A autobiografia de Martin Luther King | Clayborne Carson e Martin Luther King

Em função de sua influência midiática global, as recentes manifestações estadunidenses, pautadas primordialmente no antirracismo, ressuscitaram o debate sobre discriminação racial nas imprensas espalhadas pelo mundo. Seja para criticar a raiva dos manifestantes, representada pela destruição de símbolos escravistas, como estátuas de senhores de escravos, por exemplo, ou para apoiar a causa da população negra, opiniões têm sido levantadas sobre esses episódios sociais. Entretanto, se engana quem pensa que tais demandas e reivindicações são totalmente novas no âmbito social dos Estados Unidos da América. Não é de hoje que esse ativismo urgente reúne milhares de atuantes em seu centro e milhões de espectadores em seu entorno.

No cerne dessa questão, importantes lideranças negras se consolidaram como catalisadores de mudanças sociais no continente americano. Dentre elas, destaca-se o inesquecível pastor batista Martin Luther King Jr (1929- 1968), reconhecido por lutar em prol da universalização dos espaços sociais. Nascido no ápice da Grande Depressão, o menino da classe média de Atlanta, desde cedo, nutria um forte sentimento contra o sistema segregacionista que vigorava nos Estados Unidos. Acusado de ser negro1, inevitavelmente enveredou pelos caminhos militantes do pai2 e, em poucos anos, tornou-se a liderança central do movimento por direitos civis na América do Norte, questionando a predominância exclusivamente branca nos espaços sociais de seu país. Leia Mais

Estranho à nossa porta | Zygmunt Bauman

O presente trabalho de Zygmunt Bauman, é muito rico e capaz de nos informar e, mais que isto, capaz de tornar compreensível um tema contemporâneo, que clama por uma atenção e solução. O tema abordado pelo eloquente sociólogo e filósofo polonês (1925- 2017) se refere à questão da “crise migratória”, que em suas próprias palavras “inunda os noticiários” que comunica seu “avanço sobre a Europa”. Leia Mais

Protesto: uma introdução aos movimentos sociais – JASPER (RTA)

JASPER, James M. Protesto: uma introdução aos movimentos sociais. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. Resenha de: ZANGELMI, Arnaldo José. Um olhar sobre a dimensão cultural dos protestos e os dilemas da mobilização. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.25, p.502-508, jul/set., 2018.

Publicada originalmente pela editora Polity em 2014, com o título Protest: a cultural Introduction to social movements, a obra aqui apresentada foi disponibilizada em português pela Zahar no ano de 2016, em edição que conta com prefácio e posfácio dedicados especialmente ao contexto brasileiro. James Macdonald Jasper, professor da City University of New York, busca compreender as dinâmicas de mobilização em diversos contextos, dando especial atenção à dimensão cultural dos protestos. Apesar do reconhecimento sobre a relevância das forças estruturais, a atenção do autor está direcionada principalmente para as significações, emoções, valores morais e estratégias de ação dos atores em interação nas diversas arenas.

O livro é formado por oito capítulos, cada um baseado na articulação entre as mobilizações de um determinado movimento e um dos aspectos centrais nas dinâmicas dos movimentos em geral. Ao longo da obra, o autor também relaciona reflexões sobre os movimentos mais recentes e processos históricos mais antigos, como o caso de John Wilkes, ator que desencadeou uma série de movimentos na Inglaterra do século XVIII.

O primeiro capítulo é voltado principalmente para as definições e abordagens sobre os movimentos sociais. Jasper traça um breve panorama das principais perspectivas, delimitando entre as teorias psicológicas (ressentimento, multidões, escolha racional etc.), estruturalistas (oportunidades políticas, mobilização de recursos etc.) e históricas (Marx, Touraine, Tilly etc.). O autor busca, então, demonstrar como essas várias tendências, quando isoladas, se mostraram incapazes de compreender a realidade social, problema que tem levado algumas delas a incorporar a dimensão cultural em suas análises. Um exemplo é o sociólogo estadunidense Charles Tilly, que incorporou a persuasão como elemento relevante em seus últimos trabalhos. Jasper embasa parte significativa de suas reflexões nas concepções conceituais e históricas de Tilly, especialmente sobre as mudanças nos repertórios de ação dos movimentos nos séculos XVIII e XIX, em países como França e Grã-Bretanha.

