Os Indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano (Sécs. XVI – XIX) – DOMINGUES et al (FH)

DOMINGUES, Ângela; RESENDE, Maria Leônia Chaves de; CARDIM, Pedro (orgs). Os Indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano (Sécs. XVI – XIX). Lisboa: Atlantica Lisbon Historical Studies. Centro de História da Universidade de Lisboa, CHAM – Centro de Humanidades (NOVA FCSH-UAc) e Programa de Pós-Graduação em História/Universidade Federal de São Joao del-Rei (PPGH-UFSJ), 2019. 364 p. Resenha de: ARAÚJO, Lana Gomes de. Protagonismos indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.486-492, jan./jun., 2020.

Em 2019, sob a organização de Ângela Domingues, Maria Leônia Resende e Pedro Cardim, foi publicado o livro Os Indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano (Sécs. XVI – XIX) composto por vários artigos de pesquisadores que entendem a sociedade colonial não só como um espaço dinâmico, mas complexo, diverso e criativo, onde o tratamento dado aos indígenas gerava uma pluralidade de respostas e das suas justiças frente à cultura jurídica da sociedade colonial da América espanhola e portuguesa.

Abrindo as discussões, Ailton Krenak denuncia as violências reais e simbólicas sofridas pelo povo Krenak ao longo dos séculos. Foram perseguidos, tiveram suas famílias escorraçadas, massacradas, despejadas, expulsas de suas próprias terras e perambularam por diversas regiões do Brasil. Situação agravada durante o regime militar, quando juntamente com outras etnias foram jogados em um Reformatório, sob a desculpa governamental de que precisavam ser reeducados, enquanto tomavam-lhes as suas terras. Terras que as famílias indígenas nunca desistiram.

Em Os Povos Indígenas, a dominação colonial e as instâncias de Justiça na América portuguesa e espanhola, Pedro Cardim discute os esforços dos próprios indígenas ao longo da história em se afirmarem enquanto grupo étnico. Apontando que o movimento indígena, a produção acadêmica mais recente desenvolvida pelos próprios pesquisadores indígenas, a aproximação da história com outras disciplinas, métodos, conceitos, assim como as técnicas de manuseio de fontes documentais e as influências do conceito de subaltern studies1, têm sido importantes ferramentas para “superação dos silêncios nada inocentes e mostrar a voz e o rosto dos ameríndios”2. (FISCHER, 2009 apud CARDIM, 2019, p.31)  Apesar dos avanços, Pedro Cardim destaca que é preciso estar atento ao “vocabulário da conquista” (CARDIM, 2019, p. 41), referindo-se aos termos comumente encontrados nos documentos coloniais como “índio”, “gentio”, “bárbaro” e outros. Uma vez que estes possuíam efeitos jurídicos diferentes dentro do cenário da América portuguesa e podiam significar manutenção ou perda de direitos, por exemplo.

Em Da ignorância e rusticidade: os indígenas e a inquisição na América portuguesa (séculos XVI-XIX), Maria Leônia Resende traz uma importante abordagem sobre a atuação do Tribunal da Inquisição e como a produção historiográfica sobre tratou o tema, apresentando uma luta ideológica entre as diversas facções religiosas da Europa na Idade Moderna: ora uma visão detratora por sua crueldade, ora pelo certo grau de misericórdia diante aos considerados ataques ao catolicismo.

Todavia a história institucional do dito Tribunal se deu no plural na Europa e nos domínios ultramar, ao ponto de podermos afirmar que houve Inquisições. E, os estudos das denúncias e processos têm mostrado as maneiras que a Inquisição lidou com as expressões das práticas religiosas, costumes e culturas indígenas tendendo, muitas vezes, em uma interpretação jurídica-canônica mais benevolente para as “populações desprotegidas”, fundamentada no uso do conceito “persona miserabilis” e da “ignorância (in)vencível”.

