O pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo: diálogos com Martin Heidegger e Hans Jonas – CARRILHO (RFA)

CARRILHO, M. R. O pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo: diálogos com Martin Heidegger e Hans Jonas. Lisboa: Fundação Cuidar o Futuro, 2019. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.32, n.55, p.322-328, jan./abr, 2020.

O pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo: diálogos com Martin Heidegger e Hans Jonas resulta de um doutoramento em Filosofia na Universidade de Évora, Portugal, sob a orientação das professoras Fernanda Henriques e Irene Borges-Duarte. A obra que agora se tem, porém, não é a tese doutoral tal e qual, como destaca a própria autora, Marília Rosado Carrilho. O que agora se apresenta sob a forma de livro é, por assim dizer, uma dupla introdução: uma em sentido horizontal e outra em sentido vertical.

Esse duplo movimento introdutório é o que título e subtítulo expressam: o primeiro mostra a introdução em sentido horizontal e o segundo em sentido vertical. Em sentido horizontal porque se trata de apresentar o pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo, uma mulher que se destacou, sobretudo, por sua intensa atividade político-social em Portugal, na União Europeia e na Organização das Nações Unidas (ONU). Nesse sentido, trata-se de colocar o(a) leitor(a) a par não somente da contribuição de Maria de Lourdes Pintasilgo para a política, mas de mostrar como a política é desenvolvida e aprimorada em seus textos, que, na maioria das vezes, são conferências, palestras, discursos e/ou entrevistas. Além disso, trata-se de mostrar como ética e política estão conjugadas de tal forma que, em Pintasilgo, não se pode pensar uma sem a outra. Pode-se dizer, portanto, de uma introdução como apresentação do pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo.

A obra é também uma introdução em sentido vertical, pois não se limita somente à apresentação. Trata-se de conduzir o(a) leitor(a) ao interior do próprio pensamento de Pintasilgo, colocando em discussão a sua gênese, formação, desenvolvimento e apontando, ao final, para o legado por ele deixado. Isso torna a obra de Carrilho única: à medida em que coloca o pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo em um panorama, extrai dele aquilo que lhe é mais fundamental. Disso decorre o encontro com os dois pilares de seu pensamento: Martin Heidegger e Hans Jonas. Diz-se, assim, de uma introdução como um adentrar ao núcleo formativo e estruturante do pensamento ético-político de Pintasilgo.

O texto é aberto por dois prefácios: um assinado por André Barata, que destaca a importância da transição do “poder sobre” ao “poder para”, e outro assinado por Maria Antónia Coutinho, que destaca a força da linguagem humana presente em Maria de Lourdes Pintasilgo e dá ênfase à necessária mudança de paradigma político, a saber, de uma ética da justiça a uma ética do cuidado, centrada, sobretudo, na qualidade de vida. À sequência, seguem-se os cinco capítulos trazidos por Carrilho, antecedidos por uma Introdução, cuja função não é somente apresentar a estrutura da obra, mas também trazer alguns dados biográficos de Maria de Lourdes Pintasilgo. Além disso, a Introdução faz e traz um organograma conceitual do percurso de Pintasilgo: ele é fundamental para o posterior andamento da obra, pois o desenvolvimento dos capítulos está finamente associado a tal percurso aí apresentado.

O primeiro capítulo — A indissociabilidade entre ética e política como linha de força do pensamento e ação de Maria de Lourdes Pintasilgo — faz uma abordagem geral do pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo, mostrando como nele não se pode dissociar ética e política, pensamento e ação, palavra e ato. Desde o início também se percebe a importância de Martin Heidegger e Hans Jonas: do primeiro se toma a noção de “cuidado” como fundamento ontológico do ser humano e do segundo o princípio de responsabilidade como determinante para o convívio em comunidade e para a edificação de uma ética holística, preocupada com o futuro e com a qualidade de vida. Aqui também já se entende a proposta de uma “nova política”, à qual está ligada um conjunto de características fundamentais: consciência cívica, poder, “agir a palavra” e “nova cultura política”. Essas características são trabalhadas ao longo do capítulo. Importa perceber como elas estão interligadas.

A sociedade é formada por todos e todos são responsáveis por ela: esse é o ponto de partida de Maria de Lourdes Pintasilgo. Só há responsabilidade onde há liberdade e só há ética onde ambas estão presentes. Assim, a consciência ética implica na capacidade de escolher, tendo em vista o bem comum, e de se tornar responsável por essa escolha. O que Pintasilgo entende por consciência cívica é a possibilidade do cidadão, por um lado, intervir livre e responsavelmente na sociedade e, por outro, ter consciência da importância dessa intervenção. A consciência cívica exige uma “massa crítica” que deverá ser “reflexiva, denunciadora e interventiva” (CARRILHO, 2019, p.36). A consciência cívica como consciência ética implica numa “nova política” onde o poder é exercido “para” e não mais “sobre”. Essa é a singular mudança trazida pela “nova política”: o exercício da autoridade no poder político, assim, é legitimado pela responsabilidade. Poder, liberdade e responsabilidade são termos correlatos, portanto. A ética, então, está aí pensada a partir de uma necessária vinculação entre teoria e prática, à qual Pintasilgo denomina de “agir a palavra”: “o pensar nada muda sem o agir, mas o agir sem rumo poderá levar à errância” (CARRILHO, 2019, p.43). Atenção seja dada ao alerta aí realizado: a ética deve evitar ao máximo o agir sem rumo, cabendo-lhe, portanto, o papel regulador da ação. Esta regulação, porém, não deve ser vista como um empecilho do progresso, mas como uma aliada, pois ela provém de um projeto educador que está à base do projeto da “nova cultura política”. Maria de Lourdes Pintasilgo busca em Paulo Freire as bases desse projeto educacional capaz de pensar a autonomia do cidadão, sua consciência cívica e sua vida política e social. Desse modo, à indissociabilidade entre ética e política se junta um projeto educador, percebido nas entrelinhas desse primeiro capítulo, e pouco explorado por Carrilho.

