As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual | Faramerz Dabhoiwala

Pode ser contraditório intitular um livro como As Origens do Sexo quando, na verdade, seu recorte espaço-temporal abarca a Grã-Bretanha do período 1600-1800. De qualquer forma, FaramerzDabhoiwala – professor e pesquisador de História da Universityof Oxford – não deseja apresentar uma história linear e “total” da sexualidade, mas descrever as transformações das experiências sexuais do Ocidente, relacionando-as com as grandes propensões políticas, intelectuais e sociais da época. Três elementos estruturais estão na base da composição da obra: o espaço, ou seja, a casa, o bordel, a rua, etc.; os personagens, isto é, os homens e as mulheres; e o elemento unificador: o sexo. Da trama sutil desses fatores, surge uma história enquanto realidade axiomática. A arte de Dabhoiwala consiste, sobretudo, na habilidade com que conseguiu arranjar esses elementos, salvaguardando o caráter multifacetado de análises que não permite o esgotamento das possibilidades interpretativas. O resultado é a conclusão de que as atitudes em relação ao sexo oscilaram, na Inglaterra dos séculos XVII-XIX, entre a censura tirânica e a relativa liberdade.

O livro é, sobretudo, um grande mosaico crítico de uma cultura que intentava disciplinar a sexualidade, mas que, com o tempo, viu emergir em seu próprio meio ideias relacionadas a uma maior tolerância e liberdade sexual. Texto nascido a partir da análise das mais variadas fontes históricas – Literatura, Tratados Morais, Processos-crime e Legislação encontram-se ajustadas. O discurso continuamente se entrelaça a uma linguagem poética, em Criminal -, compõe-se de um complexo tecido no qual História, Literatura e Jurisprudência uma investigação histórica sem precedentes. Dabhoiwala propõe uma História da Sexualidade que é, no seu conjunto, uma narrativa sempre reencetada. Por isso, os mais variados assuntos são trazidos à tona – casamento, prostituição, libertinagem, individualismo, ascensão da opinião pública, urbanização, tolerância religiosa, crescimento da cultura de massa, propagação da impressão e filantropia –, constituindo, todos eles, um verdadeiro amálgama de elementos que permitem, cada um a seu modo, que a sexualidade passasse a ser entendida como uma questão privada, de moral pessoal, sujeita apenas ao controle individual. Esta seria, segundo o autor, “a primeira revolução sexual”.

O capítulo 1, Declínio e queda da punição pública, explica que até fins do século XVI o policiamento das condutas sexuais era exercido não somente pelo poder da Igreja e do Estado, mas também pela participação popular – vigias, agentes de polícia, pais de família. Tratava-se de um enorme sistema que defendia padrões coletivos de comportamentos sexuais e que por trás dessa vigilância incessante buscava inculcar os ideais de monogamia e castidade, além de condenar práticas como luxúria, fornicação, adultério e prostituição. Fundamenta o autor que prostitutas, adúlteros e sodomitas foram, por muito tempo, ridicularizados, estigmatizados e até mesmo mortos por seus vizinhos e pela comunidade em geral. Essas tentativas de criar uma sociedade livre do pecado – característica da sociedade inglesa puritana – fizeram surgir leis mais rígidas para impor a disciplina sexual. Todavia, deve-se levar em consideração que os padrões exigidos tornavam muitos julgamentos puras ocasiões de formalidade. O autor considera essa questão uma notável ironia: o poder político e religioso buscava o apelo popular, todavia, a campanha anti-imoralidade surtia o efeito contrário. Isso porque sua retórica dependia de grupos de delatores regulares e oficiais, coisa rara naquele período. Além disso, o crescente tamanho e a complexidade da vida na Inglaterra Industrial minaram a eficácia desse sistema de policiamento sexual. O movimento da população do campo para as cidades, onde havia mais lugares e ocasiões para o ato sexual, acabou por tornar a comunidade em geral menos vigilante em relação aos transgressores. O anonimato das grandes cidades conseguiu enfraquecer a perseguição a práticas sexuais mais heterodoxas. O resultado foi exatamente um declínio e uma queda da punição pública quando comparados a períodos anteriores.