O conceito de persona miserabilis permeia o debate de outros pesquisadores, como o de Jaime Goveia, Maria Regina Celestino de Almeida, Hal Lagfur e de Pedro Cardim. Este último, inclusive, compreende que a classificação de miserabile garantia certa proteção aos indígenas, situando-os numa condição especial frente à Inquisição, aos tribunais ordinários, ou ainda, aos colonos, sustentadas por uma posição evangelizadora mais benevolente. Esse entendimento, de pessoas “miseráveis, ignorantes, pessoas rústicas”, fazia com que acreditasse que os indígenas eram incapazes de dar conta dos seus próprios erros, por não terem consciência plena do “pecado”.

As principais denúncias contra os indígenas fundamentavam-se em questões de feitiçaria, adivinhações, bigamia, blasfêmias, por comerem carne em dias proibidos e até por pequenos roubos, como foi o caso de Anselmo da Costa. Este, um jovem índio de 14 anos, confessou ter roubado pequenos adereços e pedaços de fita do berço do Menino Jesus para confeccionar uma bolsa de mandigas, a fim de se livrar dos perigos de mordidas de cobras e onças. O jovem passou 4 anos no cárcere, mas teve seu processo encerrado quando o Tribunal alegou sua capacidade de discernimento (RESENDE, 2019, p.113).

Em Sem medo de Deus ou das justiças (…), a professora Ângela Domingues analisou os “poderosos do sertão” através dos discursos do capitão-mor e governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado na Capitania do Grão-Pará e como eles estavam alinhados com a política pombalina. De acordo com ela, através da análise desse período administrativo é possível perceber as estratégias, alianças e negociações interétnicas, revelando situações em que os indígenas passaram a ser considerados infratores por não se enquadrarem nos projetos do Estado para a Amazônia e desafiarem a vontade dos poderosos da região.

Em Índios, territorialização e justiça improvisada nas florestas do sudeste do Brasil, Hal Langfur levanta uma interessante questão acerca da implementação da justiça no Brasil colonial imposta em prejuízo aos indígenas. Segundo ele, a legislação colonial mascarou uma realidade jurídica, retirou os índios das suas terras, legitimou o trabalho forçado etc., mas “os indígenas não aceitaram esta perseguição jurídica sem resistência” (HANGFUR, 2019, p.157).

Jaime Gouveia, em Os indígenas nos auditórios eclesiásticos do espaço luso-americano, debate sobre as relações envolvendo os povos indígenas e a justiça episcopal no período colonial, tema que gerou algumas generalizações equivocadas, sobretudo, por não ter existido no caso português um “direito canônico” como existiu na América hispânica.

No Brasil, os auditórios tinham alçada sobre todo o clero secular – excetuando alguns crimes (como os de lesa-majestade e disputas relativas aos bens da Coroa) – e leigos (membros da Capela Real e das ordens militares). E poderes quanto a matéria, ou seja, sobre a natureza dos delitos, abrangendo os pecados públicos, independente dos autores serem leigos ou eclesiásticos. Mas, não tinha competência para julgar as consideradas heresias indígenas.

Porém, com os índices populacionais nos territórios indígenas, as necessidades de evangelização esbarravam na escassez de estruturas necessárias a esse exercício, passando a exigir responsabilidades mais amplas. De todo modo, os processos judiciais contra os réus indígenas decorriam na mesma formalidade de praxe dos não-indígenas, com exceção do privilégio jurisdicional de miserabilidade, que era visto como concessão de uma graça do direito canônico aos indígenas.

No sétimo artigo, Maria Regina Celestino de Almeida apresenta uma nova versão de dois capítulos de seus livros publicados em 2005 e 20093, desenvolvendo uma relevante análise sobre a cultura política indígena e política indigenista no Rio de Janeiro colonial através das disputas jurídicas sobre as terras e a identidade étnica dos índios aldeados entre os séculos XVIII e XIX. Evidenciando o fato de que, para evitarem a perda total de suas terras, os indígenas passaram a assumir nitidamente a identidade de índios aldeados e súditos cristãos, assumindo uma posição de privilégios em relação aos negros e índios escravos (ALMEIDA, 2019, p. 221).