O segundo capítulo — A emergência de um novo paradigma como condição para uma governação ético-política — trata, basicamente, da mudança do “paradigma do progresso” para o “paradigma da qualidade de vida”. Essa proposta se inicia com a apresentação daquilo que Maria de Lourdes Pintasilgo chama de “tempo da vergonha”: há progresso, conquista da ciência, aumento da economia mundial e, mesmo assim, ainda há tantas perturbações aos sistemas de suporte da vida. O “tempo da vergonha” é um diagnóstico do final do século XX e início do XXI e, além disso, deve fazer cair o mito do desenvolvimento como um progresso ascendente e que é, na maioria das vezes, um progresso econômico. Propondo a mudança, Maria de Lourdes Pintasilgo afirma a importância do outro para que haja relação ética e, nesse sentido, torna evidente a importância do cuidado: consigo, com as coisas e com os outros. Essa ideia de cuidado é tirada da filosofia de Heidegger, que, além disso, também contribui decisivamente para a caracterização do ser humano como ser relacional, um ser-com-os-outros-no-mundo. Para além de Heidegger, no entanto, Pintasilgo faz convergir o cuidado à dimensão ético-política.

A mudança paradigmática se inicia quando se rompe com o conformismo e com o consenso. Eles são os dois inimigos da mudança: o primeiro por resignar-se com o que está dado e o outro por gerar conforto em vários aspectos, impedindo a mudança, negando-a, na verdade. Para tanto, Carrilho traz aquilo que Pintasilgo denominou como “teoria das brechas”: entrar pelos espaços que são oferecidos e intervir substancialmente no sistema, causando a mudança. A mudança paradigmática, por mais difícil que pareça, nunca deixa de ser realizável para Maria de Lourdes Pintasilgo, que, com isso, resgata politicamente a ideia de utopia, não como algo irrealizável, mas como plenamente realizável desde que seja pensada como horizonte. Trata-se, pois, de olhar para o futuro ao qual a política caminha a partir das decisões adequadas tomadas no presente. Assim, a “qualidade de vida” aparece como uma “utopia política” realizável integralmente: “qualidade de vida é proporcionar patamares mínimos de existência digna, considerados como direitos, uma vez que possibilitam a autossuficiência e independência do indivíduo” (CARRILHO, 2019, p.73). Note-se: o novo paradigma político deve ter como objetivo a autossuficiência e a independência do indivíduo. Para tanto, Pintasilgo propõe um novo contrato social, pautado não mais na subordinação, mas numa comunidade livre e que traz as seguintes características: a instauração de mecanismos de regulação, isto é, uma ética regulatória; uma cidadania com intervenção de homens e mulheres, donde a necessária consciência cívica; e uma soberania alargada e responsável, na qual poder, liberdade e responsabilidade são, de fato, correlatas.

O terceiro capítulo — Cuidar o futuro: fundamento da ética global e imperativo humano — fala sobre a proposta de uma “ética global” a partir daquilo que Pintasilgo chamou de “cuidar o futuro”. O lema traz como seus dois principais objetivos “humanizar a política e possibilitar uma existência digna” (CARRILHO, 2019, p.79). Essa “ética global” proposta por Pintasilgo, ao ser “holística, consequencialista, da responsabilidade e do cuidado” (CARRILHO, 2019, p.81), faz convergir o pensamento de Heidegger e Jonas ao seu projeto ético-político. Além disso, ela ainda propõe alterações fundamentais às éticas tradicionais: o sujeito ético deixa de ser o indivíduo e passa a ser o coletivo, o objeto ético deixa de ser estritamente o humano e passa a abarcar a natureza, a ação moral deixa de estar pautada na intenção e passa a remeter às (possíveis) consequências da ação, a dimensão temporal da ética deixa de avaliar a ação no imediato de sua realização para “se entender que importam as repercussões a médio e longo prazo” (CARRILHO, 2019, p.83). Assim, uma “ética global” está posta porque os problemas se tornaram globais tanto pela extensão quanto pela duração que a ação humana passou a ter. Essa “nova ética” deve, primeiramente, questionar a ação a ser realizada. O papel regulador da ética provém do caráter questionador da filosofia, atestando a importância desta para a “nova política”. Desse modo, a “ética global” de Pintasilgo questiona e regula: “nem tudo o que é cientificamente exato ou tecnologicamente viável é socialmente aceitável; é a pessoa humana [pensada na integridade com a natureza] a primeira e a última finalidade de toda decisão política” (CARRILHO, 2019, p.87). Carrilho, ao final desse capítulo, traz um importante esclarecimento: a ética global proposta por Pintasilgo não é uniforme, tampouco pautada num denominador comum. Ela é a descoberta de um núcleo dos valores éticos compartilhados pelos grandes sistemas do pensamento.

O quarto capítulo — Cuidado e responsabilidade como pilares do agir ético-político — se propõe a mostrar a direta influência de Heidegger e Jonas no pensamento ético-político de Maria de Lourdes Pintasilgo. Carrilho inicia mostrando como os termos “cuidado” e “responsabilidade”, principais contributos dos filósofos mencionados, passam a fazer parte do vocabulário de Pintasilgo. Interessante destacar que Carrilho, nesse momento, dedica-se a apresentar o “cuidado” heideggeriano e a “responsabilidade” jonasiana em suas devidas conjunturas. Desse modo, a primeira divisão do capítulo — O cuidado como fundamento ontológico do ser humano — traz uma abordagem geral do cuidado no contexto de Ser e tempo, apresentando-o como caracterização ontológica do ser humano, concretizando-se como ocupação e solicitude. Mesmo levando a noção de cuidado para além da caracterização ontológica apresentada por Heidegger, Pintasilgo concorda estritamente com ele em um aspecto decisivo, como mostra Carrilho: “o cuidado é intenção originária, abertura a si e aos outros” (CARRILHO, 2019, p.94). Carrilho procede da mesma maneira com Jonas na segunda parte do capítulo — A responsabilidade como exigência da condição humana de ser-com. Aí a autora dá destaque ao “imperativo categórico da responsabilidade”, próprio de Jonas e apropriado por Pintasilgo. Além disso, apresenta também a responsabilidade a partir de uma tripla caracterização: enquanto sentimento, enquanto dever-ser e enquanto condição da ação causal. Carrilho perpassa, de fato, o núcleo edificante do princípio da responsabilidade de Hans Jonas, mostrando, ao final, como Pintasilgo o faz convergir à “nova ética global”, logo, à “nova política”.

