Entre a espada, a cruz e a enxada: a Colônia Militar de Caseros no norte do Rio Grande do Sul (1858-1878) | J. C. Tedesco e A. A. Vanin

Na obra Entre a espada, a cruz e a enxada: a Colônia Militar de Caseros no norte do Rio Grande do Sul (1858-1878), João Carlos Tedesco e Alex Vanin remontam, a partir de leves vestígios, a curta existência da Colônia Militar de Caseros, situada, em parte, no atual município de Lagoa Vermelha, e no município de Caseros – que leva ainda o nome do núcleo colonial e militar –, no estado do Rio Grande do Sul.

Trata-se de um estudo inédito sobre o tema, minucioso e detalhado, pautado em documentação primária, que busca localizar e situar a Colônia Militar de Caseros na formação histórica da região, articulando a presença indígena à formação de uma colônia. Nota-se que há um silenciamento sobre essa experiência, tanto na historiografia quanto na memória regional, entretanto, nas recentes disputas pela posse da terra envolvendo diferentes sujeitos, há indícios de ocupação remota, que remontam ao período da Colônia Militar, embora descontextualizados e jogando a favor de interesses específicos. Leia Mais

O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 –c. 1853) / João J. Reis

Na trajetória da História Social dos últimos 40 anos, o interesse dos historiadores abandonou a análise das estruturas –que produziam resultados cada vez menos capazes de apreender a complexidade da realidade histórica, e que falhavam em oferecer respostas satisfatórias a novos questionamentos –em favor de observações qualitativas, preocupadas em conferir como as pessoas reais lidaram com os desafios e condições de seu tempo. Diminuiu a convicção sobre teorias e modelos, já que a observação das experiências vividas punha em xeque a validade de tais postulados. Talvez a corrente historiográfica que mais fielmente tenha encarnado os novos valores da historiografia seja aquela rotulada de micro-história. Estudos ligados a essa metodologia buscam reunir eixos que haviam sido apartados: estrutura e experiência. A historiadora Hebe Castro -em artigo publicado na obra coletiva “Domínios da História” –afirma que tais estudos encontram “agentes históricos por trás dos discursos”, rompem “excessos de agregação e da simplificação das variáveis”, deixam claro a “liberdade e a inteligibilidade da ação humana na história”.

O “Alufá Rufino” de Reis, Gomes e Carvalho é um trabalho que enfeixa todas estas considerações historiográficas. Amparada numa extensa bibliografia e em documentação histórica levantada em três continentes e em vários estados do Brasil, a obra foi definida pelos autores como uma “história social do tráfico e da escravidão no Atlântico”. O que se observou não foi um Atlântico genérico, impessoal e ideal, e sim o Atlântico de Rufino José Maria, o contexto onde a vida tumultuada e incerta deste africano se desenrolou. Um Atlântico particular que, se por um lado estava marcado por condições que determinaram a trajetória daquele africano, ao mesmo tempo era espaço para suas manobras, negociações e decisões. Como resultado, os autores delinearam não um quadro mecânico, devorador de vidas e vontades ao sabor de suas leis, mas um espaço de possibilidades, uma demonstração do poder do indivíduo frente ao que se lhe impõe. A reboque destas realizações historiográficas, extraídas do emprego inteligente da micro-análise, os autores contribuíram ainda com “quadros” ricos de diversos aspectos do período estudado, observações que cobrem temas tão díspares quanto uma vida humana, uma “experiência”, pode abarcar.

Sobre a África de Rufino, para começar, a obra faz ver o tumultuado contexto de lutas étnicas que estabeleciam com o tráfico humano uma relação de estimulação mútua. No início do século XIX, a África Ocidental da região dos golfos de Benim e Biafra e seus sertões era uma colcha de retalhos étnica, onde grupos islamizados de diversos matizes (desde ortodoxos até aqueles mais abertos a sincretismos com as religiões tradicionais africanas), disputavam entre si pelo controle dos territórios e se sucediam no governo de pequenos reinos, estados e califados. Oriundo de um reino outrora poderoso mas então em crise, o africano que no Brasil viria a se chamar Rufino, membro de uma família malê (iorubá islamizada), foi aprisionado e remetido ao porto litorâneo por membros de outra etnia islamizada, que agora detinha o poder na região.