Isso porque, assumindo essa condição, podiam solicitar mercês, ter direito à terra, embora uma terra reduzida. Tinham direito ainda a não se tornarem escravos, embora obrigados ao trabalho compulsório. Por fim, o direito a se tornarem súditos cristãos, embora tivessem de se batizar e abdicarem de suas crenças e costumes. Sendo que as lideranças ainda tinham direito a títulos, cargos, salários e prestígio social, o que dentro de condições limitadas, restritas e opressivas, eram possibilidades de agir para valer o mínimo de direito assegurado por lei.

Como parte das investigações mais recentes, escrito em espanhol, o artigo de Pablo Ibáñez-Bonillo, Procesos de Guerra Justa en la Amazonía portuguesa (siglo XVII), aponta a influência indígena na construção das fronteiras coloniais, partindo da premissa de que a guerra justa é uma ferramenta para se explorar as relações de fronteira. Com isso, a construção de alteridades e a influência das dinâmicas indígenas na história colonial não podem ser vistas como um mecanismo de dominação, mas sim um processo mais amplo de negociação e resistência.

O texto do professor Juan Marchena e da Nayibe Montoya (2019) traz um valioso estudo sobre as justiças indígenas andinas e sua relação com a aprendizagem da cultura escrita. Os autores destacam que as sociedades originárias lutaram e lutam permanentemente pela independência, justiça, dignidade e necessidade de combater a pobreza, não se renderam, não se deixaram comprar, mesmo enquanto eram abatidos e destruídos. Sendo que, com a luta mantida durante os séculos até o presente, por suas terras, cultura e identidade, representam uma luta que deveria ser de todas e todos nós.

Por fim, o artigo de Camilla Macedo alude sobre a propriedade moderna e a alteridade indígena no Brasil entre meados de 1755-1862, partindo da análise da implementação do Diretório dos Índios e suas implicações para as questões de terra e propriedade privada, observando as rupturas e continuidades através das políticas indigenistas na transição da jurisdição eclesiástica para a secular, envolvendo os indígenas, administradores coloniais, religiosos etc.

Com esta obra, os autores dão continuidade ao relevante trabalho que o movimento indígena juntamente com os historiadores e antropólogos vêm desenvolvendo ao longo das últimas décadas. As reflexões contribuem para a percepção de que os homens e mulheres indígenas foram e continuam sendo protagonistas das suas próprias histórias através das suas ações, ressignificações e agenciamentos4 frente aos ditames da Coroa portuguesa.

As pesquisas apresentadas nos permitem refletir acerca dos regimes de memória5, trabalhados e discutidos por João Pacheco de Oliveira (2011), que construíram no Brasil imagens preconcebidas sobre os índios, definindo-os e limitando-os negativamente, condicionando o indígena exclusivamente ao passado colonial e estereótipos como de nomadismo, bravura ou de exuberante beleza extraído da literatura romântica.

Além de ressaltar as questões de estratégias e que interações proporcionadas pelos contatos interétnicos na realidade política colonial eram plurais, como fez a professora Maria Cristina Pompa (2001). E problematizar sobre a circularidade cultural entre os indígenas e os outros agentes coloniais, como fez Gláucia de Souza Freire (2013), ao apontar que os missionários religiosos se prevaleciam de práticas ritualísticas dos indígenas que eram consideradas “feitiçarias”, como o uso da jurema sagrada.