O capítulo final — O legado de Maria de Lourdes Pintasilgo — não é, como a própria autora afirma, uma conclusão. Trata-se de uma retomada do caminho percorrido, fazendo uma síntese das teses apresentadas e apontando o legado deixado por Maria de Lourdes Pintasilgo. Nesse sentido, trata-se de retomar, primeiramente, os pontos apropriados por Pintasilgo de Heidegger e Jonas para, à sequência, mostrar como a temática do “tempo futuro” deve sua fundamentação também a eles. Para Pintasilgo, o futuro é o horizonte da ação ética, ou seja, a vida está sempre em construção, logo, nunca há uma sociedade plenamente realizada. Daí a importância dos governos pensarem a curto, médio e longo prazo: “à fluidez do tempo, é preciso responder com o exercício da decisão responsável. […] Com os ‘pés’ no presente e os ‘olhos’ no futuro, assim deve ser o ser humano responsável” (CARRILHO, 2019, p.115). Em suma: trata-se de agir a partir do local em que se vive e pensar desde uma perspectiva global. Aos governos competem realizar uma ação que pense a longo prazo e implementar um projeto com metas, prazos, métodos e regras para a execução. Não se trata de fazer apenas vigorar leis, mas de torná-las factíveis, avaliáveis e fundadas na verdade e na vontade de saber, “efetivada através do diálogo com o povo, com os diversos saberes e do diálogo interno no seio do sistema governativo” (CARRILHO, 2019, p.119).

Por fim, por cumprir muito bem o papel de ser uma dupla introdução, o texto de Marília Rosado Carrilho não é somente um comentário, mas, na verdade, um condutor até ao pensamento de Maria de Lourdes Pintasilgo. Seguir o percurso dessa obra, à qual se recomenda a leitura, é, de fato, perceber-se introduzido ao e no pensamento de Pintasilgo e, ao mesmo tempo, sentir-se impulsionado para além dos comentários aqui postos pela autora, permitindo-se encontrar, confrontar e discutir com os textos da própria Maria de Lourdes Pintasilgo.

Luís Gabriel Provinciatto – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil / Universidade de Évora, Évora, Portugal. Mestre em Ciências da Religião. E-mail: [email protected]

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A aventura – AGAMBEN (SO)

AGAMBEN, Giorgio. A aventura. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Sofia, Vitória, v.8, n.2, p.232-236, jul./dez., 2019.

A tradução das obras de Giorgio Agamben (1942) para o idioma português é significativa para o avanço dos estudos acerca do pensamento desse filósofo contemporâneo que se põe a discutir temas de filosofia, religião, política, direito, economia, cultura. A diversidade temática, característica que perpassa as obras de Agamben, implica possíveis diferentes matizes através das quais se pode aproximar e abordar suas obras: elas não são um domínio exclusivo da filosofia, sendo discutidas também pelas ciências sociais e pelos braços que delas derivam, pela ciência da religião e pela teologia, pela ciência política e pelo direito. Isso é possível porque o conteúdo trazido por Agamben está vinculado à interpretação dos problemas contemporâneos, que, por sua vez, exigem distintas abordagens para que sejam compreendidos em sua integralidade. A aventura ( L’avventura ), obra originalmente publicada na Itália em 2015, não foge a essa caracterização geral.

Trazendo como tema central a aventura, a obra está organizada em cinco capítulos, seguidos de um posfácio, próprio da tradução brasileira, assinado por Davi Pessoa. Aventurar-se : esse é o título do posfácio, que, de acordo com nossa perspectiva, deveria ser a primeira parte da obra a ser lida por dois motivos. Primeiro, ele situa o leitor quanto à arqueologia, método muito caro a Agamben e utilizado pelo autor em uma perspectiva particular. A adequada compreensão da metodologia de investigação implica uma leitura menos propensa a equívocos interpretativos e, além disso, mostra que o método arqueológico não é utilizado na investigação do passado pelo passado, pois para o filósofo importa fazer confluir passado e presente. Conforme indica Pessoa, é preciso “saber viver o embate entre presente e passado para desativar as amarras do chronos , produzindo uma transformação por dentro da temporalidade linear através do uso errático do anacronismo” (PESSOA, 2018, p. 70). Segundo, o posfácio mostra que A aventura não é uma obra sobre um tema aleatório: justifica-se a realização de uma arqueologia da aventura no contexto das investigações de Agamben já publicadas. Esse é outro mérito do posfácio: trazer, mesmo que brevemente, outras obras de Agamben para mostrar a relevância de uma abordagem sobre o tema da aventura. Aí são citadas Signatura rerum: sobre o método (Boitempo, 2019), Ideia da prosa  (Autêntica, 2012) e Infância e história: destruição da experiência e origem da história (Ed. UFMG, 2012). O posfácio ainda faz notar que ao tema da aventura está implícito o da história e o da linguagem, logo, o do surgimento do homem enquanto ser falante e histórico. Ao tema da aventura, então, está vinculado o da antropogênese, que, por sua vez, interessa a cada humano particularmente, pois diz respeito à sua condição de vivente. O posfácio, assim, traz e faz uma adequada introdução à obra no contexto que lhe é próprio.

