João da Silva Feijó: um homem de ciência no Antigo Regime português – PEREIRA; SANTOS (HCS-M)

PEREIRA, Magnus Roberto de Mello; SANTOS, Rosângela Maria Ferreira dos. João da Silva Feijó: um homem de ciência no Antigo Regime português. Curitiba: Editora da UFPR, 2012 (Coleção Ciência e Império, v.1), Curitiba: 1046pp. Resenha de: MOSCATO, Daniela Casoni. A vida de um homem de ciência no Antigo Regime português. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22 n.4 Rio de Janeiro Oct./Dec. 2015.

Como podemos, como historiadores, narrar a vida de um indivíduo? O que contaríamos, ou omitiríamos, nos caminhos e descaminhos de uma trajetória humana? Perguntas como essas perseguem os que decidem entrar nessa empreitada historiográfica. Reflexo disso pode ser percebido na contínua produção acadêmica dedicada ao estudo de indivíduos e em “pistas” que cada ensaio, em particular, aponta acerca desse tipo de análise. Essa produção biográfica, democrática e diversificada perpassa por personagens consagrados, como é o caso de Norbert Elias (1995), no estudo Mozart: sociologia de um gênio , e por indivíduos comuns, como o moleiro Domenico Scandella, o Menocchio, indivíduo construído belamente por Carlo Ginzburg (1998). Nessas relações e construções, os autores demonstram particularidades analíticas numa tentativa de apresentar caminhos possíveis, geralmente labirínticos, aos estudos biográficos.

A biografia encontra-se, assim, no centro das preocupações de historiadores, como aponta Giovanni Levi (1998) em seu clássico texto “Usos da biografia”. A própria ideia de biografia tornou-se variada e apresenta, atualmente, alguns gêneros que embasam as análises históricas, tais como “a prosopografia e a biografia modal”, que, com base em dados biográficos, objetivam uma prosopografia, descartando, muitas vezes, o interesse pela biografia particular, que, desse modo, apresenta-se como ilustração do comportamento de um determinado grupo, como é o caso da análise realizada em Intelectuais à brasileira , de Sergio Miceli (2001); a “biografia e o contexto”, em que o contexto – época, meio e ambiência – caracteriza uma “atmosfera que explicaria a singularidade das trajetórias” (Levi, 1998, p.175); a “biografia e a hermenêutica”, gênero mais utilizado pela antropologia interpretativa e pela história oral; e, finalizando, “biografia e casos extremos”, cujo exemplo principal é o já citado trabalho de Carlo Ginzburg. Esse gênero, geralmente, alcança o contexto histórico pelas “margens” do campo social, identificadas nas biografias de personagens singulares. Diante de tais variações biográficas e da leitura aprofundada da obra João da Silva Feijó: um homem de ciência no Antigo Regime português , pode-se afirmar que tal estudo não se define por uma dessas categorias. Ademais, não se atrela, meramente, à trajetória de João da Silva Feijó (1760-1824).

É importante esclarecer que a narrativa do naturalista João da Silva Feijó é o primeiro volume da Coleção Ciência e Império, um empreendimento nada modesto que tem como objetivo principal apresentar determinados personagens luso-brasileiros, bem como toda sua produção textual. Essa tarefa hercúlea é apoiada pelo Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses, alocado no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Essa incursão biográfica não se finda em João da Silva Feijó, e o segundo volume, dedicado a Francisco José de Lacerda Almeida, já foi publicado. Em seguida, virão outros nomes, como Luis Antônio de Oliveira Mendes, Elias Alexandre da Silva Correia, Joaquim José Pereira, Antonio Pires da Silva Pontes, Francisco José de Lacerda.

Esse primeiro volume tem 1.062 páginas, organizadas em duas partes. A primeira apresenta a longa trajetória do naturalista luso-brasileiro João da Silva Feijó; a segunda parte é uma compilação de sua produção científica e compreende 188 documentos – correspondências, remessas, memórias, textos científicos etc. – investigados em arquivos portugueses e brasileiros.

Pereira inicia sua narrativa respondendo, diretamente, à seguinte questão: “Quem foi João da Silva Feijó?”. Um dos raros luso-brasileiros que conseguiram viver, regularmente, da ciência, Feijó cursou filosofia pela Universidade de Coimbra, tal qual alguns brasileiros do Setecentos, e exerceu a profissão de naturalista na África, em Portugal e no Brasil, sempre a serviço do Império português.