No capítulo 2, A ascensão da liberdade sexual, o autor explica que a mudança que mais abalou a sociedade entre fins dos séculos XVI e início do XVII foi a cisão religiosa, fato que acabou por legalizar a pluralidade moral inglesa. Na verdade, Dabhoiwala quer deixar bem claro ao leitor que a tolerância sexual somente cresceu e se difundiu a partir de uma maior tolerância religiosa. Esta tolerância foi, de fato, uma das características centrais do Iluminismo europeu. Com base nos escritos de variados pensadores, como John Locke, John Milton, David Hume, William Walwyn, Thomas Hobbes, Pierre Bayle, Richard Fiddes, Joseph Priestley e Robert Malthus, o autor elucida como tais filósofos ajudaram a expandir o escopo da liberdade pessoal. Buscavam, com isso, viver em um clima muito mais pluralista. O efeito das discussões filosóficas foi colocar as normas morais numa posição mais liberal, fazendo surgir, já na década de 1750, uma doutrina considerada bem desenvolvida de liberdade sexual. Sexo era, a partir desse período, uma questão privada. Criou-se um modelo civilizacional baseado nos princípios da “privacidade, igualdade e liberdade”, princípios que foram fundamentais para a criação de um novo modelo de cultura sexual e que o Ocidente continua a sentir seus reflexos.

O culto à sedução constitui o capítulo 3. Busca situar o leitor nas novas maneiras de observar o sexo feminino. Antes de 1800, afirma Dabhoiwala, as mulheres eram consideradas o sexo mais lascivo. Argumentos misóginos eram tão difundidos que era ideia comum entre a sociedade de que elas eram mental, moral e corporalmente mais fracas do que os homens. No século XIX ocorre uma mudança radical em relação a essa visão. A partir desse período, a ideia era exatamente oposta: passou-se a acreditar que na verdade eram os homens os seres mais libidinosos por natureza. No caso deles, isso era uma espécie de “impulso elementar”. O sexo feminino passará a ser considerado como “delicado”, “passivo”, “frágil”. Segundo o autor, tal mudança estava extremamente avançada na metade do século XVIII, pois já era expressa de forma notória em grandes romances em língua inglesa que surgiram entre as décadas de 1740 e 1750. O interessante é que essa nova visão da premissa da lascívia masculina foi, em grande parte, herdada da crescente proeminência cultural de mulheres artistas. Houve, por exemplo, uma enorme ascensão de atrizes profissionais no teatro inglês após 1660. As peças elisabetanas e jacobinas encenavam a vulnerabilidade feminina sempre contrastada com a lascívia masculina. A violência masculina tornou-se o tema central de vários enredos trágicos. Peças de comédia como Rei Lear, escrita por Nahum Tate, VertueBetray’d, de John Banks, The Orphan, de Thomas Otway, e The Fair Penitent, de Nicholas Rowe, apenas para citar algumas, colocavam o sofrimento feminino no centro da história. Eram claras admoestações contra as artimanhas dos homens que colocavam em cena, quase sempre, estupros, raptos, enganações e mortes. O romance foi outro meio utilizado para divulgar essa imagem de “sexo frágil” em relação à mulher. Conquista e sedução eram assuntos primordiais no romance, como o comprovam as obras de Jane Austen, AphraBehn, DelarivierManley e Eliza Haywood, PenelopeAubin, Jane Barker e Mary Davys. Essas autoras ajudaram, cada uma a seu próprio modo, a estabelecer o romance como a forma mais difundida de literatura inglesa, sendo a sedução – e questões como o amor, conquista e desejo carnal – seu enredo mais fundamental. Dabhoiwala acredita que o romance teve, nesse contexto, um papel fundamental na mudança para uma moralidade mais tolerante.