Demônio : esse é o título do primeiro capítulo. Conforme indica a nota de tradução, o termo original utilizado por Agamben é demone , que, em italiano, guarda uma relação com o termo grego daímon . Note-se, então: a relação aqui pretendida é com a tradição grega e com o significado de daímon , que denota o caráter divino (transcendente) de um chamamento, tal qual acontece com Sócrates, por exemplo. Mantendo essa relação com um aspecto divino/transcendente, Agamben inicia sua obra fazendo menção às Saturnais de Macróbio e para o fato de que nelas se narra um banquete onde uma das personagens atribui aos egípcios a crença de que o nascimento de cada homem é presidido por quatro divindades: Daimon (Demônio), Tyche (Sorte), Eros (Amor) e Ananche (Necessidade). Cada homem, em vida, deve pagar o seu tributo a cada uma dessas divindades e “o modo como cada um se mantém em relação com essas potências define a sua ética” (AGAMBEN, 2018, p. 12). É a essas divindades que Goethe, em Palavras originárias ( Urworte ) (1817), tenta pagar seu débito, acrescentando-lhes uma quinta: Elpis (Esperança). A leitura aí realizada por Agamben mostra que Goethe paga seu tributo somente a uma divindade, Daimon . O poeta tem consciência de sua fuga frente à responsabilidade de pagar tributo a cada uma das divindades e, por isso, acrescenta uma quinta, Elpis , que, de acordo com Agamben, nada mais é do que um disfarce de Daimon . Assim, Goethe mantém-se fiel a uma única divindade e espera dela a salvação. O capítulo se conclui com uma citação a um aforismo de Hipócrates no qual se encontram cinco palavras-chave: vida ( bios ), arte ( techne ), ocasião ( kairos ), experiência ( peira ) e juízo ( krisis ). De acordo com Agamben, essas cinco palavras guardam uma “secreta correspondência” com as divindades de Macróbio e Goethe. Aí está em “jogo a breve aventura da vida humana” (AGAMBEN, 2018, p. 23).

Aventure (em francês): esse é o título do segundo capítulo. Aqui Agamben recorre à literatura trovadoresca para falar da aventura, o que torna A aventura próxima de uma das primeiras publicações de Agamben, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental (Ed. UFMG, 2007). Tal proximidade se nota, sobretudo, pela lida com obras de poetas trovadores, revelando, assim, sua importância para o pensamento de Agamben como um todo. É nesse capítulo que se inicia propriamente uma arqueologia da aventura. Trata-se, porém, não de uma arqueologia cronológica, mas kairológica, pois o que interessa ao autor é ir em direção à origem da palavra na condição de evento. Para tanto, importa compreender duas identificações realizadas ao longo do capítulo. A primeira é entre cavaleiro e poeta: a procura daquele por aventura é a mesma deste. O poeta, assim, narra-se no poema. Dessa maneira, não é possível pensar a aventura sem pensar na implicação de um “eu”. Não se trata, porém, de tomar a aventura como um objeto contraposto ao sujeito: não há antecedência de um ou outro aqui, tampouco a identificação do “eu” com um “sujeito”. A partir dessa primeira identificação, Agamben afirma: “a aventura é para o cavaleiro [logo, para o poeta] tanto encontro com o mundo quanto encontro consigo mesmo e, por isso, fonte ao mesmo tempo de desejo e de espanto” (AGAMBEN, 2018, p. 29). A segunda identificação é entre evento e narração: o que se escreve é a narrativa, mas esta coincide com a aventura histórica, de tal modo que “aventura e palavra, vida e linguagem se confundem” (AGAMBEN, 2018, p. 32).

É com o exemplo de um poema de Maria de França que Agamben prossegue a arqueologia kairológica da aventura. O que aí surge em palavra é aventura e, ao mesmo tempo, verdade: verdade não no sentido apofântico da lógica, isto é, como coincidência entre evento e narrativa, mas verdade como advir. Assim, “aventura e verdade são indiscerníveis, porque a verdade advém e a aventura não é senão o advir da verdade” (AGAMBEN, 2018, p. 34). Outro exemplo por ele utilizado é o da identificação da aventura com uma mulher, Frau Âventiure : aqui a intenção de Agamben é fazer notar que a aventura não é algo que preexiste à história narrada. A aventura é a narrativa e está viva nela e através dela, sendo, por isso, o próprio evento da palavra. Se há uma identificação notável entre evento e narrativa, então a aventura não pode ser somente um termo poetológico, mas deve também possuir um significado ontológico: “se o ser é a dimensão que se abre para os homens no evento antropogênico da linguagem, se o ser é sempre algo que ‘se diz’, então a aventura tem certamente a ver com uma determinada experiência do ser” (AGAMBEN, 2018, p. 38). O final do segundo capítulo aponta para uma interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger que será levada a cabo no quarto capítulo.

O terceiro capítulo — Eros — inicia-se com uma advertência: antes de tentar definir essa experiência do ser, deve-se “limpar o terreno das concepções modernas da aventura, que correm o risco de obstruir o acesso ao significado originário do termo” (AGAMBEN, 2018, p. 39). Essa advertência servirá de guia para os apontamentos críticos que Agamben irá fazer a respeito da concepção de aventura de Hegel, Georg Simmel e Oskar Becker, tidas por ele como concepções modernas, nas quais se encontra “a ideia de que ela [a aventura] seja algo estranho — e, portanto, excêntrico e extravagante — com relação à vida ordinária” (AGAMBEN, 2018, p. 41). O capítulo se encerra com uma crítica a Dante Alighieri: para este autor do medievo a vida do homem não é algo como uma aventura. Isso, de acordo com Agamben, significa uma traição consciente do sentido próprio do termo no período medieval, ou seja, ao não utilizar a aventura para narrar as experiências vividas pelos cavaleiros, Dante está afirmando que a vida não é tal qual a aventura. É a isso que Agamben se contrapõe, mostrando, assim, que a sua concepção é mais próxima dos poemas dos trovadores, onde há identificação de vida e aventura, do que dos modernos, onde a aventura é algo excêntrico.

