLÍTICOS

Os cinco ensaios que compõem o livro ensaiam, sobretudo, atos políticos. Ao explicitarem também a ausência das mulheres na Filosofia, os ensaios indicam o que a presença delas pode significar em um sistema de pensamento masculino, feito por homens e para os homens: ato de rebeldia e de subversão desse sistema. Esses atos, por serem políticos, se ocupam daquilo que é indispensável para a realização da política por excelência, a democracia. Para Nunes da Costa, a democracia só pode se efetivar em condições de dignidade da pessoa humana – o que supõe a igualdade de condições entre gêneros – e de pluralismo – que implica um espaço de diferenças, de dissenso e de lutas “por objetivação de sentido às práticas desenvolvidas, definição de narrativas dominantes, de lentes conceituais” (2018, p. 42). Ou seja, enquanto, dentro e fora da Filosofia, mulheres e homens não estiverem em condições de igualdade de fato, enquanto as relações de dominação não estiverem banidas, não haverá liberdade, nem democracia, portanto, pois “a democracia exige sempre uma pluralidade de agentes que se encontram e se reconhecem entre iguais” (2018, p. 9) com vistas a construírem uma “sociedade bem ordenada, regulada pela igualdade, liberdade e sim, fraternidade, aquela virtude quase esquecida” (2018, p. 30).

Nunes da Costa defende que, para que a pluralidade de agentes que atuam juntos deixe de ser sonho, é necessário que inventemos um NÓS, porque ele ainda não existe; uma vez que quando dizemos nós, em verdade, nos referimos a um conjunto de eus que funda o “novo homem democrático” o qual tende ao individualismo, ao isolamento e à solidão “enquanto prática quotidiana” promotora de um despotismo de novo tipo promovido por “ninguéns” (2018, p. 82). A fim de inventar esse NÓS, contudo, distintamente das perspectivas defensoras da dissociação entre moral e política, a autora propõe a refundação de uma ordem política que dá lugar à uma moral, também refundada, que tem em seu horizonte as questões “para onde queremos ir? Que tipo de seres nos queremos tornar? Ninguéns, anônimos e desprovidos de humanidade ou, pelo contrário, pessoas?” (2018, p. 87).

A saída para essa refundação da política e da moral, pensa Nunes da Costa, está na reinvenção de um povo que se produz pela experiência humana de associação, mas não de “unificação” (2018, p. 55), com vistas a um propósito comum que acaba, inevitavelmente, por inventar um NÓS. Considera ela que, ao nos associarmos politicamente, salvaguardamos a experiência de liberdade coletiva, o que dará sentido ao mundo comum democrático sustentado por uma “grelha moral” construída por um NÓS que define o certo e o errado num contexto privado e público. Para ela, é só este NÓS, que cria e vive em um mundo comum feito “pelos humanos e que nos torna humanos” (2018, p. 60), que poderá interiorizar a vida como valor em si, como fim último da moralidade. Um NÓS que não elimina o confronto, mas afirma um confronto não aniquilador do outro, ao contrário, que reconhece “uma igualdade que transcende as diferenças’” e constrói um “espaço comum que permite a liberdade” de agir com o outro que é livre e igual (2018, p. 54). Enquanto não formos um NÓS, enquanto não pensarmos “o desafio da existência humana em conjunto”, seremos nada mais do que “observadores quietos e imperturbáveis” que assistem ao total colapso “de valores que permitem a construção e a sustentação de um projeto humano democrático viável” (2018, p. 81).

Nunes da Costa propõe a invenção deste NÓS pensando no Brasil, este país que ela escolheu para viver, educar seus filhos e filha e ajudar a fazê-lo por meio da docência pesquisa com estudantes e professores da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul –UFMT (e agora também na UNIOESTE). Ela considera o Brasil “um excelente laboratório para pensar o desafio da democracia […] um desafio que é moral (porque ainda precisamos responder à questão ‘o que é certo e errado?’) e político (porque ainda precisamos imaginar soluções que estanquem a sangria e a morte)”. Não é à sangria das investigações da Operação Lava jato5 que Nunes da Costa se refere, isto porque, para ela, o colapso de valores “não está retratado, apenas, nos governantes corruptos e mal-intencionados. Este colapso está entre nós, em todo o lado”. O colapso ao qual a autora se refere “aponta para a superficialidade da existência humana” e denuncia “a normalização de um modo de vida […] alienado” (2018, p. 81). Estamos alienados do mundo porque nele não encontramos lugar, tal como Arendt dizia. E não encontraremos lugar enquanto os ninguéns, aqueles que não se veem como responsáveis, porque não se reconhecem como seres morais, logo como pessoa, existirem e dominarem.