Em O novo mundo de homens e mulheres, quarto capítulo da obra, o autor explica que a imagem do homem voraz sexualmente fez emergir uma outra imagem: a das mulheres que, do século XIX em diante, deveriam se resignar, se fechar, se enclausurar cada vez mais para proteger-se das investidas masculinas. O que estava em causa, após as primeiras décadas do século XIX, era como domar a imprudência e a aparente promiscuidade “natural” do macho. Essa ideia de que as mulheres eram superioras moralmente tinha uma força gigante. Isso acabou por dividir a suposta natureza sexual dos homens e das mulheres, legitimando e acentuando preconceitos sociais e sexuais, preconceitos estes que ainda hoje se fazem presentes. Diante disso, a questão posta aos homens do período foi a seguinte: como canalizar a lascívia masculina de modo a preservar a “pureza” feminina? A resposta a essa pergunta estava, entre outras coisas, na aceitação social da prostituição. Entendia-se que melhor seria reservar uma classe de mulheres “inferiores” do que sacrificar as “respeitáveis”.

Diante disso, o quinto capítulo, As origens da escravidão branca, dedica-se a explicitar a posição social das prostitutas no seio da sociedade britânica no século XIX. Segundo o autor, foram realizados diversos esforços no intuito de criar abrigos, workhouses e instituições de caridade (como a MagdalenHousee a LamberthAsylum) para as mulheres “decaídas” e garotas em risco de sedução ou vítimas potenciais da lascívia dos homens. Por trás da configuração filantrópica pública em prol das meretrizes havia, porém, diversos interesses egoístas. Crescia a visão de que o encarceramento rotineiro e a exploração econômica dessas mulheres não passavam de meios para transformá-las em membros economicamente produtivos da sociedade.

O sexto e último capítulo, Os meios e a mensagem, narra como a revolução midiática do Iluminismo – exemplificada pelo crescimento da cultura de massa, da pornografia, de publicações biográficas de prostitutas e cafetinas, de xilogravuras baratas e de gravuras das “damas de prazer” – foi central para as mudanças comportamentais em relação ao sexo no século XIX. O crescimento da mídia, a disseminação dos livreiros, o aumento do número de alfabetizados, a ascensão da imprensa periódica como os jornais e o maior uso de panfletos na sociedade fizeram emergir uma cultura midiática que ajudou a criar um novo modelo de vivências erótico-sexuais no Ocidente. Criaram-se, por exemplo, diversos clubes especiais masculinos como o Beggar’sBeninson, em que seus membros reuniam-se para beberem, conversarem acerca de sexo e, em alguns momentos, ejacularem coletivamente lendo pornografia. O prazer sexual passou a ser celebrado em fins do século XIX. Houve, segundo o autor, uma espécie de colapso do policiamento sexual. Desenvolveu-se uma enorme indústria material dedicada ao sexo. A prostituição tornou-se mais visível. Pinturas, desenhos e livros eróticos eram sensação quase instantânea, popularizando-se no mundo anglófono. Amplamente relidos, tais imagens e textos ajudaram a apressar o desenvolvimento da vida privada. O resultado foi o aumento de um público ávido por leituras desse tipo, muito mais amplo do que nos séculos precedentes, refletindo uma nova apreciação do homem moderno com o ato sexual.

No epílogo, Culturas modernas do sexo – dos Vitorianos até século XXI, Dabhoiwala destaca os temas e recortes que utilizou para explicar as origens das atitudes modernas ocidentais em relação ao sexo. Afirma que não se pode estudar a História da sexualidade sem compreender as revoluções sociais que abalaram o Ocidente, especialmente as do século XVIII.