O quarto capítulo — Evento — é onde Agamben apresenta a sua ideia do que seja aventura. Deve-se notar aqui a importância do segundo capítulo para que o quarto seja bem compreendido: estando mais próxima da concepção de aventura das trovas medievais, a ideia de aventura agambeniana não se identifica com elas, porém. Os apontamentos críticos do terceiro capítulo servem de baliza para a posição assumida por Agamben: nem medieval, nem moderna, mas em diálogo com ambas. Para compreender a sua posição é preciso estar atento a dois pontos característicos desse capítulo. Primeiro: a aventura sempre se dirige a um quem , que, por sua vez, não preexiste à aventura como um sujeito. Para Agamben, a aventura é o que se subjetiviza. Disso decorre a afirmação de que “eu”, “tu”, “aqui” e “agora” são categorias de locução e não categorias lexicais, isto é, são categorias que não podem assumir/possuir uma definição prévia definitiva. O evento, assim, é sempre evento de linguagem e a aventura se torna indissociável da palavra que a anuncia. Há, de fato, uma proximidade entre evento, aventura e linguagem. Por isso, a aventura/evento não exige uma decisão/escolha, logo, nela não há um problema de liberdade. É só assim que o vivente pode se apropriar do evento, ou melhor, ser apropriado por ele. Essa é uma tese que Agamben busca em Heidegger, seu principal interlocutor nesse momento da obra: o homem não possui a linguagem, mas a linguagem o possui. O homem serve-lhe de morada. A interlocução com Heidegger é o segundo ponto característico desse capítulo. Afirmando a ocorrência simultânea de apropriação de ser e homem que acontece no evento/aventura, Agamben coloca em questão o tornar-se humano do homem vivente: “o vivente se torna humano no instante e na medida em que o ser lhe advém” (AGAMBEN, 2018, p. 57). O evento/aventura é antropogênico e ontogênico, pois nele coincide o tornar-se falante do homem com o advento do ser à palavra e da palavra ao ser. Há aí uma analogia entre aventura e Ereignis , termo chave do pensamento tardio de Heidegger. Agamben, na verdade, chega a sugerir que a tradução mais adequada de Ereignis é aventura, deflagrando, com isso, seu aspecto ontológico.

A aventura tem a ver, então, com um vivente tornar-se humano, isto é, falante, o que guarda relação direta com duas obras de Agamben, a saber, O aberto: o homem e o animal (Civilização Brasileira, 2017), na qual o que está em jogo é como o homem se diferencia do animal, e Ideia da prosa (Autêntica, 2012), na qual o tema central é a linguagem e a sua indissociabilidade do pensamento. Descobre-se, desse modo, o que está em causa em A aventura : o evento antropogênico, que, em si, “não tem história e é, como tal, inapreensível” (AGAMBEN, 2018, p. 60). Esse é o principal resultado da arqueologia kairológica: como não pode ser definido definitivamente, o evento antropogênico (e ontogênico) é sem história .

Elpis : esse é o título do quinto capítulo. Aqui o autor volta a falar do significado de Demônio e, com isso, regressa ao ponto inicial da obra, fechando-a tal qual um círculo. Já não fala mais de Goethe, mas o exemplo lá utilizado pode ser aqui percebido nas entrelinhas. Por isso, interessa entender a importância do manter-se fiel ao demônio: “o demônio é a nova criatura que as nossas obras e a nossa forma de vida colocam no lugar do indivíduo que acreditávamos ser segundo nossos documentos de identidade” (AGAMBEN, 2018, p. 62). Daí a importância de Goethe: a vida poética é aquela que se encontra como tal e, com isso, rompe com uma pseudo-identidade. “Isso significa que ao demônio pertence constitutivamente o momento da despedida — que, no momento em que o encontramos, devemos nos separar de nós mesmos” (AGAMBEN, 2018, p. 62). No limite, o exemplo inicial de Goethe orienta toda a reflexão de Agamben. O demônio não é um deus, mas semideus, isto é, sempre possibilidade, potência, e nunca atualidade do divino. A potência que regenera, ou seja, liga-rompendo, é Eros , amor, à qual está ligada a esperança, Elpis , trazida por Goethe como a quinta divindade, mas que, na verdade, se mostra como uma outra face do Demônio .

Desse modo, em A aventura, o que está em causa para Agamben não é a mera arqueologia de um termo, abordando-o desde uma perspectiva que faz implicar filosofia e literatura. Ao realizar uma arqueologia da aventura, Agamben traz à tona uma nuance específica do evento antropogênico e ontogênico do tornar-se humano: o fato dele ser sem história . Desde nossa perspectiva, esse é o ponto culminante do texto e, justamente por isso, tem-se, a partir dele, uma chave de leitura muito interessante fornecida pelo próprio Agamben contra concepções historicistas que se acercam de sua obra. Por fim, recomenda-se a leitura de A aventura , pois somente assim o leitor ficará a par da complexidade e da qualidade da discussão aí trazida por Agamben.

Luís Gabriel Provinciatto – Doutorando em Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Brasil. E-mail: [email protected]

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O aberto: o homem e o animal – AGAMBEN (SY)

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2 ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Synesis, Petrópolis, v.10, n.2, p.181-187, ago./dez., 2018.