Todavia, se nas primeiras páginas a resposta do autor se mostra um tanto didática, não se pode concluir que o mesmo constrói uma biografia clássica, que expressaria, com base na redução de escala focada no sujeito, as dimensões estruturais e a dinâmica social. Parte do texto, intitulada “Uma biografia nada exemplar”, é elaborada por meio de análise minuciosa de diferentes representações do naturalista, construídas por outros autores. Portanto, Pereira busca compreender como a figura de João da Silva Feijó se apresentou em outros estudos, entre eles, os da historiografia portuguesa e norte-americana.

Esse caminho metodológico é instigante e permite ao leitor conhecer as várias representações desse sujeito. A primeira delas é um verbete elaborado pelo geógrafo veneziano Adriano Balbi, em 1822, que destaca os manuais organizados por Feijó para o ensino de botânica e zoologia. Nessa exposição, Pereira apresenta fatos distorcidos e dialoga com cada referência identificada, como as de Carl Friedrich Philipp von Martius, de 1837, e as de Miguel Colmeiro, de 1858. O ápice de tal explanação é o momento em que esclarece o leitor sobre como o desconhecimento de partes da documentação, hoje disponíveis, permitiu a elaboração da imagem de um indivíduo pouco exemplar e a identificação de informações básicas distorcidas. Erros acumulados, que se repetiram ao longo do século XIX, talvez expliquem como esse personagem foi, aos poucos, esquecido pela historiografia brasileira.

Com o intuito de aventar tais representações, o autor analisa, minuciosamente, uma rica documentação – memórias científicas, cartas, periódicos, documentação escolar etc. – para esclarecer possíveis erros e amparar outra narrativa da vida desse naturalista. Nessa perspectiva, constrói o indivíduo biografado. Em “Fazendo-se naturalista”, destaca o jovem Feijó e seu período como estudante de filosofia natural, na Universidade de Coimbra; o desenvolvimento de relações com outros luso-brasileiros no Jardim da Ajuda, em Lisboa; e os estreitos laços estabelecidos com dom Rodrigo de Souza Coutinho, o conde de Linhares. Esses elementos são o pano de fundo para a análise de sua formação em história natural e da posição ocupada nessa sociabilidade científica, que era composta por nomes como Domingos Vandelli e Alexandre Rodrigues Ferreira.

Em “Um naturalista num ninho de cobras”, descreve os anos vividos em Cabo Verde, onde Feijó permaneceu entre junho de 1776 e dezembro de 1795. Tal descrição é fundamentada, especialmente, em um relato de viagem composto por um conjunto de cartas destinadas ao então ministro Martinho de Mello e Castro. Em tal documento, intitulado “O itinerário filosófico que contém a relação das ilhas de Cabo Verde disposto pelo método epistolar”, Pereira destaca: a descrição da fauna, da flora e dos costumes locais; os problemas enfrentados por seu biografado – como o da falta de uma equipe de apoio em suas pesquisas; e as funções burocráticas que começou a acumular a partir da década de 1790.

“Un certain Feijào” é dedicada ao retorno a Lisboa. Nessa parte, Pereira ressalta os trabalhos acadêmicos referentes à produção de salitre, o trabalho na Ajuda – onde organizou um herbário com as espécies botânicas enviadas do arquipélago africano – e a aproximação de Feijó com a República das Letras, comprovada pela publicação de alguns de seus estudos. Essa condição de “homem de múltiplos instrumentos” gerou grandes críticas, como as do naturalista alemão Herinrich-Friedrich Link. A esse respeito, Pereira pontua elementos importantes para a compreensão dos discursos de exclusão e exaltação presentes na ciência moderna: “Link buscava afirmar a sua superioridade como intelectual fazendo pouco daqueles colegas que pertenciam a ambientes científicos considerados provincianos ou periféricos” (p.76). Por outro lado, por ser considerado “homem de múltiplos instrumentos”, Feijó retornou ao Brasil como sargento-mor das milícias da capitania do Ceará.

Em terras brasileiras, recebeu a incumbência de checar as notícias sobre os depósitos de salitre natural, questão que ocupava lugar importante na política científica portuguesa para o Nordeste brasileiro, debate analisado no subtítulo “Um naturalista no Ceará”. Por aproximadamente 15 anos, o naturalista permaneceu na capitania e, além da busca ao salitre, recolheu diversos espécimes que foram enviados ao Jardim Botânico, ao Museu da Ajuda e ao Real Jardim Botânico de Berlim. O autor ainda destaca, sempre amparado pela vasta documentação produzida por Feijó e sobre ele, as publicações de textos referentes à sua atuação no Nordeste e o seu uso por viajantes que estiveram no Brasil no século XIX, como Henry Koster, Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, e Wilhelm Ludwig von Eschewege.