O livro, portanto, não é autotélico: volta-se para alvos definidos, com existência própria. De modo geral, em toda a obra verifica-se uma vinculação íntima entre o passado legível e o presente oculto. Sem dúvida, os historiadores estão diante de uma obra que ainda tem muito a revelar. O que surge ao longo das páginas é o homem moderno, moldado pela cultura em corte profundo. Dabhoiwala realizou um notável trabalho, tendo que trilhar por um caminho difícil, pois enveredou por um campo de pesquisa mais ou menos ilimitado. Para seu crédito, o autor abraça as complexidades dos estudos históricos, escrevendo de maneira clara e sucinta. A escrita dessa obra pôs em relevo a transgressão sexual, à margem das grandes cidades inglesas entre os séculos XVIII e XIX, resgatando o sentido do caráter infrator do sexo que prefigurou, a seu modo, a maneira como a sexualidade é vivida na contemporaneidade.

Wallas Jefferson de Lima – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, vinculado a Linha de Pesquisa Espaço e Sociabilidades. Bolsista Capes. E-mail: [email protected]

DABHOIWALA, Faramerz. As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual. Trad. Rafael Mantovani. São Paulo: Globo, 2013. Resenha de: LIMA, Wallas Jefferson de. Puritanos e revolucionários: as origens da primeira revolução sexual. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.35, n.2, p.260-264, jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

Paris: Capital da Modernidade | David Harvey

Conhecido como um dos grandes intérpretes do Marxismo na atualidade, David Harvey revela-se, também, como um dos maiores expoentes da chamada Critical Geography. Formado pela University of Cambridge, onde obteve seu doutorado em 1961, este geógrafo britânico tem especial afeição pelo estudo e pela análise das transformações econômicas, sociais, históricas e culturais do espaço urbano. Professor emérito de antropologia da City University of New York, Harvey explora em suas pesquisas o domínio dos diferentes circuitos do capital e os processos relacionados à intensificação do sistema de crédito e consumismo ostentatório, focando-se no estudo dos atores da produção do espaço. Essas problemáticas atravessam o caleidoscópio de suas análises: em Social Justice and the City, de 1973, ele já demonstrava um fascínio por temas relacionados ao planejamento urbano, à desigualdade de renda entre bairros ricos e pobres e à formação espacial da cidade. Por meio de uma crítica contundente, ele desenvolveu a ideia de que a formulação de uma teoria contrarrevolucionária em Geografia só seria possível via marxismo. Suas investigações têm contribuído para demonstrar como o capitalismo aniquila o espaço, no intuito de garantir sua própria reprodução, como se pode constatar em Condition of Postmodernity, de 1989. Como um dos mais destacados especialistas desse campo, Harvey também produziu reflexões a respeito das crises econômicas do capitalismo (The enigma of Capital, publicado em 2010) e das características atuais do imperialismo (The New Imperialism, publicado em 2003). Publicado originalmente em 2003, Paris: capital da Modernidade revela a preocupação do autor com questões relacionadas ao denominado “direito à cidade” (Henri Lefebvre), elemento constitutivo de sua trajetória. David Harvey esteve no Brasil em junho de 2015, para lançar a versão traduzida dessa obra no Seminário Internacional Cidades Rebeldes, momento em que debateu questões relacionadas às atividades econômicas, aos hábitos sociais, às estruturas de poder e à consolidação da expansão do sistema capitalista. Leia Mais

A redenção de Deus: sobre o Diabo e a inocência | Alexandre M. Cabral e Jonas N. Rezende

O tema do paraíso fascina o ser humano desde longa data. Para muitos, o mais célebre jardim da história foi o Éden e sua representação bíblica goza até hoje de uma grande força figurativa. O relato bíblico apresenta o deus hebraico como um ser repleto de poderes agrícolas, pois foi ele quem criou a terra, a água, a vegetação e o homem (feito de barro). Não só isso. Para além da descrição idílica, o mito do paraíso também deixa vir a lume um conflito que não tem fim: a “guerra entre Deus e o Diabo”, da qual o homem não pode escapar. É com esse pano de fundo que os filósofos Alexandre Marques Cabral e Jonas Neves Rezende buscam explicar de que maneira essa lógica binária faz-se presente no imaginário social cristão ocidental. Trata-se de uma tarefa hercúlea, contudo os autores conseguem atingir os fins a que se propõem. A obra seduz do início ao fim o leitor por meio de linguagem e estilo de ensaístas literários que buscam destacar tanto as imagens simbólicas quanto as discussões filosófico-teológicas em torno dessa narrativa.