Os diálogos contrariam ainda a historiografia dita oficial que reservava aos indígenas um papel secundário e descarta antigas concepções sobre “índio puro”, “índio aculturado”, “resistência”, “aculturação”, embasados nas tentativas de reduzir a participação dos indígenas a um processo inevitável de extinção e desaparecimento. Sendo que os indígenas estão cada vez mais presentes nas questões políticas, se apropriando e ressignificando sua cultura e lutando pelo reconhecimento de seus direitos constitucionalmente garantidos após muita persistência do próprio movimento indígena.

Notas

1 O conceito de Subaltern Studies trabalhado por Florencia Mallon (1994) foi utilizado para tratar da análise de “baixo para cima” realizada por um grupo de estudiosos sobre a Índia e o colonialismo, mas que forneceu inspiração para historiadores americanicistas. MALLON, Florencia. The Promise and Dilemma of Subaltern Studies: Perspectives from Latin American. History. The American Historical Review: 1491-1515. DOI:10.1086. 1994.

2 FISHER; O’HARA. Introduction Racial Identities and their Interpreters in Colonial Latin America. In: FISCHER, Andrew; O’HARA, Matthew Imperial Subjects. Race and Identity in Colonial Latin America. Durham: Duke University Press. 2009. p. 1-37.

3 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Índios, Missionários e Políticos: Discursos e Atuações Político-Culturais no Rio de Janeiro Oitocentista.” In: SOIHET, Racehel el al (org). Culturas Políticas. Ensaios de História Cultural, História Política e Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 235-255; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Cultura Política Indígena e Política Indigenista: Reflexões sobre Etnicidade e Classificações Étnicas de Índios e Mestiços no Rio de Janeiro – Séculos XVIII e XIX. In.: AZEVEDO, Cecilia et al (org.) Cultura, Política, Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 211-228

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Índios, Missionários e Políticos: Discursos e Atuações Político-Culturais no Rio de Janeiro Oitocentista. In: SOIHET, Racehel el al (org). Culturas Políticas. Ensaios de História Cultural, História Política e Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 235-255.

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Cultura Política Indígena e Política Indigenista: Reflexões sobre Etnicidade e Classificações Étnicas de Índios e Mestiços no Rio de Janeiro – Séculos XVIII e XIX. In.: AZEVEDO, Cecilia et al (org.) Cultura, Política, Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 211-228

DOMINGUES, Ângela; RESENDE, Maria Leônia Chaves de; CARDIM, Pedro (orgs). Os Indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano (Sécs. XVI – XIX). Lisboa: Atlantica Lisbon Historical Studies. Centro de História da Universidade de Lisboa, CHAM – Centro de Humanidades (NOVA FCSH-UAc) e Programa de Pós-Graduação em História/Universidade Federal de São Joao del-Rei (PPGH-UFSJ), 2019. 364 p.

FISHER; O’HARA. Introduction Racial Identities and their Interpreters in Colonial Latin America. In: FISCHER, Andrew; O’HARA, Matthew Imperial Subjects. Race and Identity in Colonial Latin America. Durham: Duke University Press. 2009. p. 1-37.

MALLON, Florencia. The Promise and Dilemma of Subaltern Studies: Perspectives from Latin American. History. The American Historical Review: 1491-1515. DOI:10.1086. 1994.

MONTEIRO, John. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

OLIVEIRA, João Pacheco de (org). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa. 2011.

POMPA, Maria Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil Colonial. 2001. 455 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2001.

SOUZA, Glaucia Freire. Das “feitiçarias” que os padres se valem: circularidade cultural entre indígenas Tarairiú e missionários na Paraíba setecentista. 2013. 159 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Campina Grande, PB, 2013.

Lana Gomes Assis Araújo – Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Unifacisa, Campina Grande – PB, licenciada em História pela Universidade Federal de Campina Grande – PB, mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande – PB, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife – PE. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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Inovar o ensino e a aprendizagem na universidade – IMBERNÓN (EA)

IMBERNÓN, Francisco. Inovar o ensino e a aprendizagem na universidade. São Paulo: Cortez, 2017. 128 p. Resenha de: GOULART, Sheila Fagundes; BOLZAN, Doris Pires Vargas. Inovação e protagonismo na universidade. Em Aberto, Brasília, v. 32, n. 106, p. 191-195, set/dez. 2019.