As obras de Giorgio Agamben (1942) vêm ganhando espaço na academia brasileira não só a partir da tradução das mesmas, mas também a partir da publicação de trabalhos, da realização de eventos e da organização de grupos de pesquisa que se propõem a debater as temáticas suscitadas por este autor. Pode-se afirmar, na verdade, que as obras de Agamben estão sendo lidas sob diferentes matizes, tais como o da filosofia, da política, do direito, da economia, da teologia e das ciências da religião. O conteúdo trazido por Agamben permite essas diferentes abordagens porque está intimamente associado à interpretação dos problemas presentes na contemporaneidade. O diferencial das obras de Agamben, no entanto, está na capacidade de realizar uma arqueologia da contemporaneidade, de modo que sua análise não fica somente na superfície do problema: o que lhe interessa, de fato, é buscar o cerne do problema, ou seja, sua intenção está muito mais direcionada à compreensão do próprio problema do que propriamente buscar uma resposta para o mesmo. Essa é uma característica fundamental para se compreender as obras de Agamben de maneira geral, à qual se associam os múltiplos matizes de interpretação: eles se justificam porque os problemas da contemporaneidade estão fundados, basicamente, sob o eixo filosofia, teologia, direito, isto é, sob o pensar (razão), crer (religião) e legislar (lei).

A obra O aberto: o homem e o animal não está cindida dessa dinâmica. Ela está assim estruturada: vinte capítulos, seguidos da bibliografia utilizada pelo autor. O principal objetivo da obra: compreender como é possível distinguir o homem do animal, a humanidade da animalidade. Note-se: seu propósito está muito mais direcionado à compreensão de como é possível afirmar tal distinção do que propor um parâmetro para que ela seja realizada. Nesse sentido, o método arqueológico de investigação permite ao autor um regresso às fontes da distinção. Contudo, o olhar de Agamben não está no passado, mas no contemporâneo: trata-se de uma arqueologia da contemporaneidade. O que isso significa? A princípio: o problema da distinção homem-animal não é algo superado, de modo que buscar compreendê-lo já é um exercício válido para se compreender o homem contemporâneo. Esse é o principal pressuposto de qual parte Agamben: a distinção entre homem e animal não é algo de todo resolvida.

Nesse sentido, a obra pode ser dividida em quatro partes: a primeira abarca o trecho entre os capítulos um e três, a segunda se dá entre os capítulos quatro e onze, a terceira entre o doze e o dezesseis, a quarta entre o dezessete e o vinte. Pode-se dizer, na verdade, que tal reorganização da obra pode ser realizada mediante quatro objetivos específicos propostos por seu autor: 1) expor seu pressuposto principal, a saber, a distinção entre humanidade e animalidade não é algo de todo resolvido; 2) a dificuldade de se afirmar algo como o ser humano; 3) investigar como é possível distinguir o homem do animal; 4) mostrar de maneira crítica os desdobramentos da afirmação da distinção entre homem e animal.

Interessa ainda perceber que as quatro partes possuem interlocutores diferentes: a primeira está em interlocução com uma iluminura presente em uma Bíblia hebraica do século XIII, na qual se “representa o banquete messiânico dos justos no último dia” (AGAMBEN, 2017, p. 10)1. A segunda parte está em interlocução com a possibilidade de distinguir o homem do animal: aqui se percebe com maior nitidez o uso do método arqueológico. Nessa segunda parte ainda se vê que, pelo fato de a discussão de Agamben estar direcionada à dificuldade de se fixar uma definição, há uma interlocução com vários autores, dos quais se destaca a figura de Aristóteles. A terceira parte se põe em interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), do qual Agamben foi aluno em 1966 e 1968, nos seminários sobre Heráclito e Hegel. A interlocução com Heidegger se dá a partir da problemática da linguagem. Ela é trazida por Agamben ao final da segunda parte da obra como o ponto nevrálgico da distinção entre o homem e o animal. A quarta parte se inicia com o levantamento de alguns resultados da obra e conclui apontando para o fato de ainda se continuar pensando o homem como um ato de separação.

Atenta-se aqui para o fato de que essa divisão em quatro partes é assumida por essa resenha como uma chave de leitura para a obra O aberto: o homem e o animal. Abaixo, então, seguem alguns apontamentos a respeito dessas quatro partes, mostrando suas principais abordagens e como elas estão interligadas, perfazendo, assim, a obra como um todo.

Como dito acima, o principal objetivo da primeira parte da obra é apresentar a discussão a respeito da cisão entre animalidade e humanidade como um ponto nada pacífico. À interlocução com a iluminura do século XIII se soma a pergunta: como pensar o problema da cisão humanidade-animalidade nos dias atuais? A iluminura destacada pelo autor traz animais em formas humanas como sendo os justos que participam do banquete messiânico. A hipótese levantada por Agamben a partir disso: o artista tenta retratar uma reconciliação entre o homem e sua natureza animal (AGAMBEN, 2017, p. 12). Aqui se realiza um salto: Agamben traz, mesmo que brevemente, as figuras de Georges Bataille (1897-1962) e Alexander Kojève (1902-1968), mostrando diferentes modos de compreender (e, talvez, responder) a questão sobre o que resta do homem após o fim da história. O que é e como se dá o fim da história, porém, não é algo com o qual Agamben se ocupa aqui. Na verdade, o leitor não irá encontrar nada explícito a respeito disso; há somente indicações indiretas, tal como se pode ver mais adiante no capítulo dezesseis – Animalização (AGAMBEN, 2017, p. 119-122).

Note-se: a primeira parte da obra não busca esclarecer a cisão entre homem e animal, mas mostrar que, enquanto problemática, ela ainda é vigente. Dessa maneira, a primeira afirmação a respeito do homem é que ele existe de maneira histórica somente enquanto mantém essa tensão entre a humanidade que pretende afirmar e a animalidade que pretende negar. Leia-se: “ele pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominar e, eventualmente, destruir a sua própria animalidade” (AGAMBEN, 2017, p. 24). Aqui se dá a passagem da primeira para a segunda parte da obra. Ela acontece quando se nota nas entrelinhas do texto a presença de uma pergunta: o que torna possível a afirmação da humanidade mediante a negação da animalidade?