O livro divide-se em duas partes: um ensaio filosófico-teológico de Alexandre Marques Cabral e, em seguida, um poema de Jonas Rezende. Juntos, os autores visam desconstruir a oposição que se petrificou e que ainda faz-se sentir na cultura ocidental cristã: Deus e Diabo. Do primeiro, reteve-se o bom, o justo, a glória; do segundo, o pecado, a rebelião, a inveja. Como é sabido, esse pensamento um tanto maniqueísta gerou inúmeras contestações na história e é exatamente esse aspecto que os autores buscam desvendar ao longo da obra.

Já na introdução, denominada Mito, verdade e existência, Resende não entra na discussão de explicitar se o mito (mythos) é incompatível com a ciência. É verdade que, para o homem contemporâneo preso ao pensamento lógico (logos), cartesiano e racional, os mitos são geralmente considerados ilusórios, fantasiosos e mentirosos. Todavia, segundo o autor, é preciso empatia nessa discussão para se compreender que também o mito contém realidades profundas, ocultando um tipo específico de verdade. Por conseguinte, se o mito do paraíso possui suas mais puras e coerentes representações de cunho religioso, isso não é razão para o cientista social descartá-lo como mera construção fantasiosa. Essa postura poderia levar o historiador a negar falaciosamente, por exemplo, que a literatura ou a poesia, só para citar dois exemplos, tenham qualquer aspecto válido a ensinar acerca da realidade. Logo, não é porque o Éden não existiu no plano concreto que esse espaço tenha deixado de ser sonhado e buscado. Sua verdade e sua lógica não são teóricas. Ao contrário. Por isso, os autores concebem “o mito como uma metanarrativa que fala metaforicamente de um universo atemporal” (CABRAL, 2012, p.78). Nesse sentido, à luz das discussões de Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), perfila-se, ao longo da obra, pensar o real por intermédio do mito, admitindo que também o mito produz uma espécie de cosmovisão específica.

O primeiro capítulo, A lógica do paraíso, analisa os relatos presentes no Gênesis, explicando seu universo semântico, mas sem apresentar qualquer fórmula hermenêutica que encontre no relato uma “verdade absoluta”. O que mais interessa aos autores é compreender de que maneira o mito do paraíso perdido pôde ser apropriado criativamente pelos homens ao longo do tempo e quais elementos simbólicos foram perdidos após a “queda”; é esse aspecto que pode auxiliar pesquisadores das mais diversas áreas a entender a eterna “guerra entre Deus e o Diabo”. Enfatizando a primeira parte do mito do paraíso perdido, a obra auxilia o leitor a perceber de que maneira a representação do jardim paradisíaco foi sendo associada quase sempre a uma região verdejante impregnada de enorme beleza cênica que exprime conforto, alegria, paz. Por ser um santuário, era como um espaço em que o deus hebraico representativamente andava e se comunicava com o primeiro casal humano. Assim, o mito hebraico da criação instituiu no imaginário social uma divindade onipotente e perfeita em oposição ao diabo, sempre identificado como adversário, corruptor, enganador. A obra lembra, todavia, que satanás e o deus hebraico estavam juntos no jardim e que ambos pertenciam, cada um à sua maneira, à plenitude desse espaço. Para o autor, essa harmonia conflitiva entre um e outro compunha os traços do próprio jardim e exibia esses personagens como adversários, mas não inimigos.