O segundo capítulo trata da construção e projeção de significados, utilizando o movimento feminista como principal referencial empírico. Jasper salienta como a feminilidade é uma construção cultural, não um imperativo biológico, sendo assim foco das mobilizações de diversos movimentos ao longo da história. O movimento feminista, por diversos meios físicos e figurativos, buscou transformar as significações vigentes, influenciar a sociedade e conquistar novos direitos.

No terceiro capítulo, o autor trata das infraestruturas (comunicações, transporte, redes sociais, organizações, profissionais etc.) nas quais os atores se mobilizam, espaços que influenciam no processo de criação e transmissão de significados culturais pelos movimentos. Tratando especialmente das mobilizações da direita cristã nos Estados Unidos, Jasper deixa entrever que sua perspectiva tem um forte caráter relacional, na medida em que argumenta que o surgimento e desenvolvimento dos movimentos se dão nas interações com outros atores em diversas arenas. Assim, o autor demonstra como as ações de religiosos conservadores tiveram como principais contrapontos o feminismo e o movimento LGBTQ, se constituindo, em grande medida, pelo contraste em seus enfrentamentos.

As análises de Jasper também têm um enfoque processual, pois abordam as continuidades e transformações nas formas de enfrentamento, demonstrando como antigos movimentos deram base para novas mobilizações. Nesse sentido, o autor explica como os conservadores da direita cristã tiveram influência do anticomunismo dos anos de 1950, assim como os movimentos de homossexuais se valeram das linguagens de direitos praticadas pelos movimentos de afro-americanos, mulheres, indígenas etc. da década de 1960.

A partir dessas análises, o autor critica o uso de diferentes teorias para explicar movimentos de esquerda e direita, uma das tendências entre os estudiosos dos movimentos sociais. Assim, Jasper enfatiza a necessidade de superarmos os relatos que apontam motivações psicológicas e patológicas para os movimentos de direita, sendo mais proveitoso buscar compreender as formas como esses atores significam suas ações.

A dinâmica de recrutamento de novos membros nos movimentos é discutida no quarto capítulo, que analisa o movimento LGBTQ. O autor destaca o relevante papel dos contatos pessoais, em redes formais e informais, como incentivos para o ingresso e permanência nas mobilizações. Assim, as relações de confiança pré-existentes, orientações afetivas e intuições morais são elementos fundamentais para a adesão aos movimentos. O desenvolvimento das mobilizações dos homossexuais nos EUA é um bom exemplo também para o que o autor denomina como “dilema da desobediência ou cordialidade”, no qual os atores se deparam com escolhas entre táticas aceitas, que geram simpatia de outros atores, ou ações temidas que podem alcançar maior orgulho pelo grupo e recuo dos adversários, porém com maior risco de repulsa e repressão. Quando surgiu a epidemia de AIDS no início dos anos de 1980, assim como sua conotação depreciativa pela direita cristã, a ascendente mobilização das comunidades gays se direcionou para cuidados com os moribundos e a busca por aparência de normalidade e amorosidade. No entanto, os crescentes avanços conservadores sobre as políticas públicas, ocasionaram duras formas de discriminação, causaram um “choque moral” e um crescente sentimento de indignação entre os gays a partir da segunda metade da década de 1980, atraindo milhares de militantes, muitos deles jovens.

O “choque moral” é uma reação emocional que gera sentido de urgência, ameaça, indignação e medo. Desencadeado por eventos dramáticos que quebram a rotina, ele abala o senso de realidade e normalidade, sendo forte motivador para a ação. Assim, houve uma guinada no sentido da desobediência, inconformidade, enfrentamento no movimento LGBTQ, que canalizou a culpa e a vergonha para o Estado, sistematicamente homofóbico, assim como para outras instituições conservadoras da sociedade.