Em toda a trajetória do naturalista Feijó, o autor esclarece seu envolvimento com as estruturas científicas, políticas e sociais presentes no Império português; e, sempre que possível e necessário, atenta para a atuação dessa elite naturalista, representada por seu eleito, em tais articulações. Para Pereira, Feijó tinha um “ar de modernidade” e circulava por espaços importantes, como o da maçonaria e o das Repúblicas das Letras. As últimas páginas são dedicadas à compreensão de como ocorreu a colaboração de Feijó no processo de Independência do Brasil, movimento ao qual ele aderiu, destacando-se no Manifesto do Povo do Rio de Janeiro, que pedia a permanência do príncipe dom Pedro I no país, e na reorganização da maçonaria em terras brasileiras.

João da Silva Feijó, como bem colocou o autor, foi um homem de seu tempo: participou do movimento português das Luzes, estudou os espécimes naturais de três continentes, vivenciou as construções e as mudanças de paradigmas científicos, acompanhou as rupturas do Império lusitano e, consequentemente, os primeiros embates políticos brasileiros. Contudo, apesar de sua presença em momentos importantes da história portuguesa e brasileira, o naturalista João da Silva Feijó foi esquecido, por um certo tempo, pelos estudos historiográficos. A esse respeito, o livro aqui resenhado não é somente uma tentativa de resgaste de sua vida e obra, mas uma importante ferramente para se “resgatar também um fragmento expressivo da memória científica do Grande Império Lusitano com o qual muitos dos ‘filósofos’ luso-brasileiros haviam sonhado” (p.119).

Referências

ELIAS, Norbert. Mozart : sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1995. [ Links ]

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes : o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras. 1998. [ Links ]

LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Ferreira, Marieta de Moraes; Amado, Janaina (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV Editora. 1998. [ Links ]

MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras. 2001. [ Links ]

Daniela Casoni Moscato – Doutoranda, Departamento de História/Universidade Federal do Paraná. [email protected]

Ensaio de história das ciências no Brasil: das Luzes à nação independente – KURY; GESTEIRA (RHR)

KURY, L.; GESTEIRA, H. (orgs.) Ensaio de história das ciências no Brasil: das Luzes à nação independente. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012. 328p. Resenha de: MOSCATO, Daniela Casoni. Revista de História Regional v.18, n.1, p. 262-266, 2013.

Em dezembro de 2012, a Revista História da Historiografia1 dedicou seu 10° número ao dossiê Diálogos Historiográficos: Brasil e Portugal. Com apresentação da brasileira Iris Kantor e do português Thiago C.P. Dos Reis Miranda, o dossiê confirmou novas reflexões históricas acerca da clássica relação Brasil/Portugal ou, nas palavras dos apresentadores, “novos espaços de interação acadêmica luso-brasileira”.2 O livro Ensaios de História das Ciências no Brasil: das Luzes à nação independente, da EdUERJ, publicado em 2012, ao trazer também essa característica, reafirma o avanço dos estudos dedicados às históricas relações luso-brasileiras. A cuidadosa edição é abundante em belas ilustrações/desenhos de naturalistas, mapas e pinturas, que dão início às cinco partes da obra. Alguns dos artigos trazem cartas geográficas, plantas baixas e imagens em perspectiva, em elegante impressão, o que, certamente, colabora para a apreciação da leitura.

A obra, que compreende vinte artigos, discorre sobre a época pombalina, de 1750 a 1777, período em que o Marquês de Pombal exerceu o cargo de primeiro ministro português, e sobre o reinado joanino, iniciado em 1808 e se estendeu até a Independência do Brasil. Desta forma, textos sobre o Iluminismo português, a transferência da corte para a América e as relações que envolveram a Independência estão permeados de reflexões acerca de temas caros à história das ciências no Brasil.

Resenhar vinte artigos de vinte e dois autores é um trabalho laborioso. No caso dessa obra, cada autor, com suas particularidades, ofereceu uma leitura prazerosa de textos fundamentados em diversas fontes históricas, mas com o propósito de produzir uma obra comum. Assim, apresentar cada parte deste livro foi a solução encontrada para ser fi el ao objetivo de um Ensaio: reunir estudiosos e suas reflexões acerca das ciências e suas técnicas no Brasil oitocentista.