O segundo capítulo, O fim do paraíso: a genealogia do mal, busca explicar como a “queda” deu origem ao que os autores denominam “teatro de horrores”, que engendrou e justificou ao longo da história ocidental uma pluralidade de sofrimentos. Explana que nada externo destruíra o paraíso. A rebelião, a bem da verdade, começou por dentro. Simbolicamente, a perda da região paradisíaca demonstrou que ali não era um espaço de necessidade, mas de liberdade. A tentação, o desejo que possuiu o fruto proibido, a possibilidade de “ser como Deus”, constituem características dessa parte do mito. Mas, com a expulsão do homem do jardim, confusão e pecado se introduziram no mundo. A natureza passou a assumir um aspecto de inimigo caótico e violento contra o qual teria o homem de lutar. Assim, “Fora do paraíso, Deus tornou-se um forasteiro e Satanás transformou-se em eterno companheiro” (CABRAL, 2012, p.174). A partir da “queda”, os humanos serão encarados como seres em eterna disputa entre o seu criador e o diabo. A dualidade entre o centro (paraíso) e a periferia (ermo), tão perfeitamente ancorada na organização concreta dos espaços vividos, é um aspecto interessante a se notar nesse mito, supondo outra dualidade que opõe interior e exterior. Disso resulta, segundo o autor, a valorização do centro positivo e sacralizado (por oposição à periferia) e uma interioridade vigorosa e protetora (por oposição ao exterior). A “expulsão” ou “a queda”, enquanto deslocamento para o exterior, significa, no nível simbólico, uma espécie de confrontação com um mundo diferente, outro espaço, “um vale de lágrimas”. A travessia reforça tão somente a perda de ligação com o lugar protetor conhecido (o ecúmeno), e por isso a realidade também passará a ser dividida entre dois reinos no cristianismo: Céu (alto, superior, bom) e Inferno (baixo, inferior, mal). Esse sistema binário ajuda a explicar em parte o porquê de o Cristianismo valorizar sobremaneira o futuro, o post-mortem, exigindo dos homens um eterno processo de purificação.

Esse é o momento em que surge a “geografia espiritual” para a consciência judaica. Deus, que fugira da Terra após a queda do paraíso, habita os “Céus”. Satanás, que caíra dos céus levando uma miríade de demônios, entrou na terra e passou a comandar o inferno. Alguns anjos perseveraram ao lado de Deus. Já Satanás e seus demônios passaram a marionetizar a Terra, manipulando seres humanos à perdição (…). A divisão Céu/Inferno foi acompanhada de uma imagem ambígua da Terra. Se Deus está para além da vida terrena, estar com ele é um evento post-mortem. Se o diabo está dentro da Terra, também para estar integralmente com ele é necessário morrer. Por isso, a terra tornou-se um campo minado: ora explodem as bombas dos demônios e ora aparecem as espadas e escudos dos anjos. Aqui se decidem o céu e o inferno, pois é aqui a bilheteria onde compramos a entrada para o Céu ou para o Inferno (CABRAL, 2012, p.181-2).

O terceiro capítulo, Ocidente e ascese: a falência da oposição entre Deus e Diabo, questiona se o paraíso é de fato o paradigma fundamental do Ocidente. Para tanto, os autores abordam a questão sob a ótica dos estudos do biblista alemão Julius Wellhausen e dos escritos de Platão. Os efeitos colaterais na busca de uma ascese são evidentes no Ocidente cristão: agir moralmente, ser autovigilante, subjugar os prazeres carnais, controlar as tentações. Disso depende a salvação individual. A partir desse férreo controle, existe a possibilidade de o cristão ser digno de “entrar no céu”. Todavia, longe de significar fidelidade para com os preceitos divinos, esse autocontrole denota que o homem ocidental tem, na verdade, temor de sua perdição. As consequências desse paradigma são bem conhecidas dos historiadores: ao longo da história os cristãos mataram, difamaram, perseguiram, destruíram e anularam os “elementos tentadores” (ateus, bruxas, homossexuais, etc.). Tudo isso em nome de um ideal maior. Por isso, cristianismo e terrorismo são irmãos siameses. Olhar para um sem ver a presença do outro é praticamente impossível: “Os fundamentalismos de toda espécie, a homofobia, a misoginia, etc. sempre estiveram a serviço de um ideal de bem supremo, que funcionaliza toda realidade, posicionando-a a seu serviço” (CABRAL, 2012, p.261, grifos do autor).