Saindo de uma África deflagrada, Rufino se deparou, na Bahia, com mais conflitos: tratava-se da Guerra de Independência, que na região de Salvador opôs militares portugueses –que controlavam a capital –aos fazendeiros brasileiros entrincheirados na região do Recôncavo. O fato de ter sido vendido a um boticário de renome foi oportunidade para que os autores explorassem as particularidades desta atividade, demonstrando detalhes da medicina e do comércio da Bahia de inícios do século XIX.

É também seguindo Rufino para o Rio Grande do Sul onde, ainda na condição de escravo, ele acompanha o filho de seu senhor, que os autores acabam penetrando nas fímbrias da Revolução Farroupilha. Perseguindo a sinuosa trajetória daquele africano, que parecia destinado a viver em regiões belicosas, aproximaram-se da rotina de José Maria de Salles Gameiro de Mendonça Peçanha, o desembargador Peçanha, chefe de polícia da Província gaúcha. Peçanha seria o novo senhor de Rufino. Aproveitando-se desta parada na acidentada trajetória atlântica de Rufino, os autores oferecem um olhar sobre a Porto Alegre do início dos oitocentos, especialmente sobre as condições da escravidão naquela região, que tinha fama de ser dura com os cativos. Transparecem, por meio dos documentos policiais, dos relatos de viajantes, das informações colhidas em jornais daquele tempo, as táticas de resistência e repressão empregadas por escravos e senhores. Mostram ainda as faíscas iniciais, detectadas nos relatórios do senhor de Rufino aos seus superiores no governo, da grande rebelião que tomaria o sul do país por uma década, a Farroupilha.

Outro aspecto importante da obra, também ligado à trajetória de Rufino, é a discussão que se faz sobre as etnias africanas no Brasil, sua distribuição territorial e profissional, e sobre as representações feitas sobre elas pelos senhores. Escravos minas, chamados malês na Bahia, eram temidos e perseguidos naquele momento. Pairava sobre eles uma endêmica suspeita de conspiração, um medo que servia inclusive aos fins políticos dos conservadores, que se apoiavam nele para adotar medidas de exceção e perseguir seus oponentes (segundo a acusação dos liberais). O domínio da escrita e o emprego do idioma árabe eram fatores que tornavam os minas ainda mais perigosos aos olhos dos senhores e das autoridades.

O Rio de Janeiro, destino seguinte de Rufino, era uma “extraordinária Babel africana” (REIS et alii, 2010, p. 71), a maior cidade africana das Américas. Ali desembarcaram, nas três primeiras décadas do século XIX, entre 500 e 900 mil africanos. Apesar de serem minoria no Rio de Janeiro –cuja população negra era composta majoritariamente de africanos de Angola, Congo e Moçambique –os minas apareciam desproporcionalmente em documentos policiais. Eram também majoritários nas atividades de ganho, o que os tornavam mais aptos à conquista da liberdade. Nessa época, 45% das alforrias pagas beneficiaram africanos minas, que representavam algo em torno de 5% da população africana carioca. A massa africana no Rio de Janeiro provocava um clima de tensão e repressão constante, traduzindo uma intensa pressão emancipatória dos escravos. Na Bahia, a presença de africanos oriundos da Costa da Mina, falantes do iorubá e familiares a Rufino, era maior.

Segmento essencial da obra aparece após a alforria de Rufino, diante da decisão que este toma sobre o que fazer com a sua liberdade: é aí que se penetra nos bastidores do tráfico humano do Atlântico. Livre, Rufino ingressa no comércio de escravos, na função de cozinheiro assalariado (o que lhe dava a chance de ser também pequeno comerciante transatlântico). É oportunidade para que os autores desvendem as intrincadas tramas deste negócio lucrativo e, a partir de 1831, ilegal, que juntava interesses e fazia fortunas nos dois lados do Atlântico. Eles demonstram as condições aviltantes da travessia, onde a falta de espaço, de alimentação e hidratação corretas e os precários padrões sanitários vitimavam, em média, 12% dos cativos. Através da análise do caso de Rufino e de outros correlatos e coevos, demonstra-se o funcionamento interno de uma embarcação traficante clandestina, destacando-se a importância do papel do cozinheiro. Evidenciam-se os esquemas absurdos erigidos pelos traficantes para “enganar” as autoridades brasileiras, que na verdade faziam vista grossa para o movimento incessante do tráfico negreiro. Aparecem as nuances das redes internacionais do tráfico, as conexões entre traficantes radicados nas duas extremidades do Atlântico; demonstra-se o caráter familiar de muitos desses empreendimentos escravistas, passados de pai para filho. Os “patrões de Rufino” são desmascarados neste segmento, que revela os meandros da atividade escravista.

