O pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo: diálogos com Martin Heidegger e Hans Jonas – CARRILHO (RFA)

CARRILHO, M. R. O pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo: diálogos com Martin Heidegger e Hans Jonas. Lisboa: Fundação Cuidar o Futuro, 2019. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.32, n.55, p.322-328, jan./abr, 2020.

O pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo: diálogos com Martin Heidegger e Hans Jonas resulta de um doutoramento em Filosofia na Universidade de Évora, Portugal, sob a orientação das professoras Fernanda Henriques e Irene Borges-Duarte. A obra que agora se tem, porém, não é a tese doutoral tal e qual, como destaca a própria autora, Marília Rosado Carrilho. O que agora se apresenta sob a forma de livro é, por assim dizer, uma dupla introdução: uma em sentido horizontal e outra em sentido vertical.

Esse duplo movimento introdutório é o que título e subtítulo expressam: o primeiro mostra a introdução em sentido horizontal e o segundo em sentido vertical. Em sentido horizontal porque se trata de apresentar o pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo, uma mulher que se destacou, sobretudo, por sua intensa atividade político-social em Portugal, na União Europeia e na Organização das Nações Unidas (ONU). Nesse sentido, trata-se de colocar o(a) leitor(a) a par não somente da contribuição de Maria de Lourdes Pintasilgo para a política, mas de mostrar como a política é desenvolvida e aprimorada em seus textos, que, na maioria das vezes, são conferências, palestras, discursos e/ou entrevistas. Além disso, trata-se de mostrar como ética e política estão conjugadas de tal forma que, em Pintasilgo, não se pode pensar uma sem a outra. Pode-se dizer, portanto, de uma introdução como apresentação do pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo.

A obra é também uma introdução em sentido vertical, pois não se limita somente à apresentação. Trata-se de conduzir o(a) leitor(a) ao interior do próprio pensamento de Pintasilgo, colocando em discussão a sua gênese, formação, desenvolvimento e apontando, ao final, para o legado por ele deixado. Isso torna a obra de Carrilho única: à medida em que coloca o pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo em um panorama, extrai dele aquilo que lhe é mais fundamental. Disso decorre o encontro com os dois pilares de seu pensamento: Martin Heidegger e Hans Jonas. Diz-se, assim, de uma introdução como um adentrar ao núcleo formativo e estruturante do pensamento ético-político de Pintasilgo.

O texto é aberto por dois prefácios: um assinado por André Barata, que destaca a importância da transição do “poder sobre” ao “poder para”, e outro assinado por Maria Antónia Coutinho, que destaca a força da linguagem humana presente em Maria de Lourdes Pintasilgo e dá ênfase à necessária mudança de paradigma político, a saber, de uma ética da justiça a uma ética do cuidado, centrada, sobretudo, na qualidade de vida. À sequência, seguem-se os cinco capítulos trazidos por Carrilho, antecedidos por uma Introdução, cuja função não é somente apresentar a estrutura da obra, mas também trazer alguns dados biográficos de Maria de Lourdes Pintasilgo. Além disso, a Introdução faz e traz um organograma conceitual do percurso de Pintasilgo: ele é fundamental para o posterior andamento da obra, pois o desenvolvimento dos capítulos está finamente associado a tal percurso aí apresentado.

O primeiro capítulo — A indissociabilidade entre ética e política como linha de força do pensamento e ação de Maria de Lourdes Pintasilgo — faz uma abordagem geral do pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo, mostrando como nele não se pode dissociar ética e política, pensamento e ação, palavra e ato. Desde o início também se percebe a importância de Martin Heidegger e Hans Jonas: do primeiro se toma a noção de “cuidado” como fundamento ontológico do ser humano e do segundo o princípio de responsabilidade como determinante para o convívio em comunidade e para a edificação de uma ética holística, preocupada com o futuro e com a qualidade de vida. Aqui também já se entende a proposta de uma “nova política”, à qual está ligada um conjunto de características fundamentais: consciência cívica, poder, “agir a palavra” e “nova cultura política”. Essas características são trabalhadas ao longo do capítulo. Importa perceber como elas estão interligadas.