A questão da manutenção dos membros em um movimento é discutida no quinto capítulo, que destaca as diversas satisfações e incentivos promovidos nos movimentos, como a identificação com o grupo, o sentimento de estar fazendo história, o senso de pertencimento etc. Jasper buscou demonstrar como as mobilizações dos dalits, na busca por direitos contra o hinduísmo bramânico dominante, caminharam no sentido da transformação da vergonha em orgulho para o grupo.

O sexto capítulo é voltado para a análise dos processos decisórios nos movimentos, tendo como base o movimento por justiça global. Mobilizando-se principalmente através de fóruns, entre os quais o Fórum Social Mundial tem maior expressão, esses atores têm formulado fortes críticas às políticas neoliberais de diversos países. Jasper analisa diversos mecanismos de tomada de decisão, como a formação de consensos, disputas pelo voto etc. O autor salienta as tensões entre as discussões horizontais, que demandam mais tempo, e as necessidades de tomada de decisão mais rápida e incisiva. Jasper demonstra como as rotinas organizacionais, ao cristalizarem certos procedimentos, diminuem a necessidade de muitas discussões, porém com prejuízo da criatividade e flexibilidade no processo decisório. O autor destaca também que as discordâncias entre facções, a respeito dos objetivos, estratégias etc., podem caminhar para a conciliação ou cismas nos grupos. Assim, mostra como as alianças são dinâmicas, influenciadas por uma multiplicidade de fatores, gerando grande incerteza nessas interações.

O sétimo capítulo trata da revolução egípcia, principalmente quanto às interações dos diversos grupos, entre os anos de 2011 e 2013. Jasper discute como outros atores se envolvem nas mobilizações, em complexas teias de alianças e disputas nas várias arenas. Assim, busca demonstrar como exército, governo norte-americano, grupos religiosos, partidos políticos etc. interagiram nesse processo, influenciando seus rumos. Dessa forma, o autor argumenta que os diversos grupos, cada qual com métodos e objetivos próprios, se envolvem numa mistura de cálculo e emoção, coerção e persuasão. A eficácia dos movimentos, em grande medida, depende de sua capacidade de envolver outros atores numa mesma causa.

No oitavo capítulo, Jasper discute as vitórias, derrotas e demais impactos dos movimentos sociais no mundo contemporâneo, tendo como referencial empírico central o movimento pelos direitos dos animais, principalmente na Grã-Bretanha e nos EUA. Esse movimento obteve várias conquistas, como leis que reduziram consideravelmente o sofrimento dos animas, mas enfrenta fortes obstáculos relacionados a hábitos arraigados, mercado, pesquisas científicas etc. Jasper argumenta que, além das conquistas concretas, vale atentar para os impactos nas visões de mundo, nas sensibilidades morais e interpretações históricas das sociedades. Os movimentos sociais transformam as maneiras de sentir e pensar, conduzindo, mesmo indiretamente, para novas práticas. Os integrantes dos movimentos sociais mudam também a si mesmos, desenvolvendo pensamento crítico, confiança e hábitos que os acompanham em suas trajetórias. Antigos movimentos inspiram os novos e também abrem espaços ao transformarem as regras das diversas arenas, potencializando as lutas futuras.

Jasper procura tecer algumas considerações sobre os movimentos no Brasil, principalmente no prefácio e posfácio à edição brasileira. O autor reflete sobre os protestos desencadeados a partir de 2013, enfatizando como as mobilizações contra o aumento das passagens, com proeminência do movimento Passe Livre, envolveram outros atores e catalisaram demandas mais amplas. Numa guinada para novos rumos, destoantes dos originais, esse processo culminou com a contundente queda presidencial, algo ainda efervescente em nossa sociedade. Retrocedendo um pouco mais em nossa história recente, Jasper também discute a importância do choque moral causado pelos massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás que, ao gerarem indignação, impulsionaram o governo FHC no sentido das reivindicações do MST no final da década de 1990. Por fim, enfatiza como a tática das ocupações ajudou a inspirar outros movimentos pelo mundo, como se pode ver em vários movimentos da atualidade.

