The medieval invention of travel – LEGASSIE (Ge)

LEGASSIE Shayne Aaron timetoeatthedogs1 Travel

Shayne Aaron Legassie. https://timetoeatthedogs.com/

LEGASSIE S A The medieval invention of travel TravelLEGASSIE Shayne Aaron (Aut), The medieval invention of travel (T), University of Chigago Press (E), SANTOS Guilherme Maximiano Ferreira (Res), PEREIRA Luiza Souza (Res), SILVA Tainara do Carmo Lopes da (Res), Geografias (Ge), Literatura medieval, Europa (L), Século 13 (P), Século 14 (P), Século 15 (P), Viagens, Comparação

LEGASSIE, Shayne Aaron. The medieval invention of travel. [Chicago]: University of Chigago Press, 2017. Resenha de: SANTOS, Guilherme Maximiano Ferreira; PEREIRA, Luiza Souza; SILVA, Tainara do Carmo Lopes da. Revista Geografias, v.28, n.1, 2020.

The Medieval Invention of Travel é o primeiro livro publicado por Shayne Aaron Legassie que não seja em parceria com outro autor e foi lançado em 2017 pela University of Chicago Press. Legassie é professor associado ao Department of English and Comparative Literature na Universidade da Carolina do Norte (UNC). Seus interesses de pesquisa incidem, predominantemente, sobre literatura medieval, a história da Europa na Idade Média, os estudos mediterrâneos e os escritos de viagem. Tal trajetória lhe garante um forte poder comparativo dos diferentes textos literários escritos sobre viagens durante o período entre 1200 e 1500.

O livro se desenrola nesses três séculos de intensa mobilidade humana, cujos deslocamentos cosmopolitas medievais, entre a Europa, a Ásia e a África, cruzam os espaços dessa economia-mundo nascente (BRAUDEL, 1987). A partir do período selecionado, poder-se falar de uma “invenção” (p.8-9) medieval da viagem como etapa provedora de uma literatura idealizadora da subjetividade do viajante a partir do penoso trabalho físico que ele empreende nessas peregrinações.

As viagens medievais desempenharam um papel fundamental nas práticas letradas europeias e na compreensão dessas como elevadoras de status social, pelo trabalho (travail) – viagem (travel). 1 Além disso, originou novos métodos de escrita de romances baseados na investigação geo-etnográfica. É por esses motivos que o título escolhido para o livro busca atribuir um novo sentido ao significado de viagem, com a escolha da palavra “invenção” e mostrando o papel da literatura na formação e racionalização dos novos modos de viagens e subjetividades emergentes.

No decorrer da escrita, o autor aborda as diferentes intenções das viagens medievais, que se caracterizam por motivos religiosos, por razões de relações comerciais e por encontros diplomáticos. Ele também apresenta os escritores de viagens do período, que moldaram os aspectos e os valores inseridos nos relatos das viagens europeias. Por fim, discute as diferentes formas de escrita da viagem utilizadas no gênero de literatura de viagens.

Em sua metodologia, o autor se apoia na literatura comparada, tratando de realizar um esforço de estilo ensaístico a respeito das diferentes obras dos viajantes. No recorte de tempo determinado por Legassie, ocorreram inúmeros processos históricos que dão contornos ao contexto: as cruzadas na Idade Média, as tentativas de expansão dos impérios medievais dominantes, os conflitos religiosos, as peregrinações e o próprio surgimento do capitalismo. Estes processos contribuíram para uma divisão do espaço e do tempo que permite construir uma evolução e diversos estágios da viagem sem que se possa dizer que um estilo supere o outro. No primeiro período da era medieval, há uma primeira aproximação do significado de viagem como sinônimo de dor e sofrimento; no segundo momento, há a construção de um olhar sobre a viagem que a enxerga como oportunidade de ser relatada e vista, como algo a ser enaltecido; por fim, em um terceiro momento, vê-se a possibilidade de transmitir informações entre o lugar de origem do viajante e o resto do mundo.