Finalmente, aparece o papel da repressão inglesa, devidamente desmistificada e vinculada a interesses nada humanitários. O pragmatismo da marinha inglesa, que por motivos jurídicos tentava preservar a “cena do crime”, contribuía para um aumento absurdo das taxas de mortalidade nos tumbeiros. Os autores apontam ainda o cuidado que os ingleses tinham para evitar que a repressão ao tráfico interviesse nos seus interesses comerciais: os navios negreiros quase nunca eram capturados antes de tocar o solo africano e trocar as mercadorias trazidas do Brasil (muitas delas de origem inglesa) por africanos escravizados. Transparece também o caráter negocial das apreensões de navios traficantes, cuja captura gerava bônus para os perseguidores e que, levados para Serra Leoa e leiloados, produziam lucros para os potentados locais.

Radicado em Recife na década de 1840, Rufino torna-se alufá, espécie de sacerdote, contando para isso com os ensinamentos que recebeu na comunidade islâmica em Serra Leoa, onde passou duas temporadas de estudos. Emerge neste ponto da narrativa uma reflexão sobre o processo de sincretismo, em pleno desenvolvimento, entre religiosidades multicontinentais. Ao islamismo africanizado de Rufino, marcado pelo apego a patuás e amuletos, somavam-se crenças, conceitos e ritos brasileiros, estes também já bastante marcados pelo contato com outras religiosidades. Analisando o depoimento de Rufino, tomado em 1853, os autores detectaram o emprego de termos usados comumente por negros católicos no Brasil. A parada de Rufino em Recife, outro ponto do Atlântico sinalizado por este viajante incansável, dá ensejo ainda a análises sobre o espaço urbano recifense e sobre as tensões sociais subjacentes a sua vida cotidiana.

Além de todo o trabalho detetivesco feito pelos autores, verdadeiro exercício de faro fino, e da reunião e análise de uma extensa bibliografia que desse conta dos contextos percorridos por Rufino em sua trilha atlântica, sobressai do trabalho grande nota de sinceridade, de reconhecimento de limites. Durante todo o trajeto, quando necessário, os autores deixam claro a fragilidade de suas constatações. Não raras vezes encontraram pontos cegos, ausências e falhas na documentação, vicissitudes que não permitiram apontar com precisão total os passos dados pelo protagonista ou por aqueles que o cercavam. Os autores, diante dessas lacunas, oferecem conjecturas e possibilidades, mas o fazem de maneira a permitir que o leitor acompanhe o raciocínio, pese as possibilidades e julgue por sua conta. A própria decisão de publicar como anexos documentos importantes ligados à trajetória de Rufino, na íntegra, demonstra essa escolha de exibir os caminhos que levaram a esta ou aquela interpretação, no lugar de oferecer um produto fechado, inviolável e que se deve aceitar no todo e sem questionamentos.

Ao explicitar o modus operandi de seu trabalho, mostrando as escolhas interpretativas que fizeram, os argumentos que sustentam suas afirmações, os autores fazem um convite à reflexão, levando o leitor a adotar uma postura crítica, que poderá ser estendida a todas as outras leituras que ele vier a realizar. A escolha da micro-análise, a perseguição do indivíduo e de sua experiência, o abandono das análises totalizantes, ao contrário do que alguns apregoam, é um caminho vantajoso para os estudos de história. Longe de impedir a formação de uma compreensão maior, o estudo da trajetória de Rufino demonstrou exatamente o contrário, que a análise qualitativa é capaz de oferecer dados sólidos para a compreensão de um determinado contexto. A obra é, afinal, um grande tratado sobre a escravidão africana, um contributo valioso para a historiografia sobre o tema.

Daniel Rincon Caires – Instituto Brasileiro de Museus –IBRAM.


REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de. O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 –c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.Resenha de: CAIRES, Daniel Rincon. Outros Tempos, São Luís, v.10, n.15, p.250-254, 2013. Acessar publicação original. [IF].

Índios xokleng e colonos no litoral norte do Rio Grande do Sul (século XIX) – CUNHA (HU)

CUNHA, L.P. da. Índios xokleng e colonos no litoral norte do Rio Grande do Sul (século XIX). Porto Alegre, Evangraf, 2012. 236 p. Resenha de: MARTINS, Maria Cristina Bohn. Sobre histórias não contadas. História Unisinos 17(1):66-68, Janeiro/Abril 2013.