A sociedade é formada por todos e todos são responsáveis por ela: esse é o ponto de partida de Maria de Lourdes Pintasilgo. Só há responsabilidade onde há liberdade e só há ética onde ambas estão presentes. Assim, a consciência ética implica na capacidade de escolher, tendo em vista o bem comum, e de se tornar responsável por essa escolha. O que Pintasilgo entende por consciência cívica é a possibilidade do cidadão, por um lado, intervir livre e responsavelmente na sociedade e, por outro, ter consciência da importância dessa intervenção. A consciência cívica exige uma “massa crítica” que deverá ser “reflexiva, denunciadora e interventiva” (CARRILHO, 2019, p.36). A consciência cívica como consciência ética implica numa “nova política” onde o poder é exercido “para” e não mais “sobre”. Essa é a singular mudança trazida pela “nova política”: o exercício da autoridade no poder político, assim, é legitimado pela responsabilidade. Poder, liberdade e responsabilidade são termos correlatos, portanto. A ética, então, está aí pensada a partir de uma necessária vinculação entre teoria e prática, à qual Pintasilgo denomina de “agir a palavra”: “o pensar nada muda sem o agir, mas o agir sem rumo poderá levar à errância” (CARRILHO, 2019, p.43). Atenção seja dada ao alerta aí realizado: a ética deve evitar ao máximo o agir sem rumo, cabendo-lhe, portanto, o papel regulador da ação. Esta regulação, porém, não deve ser vista como um empecilho do progresso, mas como uma aliada, pois ela provém de um projeto educador que está à base do projeto da “nova cultura política”. Maria de Lourdes Pintasilgo busca em Paulo Freire as bases desse projeto educacional capaz de pensar a autonomia do cidadão, sua consciência cívica e sua vida política e social. Desse modo, à indissociabilidade entre ética e política se junta um projeto educador, percebido nas entrelinhas desse primeiro capítulo, e pouco explorado por Carrilho.

O segundo capítulo — A emergência de um novo paradigma como condição para uma governação ético-política — trata, basicamente, da mudança do “paradigma do progresso” para o “paradigma da qualidade de vida”. Essa proposta se inicia com a apresentação daquilo que Maria de Lourdes Pintasilgo chama de “tempo da vergonha”: há progresso, conquista da ciência, aumento da economia mundial e, mesmo assim, ainda há tantas perturbações aos sistemas de suporte da vida. O “tempo da vergonha” é um diagnóstico do final do século XX e início do XXI e, além disso, deve fazer cair o mito do desenvolvimento como um progresso ascendente e que é, na maioria das vezes, um progresso econômico. Propondo a mudança, Maria de Lourdes Pintasilgo afirma a importância do outro para que haja relação ética e, nesse sentido, torna evidente a importância do cuidado: consigo, com as coisas e com os outros. Essa ideia de cuidado é tirada da filosofia de Heidegger, que, além disso, também contribui decisivamente para a caracterização do ser humano como ser relacional, um ser-com-os-outros-no-mundo. Para além de Heidegger, no entanto, Pintasilgo faz convergir o cuidado à dimensão ético-política.

A mudança paradigmática se inicia quando se rompe com o conformismo e com o consenso. Eles são os dois inimigos da mudança: o primeiro por resignar-se com o que está dado e o outro por gerar conforto em vários aspectos, impedindo a mudança, negando-a, na verdade. Para tanto, Carrilho traz aquilo que Pintasilgo denominou como “teoria das brechas”: entrar pelos espaços que são oferecidos e intervir substancialmente no sistema, causando a mudança. A mudança paradigmática, por mais difícil que pareça, nunca deixa de ser realizável para Maria de Lourdes Pintasilgo, que, com isso, resgata politicamente a ideia de utopia, não como algo irrealizável, mas como plenamente realizável desde que seja pensada como horizonte. Trata-se, pois, de olhar para o futuro ao qual a política caminha a partir das decisões adequadas tomadas no presente. Assim, a “qualidade de vida” aparece como uma “utopia política” realizável integralmente: “qualidade de vida é proporcionar patamares mínimos de existência digna, considerados como direitos, uma vez que possibilitam a autossuficiência e independência do indivíduo” (CARRILHO, 2019, p.73). Note-se: o novo paradigma político deve ter como objetivo a autossuficiência e a independência do indivíduo. Para tanto, Pintasilgo propõe um novo contrato social, pautado não mais na subordinação, mas numa comunidade livre e que traz as seguintes características: a instauração de mecanismos de regulação, isto é, uma ética regulatória; uma cidadania com intervenção de homens e mulheres, donde a necessária consciência cívica; e uma soberania alargada e responsável, na qual poder, liberdade e responsabilidade são, de fato, correlatas.