A partir desse contexto geral, Legassie vai se aprofundar nas relações específicas que estão presentes no decorrer do livro por meio dos diferentes lugares visitados. Ele organiza a estrutura do livro em três partes: viagens ao leste da Ásia (parte I – “Subjectivity, Authority, and the Exotic”), viagens à Terra Santa (parte II – “Pilgrimage as literate work”) e àquelas que estão no caminho entre Europa e Mediterrâneo (parte III – “Discovering the proximate”). Em sua narrativa, ele traz relatos de peregrinos e viajantes diplomáticos da Idade Média, sendo alguns deles Marco Polo, Felix Fabri e Francisco Petrarca2.

A primeira parte, denominada de “Subjectivity, Authority, and the Exotic”, aborda as viagens que partem da Europa ao Leste da Ásia. Legassie debate questões geoetnográficas nas experiências dos viajantes, bem como a forma que essas experiências influenciaram na produção de escritos sobre viagens, como as descrições de Marco Polo sobre Ásia e o Império Mongol. Além disso, fala sobre o papel adquirido pela autoridade clerical e pelos escritores dessas viagens como sumos sacerdotes, que, em alguns casos, após realizarem suas viagens, voltavam como “especialistas de longa distância” (p.22) devido ao conhecimento adquirido nos destinos. Grande parte das viagens na Idade Média eram motivadas por necessidades que se relacionavam às intenções religiosas pela libertação dos pecados ou, como é reconhecido na contemporaneidade, por turismo religioso.

Diferentemente da atualidade, porém, a viagem na era medieval era árdua e penosa, com extenso caminho a percorrer e que colocava em risco a própria vida do viajante. Por isso, não era vista como um momento de lazer. Eram viagens tratadas como um trabalho, ou seja, uma negação ao ócio.

No capítulo 1, intitulado “Exoticism as the appropriation of travail”, o autor aborda os relatos de William of Rubruck (1215 – 1295) e Marco Polo (1254 – 1324). O primeiro era um monge franciscano, missionário e responsável por escritos de viagens à Ásia. O segundo era um mercador e viajante italiano que deixou registros sobre sua viagem à China e às outras regiões da Ásia. Legassie demonstra que as experiências contidas nessas obras reforçam uma posição ideológica em relação ao exotismo, que ele define como “um modo de esteticismo politicamente orientado, que na Idade Média foi fundado na apropriação simbólica do trabalho do viajante.”3 (p.13). Além disso, seus estilos revelam uma “economia de prestígio do conhecimento da longa distância” (p.22) pois é relativa ao conhecimento dos lugares distantes como expressão de um maior status ao viajante. Com efeito, essa forma de economia refere-se a um conjunto de práticas materiais e experiências subjetivas que permitiram às pessoas obter vantagens sociais, políticas e econômicas através da sua relação com o estrangeiro. Mesmo que outras abordagens compreendam que esta emergente economia de prestígio esteja posta como uma repetição excessiva (KYNAN-WILSON, 2019), se o autor o faz, é para situar ou qualificar a economia de bens simbólicos do período abordado.

No capítulo 2, nomeado por “Travail and authority in the forgotten age of discovery”, são analisados os escritos de John of Plano Carpini (1180 – 1252), um franciscano e explorador italiano; Odoric of Pordenone (1286 – 1331), um frade franciscano e missionário italiano; e John Mandeville (século XIV), suposto4 autor de uma coleção de histórias de viajantes. Esses escritos recorrem às dificuldades da viagem para reforçar a credibilidade autoral sobre os textos, ou seja, o peso probatório da verdade de seus escritos e de testemunho oficial da Igreja. A leitura desses escritos por outras pessoas está sujeita ao poder persuasivo da veracidade dos relatos através da personalidade impregnada e transmitida pelo autor através do texto. Paralelamente, o autor faz uma refutação da ideia de que o período medieval tem seus contornos fixos e ditados somente por autores da antiguidade, como Aristóteles, Cícero e Agostinho. Ao contrário, o autor aponta as contribuições da Idade Média aos avanços do conhecimento territorial, sendo esse um aspecto importante que deve ser ressaltado pela historiografia e que pode retirar o período do esquecimento.

De modo geral, a segunda parte do livro de Legassie intitulada “Pilgrimage as literate work” aborda o caminho percorrido pelo teólogo e padre Felix Fabri5 (1441 – 1502), que entende a peregrinação como um exercício de memória. Esse trabalho tratou-se de um exercício da memória pois, no ato do deslocamento da viagem, os viajantes que seguiram o modelo de Fabri utilizavam-se de ferramentas6 para fins de registros, que permitiam aos demais peregrinos lembrar posteriormente de suas viagens, tendo em vista que alguns viajantes que não exercitavam isso estavam sujeitos a desaprender o que a viagem os ensinou.