O último capítulo, denominado A redenção de Deus ou o desamaldiçoamento do Diabo, busca ressignificar os personagens principais da narrativa paradisíaca do Gênesis (o deus hebraico e o diabo), dando-lhes novos sentidos. Para tanto, os autores destacam o pensamento de Willian Blake, artista londrino que se notabilizou por suas pinturas e poemas. A “lógica do jardim” deveria ser analisada à luz da supressão da dicotomia Bem/Mal e da integração Deus/Diabo, uma vez que existe uma funcionalidade do diabo que o cristianismo tende a abafar.

São, dessa maneira, demasiadas as áreas de sombra que, provavelmente, emergirão dessa obra, o que recomenda doses de tolerância aos leitores mais exigentes. Afinal, sendo a Filosofia um estudo que se caracteriza pela intenção de ampliar incessantemente a compreensão da realidade, no sentido de apreendê-la na sua totalidade, ela guarda óbvias afinidades com a racionalização e as demais operações de que faz uso para compreender o homem. Eis uma obra ricamente erudita e repleta de informações filosóficas. É contundente a profundidade das colocações dos autores e, consequentemente, notável seu valor, bem como o prazer que se extrai do texto. Obra vigorosa que elucida o mito do paraíso e a oposição entre Deus e o Diabo e que age sobre as mais variadas concepções. Não é a esperança do paraíso celeste um desejo de retorno à felicidade perdida no Gênesis? De fato, como interpretar as utopias e seu singular adendo que é o tão aclamado paraíso? Simples fantasia literária? Talvez aqui, considerada em sua ampla dimensão histórica, a primeira hipótese comece a revelar-se mais interessante. E mais complicada.

Wallas Jefferson de Lima – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do CentroOeste (PPGH/Unicentro). E-mail: [email protected]


CABRAL, Alexandre Marques; REZENDE, Jonas Neves. A redenção de Deus: sobre o Diabo e a inocência. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012.  Resenha de: LIMA, Wallas Jefferson de. Aedos. Porto Alegre, v.6, n.14, p.155-158, jan./jul., 2014. Acessar publicação original [DR]

O Erotismo | Georges Battaille

“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Este axioma de Italo Calvino (2007: p.11) baliza com precisão o que a obra L’Erotisme, de Georges Bataille, que veio a lume pela primeira vez em 1957, significou e ainda significa para os estudos de gênero, sexualidade, história da arte e das religiões. O objeto de pesquisa é o erotismo e o seu funcionamento na sociedade, tema do qual o autor jamais se afastou, haja vista as muitas obras publicadas, como História do olho (1972) e Acéphale (1936-1939), para citar apenas algumas. Pode-se afiançar que a obra batailliana busca explicitar uma série de tabus da sociedade, do incesto ao homicídio, tendo como ponto de partida as experiências humanas.

Georges Bataille nasceu em Billom, França, em 1897. Data e lugar não são apáticos ao itinerário do pensador. Nascer na França em 1897 significava, para muitos, estar fadado a combater na Primeira Guerra Mundial dezessete anos depois. Com Bataille não foi diferente, e o autor não esconde esse fato. Já no prólogo de O erotismo, ele atesta que os escritos foram elaborados “entre a guerra”, num “mundo abandonado”, em que os homens viviam “como espectros” (p. 30). Leia Mais