O terceiro capítulo — Cuidar o futuro: fundamento da ética global e imperativo humano — fala sobre a proposta de uma “ética global” a partir daquilo que Pintasilgo chamou de “cuidar o futuro”. O lema traz como seus dois principais objetivos “humanizar a política e possibilitar uma existência digna” (CARRILHO, 2019, p.79). Essa “ética global” proposta por Pintasilgo, ao ser “holística, consequencialista, da responsabilidade e do cuidado” (CARRILHO, 2019, p.81), faz convergir o pensamento de Heidegger e Jonas ao seu projeto ético-político. Além disso, ela ainda propõe alterações fundamentais às éticas tradicionais: o sujeito ético deixa de ser o indivíduo e passa a ser o coletivo, o objeto ético deixa de ser estritamente o humano e passa a abarcar a natureza, a ação moral deixa de estar pautada na intenção e passa a remeter às (possíveis) consequências da ação, a dimensão temporal da ética deixa de avaliar a ação no imediato de sua realização para “se entender que importam as repercussões a médio e longo prazo” (CARRILHO, 2019, p.83). Assim, uma “ética global” está posta porque os problemas se tornaram globais tanto pela extensão quanto pela duração que a ação humana passou a ter. Essa “nova ética” deve, primeiramente, questionar a ação a ser realizada. O papel regulador da ética provém do caráter questionador da filosofia, atestando a importância desta para a “nova política”. Desse modo, a “ética global” de Pintasilgo questiona e regula: “nem tudo o que é cientificamente exato ou tecnologicamente viável é socialmente aceitável; é a pessoa humana [pensada na integridade com a natureza] a primeira e a última finalidade de toda decisão política” (CARRILHO, 2019, p.87). Carrilho, ao final desse capítulo, traz um importante esclarecimento: a ética global proposta por Pintasilgo não é uniforme, tampouco pautada num denominador comum. Ela é a descoberta de um núcleo dos valores éticos compartilhados pelos grandes sistemas do pensamento.

O quarto capítulo — Cuidado e responsabilidade como pilares do agir ético-político — se propõe a mostrar a direta influência de Heidegger e Jonas no pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo. Carrilho inicia mostrando como os termos “cuidado” e “responsabilidade”, principais contributos dos filósofos mencionados, passam a fazer parte do vocabulário de Pintasilgo. Interessante destacar que Carrilho, nesse momento, dedica-se a apresentar o “cuidado” heideggeriano e a “responsabilidade” jonasiana em suas devidas conjunturas. Desse modo, a primeira divisão do capítulo — O cuidado como fundamento ontológico do ser humano — traz uma abordagem geral do cuidado no contexto de Ser e tempo, apresentando-o como caracterização ontológica do ser humano, concretizando-se como ocupação e solicitude. Mesmo levando a noção de cuidado para além da caracterização ontológica apresentada por Heidegger, Pintasilgo concorda estritamente com ele em um aspecto decisivo, como mostra Carrilho: “o cuidado é intenção originária, abertura a si e aos outros” (CARRILHO, 2019, p.94). Carrilho procede da mesma maneira com Jonas na segunda parte do capítulo — A responsabilidade como exigência da condição humana de ser-com. Aí a autora dá destaque ao “imperativo categórico da responsabilidade”, próprio de Jonas e apropriado por Pintasilgo. Além disso, apresenta também a responsabilidade a partir de uma tripla caracterização: enquanto sentimento, enquanto dever-ser e enquanto condição da ação causal. Carrilho perpassa, de fato, o núcleo edificante do princípio da responsabilidade de Hans Jonas, mostrando, ao final, como Pintasilgo o faz convergir à “nova ética global”, logo, à “nova política”.

O capítulo final — O legado de Maria de Lourdes Pintasilgo — não é, como a própria autora afirma, uma conclusão. Trata-se de uma retomada do caminho percorrido, fazendo uma síntese das teses apresentadas e apontando o legado deixado por Maria de Lourdes Pintasilgo. Nesse sentido, trata-se de retomar, primeiramente, os pontos apropriados por Pintasilgo de Heidegger e Jonas para, à sequência, mostrar como a temática do “tempo futuro” deve sua fundamentação também a eles. Para Pintasilgo, o futuro é o horizonte da ação ética, ou seja, a vida está sempre em construção, logo, nunca há uma sociedade plenamente realizada. Daí a importância dos governos pensarem a curto, médio e longo prazo: “à fluidez do tempo, é preciso responder com o exercício da decisão responsável. […] Com os ‘pés’ no presente e os ‘olhos’ no futuro, assim deve ser o ser humano responsável” (CARRILHO, 2019, p.115). Em suma: trata-se de agir a partir do local em que se vive e pensar desde uma perspectiva global. Aos governos competem realizar uma ação que pense a longo prazo e implementar um projeto com metas, prazos, métodos e regras para a execução. Não se trata de fazer apenas vigorar leis, mas de torná-las factíveis, avaliáveis e fundadas na verdade e na vontade de saber, “efetivada através do diálogo com o povo, com os diversos saberes e do diálogo interno no seio do sistema governativo” (CARRILHO, 2019, p.119).

Por fim, por cumprir muito bem o papel de ser uma dupla introdução, o texto de Marília Rosado Carrilho não é somente um comentário, mas, na verdade, um condutor até ao pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo. Seguir o percurso dessa obra, à qual se recomenda a leitura, é, de fato, perceber-se introduzido ao e no pensamento de Pintasilgo e, ao mesmo tempo, sentir-se impulsionado para além dos comentários aqui postos pela autora, permitindo-se encontrar, confrontar e discutir com os textos da própria Maria de Lourdes Pintasilgo.

Luís Gabriel Provinciatto – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil / Universidade de Évora, Évora, Portugal. Mestre em Ciências da Religião. E-mail: [email protected]

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