A peregrinação a Jerusalém era uma forma dos devotos provarem sua fé através do deslocamento. Entretanto, não bastava exercer o ato de deslocar-se para a Terra Santa, era preciso aguçar a mente com exercícios de memória e a utilização de técnicas para o registro do que os viajantes viram e sentiram. Com isso, no capítulo 3, “Memory of work and the labor of writing”, e no capitulo 4, “The Pilgrim as a investigator”, encontramos os relatos desses processos ocorridos na peregrinação. O terceiro capítulo abrange uma discussão sobre a tradição sintética, que se baseava, na época, em produzir um escrito sintético sobre as viagens realizadas, havendo a possibilidade de não deslocar-se para vivenciar a viagem, tratando-se de uma espécie de viagem em imaginação (alguns indivíduos tinham repulsa por vivenciar todos os males do deslocamento). Os escritores da tradição sintética foram responsáveis pela produção e pela formação pictórica dos locais por onde passavam os viajantes em campo. Dessa forma, seus escritos eram admirados na terra natal.

Com isso, os peregrinos, a partir da virada do século XIII, iniciam uma escrita descritiva das memórias para fins de leitura meditativa. Já no capítulo seguinte, o autor mostra como essas produções tornavam-se escritas reformuladas, uma visão crítica e um instrumento de investigação.

A terceira parte, intitulada “Discovering the proximate”, reúne os autores encarregados em viagens pela Europa e pelo Mediterrâneo, destacando-se o poeta italiano Francisco Petrarca (1304-1374) e o cavaleiro de Castela Pero Tafur (ca. 1410-ca. 1487).

Nessa sequência, ganham forma mais contundente os argumentos apresentados no prefácio do livro nos capítulos 5 e 6, questionando a posição de Joan-Pau Rubiés que sustentou a hipótese, em obra anterior7, quanto à uma relativa estagnação dos escritos de viagem no período contido entre 1350 e 1492. Ao contrário, Legassie assegura que, após 1350, surgem muitos novos relatos que são frutos de viagens de curta distância. Assim, antecedem as posteriores conquistas do “Novo Mundo” (p.167), e, ao contrário de serem desprovidas de importância, exerceram grande influência na vida intelectual e cultural para a emergência do mundo moderno europeu em formação.

Ainda nessa parte do livro, Legassie pontua as precisas descrições de Petrarca e Tafur em que eles elevam ao público europeu a condição de seus países de origem. Os largos projetos autobibliográficos e protonacionalistas dos viajantes estreitam a aproximação de territórios europeus a partir das missões políticas empreendidas por eles. Para o autor, os questionamentos levantados por Petrarca acerca dos benefícios e das dificuldades da viagem assemelhavam-se à tradição sintética. A viagem, no caso do poeta italiano, correspondia a um trabalho de construção pessoal identitária e ética8 e a um comprometimento com a descoberta geo-etnográfica. Igualmente, o sentido da viagem para Tafur era visto como uma vantagem política que ele possuía por conhecer os costumes de reinos distantes. Para Legassie, a postura desses autores foi compreensivelmente comparada aos valores inerentes ao Grand Tour9.

Os relatos recolhidos pelo autor, permitem demonstrar a visão europeia de mundo e os mecanismos pelos quais a Europa começa a compor e apropriar-se intelectualmente de um novo mundo que nascia das entranhas do feudalismo e da Idade Média através das viagens, com a ascensão de uma nova ordem econômica – o capitalismo.

Vale lembrar que Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein juntos situam o nascimento do capitalismo no século XIV (BRAUDEL, 1987; WALLERSTEIN, 1979).

Ainda que este seja um processo que se desenrola em seus primórdios, é também por meio da escrita que começa a se estabelecer uma relação de mercado entre as nações e entre os diversos impérios dominantes, revelando o que possivelmente seriam os bastidores dos longos deslocamentos feitos em períodos posteriores e que passaram a incluir o Atlântico (BRAUDEL, 1987). O autor é consistente em afirmar, a partir dos relatos dos viajantes, que a dor e o trabalho árduo dessas práticas estavam relacionados a processos mais amplos e, além disso, elucida as diversas outras significações que essas viagens encarnavam, como heroísmo, superação do trabalho físico ou autodisciplina intelectual.