O filósofo espanhol Francisco Imbernón lançou, em 2012, a obra Inovar o ensino e a aprendizagem na universidade, cuja temática é a qualificação dos processos de ensino e de aprendizagem desenvolvidos em instituições de ensino superior. O autor busca alternativas ao modo tradicional de transmissão do conhecimento acadêmico e social ao apresentar sua argumentação acerca do aprimoramento da educação realizada nessas instituições. Ele prescreve um caminho a ser trilhado pelo professor universitário, a fim de que consiga transformar a aula “transmissora de conhecimento” em uma aula “magistral”, incentivando a participação dos alunos nas propostas de seu trabalho pedagógico.

Ao longo dos 19 capítulos, Imbernón nos leva a visualizar a importância dos métodos e das técnicas para a qualificação do processo de ensino desenvolvido nas universidades. O autor pontua a necessidade de uma mudança no sentido da transmissão de conhecimentos acadêmicos e sociais, exigindo que o estudante assuma o protagonismo deste processo ao realizar uma aprendizagem “ativa”. Nessa direção, percebemos três focos convergentes, que são priorizados para a inovação do ensino: o primeiro está na aula expositiva e na importância em torná-la “magistral”; o segundo apresenta o estudante como um “ser” capaz de mobilizar a prática docente; e o terceiro, por fim, trata da formação e do desenvolvimento profissional do professor. Aqui podemos afirmar que a organização do ensino implica um evidente compromisso com a aprendizagem, uma vez que o reconhecimento das demandas da dinâmica pedagógica pode favorecer os processos de aprender dos estudantes.

Partimos do ponto em que Imbernón lança a hipótese de que o envolvimento dos estudantes nos processos de ensino e de aprendizagem os torna capazes de consolidar conhecimentos de forma significativa. Assim, a aprendizagem passiva apontada pelo autor – cujo centro do processo é o professor – precisa transformarse em aprendizagem interativa, na qual o estudante assume também o protagonismo no ensino, colocando-se como participante cooperativo na aula ministrada pelo docente.

Para que esse processo de ensino se torne significativo, o professor precisa se desprender da ideia de que o domínio científico do conteúdo que oferta garante uma aula expositiva ou magistral capaz de levar o estudante a estabelecer relações entre o que aprende na universidade e os desafios do mundo na contemporaneidade.

Assim, uma aula expositiva permite a interação entre alunos e destes com seus professores. Esse processo interativo e mediacional é capaz de promover a interlocução no espaço pedagógico, motivando-os a trabalharem e a refletirem sobre os conteúdos desenvolvidos, de modo que suas competências e suas habilidades sejam aprimoradas ao extremo. Nesse modelo de aula proposto pelo autor, a argumentação e a explicação são componentes de destaque. A argumentação, segundo Imbernón, é um modo de explanação do conteúdo científico que pode levar o estudante a alcançar saberes distintos daqueles que tinha, chamados, comumente, de conhecimentos prévios. Tais conhecimentos se desenvolvem juntamente com os conhecimentos atitudinais e procedimentais. A explicação, por sua vez, pode ser considerada como a forma “adequada” de argumentar, ou seja, ela é a própria didática. Nesse sentido, podemos afirmar que a relação conteúdo e forma constituise em duas faces do processo de ensino.

Com início, desenvolvimento e conclusão, a aula expositiva rompe com a inércia estabelecida pela visão de uma atividade transmissora de conhecimento.

Por meio de perguntas, exemplos, mudanças de assunto, recursos variados, o professor estabelece uma relação de reciprocidade com os estudantes. O início de uma aula magistral deve apresentar elementos que envolvam os estudantes, despertando-lhes o interesse sobre o assunto que ainda não conhecem ou dominam.