“Índios xokleng e colonos no litoral norte do Rio Grande do Sul (século XIX)” é produto da investigação desenvolvida por Lauro Pereira da Cunha para sua dissertação de mestrado, estudo que efetuou junto ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos2. Mas também é muito mais que isto.

Efetivamente, o texto, apresentado numa edição da Editora Evangraf de Porto Alegre, traz os resultados de vários anos de pesquisa e dedicação do autor, em iniciativas encetadas já muito antes que ele pretendesse dar aos seus estudos um arcabouço acadêmico. Seu comprometimento com a história dos índios é visível e está presente ao longo de todo o texto, assinalando a convicção do autor de que os historiadores, mas também a sociedade como um todo, têm um débito pelo seu desconhecimento dela.

O tema que mobiliza a inquietação intelectual de Lauro P. Cunha é o das populações indígenas do litoral norte do Rio Grande do Sul, envolvendo suas histórias, suas relações com a sociedade “branca” e suas demandas atuais. Neste sentido, a pesquisa pretendeu dar uma resposta àquilo que ele percebeu como uma grave lacuna na historiografia regional (e local): o silêncio em relação à presença e protagonismo histórico de índios do grupo Jê no litoral gaúcho, “como se esta região tivesse se tornado definitivamente ‘esvaziada de índios’ com a retirada dos Guaranicarijó pelas bandeiras escravagistas” dos séculos XVI e XVII (Cunha, 2012, p. 16).

A sua constatação de que as áreas da encosta oriental do Planalto Meridional cobertas pela Mata Atlântica eram, ainda no XIX, no atual RS, o extremo austral do “território de uso” dos xoklengs, levou-o a formular duas questões centrais que serão desenvolvidas na obra: (i) Como os indígenas agiram/reagiram diante da expansão da sociedade ocidental nestas regiões? Considerando os xoklengs como agentes dos processos históricos em curso, de que forma ocorreu sua interação com a colonização lusobrasileira e, depois, com as frentes de imigração europeia? (ii) Sob quais ideias “do outro”, brancos e índios se posicionaram e agiram neste processo? A busca por estas respostas guiou a reflexão proposta pelo autor, interessado que estava em conhecer “este ignorado cenário, composto por homens, mulheres, crianças, ‘índios selvagens’, ‘índios mansos’, brancos, negros e mestiços que não fazem parte dos relatos épicos da historiografia local, mas que desempenharam vários papéis nos projetos de ocupação econômica e populacional da região.

Resistindo, fugindo, matando, morrendo ou assustando, os índios xokleng também foram agentes históricos neste processo” (Cunha, 2012, p. 16).

Em nome deste interesse, Cunha percorreu muitos arquivos, na maioria das vezes para se frustrar diante da escassez de documentos que tratassem das relações entre os xoklengs e as populações ocidentais com os quais eles travaram contato. Também leu muitos livros, teses e dissertações sobre a história do litoral norte do Rio Grande do Sul, para novamente se desencantar diante da desatenção dos historiadores para com eles. Justamente por isto, a parcela da investigação que talvez lhe tenha sido mais cara – e que se apresenta muito rica para os leitores interessados – foi aquela que o autor conduziu visitando “comunidades tradicionais” do litoral, oportunidade em que conversou com moradores antigos e, principalmente, em que ouviu suas histórias. Histórias cheias de ação e vivacidade; histórias cheias de violência e pavor, como no caso das ações de “bugreiros” ou de “índias pegas no mato a cachorro”, que ele reproduz, discute e avalia.

A dissertação, que foi revista e adaptada para dar origem ao livro que aqui resenhamos, teve por título O botoque e o açúcar: índios xokleng e colonos no litoral norte do Rio Grande do Sul (século XIX), o qual, como reconhece o seu autor, é tributário da obra de Luíza Tombini Wittmann (2007), O vapor e o botoque, que estudou as relações entre colonos alemães e índios xokleng no Vale do Itajaí em Santa Catarina. Wittmann, neste trabalho, oferece uma rica contribuição a um tema que não é indiferente aos estudos historiográficos, arqueológicos ou antropológicos do estado vizinho3.