Ainda assim, apesar de reforçar que esse período contribuiu para formação da identidade do período pós-medieval, não nos revela com clareza os pontos impactados na posterioridade. Em algumas passagens, o autor deixa a desejar no que toca à alusão a alguns acontecimentos históricos que seriam fundamentais para melhor compreensão do leitor.

Porém, pelos seus amplos benefícios percebidos em sua abordagem, a leitura da obra do estadunidense não deve restringir-se aos especialistas da literatura e da história medieval, mas também é interessante para as áreas da Geografia e, sobretudo, para o Turismo, possibilitando o estudo da evolução e das práticas denominadas de viagem.

Agradecimentos À Pró-reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais pela oportunidade de realizar este trabalho através do Programa de Iniciação Científica Voluntária.

Referências BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. 94 p.

TOWNER, John. The Grand Tour: a key phase in the history of tourism. Annals Of Tourism Research, London, v. 12, n. 3, p.297-333, abr. 1985.

WALLERSTEIN, Immanuel. El Moderno Sistema Mundial I: la agricultura capitalista y los orígenes de la economía-mundo europea en el siglo XVI. Siglo Veintiuno Editores, México, 1979.

KYAN-WILSON, William. Book Review: The Medieval Invention of Travel. TRAFO Blog for Transregional Research, 14 fev. 2019. Disponível em: <https://trafo.hypotheses.org/17922>. Acesso em: 16 jul. 2020.

Notas 1 Legassie aponta que a viagem era vista como um trabalho árduo “travail” (p. 2). A palavra similar em latim é expressada como uma conotação relativa ao trabalho. O autor faz um trocadilho com a palavra “travail” e “travel” (p.2) devido às suas semelhanças ortográficas.

2 Em geral, as partes possuem proximidade em suas grandezas; a parte I contém 76 páginas, a parte II contém 70 páginas e a parte III contém 62 páginas.

3 Tradução dos autores. Original: “a politically oriented mode of aestheticism that in the Middle Ages was founded on the symbolic appropriation of the traveler’s travail.” (p. 13).

4 No prefácio de seu escrito As Viagens de Sir John Mandeville se intitulou cavaleiro e assumiu este nome, mas há uma incerteza sobre a sua verdadeira identidade devido à falta de registros comprobatórios.

5 Após umas das suas duas viagens sobre as regiões da Europa, Fabri ficou particularmente preocupado com “sua incapacidade de responder perguntas básicas sobre a disposição e as orientações relativas dos lugares que ele havia visitado” (p. 167, tradução nossa).

6 Legassie afirma que era utilizada Tábuas de Cera para o registro. As folhas de pergaminho chegam posteriormente com o intenso comércio desse produto na Itália.

7 RUBIÉS, Joan-Pau. Travel and ethnology in the Renaissance: South India through European eyes, 1250- 1625. Cambridge University Press, 2002.

8 “Petrarca coloca em primeiro plano a questão ética do tempo e do trabalho envolvidos na descoberta geográfica.” (p.178, tradução nossa). Para Petrarca e Tafur, as viagens perigosas e de longa distância devem ser deixadas para os que não as fazem por valores morais, como por exemplo, os comerciantes e armadores que as empreendem em busca duvidosa de novidade e lucro.

9 Jornada empreendida no século XVIII, “(…) that circuit of western Europe undertaken by a wealthy social elite for culture, education, and pleasure” (TOWNER, 1985, p.289).

Guilherme Maximiano Ferreira Santos – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail: [email protected].

Luiza Souza Pereira – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail: [email protected].

Tainara do Carmo Lopes da Silva – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. E-mail: [email protected].

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The surgeon in medieval English literature – CITROME (RBH)

CITROME, Jeremy J. The surgeon in medieval English literature. New York: Palgrave MacMillan, 2006. (The New Middle Ages Series). 191 p. Resenha de: SANTOS, Dulce O. Amarante dos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.29, n.57, jun. 2009.