Apesar de parte significativa dos problemas tratados por Jasper nesse livro já terem sido discutidos por outros estudos1, sua abordagem traz contribuições relevantes, na medida em que enfatiza as dimensões mais subjetivas dos movimentos, como a produção de significados, estratégias, sentimentos, efeitos morais etc. Essa ênfase é concretizada principalmente na sua exposição de certas questões como “dilemas”2, delimitação original que direciona a atenção para a perspectiva dos atores em suas interações concretas e suas escolhas diante dos universos de possibilidades que vislumbram.

O livro apresenta tanto uma visão introdutória e abrangente quanto profundidade analítica sobre os movimentos sociais, o que o torna interessante para os estudos de iniciantes e especialistas no tema, assim como para que militantes possam revisitar e reinventar suas práticas. Também se trata de uma obra profundamente atual, dado o crescente impacto dos protestos na dinâmica política recente. Entender os movimentos sociais e os protestos é, cada vez mais, algo imprescindível e estimulante para aqueles que se dispõem a conhecer e buscar transformar o mundo de hoje. É sugestiva a aproximação entre o que Jasper denomina como “dilema de Jano” e a “lógica dual” retratada por Cohen & Arato (2000), assim como os dilemas da “mídia” e “da cordialidade e desobediência” encontram em Champagne (1996) questões comuns. Algumas discussões sobre as dinâmicas das organizações de movimentos sociais (Cefai, 2009. Neveu, 2005) também abordam problemas similares ao “dilema da organização” de Jasper que, no entanto, coloca essas questões noutras perspectivas. 2 Os principais dilemas analisados são: dilema de Jano, dilema das mãos sujas, dilema da caracterização dos personagens, dilema da inovação, dilema da mídia, dilema da organização, dilema da expansão, dilema da desobediência e cordialidade, dilema da identidade, dilema dos irmãos de sangue, dilema dos aliados poderosos, dilema da segregação do público e dilema da articulação.

Arnaldo José Zangelmi – Doutor em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mariana – MG – Brasil. E-mail: [email protected].

A cultura no mundo líquido moderno / Zygmunt Bauman

Com seu livro intitulado A Cultura no Mundo Líquido Moderno, no original Culture in a Liquid Modern World, Zygmunt Bauman prossegue em 2013 suas análises sobre a modernidade, fazendo uma síntese das características que tomou a cultura desde a era “sólida” até a era “líquida”, bem como sua relação com o “multiculturalismo” e “globalização”.

No primeiro capítulo Bauman procura demonstrar que na atualidade não se firmam mais as antigas distinções entre a elite cultural e o chamado “grande público”, essa hierarquia cultural deu lugar a uma elite diversificada que aprecia tanto a “grande arte” quanto os programas populares de televisão e, “onivoramente”, consome diversas formas de arte, tanto populares quanto intelectualizadas, porém preocupada demais em celebrar o sucesso e outras formas festejadas ligadas a cultura. Descreve também “as peregrinações históricas do conceito de cultura”, desde o Renascimento, passando pela reviravolta causada por Pierre Bourdieu no século XX, chegando até os dias atuais, quando adentra a era “líquida”. Bauman mostra que o conceito de “cultura”, surgido no âmbito rural para incitar a ação agrícola, o arado e a semeadura, também esteve relacionado ao cultivo de almas (cultura animi), a interação entre protetores e protegidos, educadores e educados, e ainda esteve relacionado aos ideais iluministas e a construção de uma nação, de um Estado e de um Estado-nação, e ainda a aproximação entre as classes altas e o “povo”, ou seja, entre os que estão na base da sociedade e os que estão no topo. A perda de posição do conceito de “cultura” é resultado de uma série de processos de caracterizam a transformação da modernidade de seu estado “sólido” para seu estado “líquido”, o que Bauman denomina de “modernidade líquida”.