Não é o caso do Rio Grande do Sul, uma vez que se tornou regra aqui entender que os xoklengs “são índios de Santa Catarina”. Lauro P. da Cunha refuta esta ideia e maneja uma série de argumentos e dados empíricos, para evidenciar que os xoklengs estiveram presentes, também, no litoral norte do Rio Grande do Sul até que a intensificação da presença dos “brancos”, especialmente com a introdução das lavouras de cana de açúcar, inviabilizasse esta condição.

O livro é prefaciado pelo Prof. Dr. Eduardo Neumann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o qual afirma que a cuidadosa investigação do autor permitiu “reabilitar, no quadro geral das populações indígenas, um grupo que habitava o Rio Grande do Sul mas que não era mencionado como um coletivo específico”. E, ainda, que o trabalho, por meio da operação de identificação e transcrição de documentos oficiais de caráter administrativo, permitiu resgatá-los “do silêncio a que foram confinados pela escrita da história oficial” (13).

O texto tem suas 236 páginas divididas em três capítulos. No primeiro deles, o estudo apresenta uma “retrospectiva” da história de contatos entre os grupos indígenas do litoral norte do Rio Grande do Sul e os ocidentais (bandeirantes, religiosos e tropeiros) a partir do século XVI. Ele buscou evidenciar aí que, contrariamente ao que reza a historiografia, os xoklengs não eram um grupo isolado até os inícios da imigração europeia no estado, e que seu comportamento esquivo no Oitocentos resulta exatamente do conhecimento que haviam adquirido a partir de suas relações anteriores com os brancos, isto é, das experiências que tinham vivido e das interpretações que conferiram a elas. Ainda neste capítulo o livro discorre sobre o avanço da pecuária neste espaço, evidenciando que, embora uma “fronteira étnica” com os xoklengs começasse aí a se esboçar, estancieiros e indígenas ocupavam, ainda, territórios diferentes e não mutuamente cobiçáveis: a planície costeira (formada por campos, banhados e lagoas), e a floresta da “encosta da serra Geral”.

O capítulo seguinte abrangeu o tempo da instalação da agricultura por meio da “frente açoriana” de colonização. Apesar de seus roçados estarem instalados nas faces dos morros voltadas para o mar, estes “colonos” deram início à erosão da fronteira geográfica que havia separado brancos e índios, processo que, ao mesmo tempo, levou ao enrijecimento da fronteira étnica. Segundo o autor, neste momento os nativos poderiam ter contornado o contato mais intenso com os brancos, mas não o fizeram, investindo em uma série de ataques, especialmente em busca de ferramentas e outros bens materiais que desejavam.

Os xoklengs “não mais se encontravam isolados porque não tinham mais como se manter indiferentes ao mundo que se criava ao seu redor e à sua revelia. Não estavam tão distantes do mundo colonial, e as ‘correrias’ que praticavam eram um exemplo de que […] podiam entrar e sair dele”.

Seu modo de vida havia se alterado de forma incancelável, especialmente pelo aparecimento de novas necessidades criadas pelo contato, tal como cachorros, tecidos e, principalmente o ferro (Cunha, 2012, p. 215).

As iniciativas dos xoklengs para obter estes recursos geraram violenta repressão por parte dos colonos e do poder público, bem como contribuíram para firmar a noção de que eles eram um perigo e um empecilho para o avanço das lavouras. Com o estabelecimento militar de Torres (1820) e o surgimento das Companhias Sertanejas (1822), o Estado passou a investir sistematicamente na perseguição aos “selvagens”. O autor chama a isto de “bugreirismo oficial” e avalia, neste momento do texto, as políticas e práticas que pretenderam abrir a região para a presença dos imigrantes europeus que passavam a ingressar no Rio Grande do Sul.

O assentamento de colônias de italianos e alemães no litoral norte, ao longo do XIX, significaria o caminho sem volta para o processo de depopulação indígena nesta área, e a história das relações dos nativos com esta nova frente de expansão da fronteira agrícola é o tema do terceiro e último capítulo da obra. Nesta nova fase, observa o autor, o governo provincial “se colocou francamente ao lado dos colonos, enviando […] soldados para o interior das matas para perseguir índios que permaneciam como problema […]” (Cunha, 2012, p. 215). Além deles, os xoklengs haveriam de se enfrentar, também, com companhias de perseguidores de negros quilombolas, madeireiros, mercadores e mesmo bandidos comuns, que passavam a frequentar a mata.