O diálogo profícuo com a produção acadêmica francesa constitui-se em uma das principais características dos estudos medievais no Brasil, sobretudo no campo da história. A leitura crítica da obra em epígrafe contribui para a ampliação desse diálogo, desta vez com a produção inglesa, já que se trata da publicação, pela editora norte-americana Palgrave MacMillan, de uma tese de doutorado realizada na University of Leeds. Seu Institute for Medieval Studies, centro de referência na área dos estudos medievais, realiza anualmente o maior congresso internacional europeu da área. O autor, Jeremy Citrome, é atualmente professor assistente de literatura inglesa na University of Newfoundland and Labrador, no Canadá.

Na introdução, Citrome afirma que não se propôs a realizar uma obra de história da medicina nem de crítica literária, mas uma análise do poder social da metáfora do cirurgião nos textos poéticos religiosos e nos textos médicos em prosa, em língua vernácula, o inglês medieval (Middle English), no final da Idade Média. O rigor da investigação repousa na erudição do medievalista, que exibe domínio das fontes manuscritas e impressas além da extensa e valiosa bibliografia compulsada.

O exame da inter-relação entre os conceitos medievais de pecado e doença não é algo novo, muito menos a associação entre o físico (médico) e o padre confessor. O médico antigo cuidava da paixão (sofrimento) do corpo, o filósofo (e depois o padre confessor) aplicava-se a curar as doenças da alma, ou seja, os pecados. É bem conhecida também a imagem de Cristo como o Supremo Médico, aquele que traz o conforto físico e espiritual, perpetuada por Agostinho de Hipona. Essa imagem justifica-se, dentre outros fatores, porque grande parte de seus milagres foi cura de doentes (paralíticos, leprosos, cegos e surdos, entre outros) e igualmente porque trouxe a salvação à humanidade enferma pelo pecado. Nessa linha, nenhum físico poderia competir com as intervenções miraculosas de Deus.1 Outra questão abordada é a não distinção muito clara entre os físicos e os cirurgiões no período anterior ao século XIII, o grande divisor na história da medicina. Ambos podiam exercer as três estratégias da arte de curar os corpos enfermos: primeiro, a composição de regimes e dietas para a preservação da saúde corporal; segundo, a prescrição de remédios apropriados para cada caso e, por fim, o último recurso adotado quando os outros falhassem, a cirurgia, ou seja, a interferência direta no corpo. Este era pensado como criação divina, algo fechado (enclosure), sem lesões, inviolável, daí a proibição da dissecação dos cadáveres até o final do século XIV e o pouco desenvolvimento da anatomia. Além disso, para os gregos antigos a enfermidade era um processo de desestruturação interna do corpo humano. Para explicá-la Hipócrates de Cós (século V a.C.) criou a teoria humoral, retomada por Galeno (século II d.C.) e utilizada em toda a medicina medieval. Nessa teoria o corpo era formado por quatro humores ou compostos líquidos, a saber, sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. A corrupção deles constituía-se na causa primeira de todas as doenças humanas.

Paralelamente ocorreu o debate em torno desta questão: a medicina era uma arte (techné ou ars) ou uma ciência (epistemé ou scientia)? Discussão interminável, que fazia da teoria uma ciência e da prática uma arte. Segundo Aristóteles, uma das grandes autoridades do período, a medicina estava mais para a techné grega (ou ars), porque mesmo sendo uma ciência fundada em princípios universais, tem como objetivo o incerto, o particular, o que lhe confere o estatuto de arte, no saber fazer. Porém, a medicina podia ser entendida como uma ciência, já que implicava racionalidade, explicação causal, observação, indução e dedução, previsões e hipóteses. Assim, nessa afirmação da medicina como um campo do conhecimento teórico no diálogo com a filosofia natural, os físicos escolásticos, atuantes nos Studia Generalia de Paris, Montpellier ou Bolonha, tornaram-se figuras proeminentes na hierarquia dos especialistas na cura das doenças: os cirurgiões, os barbeiros, as parteiras etc. É importante ressaltar que muitos físicos eram clérigos.