No segundo capítulo Bauman discorre sobre a “moda”, fenômeno social, segundo ele, em constante estado de “devir”. Para Bauman a “moda” funciona como uma válvula que se abre antes que se atinja a conformidade, ela multiplica e intensifica as distinções, diferenças, desigualdades, discriminações e diferenças. Um moto perpétuo que torna-se norma no momento em que se encontra no “mundo socializado”, um aniquilador de inércia. Segundo Bauman, “A moda coloca todo estilo de vida em estado de permanente e interminável revolução”, nesse sentido, “A moda é um dos principais motores do ‘progresso’”3. As pessoas, por sua vez, seriam caçadores em busca de uma contínua e ininterrupta variação do próprio self, por meio da mudança de costumes, e essa estrada vem a ser para os caçadores uma forma de utopia, uma vida na utopia.

Em seu terceiro capítulo o livro abarca desde a construção dos Estados-nação, em fase “sólida” na era moderna, até o mundo globalizado da atualidade. Primeiramente Bauman procura evidenciar que os Estados-nação tornaram-se menos inabaláveis a medida que começam a ser coagidos e encorajados a abandonar suas aspirações e esperanças. “A medida de ‘funcionalidade’ […] já não parecia tão inquestionável ou inegavelmente correta”4. O impulso da globalização teve papel preponderante no abandono das aspirações dos Estados-nação, que teve como efeito colateral a emergência da natureza inconsistente das fronteiras do sistema. O livro também chama a atenção para a importância da migração em massa durante o período da modernidade e da modernização, uma migração de pessoas em detrimento da migração de povos como o ocorrido em inícios da Idade Média. Bauman divide estas migrações em três fases: A primeira foi a migração de 60 milhões de pessoas da Europa para as “terras vagas”, onde as populações indígenas podiam ser desprezadas ou vistas como inexistentes ou irrelevantes. A segunda vem no sentido inverso, onde algumas das populações nativas, com variados graus de educação e “sofisticação cultural”, seguiram os colonialistas que retornavam à terra natal. A terceira fase das migrações modernas, em pleno curso, introduz a era das diásporas;

Trata-se de um arquipélago infinito de colônias étnicas, religiosas e linguísticas, sem preocupações com os caminhos assinalados e pavimentados pelo episódio imperial/colonial, mas, em vez disso, conduzido pela lógica da redistribuição global dos recursos vivos e das chances de sobrevivência peculiar ao antigo estágio da globalização5.

Segundo Bauman, a escala dos movimentos populacionais globais, hoje, é ampla e continua a crescer, entretanto, o que tem ocorrido é que os imigrantes tem se tornado “minorias étnicas”, e essas aglomerações “etnicamente estrangeiras” disseminam hábitos das populações locais, causando estranhamento e uma “guetificação” dos “elementos estrangeiros” que, por sua vez, se fecham em círculos próprios. Pari passu Bauman aponta uma nova indiferença a diferença, que mostra-se como uma aprovação do “pluralismo cultural”, segundo ele, “A prática política constituída e apoiada por essa teoria é definida pelo termo ‘multiculturalismo’”6.