Para que tenham o desejo de apropriar-se do conteúdo a ser trabalhado e, também, para que organizem a temática a ser desenvolvida, os estudantes precisam ser mobilizados a se envolverem nas atividades de ensino propostas pelo professor. Este, por sua vez, tem a incumbência de inquietar o aluno por meio de questionamentos e problematizações, despertando a curiosidade e a imaginação necessárias ao processo de aprendizagem. Nessa primeira etapa, Imbernón desenvolve os conceitos de retroação positiva ou descritiva, retroação avaliativa e efeito primazia como elementos orientadores da estruturação inicial da aula. Ao destacar esses conceitos, leva-nos a refletir sobre a importância de valorizarmos o estudante, colocando-o como corresponsável pelo êxito da sua formação, pois um modo de organização que faz o estudante interessar-se pelo processo de aprendizagem resulta no reconhecimento da necessidade de construir novos saberes acadêmicos e sociais.

O desenvolvimento de uma aula é considerado a parte central de todo o processo. Nesse momento, o professor precisa estar atento a sua turma, uma vez que é necessário considerar o tempo e o modo como cada estudante se mobiliza para aprender. Além disso, ao apontar possibilidades de elaboração do conhecimento, cria condições para que o grupo compreenda o assunto tratado, tendo nas atividades um suporte para seu trabalho. Por fim, o encerramento da atividade precisa ser realizado com tranquilidade e sintetizar o que foi trabalhado na aula magistral.

Ainda no primeiro foco, há pequenos capítulos que problematizam as normas de conduta adotadas por professores, destacando a aula expositiva como um processo de comunicação que existe em função da relação professor-estudante. Há também a definição de pautas para a elaboração de um roteiro de aula. A primeira pauta apontada por Imbérnon é a “análise da situação de comunicação”, que incide na observação do contexto em que a aula magistral será desenvolvida; já a segunda, chamada de “delimitação do tema e coleta de informações”, consiste na delimitação do assunto a ser trabalho e na busca por dados que auxiliem em seu desenvolvimento.

Por último, o autor destaca que, para a “elaboração do plano” de aula, é necessário refletir acerca do que queremos que os estudantes aprendam, sobre o quanto eles podem aprender e como podemos facilitar essas aprendizagens.

Em nossa categorização, pontuamos o papel do estudante como o segundo foco tratado por Imbernón. Nos capítulos que compõem a metade da obra, o autor explicita as estratégias para a participação dos alunos em sala de aula, o trabalho em grupo como uma possibilidade metodológica e o estudante como mobilizador do trabalho docente. Esses pontos fomentam a ideia de que as instituições de ensino superior devem primar por aulas nas quais as competências e as habilidades sejam desenvolvidas em detrimento da memorização e da repetição mecânica. Cabe salientar que, segundo o autor, não há modelos metodológicos bons ou ruins, mas práticas de sucesso ou não, realizadas com base em determinado modelo. Nesse sentido, o que importa são as concepções de ensino e de aprendizagem de cada professor. Portanto, o docente precisa revisitar suas concepções a respeito da formação para propor aulas motivadoras, capazes de incentivar a criatividade e a autonomia do estudante. Outro aspecto que precisa ser considerado nesse processo é a perspectiva de inovação pensada a partir da transformação dos modelos tradicionais de ensino, potencializados pelo acesso à tecnologia da informação e da comunicação desenvolvidas na educação superior.

Nesse contexto, não há como o professor reproduzir as mesmas condições e nuances de um ensino tradicional, uma vez que a condução do processo educativo não é unilateral, ou seja, ela acontece como consequência das relações estabelecidas entre todos os seus envolvidos. Logo, para que o estudante assuma o protagonismo do processo formativo é necessário, além do empenho do professor, que ele deseje e, também, se reconheça como capaz de autoformar-se. Cabe a ele construir sua autonomia, neste caso, desprender-se do aval docente, para elaborar saberes a partir de suas necessidades, tornando-se responsável pela sua própria aprendizagem e desenvolvimento.