Segundo adverte Lauro Cunha, não houve interesse por parte das autoridades em integrar os xoklengs ao sistema econômico regional4, descartados que foram como possível mão de obra ou produtores de artigos que interessassem comercialmente aos brancos5. Para os colonos e autoridades locais, eles se constituíam em um entrave ao progresso e segurança; “a presença deste ‘outro’ era um incômodo e o medo obrigava a que não se reconhecesse seu direito de estar ali. E, como ninguém aceitava plenamente a sua humanidade, a solução seria o seu afugentamento” (Cunha, 2012, p. 190). Por parte dos índios parece também não ter havido inclinação à convivência.

Assim, eles ofereceram resistência armada sempre que lhes foi possível e recuaram quando não havia outra opção; ao mesmo tempo, à medida que a colonização se assentava, restavam-lhes menos espaço e possibilidades de sobreviver.

Se Lauro Pereira da Cunha queria contar a dramática histórica deste desaparecimento, esquecido pelos livros de história regional, este não era seu único intento, uma vez que pretendia, também, refl etir sobre as ações e escolhas dos xoklengs, que não foram vítimas inermes do avanço dos brancos, mas “praticaram seus furtos e dispararam suas fl echas”, agiram e se transformaram, “pois era impossível permanecerem imutáveis no conflituoso contato com o outro”. Foram, desta forma, agentes fundamentais na construção da sociedade do litoral norte do Rio Grande do Sul, ajudando a delinear os seus limites e possibilidades. Reavaliando suas categorias culturais e o significado deste contato, optaram por expropriar o branco em bens que poderiam lhes ser úteis, em especial no que tange aos instrumentos de ferro. Eles pensaram, assim, em seus próprios termos, a recusa quanto a alianças ou contatos amistosos, mantendo-se em permanente estado de guerra “e arcando com as consequências da escolha feita” (Cunha, 2012, p. 215).

É preciso finalmente lembrar que o autor tem plena consciência de que recuperar histórias passadas tem forte incidência na história presente, e que ele pretende que as páginas que escreveu contribuam para a composição de uma etno-história xokleng, instrumento que os índios têm aprendido a acionar nas suas demandas pelo reconhecimento de territórios sobre os quais afirmam ter direitos “históricos”.

Referências

LAVINA, R. 1994. Os Xokleng de Santa Catarina: uma etnohistória e sugestões para arqueólogos. São Leopoldo, RS. Dissertação de Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 266 p.

NAMEM, A.M. 1994. Botocudo: uma história de contato. Florianópolis/ Blumenau, Ed. da UFSC/Ed. da FURB, 112 p.

SANTOS, S.C. dos. 1973. Índios e brancos no sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng. Florianópolis, Edeme, 313 p.

SANTOS, S.C. dos. 1997. Os índios Xokleng: memória visual. Florianópolis, Ed. da UFCS; Itajaí, Ed. da UNIVALEI, 152 p.

SELAU, M. da S. 2006. A ocupação do território Xokleng pelos imigrantes italianos do Sul Catarinense (1875-1925): resistência e extermínio.

Florianópolis, SC. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal de Santa Catarina, 156 p.

WITTMANN, L.T. 2007. O vapor e o botoque: imigrantes alemães e índios xokleng no Vale do Itajaí/SC (1850-1926). Florianópolis, Letras Contemporâneas, 265 p.

Notas

2 O trabalho, concluído em agosto de 2012, intitulou-se O botoque e o açúcar: índios xokleng e colonos no litoral norte do Rio Grande do Sul. Contribuíram com o mesmo, como membros da sua Banca de Qualificação, os professores Véra Maciel Barroso, Marcos Witt e Maria Cristina Bohn Martins; da Banca de Mestrado, participaram Eduardo Neumann, Jairo Rogge, Eloísa Helena Capovilla da Luz Ramos e Maria Cristina Bohn Martins.

3 Entre outros: Selau (2006); Santos (1973); Santos (1997); Namem (1994); Lavina (1994).

4 Nem tampouco, como se dizia desde os tempos coloniais, “em resgatá-los para a civilização”.

5 “Tivessem sido incluídos na política de aldeamentos que ‘pacificou’ os kaingang, certamente não teriam desaparecido” (Cunha, 2012, p. 215).

Maria Cristina Bohn Martins – Universidade do Vale do Rio dos Sinos Av. Unisinos, 950, Cristo Rei 93022-000, São Leopoldo, RS, Brasil 1 Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Unisinos; Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail: mcris.unisinos.br.