Já no quarto capítulo, o livro inicia com uma discussão em torno da missão das “classes instruídas” (intelectuais avant la lettre, sendo que o conceito de intelectuais só tomou forma no século XX), iniciada ainda no Iluminismo e que consistia em duas tarefas: A primeira delas, tinha como meta “esclarecer” ou “cultivar” o “povo”, transformar as entidades desorientadas, desalentadas e perdidas em membros de uma nação moderna e cidadãos de um Estado Moderno, ou seja, a criação de um “novo homem”. Nesse sentido a “educação” foi a viga mestra desta transformação, “a educação era capaz de tudo” e o papel dos educadores era o da “cultura”, no sentido original de “cultivo”, tomando o termo de empréstimo à agricultura. A segunda tarefa consistia em planejar e construir novas e sólidas estruturas que dariam um novo ritmo de vida a massa momentaneamente “amorfa”, ainda não adaptada ao novo regime, ou seja, introduzir uma “ordem social”, “colocar a sociedade em ordem”. “As duas tarefas dependiam da combinação de todos os poderes do novo Estado-nação, econômicos, políticos e também espirituais, no esforço de remodelar corporal e espiritualmente o homem – o principal objetivo e o principal objeto da transformação em curso”7. A construção do Estado foi um esforço que exigiu o engajamento tanto de administradores quanto de administrados, o que segundo Bauman não ocorre hoje, onde não há mais um engajamento e o modelo pan-óptico de dominação dá lugar à supervisão e ao autocontrole pelos próprios objetos da dominação. “As colunas em marcha dão lugar aos enxames”8. Bauman ainda argumenta que tendo Deus criado o Homem e o feito andar sobre os dois pés, mandou-o achar o seu próprio caminho e segui-lo, dessa forma, “Em nossa época, foi a vez de a sociedade […] concordar que o homem fora equipado com ferramentas pessoais suficientes para enfrentar os desafios da vida e administrá-la sozinho – e logo desistir de impor as escolhas e administrar as ações humanas”9. Bauman também pondera sobre a aceitação e permanência culturais deixando claro que devemos aceitar todas as proposições como válidas e dignas de escolha, evidenciando ainda que se determinada cultura é tida como valiosa deve ser preservada para a posteridade independentemente de uma comunidade cultural ou da maioria de seus membros.

No seu quinto capítulo, o livro procura demonstrar que a globalização tem agido de forma a desfragmentar as identidades nacionais no contexto da União Europeia, quando desintegra seu antigo abrigo, os alicerces da independência territorial. Para Bauman, a União Europeia não somente preserva as identidades dos países que nela se unem, como procura neutralizar as poderosas pressões que a atingem através do ciberespaço. “Dessa maneira a união também salvaguarda as nações dos efeitos potencialmente destrutivos do longo e permanente processo […] de separar a trindade formada por nação, Estado e território, tão inseparáveis nos dois últimos centenários”10. Entretanto, Bauman destaca que a cultura no contexto da união tem sobrevivido mesmo sem o suporte da trindade nação-Estado-território. Não obstante, a construção nacional tinha por meta a concretização de “Um país, uma nação”, o nivelamento das diversidades étnicas dos cidadãos, por sua vez, os processos civilizadores garantiriam que a diversidade de línguas e o mosaico étnico e cultural não perdurassem por muito tempo, nesse sentido, dentro do Estado-nação culturalmente unido e unificado, “Tudo que fosse ‘local’ e ‘tribal’ era considerado ‘atraso’”11. “A prática da construção nacional tinha duas faces: a nacionalista e a liberal”12, a primeira era séria e enérgica, a segunda era amigável e benevolente. “As comunidades não viam diferença entre as faces nacionalista e liberal apresentadas pelos novos Estados-nação. Nacionalismo e liberalismo preferiam estratégias diferentes, mas miravam fins semelhantes”13. Sem dúvida a globalização tem mais proximidade com a face liberal do Estado-nação, pois o vácuo criado pela globalização oferece maior liberdade às iniciativas e às ações individuais, notadamente características do liberalismo.