Como já antecipamos, para Nunes da Costa, a despeito de sua instabilidade frequente, a democracia é a única via para a construção desse NÓS e o banimento dos ninguéns. Isto porque, para ela (2018, p. 75), apesar de quererem nos fazer acreditar que a democracia deve ser considerada uma utopia a ser abandonada, porque impossível – e o Brasil é palco de tentativas quase quotidianas de desacreditar a democracia, seja ela como sistema político, social ou até como modo de vida – ela é a escolha humana que inclui homens e mulheres, em condições de liberdade, enquanto responsabilidade, e de igualdade, enquanto dignidade.

Dentre as várias conceptualizações de democracia, Nunes da Costa a concebe no sentido determinado por John Dewey: “como modo de vida” (2018, p. 26, 52 e 76 [grifos da autora]), vida que, aliás, “nasce sempre de uma mulher”, não esqueçamos disso (2018, p. 22); mas modo de vida que só pode ser construído pela pluralidade, inclusive de gêneros. Uma vez concebida como modo de vida, a democracia é pensada como uma estrutura básica de sociedade que engloba todas as instituições, costumes, práticas, imaginário coletivo; um projeto de constante transformação que orienta, dá direções sem impor nenhuma; apresenta papeis possíveis a desempenhar; não diz o que deve ser, mas o que pode ser; produz caminhos, ao invés de defini-los. Neste sentido, a democracia não define necessidades, mas produz possibilidades porque ela mesma não é, “na realidade, não existe algo como ‘a democracia’”, o que há somos nós humanos, mortais, que temos “um poder extraordinário de viver ou não democraticamente” (2018, p. 76).

Assim, o ato fundador da democracia é a “escolha humana”. A escolha pela democracia como modo de vida orientado por “relações democráticas” (2018, p. 53) é “o ato da determinação do possível, da construção do possível sobre o necessário” (2018, p. 79). É apenas com ela que a liberdade e o valor da dignidade humana, posto no centro do projeto democrático pela autora, na acepção kantiana daquilo que “não tem preço” (2018, p. 47), podem se materializar. Não se trata, entretanto, de uma relação causal, no sentido de que a democracia se realiza primeiro para então a liberdade e a dignidade ganharem existência. Do modo que pensa a autora, uma é impossível sem a outra. Nunes da Costa compreende que “a liberdade é a ideia que suporta a construção da moral e que atribui sentido ao mundo físico [… e que] inventa o possível” (2018, p. 47). Portanto, se a democracia é o “ato de determinação do possível”, para que ela ganhe efetividade, a liberdade, que é inalienável e confere dignidade àquilo que não pode ser trocado por nada – a pessoa –, lhe é imprescindível. Não haverá, portanto, democracia sem liberdade, dignidade e igualdade, pois há uma relação essencial entre elas. Para a autora, “a dignidade constrói o horizonte de igualdade entre membros de uma comunidade racional, e nesse horizonte eles são livres” (2018, p. 55). Considerando o entrelaçamento desses conceitos, é possível afirmar que enquanto não formos tratados e nem tratarmos os outros como fins em si mesmos, numa relação de igualdade, não será possível agir livremente e resistir àquilo que fere a dignidade e impede de imaginarmos e criarmos alternativas para a afirmação da vida ativa de cada uma e cada um de NÓS em um mundo comum que juntos construímos, assim como a democracia continuará sendo um sonho. Nos parece, contudo, que a autora, ainda que ao longo do livro, na maior parte das vezes, sugira a horizontalidade e a relação necessária entre esses conceitos para a efetivação da democracia, no que se refere à reivindicação primeira da luta feminista, nessa sua proposta de reinvenção de um feminismo radical, se trata de lutar, antes de tudo, por liberdade (2018, p. 70). Mais precisamente, para ela, lutar pela “experiência da liberdade, que é sempre uma experiência que nasce do encontro dos ‘eus’ transformando-os em ‘nós’, tem potencial unificador das vontades individuais” que constroem “um mundo comum” (2018, p. 73). Além do mais, nos parece que Nunes da Costa sugere que a bandeira número um desse feminismo radical seja a liberdade também porque, como pensa Arendt, somente quem é livre, para resistir e propor o novo, pode ocupar “o espaço das aparências que é o espaço político por excelência” (2018, p. 72). Em síntese, se somos iguais unicamente quando aparecemos e só podemos aparecer se sairmos do espaço privado que nos foi destinado há séculos, só conquistaremos a igualdade se tivermos a liberdade de atuarmos na aparência da esfera pública e democrática. Pensado assim, arendtianamente, a primazia da luta pela liberdade sobre a bandeira da igualdade ganha sentido e necessidade. Nas palavras da autora:

Feminismo é a ação política conduzida por mulheres que buscam, pela sua ação, transformar a condição da qual partem. Por isso, feminismo deve passar necessariamente pela crítica social, pois visa a (re)construção do mundo de acordo com um ideal de emancipação, onde liberdade e igualdade se encontram (2018, p. 23).