A segunda parte do texto se inicia com uma constatação fundamental: o conceito de “vida” é aquilo que permanece como indeterminado na história do Ocidente, devendo, pois, ser sempre de novo articulado. Agamben destaca o texto De anima de Aristóteles como um momento decisivo: nele acontece a divisão entre os seres animados e inanimados. A partir de tal divisão se fazem outras: vida vegetal, animal, humana. O que é “vida”, porém, permanece sem definição. Define-se a vida humana mediante a divisão. Aí está o interesse de Agamben: pensar a afirmação do humano a partir da divisão, isto é, da separação com o animal. Pensar a separação permite, pois, pensar também a proximidade. Nesse sentido, se a noção de “vida” deve ser constantemente conquistada –definida sempre de novo, na verdade –, então, a arqueologia como método coincide com uma antropogênese. Em outras palavras: fazer uma arqueologia da vida é compreender o advento do homem se afirmando humano, logo, negando a animalidade. A arqueologia da vida é antropogênese.

Os capítulos cinco e seis se propõem a discutir a noção de identidade a partir de tratados medievais: há aí nas entrelinhas a tentativa de mostrar que a decisão a respeito do humano e do inumano – palavra que aparece pela primeira vez no texto – se aproxima, e muito, do conhecimento experimental de um campo de concentração. Esse ponto é decisivo para que no interior da segunda parte da obra apareça a dificuldade de uma classificação do que é o homem: “Homo sapiens não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente definida: é, sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento do humano” (AGAMBEN, 2017, p. 48). O que é o humano, então? É um animal que, para ser humano, precisa se reconhecer em um não-humano. A pergunta ganha nova forma: o que distingue o humano do não-humano? A linguagem. Ela é a marca do humano (AGAMBEN, 2017, p. 55-63).

Decisivo, no entanto, é o modo como Agamben compreende a linguagem: não um dado natural, mas uma produção histórica. A linguagem, portanto, não pode ser associada nem à natureza animal, nem à natureza humana, dado que é uma construção. Suspender a linguagem significa, pois, suspender a diferença entre homem e animal. Pensar um homem pré-linguístico é pensar o animal, ou seja, a afirmação do humano implica em ter o próprio humano mesmo como pressuposto. Essa “máquina antropológica” (AGAMBEN, 2017, p. 61) funciona necessariamente por meio de uma inclusão e exclusão. A distinção entre humano e animal possui uma “zona de indiferença”. A segunda parte da obra caminha para seu fechamento afirmando que o animal é aquele que consegue sobreviver em um mundo ambiente (Umwelt), mas não se decide por ele.

O humano, assim, é aquele capaz da decisão, sempre rearticulada e atualizada. Aqui se faz a passagem para a terceira parte da obra, na qual o principal interlocutor será Heidegger. De antemão se adverte: Agamben não faz comentários à filosofia de Heidegger. Trata-se, na verdade, de perceber que Agamben está desenvolvendo sua obra de maneira autônoma, permitindo-se encontrar com Heidegger. A partir disso, pode-se dizer que há diálogo, confronto, tessitura de críticas, concordâncias e discordâncias. Querer encontrar em O aberto: o homem e o animalum comentário a Heidegger é reduzir a amplitude e a originalidade da obra.

Interessa ainda perceber o seguinte a respeito dessa terceira parte: o encontro com Heidegger se dá n]ao só a partir da noção de linguagem como uma construção histórica, mas também a partir da noção de tédio como uma disposição afetiva (Stimmung) própria do homem. Dessa maneira, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão – preleções ministradas por Heidegger em 1929-1930 – é a principal obra do filósofo alemão mencionada, sendo decisiva para Agamben porque a partir dela o autor pode afirmar, de fato, que o aberto diferencia homem e animal: “o aberto nomeia o desvelamento do ente, somente o homem, e mais, apenas o olhar essencial do pensamento autêntico, o pode ver” (AGAMBEN, 2017, p. 92). E mais adiante: “o lugar dessa operação é o tédio” (AGAMBEN, 2017, p. 99).

O capítulo catorze – Tédio profundo – permite perceber que Agamben dá especial atenção à esfera da decisão, justamente porque nela está implicada a possibilidade. Disso se pode concluir que o aberto é o local da possibilidade. A possibilidade de escolha é o que diferencia homem e animal. Ter a possibilidade de escolha é estar no aberto. Estar aberto a quê, porém? A um fechamento, pois o animal não está no aberto: “aquele que observa no aberto vê apenas um fechar-se, apenas um não-ver” (AGAMBEN, 2017, p. 109). Essa abertura a um fechamento mostra, de acordo com Agamben, a luta entre o homem e o animal. Dessa maneira, estar no aberto não significa ser na condição humana de maneira decisiva: estar no aberto é ter a possibilidade da decisão.

Agamben pretende mostrar, assim, que algo como o humano só pode advir na medida em que pode ser escolhido. Erradicar a animalidade é, pois, um fechar-se ao fechamento. O mesmo vale para a tentativa de uma humanização integral do animal que é o homem. A tensão entre animal e homem precisa ser mantida para que o aberto seja, de fato, o lócus do humano. A partir desse ponto a obra caminha para seu fechamento.

O capítulo dezessete inicia a quarta parte da obra fazendo um levantamento de alguns resultados até aqui alcançados. Percebe-se que esses resultados estão aí postos muito a partir da interlocução com Heidegger, o que leva a concluir que o filósofo alemão é uma peça decisiva para se compreender a obra O aberto: o homem e o animal como um todo. O capítulo dezoito – Entre – entra numa breve interlocução com Walter Benjamin (1892-1940) e está intimamente associado ao capítulo subsequente, no qual Agamben traz a imagem de duas pinturas –Ninfa e pastor e As três idades–para discutir, também de modo breve, a sexualidade. O último capítulo aponta que deixar ser o animal significa deixá-lo ser fora do ser, ou seja, deixar ser o animal significa estar em uma zona de não-conhecimento, que, por sua vez, “está para além tanto do conhecer quanto do não-conhecer […]. Mas aquilo que é deixado, assim, ser fora do ser não é, por isto, negado ou removido, não é, por isto, inexistente. É um existente, um real, que está para além da diferença entre ser e ente” (AGAMBEN, 2017, p. 743). Agamben retorna, ao fim, à iluminura com a qual se iniciou a obra: ela talvez aponte para a superação da máquina antropológica.