Em seu sexto e último capítulo, o livro destaca o financiamento das artes por parte do Estado, tendo como precursores os franceses que, por sua vez, tinham na figura de Luis XIV um grande incentivador das artes e da educação dos artistas, fundador, em especial, do teatro real, a Comédie-Française. Bauman ressalta ainda que as primeiras ações, que seriam hoje chamadas de “política cultural”, surgem uns duzentos anos antes da emergência do termo “cultura”. O conceito francês de culture [tradução – do francês = cultura], estava relacionado a elite instruída e poderosa e também a promoção do aprendizado, da suavização das maneiras e do refino do gosto artístico. Durante o século XIX, surgem noções como “desenvolvimento e disseminação da cultura”, e “Também neste período, a tradição já estabelecida de responsabilidade do Estado pela cultura foi posta a serviço da construção nacional”14, o intuito era endossar o patriotismo e a lealdade a República. Segundo Bauman, “A cultura conferiria prestígio e glória, em âmbito mundial, ao país que patrocinasse seu florescimento”15. Através do pensamento de Theodor Adorno, o livro ainda procura estabelecer um paradoxo entre a inata atitude suspeitosa da administração diante da insubordinação e da imprevisibilidade naturais da arte e o desejo dos criadores de cultura de serem ouvidos, vistos e, tanto quanto possível, serem notados, paradoxo esse que para Bauman não tem solução, mas que tem mudado nas últimas décadas, em termos da situação da arte e de seus criadores. Bauman ainda demonstra que este paradoxo esta também relacionado a uma lógica de mercado, que, por sua, vez é uma tentativa de atingir o público, prática comum desde os tempos em que a arte era administrada pelo Estado e que, seguindo os critérios do mercado de consumo, preocupam-se com a iminência do consumo, da satisfação e do lucro.

Notas

3 BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. p.20.

4 Ibidem, p.28.

5 Ibidem, p.29.

6 Ibidem, p.37.

7 Ibidem, p.43.

8 Idem.

9 Ibidem, p.46.

10 Ibidem, p.56.

11 Idem.

12 Idem.

13 Ibidem, p.57.

José Fernando Saroba Monteiro – Mestrando em História do Império Português [e-learning] pela Universidade Nova de Lisboa (UNL). Licenciado em História pela Universidade de Pernambuco (UPE); Especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Licenciando em Música pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5353852205190949.


BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Resenha de: MONTEIRO, José Fernando Saroba. Em Perspectiva. Fortaleza, v.1, n.1, p.214-218, 2015. Acessar publicação original [IF].

A cultura no mundo líquido moderno | Zygmunt Bauman

Com seu livro intitulado A Cultura no Mundo Líquido Moderno, no original Culture in a Liquid Modern World, Zygmunt Bauman prossegue em 2013 suas análises sobre a modernidade, fazendo uma síntese das características que tomou a cultura desde a era “sólida” até a era “líquida”, bem como sua relação com o “multiculturalismo” e “globalização”.

No primeiro capítulo Bauman procura demonstrar que na atualidade não se firmam mais as antigas distinções entre a elite cultural e o chamado “grande público”, essa hierarquia cultural deu lugar a uma elite diversificada que aprecia tanto a “grande arte” quanto os programas populares de televisão e, “onivoramente”, consome diversas formas de arte, tanto populares quanto intelectualizadas, porém preocupada demais em celebrar o sucesso e outras formas festejadas ligadas a cultura. Descreve também “as peregrinações históricas do conceito de cultura”, desde o Renascimento, passando pela reviravolta causada por Pierre Bourdieu no século XX, chegando até os dias atuais, quando adentra a era “líquida”. Bauman mostra que o conceito de “cultura”, surgido no âmbito rural para incitar a ação agrícola, o arado e a semeadura, também esteve relacionado ao cultivo de almas (cultura animi), a interação entre protetores e protegidos, educadores e educados, e ainda esteve relacionado aos ideais iluministas e a construção de uma nação, de um Estado e de um Estado-nação, e ainda a aproximação entre as classes altas e o “povo”, ou seja, entre os que estão na base da sociedade e os que estão no topo. A perda de posição do conceito de “cultura” é resultado de uma série de processos de caracterizam a transformação da modernidade de seu estado “sólido” para seu estado “líquido”, o que Bauman denomina de “modernidade líquida”. Leia Mais