É o que faz com que o sloganimpresso em camisetas e pichado em muros urbanos “lugar de mulher é onde ela quiser” deixe de ser “clichê feminista” para ganhar sentido e força de novidade. O que só pode se realizar via escolha democrática.

Mas por que escolher a democracia e não outra alternativa para viver, pergunta Marta Nunes da Costa (2018, p. 79-80). Ela e nós escolhemos a democracia porque “não queremos ser átomos, instrumentos singulares nas mãos de uma vontade que não é e nunca será a nossa”; porque consideramos a nossa existência imprescindível, mas não aceitamos viver apenas para sobreviver. Isto porque, não queremos e nem merecemos viver para morrer; porque não se trata de pensar “a sobrevivência do ser humano só como indivíduo e espécie, mas também como ser Humano […] ser que cria o seu mundo e é inteiramente responsável por ele” (2018, p. 59 [grifos da autora]). Assim, para a autora, escolher a democracia implica, ao mesmo tempo em que se faz escolhas políticas, fazer uma escolha moral pela humanidade, isto que não tem propriedade física nem se encarna nos indivíduos, mas é o “que nos torna humanos” (2018, p. 47 [grifos da autora]). Eis a defesa da indissociabilidade entre política e moral e a tese que parece atravessar todo o livro, de modo sutil e quase circular: Feminismo hoje é Humanismo que só se torna viável em Democracia, a qual não pode se realizar se não tiver como fim a escolha pela humanidade constituída por um NÓS composto de mulheres e homens diferentes, que coexistem em condições de igualdade, uma vez que são livres. Nos arriscamos a apresentar uma fórmula circular de igualdade absoluta entre: FEMINISMO = HUMANISMO = DEMOCRACIA, uma vez que a autora afirma que:

a luta feminista é antes de mais humanista, e democrática de espírito, pois reclama acima de tudo uma transformação nas práticas orientadas pela busca de equilíbrio  entre diferentes, i.e., entre não-iguais de fato, mas que se projetam como iguais pelo compromisso que têm com a construção de um mundo comum (2018, p. 30).

Todas e todos estão convidados para esta luta que é nossa!

Notas

1 “Por que as mulheres, brasileiras ou francesas, leem mais que os homens?”. Disponível em: <https://blog-saraiva-com-br.cdn.ampproject.org/v/s/blog.saraiva.com.br/por-que-as-mulheres-brasileirasou-francesas-leem-mais-que-oshomens/amp/?amp_js_v=0.1&usqp=mq331AQGCAEYASgB#origin=https%3A%2F%2Fwww.google.co m.br&prerenderSize=1&visibilityState=prerender&paddingTop=54&p2r=0&horizontalScrolling=0&csi= 1&aoh=15259491313941&viewerUrl=https%3A%2F%2Fwww.google.com.br%2Famp%2Fs%2Fblog.sa raiva.com.br%2Fpor-que-as-mulheres-brasileiras-ou-francesas-leem-mais-que-os homens%2Famp%2F&history=1&storage=1&cid=1&cap=swipe%2CnavigateTo%2Ccid%2Cfragment% 2CreplaceUrl>. Acesso em 16 Maio 2018.

2 “Mulheres vão mais ao médico que homens, mostra IBGE”. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2015/06/02/interna_nacional,653986/mulheres-vao-maisao-medico-que-homens-mostra-ibge.shtml>. Acesso em 16 Maio 2018.

3 “Mulheres estudam mais que homens, segundo IBGE”. Disponível em: <http://www.crmariocovas.sp.gov.br/noticia.php?it=14482>. Acesso em 16 Maio 2018.

4 “Mulheres são mais religiosas do que os homens, exceto no judaísmo e no islamismo”. Disponível em: https://www.semprefamilia.com.br/mulheres-sao-mais-religiosas-do-que-os-homens-exceto-no-judaismoe-no-islamismo/. Acesso em 16 Maio 2018.

5 Sobre isso ver: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1774018-em-dialogos-gravados-juca-falaem-pacto-para-deter-avanco-da-lava-jato.shtml. Acesso em 08 Maio 2018.

Ester Maria Dreher Heuser – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

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