No terceiro foco delineado, tratamos do desenvolvimento profissional docente. Para Imbernón, o conceito de desenvolvimento profissional não pode ser confundido com o de formação permanente, uma vez que este se dá pelas experiências vividas no contexto laboral e pode possibilitar ou não o progresso na vida profissional dos professores. Ao qualificar sua prática pedagógica, revistar suas crenças e aprimorar os conhecimentos relativos à docência, o professor colabora para o seu progresso profissional e, ainda, coopera para o desenvolvimento coletivo das instituições de ensino nas quais atua. Além disso, o autor registra que o conceito de inovação é uma mistura de “formação e contexto”, logo é preciso que o docente perceba a formação permanente como um elemento dinâmico, que resulta em melhorias sociais, capazes de estabelecer novos modelos relacionais.

Portanto, para que o professor possa contribuir para as mudanças necessárias à inovação do ensino e da aprendizagem, é preciso que busque alternativas para a sistematização qualitativa do trabalho, ampliando as possibilidades de produzir inovações, mobilizando, assim, as concepções docentes sobre esses processos. Nessa perspectiva, a obra de Imbernóm leva-nos a compreender que a educação deve estar intimamente relacionada às mudanças e aos incrementos do contexto social. Logo, o professor precisa transformar sua prática docente, colocando-se como profissional capaz de produzir conhecimento com os estudantes, aberto às novas tecnologias e ao modo de ser e de estar dos demais sujeitos do processo educativo.

A contribuição do autor não marca profícua expressão na área da inovação do ensino e da aprendizagem. Entretanto, ele apresenta de forma bastante didática diretrizes aos professores universitários, que podem contribuir para a qualificação das atividades desenvolvidas na educação superior. Isso porque a qualidade de uma instituição depende das formas de organização do trabalho pedagógico e da sua repercussão no contexto sociocultural dos estudantes. Para que se estabeleça um processo formativo que resulte no desenvolvimento do professor, seja no âmbito pessoal, seja no profissional, é preciso romper com a visão linear da prática educativa.

Observamos que a obra de Imbernón apresenta diretrizes nada complexas, cabendo ao professor universitário aproveitá-las como possibilidade de tornar seu trabalho dinâmico e mobilizador do outro.

Com a intenção de mostrar a importância de desenvolver processos metodológicos que contribuam para a qualidade do ensino e da aprendizagem promovido nas universidades, Francisco Imbernón leva-nos a perceber que é necessária uma mudança epistemológica nos modelos de formação. É imperativo transformarmos os processos acadêmicos, em que a transmissão dos conhecimentos, a memorização e a prática unilateral levam ao posicionamento passivo de estudantes.

A construção de uma aula unitária, na qual o professor dirige seu discurso ao grupo, como unidade, já não tem mais espaço. A possibilidade de avançarmos em direção a uma atividade pautada em perspectiva relacional, na qual estudantes e professores protagonizem os processos de ensinar e de aprender, é a chave de uma dinâmica pedagógica mais eficiente e exitosa, capaz de favorecer a inovação da aula universitária.

A clássica obra de Imbernón problematiza o campo da formação de professores e serve de possibilidade para redefinirmos ações de formação continuada, focando na importância de um desenvolvimento profissional docente marcado por processos auto e interformativos.

Sheila Fagundes Goulart – É doutoranda em Educação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].

Doris Pires Vargas Bolzan – É professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento de Metodologia do Ensino (PPGE/CE/MEN) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected].

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O silêncio dos vencidos – DE DECA (PH)

DE DECCA, Edgar. 1930: O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1981. Resenha de: AUN-KHOURY, Yara. Projeto História, São Paulo, v.2, 1982.

Yara Aun-Khoury

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