O grande mérito da obra de Jeremy Citrome consiste em sua contribuição para essas questões com sua nova leitura dos cânones do IV Concílio de Latrão (1215), destacando as repercussões nos meios médicos e eclesiásticos na época posterior. Nesse concílio, o papa Inocêncio III (1198-1216) implantou uma série de reformas, dentre as quais destacam-se a obrigatoriedade da confissão auricular anual para o perdão dos pecados e a proibição do exercício da cirurgia pelos clérigos, pois qualquer contato com sangue era incompatível com o exercício da atividade clerical. Consequentemente, a cirurgia passou a ser majoritariamente exercida por leigos e socialmente desprestigiada. No entanto, no final do século XIV e inícios do XV, a cirurgia começa a integrar o currículo dos cursos de medicina. Simultaneamente ocorre a proliferação de manuais de confissão2 e de cirurgia, tais como o de Guy de Chauliac e o de Lanfranco, em línguas vernáculas na Inglaterra e em outros reinos europeus. Assim, segundo Citrome, essas duas reformas foram responsáveis pelo aparecimento da metáfora da cirurgia como tratamento para ferimentos, entendidos muitas vezes como as marcas corporais do pecado. Praticamente todo manual de confissão no século XIV incorpora essa imagem dos ferimentos corporais ligados ao pecado, pois para esses clérigos a relação entre a aflição física e a espiritual não era meramente figurativa. Associavam aflições corporais com intemperança moral. Portanto, as feridas eram sinais das punições futuras dos pecadores no post mortem. O autor demonstra essa tese numa análise instigante das fontes literárias e médicas dos séculos XIV e XV.

A título de exemplo, Citrome explora o poema-sermão Cleanness, cuja narrativa linear de história sagrada bíblica inicia-se com episódios do Velho Testamento, o Dilúvio e a destruição da cidade de Sodoma, e chega até a Encarnação de Cristo no Novo Testamento. Ao dialogar com outros estudiosos do poema, demonstra, de forma interessante, a interface da medicina com a teologia, quando o autor anônimo (Pearl Poet) comparou as diferentes ações divinas, no Velho e no Novo Testamento, com tratamentos médicos opostos. O poeta reflete a divisão discursiva já referida entre as atuações dos físicos e dos cirurgiões, apresentando o Deus do Velho Testamento como cirurgião e Jesus Cristo, num segundo momento, como o físico que cura sem ferir. Assim, a primeira imagem é a de Deus como o cirurgião que queima e destrói o tecido corrompido do corpo social, justificando, portanto, a destruição punitiva para os sodomitas em função dos desregramentos sexuais, considerados pelo poeta como lesões ou fístulas que poderiam infectar toda a sociedade. Nessa estrutura discursiva e mental que trabalha com antíteses, Cristo torna-se, para o poeta, o físico que trouxe tratamentos médicos suaves, pois cura sem ferir os pecados humanos.

Em outro capítulo da obra, Citrome volta-se para a leitura crítica da obra Concilium consciencie, uma antologia de poemas sobre diversos temas religiosos do século XIV, de autoria do clérigo John Audelay. O exame desses poemas é duplamente valioso porque aponta para a ubiquidade da metáfora das lesões do pecado e também porque se trata de um relato autobiográfico de aflições vividas, dos sofrimentos crônicos, que defende a confissão como o único remédio verdadeiramente eficaz contra esses males. Assinala ainda os vários significados da doença na cultura penitencial do final da Idade Média, na Inglaterra, e a importância contínua da metáfora do cirurgião para os discursos de salvação.

A fim de contrapor fontes médicas às literárias de cunho religioso, o autor debruçou-se também na versão em Middle English da obra latina do século XIV, Practica, do cirurgião inglês John de Arderne. Num dos tratados desse texto, Fistula-in-Ano, Citrome desvenda a imagem ambivalente do cirurgião e de sua atividade porque corta, mas depois une, remove, porém logo restaura, fere e, por fim cura, assim como o próprio Deus. Dessa maneira, justifica a cirurgia como atividade salvadora e, ao mesmo tempo, defende a proposta de valorização social do seu ofício de cirurgião.

Por fim, convém ressaltar a abordagem interdisciplinar, hoje tão incentivada nas pesquisas científicas, mas nem sempre bem-sucedida, operada por Citrome tanto na composição do corpus documental quanto no diálogo com a historiografia social da medicina e com a produção da crítica literária sobre a época medieval. Este livro integra, assim, os títulos da série The New Middle Ages, organizada por Bonnie Wheeler, especialista em literatura medieval da Southern Methodist University (SMU), nos Estados Unidos, cuja marca distintiva é a publicação de estudos acadêmicos interdisciplinares sobre as culturas medievais.