Afirma-se, então: a divisão aqui apresentada da obra O aberto: o homem e o animal em quatro partes pretende ser justamente uma chave de leitura, uma vez que, como se percebe pela leitura da obra, é difícil querer lê-la a partir de outro ponto específico que não o seu início. A divisão aqui apresentada não pretende tornar a obra mais “fácil” de se compreender, mas tão somente situar o leitor que se sinta mais próximo de algum capítulo específico. Por fim, recomenda-se a leitura dessa obra, pois somente assim o leitor irá se deparar com a profundidade da discussão trazida por Agamben, bem como irá perceber porque este pensador italiano suscita discussões em diferentes áreas. As obras de Agamben trazem, de fato, uma riqueza epistemológica que também pode ser percebida em O aberto: o homem e o animal seja respeito ao método de investigação, seja respeito ao conteúdo aí abordado. Além disso, O aberto: o homem e o animal pode servir como porta de entrada para a leitura e investigação das demais obras desse autor que vem ganhando espaço nas discussões acadêmicas brasileiras.

Nota

1 A presente edição revista da tradução brasileira traz a iluminura destacada por Agamben no verso da capa. A iluminura foi impressa em cores, o que facilita ao leitor perceber algumas características destacadas por Agamben em seu texto.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2ª ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. 162p.

Luís Gabriel Provinciatto – Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8472704203242937. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Banalidade de Heidegger – NANCY (C)

NANCY, Jean-Luc- Banalidade de Heidegger. Trad. De Fernando Bernardo e Victor Maia. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 23, n. 1, Jan/Abr, 2018.

Luís Gabriel Provinciatto – Doutorando em Ciência da Religião – área de concentração: Filosofia da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com bolsa de financiamento Capes. Mestre em Ciências da Religião e licenciado em Filosofia pela PUC-Campinas. E-mail: [email protected]

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A filosofia e o cuidado da vida – BUZZI (C)

BUZZI, Arcângelo R. A filosofia e o cuidado da vida. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 1, p. 181-186, jan/abr, 2017.

A linguagem utilizada na obra não pretende esgotar o significado do que seja esse tal cuidado da vida, já anunciado no título, mas antes fazer notar a relevância de tal tema para a elaboração da própria tarefa fundamental do pensamento – pensar a vida –, também expressa no título sob o nome de filosofia. Nesse sentido, Buzzi não conceitua propriamente nem o que seja cuidado e nem o que seja filosofia, mas convida o leitor a traçar um caminho no qual ambos os termos estão conjugados. O modo de utilizar a linguagem, então, é fundamental, pois se trata de indicar sem determinar.

Além disso, a maneira simples com que são colocadas as palavras e as citações permite uma intimidade com a obra, realizando, de fato, a proposta de viabilizar um caminho. Engana-se, porém, o leitor que acreditar que na obra há uma linguagem simplista: a simplicidade da obra está em sua essencial preocupação com o fundamental de cada questão levantada, sendo o autor, dessa forma, objetivo e preciso em suas assertivas. Além do mais, o próprio autor se utiliza de grandes expoentes do pensamento, mostrando-os como vias possíveis para pensar os vários desdobramentos do cuidado da vida. Não há equívoco em afirmar: a obra serve tanto para aqueles que já são iniciados nessa dinâmica própria do filosofar quanto para introduzir, nessa tarefa, tantos outros que dela se aproximarem. Por isso, pode-se dizer que o autor é capaz de continuar um caminho, pois escreve àqueles que já estão inseridos na própria filosofia, bem como é capaz de convidar a esse caminho, viabilizando-o pela linguagem simples, fundamental e, acima de tudo, por permitir ao próprio leitor a tarefa de pensar. Leia Mais

Heidegger urgente: introdução a um novo pensar – GIACOIA JÚNIOR

GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Heidegger urgente: introdução a um novo pensar. São Paulo: Três Estrelas, 2013. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 1, p. 232-237, jan/abr, 2016.

Já há no Brasil uma imensidão de obras, quer originais em português, quer oriundas de traduções de outros idiomas, que se propõem a comentar, introduzir, explicar ou compreender o pensamento de Martin Heidegger (1889-1796). A obra de Oswaldo Giacoia Junior, publicada em 2013, encontra-se nessa lista e conta com algumas peculiaridades que dão a ela um destaque diante das outras. Isso não sem justificativa: há elementos que somente um bom leitor, intérprete e escritor conseguiria captar diante dos volumosos números das Obras completas (Gesamtausgabe) do filósofo alemão; uma leitura atenta e refinada e, sobretudo, um olhar filosófico, estão presentes nesse pequeno ensaio que leva como subtítulo “introdução a um novo pensar”. Desse modo, a presente obra de Giacoia conduz não somente a uma introdução ao pensamento de Heidegger, mas a um pensar filosofante com Heidegger.

Para um bom entendimento daquilo que aqui se propõe, é muito interessante apresentar a estrutura da referida obra: Introdução; O pensador do fim da metafísica; O primeiro Heidegger; A viravolta e a história da verdade do Ser; Como ler Heidegger; Conclusão. As divisões da obra, com certeza, possuem uma lógica baseada na estrutura do pensamento de Heidegger, o que, de fato, deve ser considerado. Porém, mudanças no trajeto de leitura serão propostas com o presente trabalho, bem como a intersecção de textos do próprio Heidegger para que, assim, o “pensar com Heidegger” ganhe maior clareza e, ao final do texto, tenha-se reais condições para construir um “novo pensar”, singular e autêntico. Deve- se destacar ainda que o foco maior do presente trabalho recai sobre a penúltima parte da obra acima referida, pelo fato de ela mostrar a grande erudição do autor. Leia Mais