A primeira parte, intitulada A arte de curar no Brasil: entre novos e velhos saberes, de autoria de Cristina Deckmann Fleck, expõe as práticas curativas jesuíticas nos séculos XVII-XVIII. A análise destaca as proibições médicas na ordem jesuítica, o largo emprego de uma terapêutica mágica de cunho cristão e outras situações de cura baseadas em tradições guaranis, um misto de mística e razão que acabaria “por conferir incontestável originalidade __ pela inegável capacidade de síntese entre a tradição e inovação __ à Companhia de Jesus nos séculos XVII e XVIII” (p.29). Este estudo prepara o leitor para o artigo seguinte: Rumo ao Brasil: a transferência da corte e as novas trilhas do pensamento médico. Nele, Márcia Moisés Ribeiro, ao apontar os avanços médicos nos séculos XVII e XVIII, mostra como a modernização do Império português possibilitou “o fomento de atividades práticas de indivíduos ligados ao mundo das ciências por meio de estímulos às viagens exploratórias, como também a publicação de obras de autores luso-brasileiros e a tradução de estrangeiros” (p. 34). A transferência da corte para a colônia americana intensificou a circulação de conhecimentos médicos e trouxe teorias em voga na Europa, como algumas modificações nas práticas curativas. As mudanças nas práticas de cura e as especificidades de um estudo histórico dedicado às ciências podem ser identificadas na análise da própria concepção de História das ciências apresentada no artigo Os dilemas da História social das ciências no Brasil: as artes de curar no início do século XIX, de Betânia Gonçalves Figueiredo e Graciela de Souza Oliver.

A parte A ciência e a arte no Rio de Janeiro traz temas ambientados na cidade brasileira da corte portuguesa e, posteriormente, capital do Império. O primeiro artigo traça um panorama da medicina nas primeiras décadas do século XIX, e Tânia Salgado Pimenta discorre acerca dos caminhos percorridos para a oficialização das artes de curar, no texto As artes de curar e a Fiscatura-Mor na época de D. João VI. Os dois textos seguintes demonstram, em suas particularidades, como as modifi cações da paisagem, no Rio de Janeiro, estavam estritamente relacionadas aos discursos médicos vigentes na época. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro e as paisagens da Corte, de Ana Rosa de Oliveira, analisa essa premissa com base no Jardim Botânico e as representações que o envolveram. Lorelay Kury, em Rio de Janeiro Joanino: entre o mar e o mangue, aborda os debates acerca da organização urbana da cidade e as modificações realizadas e, desse modo, alcança o que se propôs nos primeiros parágrafos do texto: “Minha abordagem aqui pretende ser diferente. Acredito que a noção de ‘necessidade’ deve ser historicamente pensada[…]. Ou seja, as soluções para os problemas só aparecem quando os problemas são colocados como tal” (p. 86).

A terceira parte da obra, Inventários e utilização da natureza, apresenta, nos três primeiros textos, aspectos que envolveram as viagens científi cas portuguesas nos séculos XVIII e XIX. Em Instructio Peregrinatoris. Algumas questões referentes aos manuais portugueses sobre métodos de observação filosófica e preparação de produtos naturais da segunda metade do século XVIII, Maguns Roberto de Mello Pereira e Ana Lúcia Rocha Barbalho Cruz exploram como eram idealizados e realizados os manuais de instrução para viagens científi – cas destinadas a naturalistas do império português, inclusive, luso-brasileiros.

A elaboração e o uso desses manuais confi rmam o entusiasmo científico pelo qual passava o setecentos, basta lembrarmos o papel que a Universidade de Coimbra desempenhou no crescimento das ciências no reino luso.

Um dos refl exos dessa ebulição da ciência foi a internacionalização das relações científicas. João Carlos Brigola, em O colecionismo científico em Portugal nos fi nais do Antigo Regime (1768-1808), atesta como as instituições portuguesas mantinham um imenso intercâmbio científico com instituições como: Real Jardim Botânico de Madri; Jardim Real de Kew e Royal Society, em Londres; Universidade de Amsterdã; Universidade e Jardim Botânico de Copenhague e tantas outras (p.137). A fabricação da pólvora e trabalhos sobre o salitre: Portugal e Brasil de fi nais do século XVIII às primeiras décadas do século XIX é o título do estudo apresentado por Márcia Helena Mendes Ferraz, que, valendo-se de documentação impressa e de manuscritos, analisa o debate acerca dos métodos utilizados para a obtenção e purificação do salitre, assim como, o avanço e a circulação das práticas e das análises científi cas. Neil Safi er, com o texto Instruções e impressões transimperiais: Hipólito da Costa, Conceição Veloso e a ciência joanina, demonstra como a circulação de ideias científi cas se deu por “(…) canais menos institucionais de circulação do conhecimento em relação ao mundo natural” (p. 169). Igualmente, em Naturalista e homem público: a trajetória do ilustrado Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1796-1823), Alex Gonçalves Varela apresenta um lado pouco estudado desse político que também foi grande naturalista.