Notas

1 AGRIMI, Jole; CRISCIANI, Chiara. Charité et assistance dans la civilisation chrétienne médiévale. In: GRMEK, Mirko (Dir.). Histoire da la pensée médicale en Occident. Paris: Seuil, 1995. p.151-174.         [ Links ]

2 Em Portugal traduziu-se o Libro de las confesiones de Martim Perez (Universidade de Salamanca, 1316).

Dulce O. Amarante dos Santos – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Goiás (UFG). Pesquisadora do CNPq – Campus II Samambaia. 74001-970 Goiânia – GO – Brasil. E-mail: [email protected].

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Mittelhochdeutsche, vor – und frühhöfische Literatu | Helmut Birkhan

Atualmente, onde cada vez mais é incrementado o diálogo interdiscursivo, interdisciplinar e interepistemológico, percebe-se a necessidade de revitalização de estudos de base diacrônica, que procurem ajudar ao homem contemporâneo entender os processos e mecanismos de desenvolvimento social, no que a linguagem literária possui uma forte participação como repositório cultural. Consoante essa assertiva, pesquisadores de História, Literatura, Antropologia, Arqueologia, dentre outras ciências, devem procurar o estabelecimento de Grupos de Trabalho Integrados, os quais, com a utilização das metodologias específicas de pesquisa, contribuem para uma melhor apreensão do objeto comum em análise. Talvez, nesse momento, no campo dos estudos germânicos ligados a uma proposta de Germanística Intercultural, encontre-se na Medievística Germanística a episteme necessária que integralize uma junção de lingüistas, teóricos das literaturas germanófonas, historiadores – para apenas citar alguns profissionais – com o intuito de trazer ao homem do século XXI as riquezas do homem medieval expressas em seus textos. [1]

Um dos mais respeitados eruditos, professor catedrático da Universidade de Viena, germanista, celtólogo e medievalista, Helmut Birkhan lega-nos uma série de oito Studienbücher – livros de iniciação ao estudo universitário -, publicada pela Editora Praesens, a saber: parte I –Literatura em antigo-alto-alemão e em antigo-saxão; parte II – Literatura em médio-alto-alemão pré-palaciana e em seus primórdios corteses; parte III – Trovadorismo e poesia sentenciosa da época dos Staufer; parte IV – Literatura romanesca da época dos Staufer; parte V – Romances pós-clássicos e “novelas” corteses; parte VI – Épica heróica da época dos Staufer e no início dos Habsburgos; parte VII – Trovadorismo, poesia sentenciosa e contos versificados da última fase dos Staufer e dos primeiros Habsburgos.[2] Pelo exposto através dos títulos, Birkhan pretende fornecer aos estudantes de Germanística manuais de iniciação à literatura medieval em alemão, conjugando a isso em sua obra elementos de ordem histórica, em nosso ver indispensáveis para uma melhor compreensão da época estudada.

O texto é dividido em capítulos, que sempre são precedidos de uma contextualização histórica sobre as dinastias, de onde as obras são provenientes, i.e., os sálios (p.8-14) e os Staufer (p.130-135). Posteriormente têm-se comentários elementares sobre os principais textos, de ordem religiosa no tocante aos sálios (p.18-109) e acerca das duas obras consideradas como “literatura histórica”, (p.109). Ao apresentar a primeira delas, a Canção de Anno, Birkhan demonstra quão indispensável é a união entre discurso literário e contexto histórico no mundo medieval:

“A Canção de Anno é a primeira epopéia contemporânea em língua alemã. Ela reúne história da humanidade, história cristã da salvação e história mundial com uma apresentação tipológica da vida do bispo Anno de Colônia.”(p.109)

Ao tratar da segunda, a Crônica dos Imperadores, (p.117-129) o estudioso austríaco discorre sobre as características da obra, desde a transmissão do texto, com dados sobre o compilador ou autor da obra, tece comentários sobre a datação da mesma e sobre as fontes para a sua composição com alguns excertos textuais.

Se durante o período dos Sálios há a predominância de uma literatura religiosa, vêse, por outro lado, o início da afirmação de um tipo de escrita, que se centra nas práticas e costumes, no modus vivendi e modus cogitandi dos bellatores. Canções, Lieder, que descrevem heróis da Antigüidade e suas façanhas, Alexandre, Rolando, temas que lidam com o Oriente, Flôre e Blanscheflûr, assim como as épicas trovadorescas Duque Ernesto e Rei Rother e epopéias trovadorescas lendárias [3], Oswalt, Orendel e Salomão e Markolf, configuram esta nova arte da palavra, que tem na corte seu modelo.

Como por nós mencionado em resenha previamente feita [4], Birkhan não se preocupa com uma introdução ao seu texto, mas sim arrola a bibliografia por ele analisada. Já que os fragmentos textuais estão em médio-alto-alemão, estágio segundo do desenvolvimento do idioma alemão, não há a versão para o Neuhochdeutsch, o que demonstra a natureza da obra voltada para alunos e estudiosos nativos. Entretanto, por considerarmos o trabalho meritório, ficaria aqui uma sugestão para a preparação de um glossário com os principais termos do médio-alto-alemão em alemão moderno, à guisa de facilitação para o pesquisador estrangeiro.

No que diz respeito à organização do volume, nota-se a observância ao aspecto cronológico, que leva o leitor a relacionar mais seguramente o mundo das idéias e o mundo dos homens em mudança nos séculos XI e XII.

Preocupações com o conteúdo (p.42 et alii) e com a paráfrase de excertos originais (p.39-40 et alii) perpassam a obra, com o intuito de fornecer as informações lingüísticas, estilísticas e literárias básicas sobre os textos. No entanto, os Anexos merecem comentário à parte.

De significativa importância para a visualização das informações transmitidas, os Anexos colocam à disposição mapas lingüísticos, excertos de manuscritos, documentos e testemunhos em runas e língua alemã. Uma genealogia dos otônidas, sálios e Staufer, além de um gráfico sobre os romances alexandrinos medievais em alemão, latim e francês completam o quadro, que une Iconografia, Arqueologia, Língua e Literatura a partir do mundo germânico pagão até à época abarcada no volume.

Neste volume há uma presença ínfima de textos em língua latina, o que corroboraria o vernáculo como língua de prestígio dentro do fazer artístico no Sacro Império. Como o título da série prende-se à Geschichte der altdeutschen Literatur im Licht ausgewählter Texte, História da antiga literatura em alemão à luz de textos escolhidos, tal seleção nos induz à pergunta, não formulada na Parte I: quais os critérios para selecionar e indexar determinados textos em detrimento de outros? Cremos que o cânon, aliado à experiência docente do pesquisador, tenha sido os fatores decisivos para a escolha. Somos, outrossim, de opinião que o autor deveria discorrer a respeito em uma reedição da obra.

Por fim, Mittelhochdeutsche, vor- und frühhöfische Literatur, volume II da série supra citada, apesar da linguagem mais simples, é extremamente útil, organizada com precisão e muito bem fundamentada, prestando à Medievística Germanística uma valiosa ajuda para tornar contemporâneo o medievo germanófono, daí ser para nós indispensáveis as palavras anônimas

Quidquid homo nescit, vix discit, quando senescit.

O que o homem desconhece, dificilmente aprende quando envelhece!

Notas

1. Cf. BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo.Resenha de BIRKHAN, Helmut.Geschichte der altdeutschen Literatur im Licht ausgewählter Texte. Wien: Edition Praesens, 2002. 217 Seiten. Teil I: Althochdeutsche und altsächsische Literatur.. In: KESTLER, IZABELA (Org.) Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2005. Volume IX (no prelo).

2. A parte VIII ainda não foi publicada.

3. Epos, no original, equivalendo à epopéia clássica, ao narrar a história de um herói ou coletividade

4. Cf. nota ii.

Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Departamento de Letras Anglo-Germânicas Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em História Comparada UFRJ. E-mail: [email protected]


BIRKHAN, Helmut. Geschichte der altdeutschen Literatur im Licht ausgewählter Texte. Wien: Edition Praesens, 2002. 217 Seiten. Band 7, Teil II: Mittelhochdeutsche, vor – und frühhöfische Literatu. Resenha de: BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.5, n.1, p. 141-143, 2005. Acessar publicação original [DR]