Os quatro primeiros textos agrupados na parte seguinte, As ciências e a construção do território do Brasil, concentram-se em apresentar, minuciosamente, como se deu a elaboração dos espaços científicos brasileiros. Os artigos de Beatriz Piccoloto Siqueira Bueno, Heloisa Gesteira, Nelson Sanjad e Iris Kantor demonstram como a construção do território português, na América, se fez, também, pela relação entre ciência e política. Nessa perspectiva, os autores identificam elementos importantes: a herança iluminista portuguesa, a necessidade de construção do território ultramarino, a circulação de diferentes profissionais da ciência e a americanização do Império português. Já, Ângela Domingues, em Viagens e viajantes europeus e descrição do Brasil: correspondência de Leopoldina e o paradisíaco Brasil, atesta, pelo olhar da jovem Imperatriz, algumas representações acerca do processo de construção territorial que permeavam o XIX: Tal como outros viajantes anteriores a ela, como Spix e Martius, John Luccock ou Johann Emanuel Pohl, Leopoldina desenvolveu, logo após sua chegada ao Brasil, uma admiração genuína e sincera pelas belezas naturais e pelas potencialidades econômicas contidas na natureza de seu Brasil (p. 257).

A última parte, Instituições e Letras, apresenta artigos dedicados à circulação dos saberes científicos entre Portugal e no Brasil. Portugal- Brasil, 1808. Trânsito de saberes, de Maria de Fátima Nunes, aborda a relação transimperial dos saberes científicos acumulados até 1808 e sua continuidade após a mudança da família real portuguesa: […] a ida da corte para o Rio de Janeiro com o embarque de um patrimônio científico e cultural extremamente valioso: bibliotecas (individuais, institucionais e públicas) e instrumentos científicos para a colônia Brasil (…) Desse embarque nasceram os (futuros) espaço de ciências e das bibliotecas coloniais emergiram as bibliotecas da (futura) nação do Império brasileiro (p. 268).

No artigo, Natureza, ciência e política no mundo luso-brasileiro de inícios do século XIX, Guilherme Pereira das Neves argumenta como o Iluminismo português engessou-se pela forte tradição social e cultural do mundo luso- -brasileiro: […] parece-me muito difícil deixar de considerar o lugar limitado ocupado pelas Luzes no mundo luso-brasileiro (…). No entanto, se elas, as Luzes, não deixaram de desempenhar um papel instrumental no que diz respeito ao conhecimento da natureza, em termos de política, em seu sentido mais amplo, o fi zeram no ‘interior das estruturas mentais que [as] dominam e enquadram’, em vez de se mostrarem […] (p. 289) A institucionalização das práticas científi cas na corte do Rio de Janeiro, de Maria Rachel Fróes da Fonseca, apresenta como os espaços institucionais, em especial, no Rio de Janeiro, expressavam os interesses pelas diversas áreas científicas, como a medicina. Finalizando o livro, o artigo, A gênese moderna do artigo de fundo e da campanha de imprensa: o Correio Braziliense ou Armazem, de José Augusto de Santos Alves, evidencia a importância desse periódico para o nascimento da imprensa moderna em Portugal e no Brasil.

Os artigos aqui resenhados apresentam a história luso-brasleira pautada na relação transimperial que se estabeleceu a partir do momento que os navegantes lusos aqui atracaram. Entretanto, os textos orientam que tal relação não se limita à comparação entre locais de um mesmo Império, mas abrange o compartilhamento de elementos comuns, ou seja, os aspectos das ciências e suas práticas não foram somente apropriados e reproduzidos, mas se tornaram parte de saberes contínuos do Império Português. Ao aprofundar essas questões, alguns textos trazem a história de intelectuais e de instituições, num debate necessário e urgente para a apreensão da história das ciências e da história de Portugal e do Brasil. Esse “retorno” a estudos acerca de intelectuais e instituições é também a indicação de que as reflexões sobre determinadas práticas são importantes para a construção do saber científico e das ciências, entre elas, da própria História.

Notas

1 Diálogos Historiográfi cos: Brasil e Portugal. In: Revista de História e Historiografi a vol. 10. Disponível em<http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/issue/current>. Acesso em:15 mar. 2013

2 KANTOR, I.; MIRANDA, C.P.D.C.R. Apresentação. In: Revista de História e Historiografia vol. 10. Disponível em<http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/issue/current>. Acesso em:15 mar. 2013.

Daniela Casoni Moscato – Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected].