Ensino de história e relações étnico-raciais: diálogos afro-indo-latinos / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2019

Outros tempos, outros ensinos, outras histórias

Vivemos num tempo de golpes contra a democracia – Brasil, Equador, Bolívia, Chile, para enumerar os mais recentes – em que emergem projetos de Lei que criminalizam a prática docente; num tempo de uma base nacional curricular comum para o ensino centrada numa visão europocêntrica e que enfraquece a formação humana; num tempo da retirada da disciplina de História do Ensino Médio; num tempo de um poder judiciário que assume posições tendenciosas; num tempo de extermínio de direitos trabalhistas e previdenciários; num tempo de governantes que acabam com os planos de carreira do magistério e tantos outros trabalhadores; num tempo em que setores sociais e governamentais colocam sob litígio conquistas históricas como as leis que instituem o ensino de história e cultura dos povos de matriz africana e indígena; num tempo de extermínio de jovens negros; num tempo de assassinatos quase quotidianos de indígenas; num tempo de incêndios e destruição de florestas; num tempo de ódio ao saberes científicos, enfim num tempo de ódios e obscurantismos, especialmente contra negros e indígenas.

Apesar de tudo ser feito para calar as vozes daquelxs que se rebelam e rebelarão buscando viver num outro tempo aquele de busca, de esperanças, de lutas, de sonhos com e por outros ensinos de Histórias outras, de outras relações étnico-raciais pautadas no respeito, na igualdade e na diferença.

Na busca desses outros tempos construímos o dossiê Ensino de história e relações étnico raciais: diálogos afro-indo-latinos composto por 12 artigos e uma resenha, os quais de forma mais ou menos direta relacionam-se com a temática proposta. São produções que buscam amplificar o debate sobre a Educação das Relações Étnico Raciais, demarcando o campo do Ensino de História em que professores e estudantes / pesquisadores engajados nos estudos e pesquisas em pauta propuseram artigos e uma resenha que focam o diálogo intercultural pelo viés das experiências de ensino / pesquisa evidenciando a diversidade e complexidade que envolvem tais relações educativas no Brasil e Colômbia.

No artigo Etnoeducação, etnização afro-colombiana e forças decoloniais de autoria de Santiago Arboleda Quiñonez apresenta como um campo de gestão e produção de alteridade, bem como auto-representação positiva, no processo de um projeto de transformação e, até certo ponto, uma ruptura com o paradigma monocultural que prevalece na educação colombiana e em geral em nossos países da América Latina. O autor defende que o projeto etno-educacional estabelece propósitos abertamente decoloniais e libertadores, baseados na experiência e pensamento dos povos indígenas e afrocolombianos

Em Memória / identidade Xokó e a decolonização do ensino de História, os autores Lucas Wendell de Oliveira Barreto, Valéria Maria Santana Oliveira e Ilka Miglio de Mesquita propõe contribuir para o ensino de História indígena por lentes decoloniais. Para tal, utilizam como fontes de pesquisa as músicas autorais do povo Xokó, habitantes da cidade de Porto da Folha / Sergipe, reunidas e digitalizadas por meio do projeto extensionista “A aldeia vai à cidade”, desenvolvido na Universidade Tiradentes, em Aracaju.

No artigo Problematizando o eurocentrismo e desconstruindo o racismo por meio de práticas pedagógicas decoloniais e interculturais os autores Odair de Souza e Elison Antonio Paim problematizam o eurocentrismo derivado da colonialidade do poder, do saber e do ser como gerador do racismo estrutural e institucional. Apresentam o resultado da pesquisa “A educação para as relações étnicorraciais no ensino de história: memórias e experiências de professoras da educação básica” desenvolvida no âmbito do Mestrado Profissional em Ensino de História- Profhistória da Universidade Federal de Santa Catarina. Dialogamos com narrativas de professoras coletadas na forma de entrevistas orais gravadas e depois organizadas na perspectiva metodológica de Walter Benjamin construindo mônadas.

Os autores Antonio Dyego Vasconcelos Garcia e Edson Silva no artigo Discutindo os protagonismos indígenas na aula de História: diálogos sobre o povo Xukuru do Ororubá em Pesqueira / PE apresentam reflexões sobre uma experiência de protagonismo indígena nas aulas de história. Partindo dos diálogos com a participação de representantes do povo indígena em sala de aula. Evidencia-se que o ensino foi para além do livro didático, enfatizando suas mobilizações para a conquista e garantias de direitos, especificamente às terras onde habitam, para afirmação da identidade nas relações de convivência com os não índios.

Em Que História Pública é contada sobre os povos africanos no Museu Egípcio Itinerante? Cyntia Simioni França narra uma ação educativa desenvolvida em um Museu Egípcio Itinerante, na cidade de Londrina, no norte do estado do Paraná, com estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental. O museu é compreendido como lugar de trânsito, deslocamentos, transfigurações e ultrapassagens em que afloram relações dinâmicas e intricadas entre os sujeitos na experiência de aprender e sentir os enovelamentos temporais. Procurou conceber ações educativas que provocassem o estranhamento dos sentidos históricos propostos nos museus como uma prática de leitura a contrapelo do museu Egípcio.

No artigo O ensino da temática indígena nas escolas da Rede Pública de Ponta Porã – MS, Elizabeth Vieira Macena e Beatriz dos Santos Landa apresentam o resultado de pesquisa realizada com estudantes do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Buscaram compreender e avaliar como a Lei 11.645 / 2008 que estabelece a inclusão no currículo da História e cultura indígena vem sendo ou não implementada pelos / as docentes de História nas escolas selecionadas da rede pública da Educação básica do município de Ponta Porã / MS. Apoiadas nos estudos do grupo Modernidade / Colonialidade analisam como esta temática pode construir espaços interculturais e práticas decoloniais ao posicionar a História destes povos em igualdade de posição à História eurocentrada.

O PIBID / História na UNEB e as demandas identitárias do tempo presente, artigo de Adriana Silva Teles Boudoux analisa os subprojetos do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência executados entre 2014 e 2017 pelas Licenciaturas em História da Universidade do Estado da Bahia. Para tanto, expõe o debate travado nos campos da História do Tempo do Presente e do Ensino de História sobre as relações destes com as demandas sociais. Na sequência, faz uma apresentação dos subprojetos selecionados para estudo, inserindo-os no cenário brasileiro, onde políticas foram sendo adotadas nos últimos quinze anos.

Em A presença ausente dos indígenas e dos negros nas histórias das fortalezas catarinenses e o ensino de História Pedro Mülbersted Pereira e Jéssica Lícia da Assumpção propõe evidenciar a presença ausente de indígenas e negros no processo de patrimonialização da Fortaleza de Anhatomirim. O processo de patrimonialização é compreendido em três movimentos: discursos, restauro, usos. Apresentam as narrativas provenientes de uma dada historiografia catarinense, marcadamente eurocêntrica, que privilegia as contribuições dos colonizadores europeus em detrimento dos povos indígenas, africanos e afrodescendentes para a formação social, econômica e cultural de Santa Catarina.

O artigo Narrativas sobre a Diáspora Africana: um site educativo para a construção do conhecimento histórico a partir da trajetória de africanos em sala de aula de autoria de Carolina Corbellini Rovaris apresenta uma proposta didática resultante da pesquisa intitulada “Narrativas sobre a Diáspora Africana no Ensino de História: trajetórias de africanos em Desterro / SC no século XIX”. Procura debater a construção do conhecimento histórico por meio da produção de narrativas sobre populações de origem africana em Desterro / SC no século XIX, possibilitando aos estudantes evidenciarem e conhecerem a agência destes sujeitos ao longo dos processos históricos. O artigo apresenta o desenvolvimento do site e suas possibilidades de trabalho em sala de aula.

Melina Kleinert Perussatto, Fábio Araújo e Taíse Staudt no artigo Por um ensino de História antirracista registra uma experiência de formação de professores / as ocorrida em uma disciplina optativa de um curso de Licenciatura em História, trazendo ganhos e desafios de um ensino de história antirracista. Visa contribuir para a descolonização curricular e a implementação dos marcos legais em torno do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena e da educação das relações etnicorraciais no Brasil.

O artigo A História no Currículo Base do Território Catarinense de Núcia Alexandra Silva de Oliveira, Helena Alpini Rosa, Denize Aparecida da Silva apresenta o processo de escrita do componente curricular História no Currículo Base da Educação Infantil e Ensino Fundamental do Território Catarinense. Publiciza alguns dos movimentos que resultaram no texto como o processo de redação do texto; a revisão realizada com o grupo de profissionais de História; a estrutura apresentada para o Componente Curricular e, por fim, uma discussão sobre os limites e as possibilidades do texto redigido.

Em Intelectuais, ditadura e modernização em Santa Catarina, Michel Goulart da Silva debate a ideia de modernização elaborada por uma parcela dos intelectuais durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Analisa a produção dos intelectuais Alcides Abreu e Nereu do Valle Pereira, vinculados aos governos de cunho militar. Evidencia-se a produção de uma cultura política compartilhada por escritores, professores e outros intelectuais, que colaboraram com a construção de um discurso de legitimação do regime ditatorial.

Na seção resenha Tatiana Oliveira Santana apresenta o livro Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico organizado pelos autores decoloniais Joaze Bernardino-Costa, Nelson Maldonado-Torres e Ramón Grosfoguel, publicado pela Editora Autêntica em 2019. A escrita da autora pauta-se em problematizações como Quais são as nossas contribuições num mundo afrodiaspórico? Como podemos escrever o livro de nossas vidas e nos libertar das amarras processuais de colonização do conhecimento iniciadas no período colonial? Como apreender com as resistências negras e indígenas sem deixar de invisibilizar os lócus de enunciação? Quem tem o direito de viver e quem não tem? O privilégio de conhecimento de uns tem como indução a negação ou a afirmação de um corpo-política do conhecimento?

Em tempos de golpes e múltiplos retrocessos, como explicitamos no início desta apresentação, faz-se necessário pesquisar, debater, ensinar, problematizar nas escolas, nas universidades, nas ruas, igrejas, terreiros, aldeias, nos mais diversos lugares, as temáticas relativas aos povos afro-indo-latinos. Para tanto, não basta a existência de Leis antirracistas se não houver vontade política institucional e de cada sujeito, especialmente professores(as), diretores(as), estudantes ou dirigentes governamentais no combate à discriminação racial, silenciamento ou apagamento de memórias que não são daqueles que a mais de 500 anos estão no poder em nossa afrolatinoamérica.

Elison Antonio Paim

Mônica Martins da Silva

Organizadores do Dossiê Ensino de história e relações étnico raciais


PAIM, Elison Antonio; SILVA, Mônica Martins da. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.34, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Histórias e experiências (entre) cruzadas: sobre a escravidão, relações étnico-raciais e colonialismo / Mnemosine Revista / 2018

No Brasil, temas como escravidão, diáspora africana, colonialismo e relações ético-raciais já se firmaram nas investigações das Ciências Humanas e, de modo específico, dos estudos históricos. Atualmente, na História, inúmeras agendas de pesquisas vêm sendo desenvolvidas em torno desses e de outros temas conexos, entre os quais: história indígena, cidadania, educação, religiosidade, relações de gênero, movimentos sociais, identidade e violência. Tais interrelações temáticas têm tomado como objeto não apenas as relações sociais estabelecidas em nosso país, mas diante de outros recortes espaciais, em especial a partir de América, África e Europa.

Os artigos presentes neste dossiê foram elaborados por pesquisadores (as) que se inserem nesse novo contexto de pesquisas. Marley Antônia Silva da Silva, em seu artigo Do norte da África ao norte da América Portuguesa (1755-1815), destaca as conexões transatlânticas das populações africanas com foco no Grão-Pará e a Alta Guiné, no norte da África. O artigo se apresenta como um guia para adentrarmos as tramas sociais dos interesses e condições históricas que condicionaram dinâmicas escravistas e outras dimensões da diáspora africana forçada, que conformaram as populações das regiões de São Luís e Belém, entre o final do século XVIII e início do século XIX.

Em Para libertar o meu filho: Estratégias utilizadas por forras e escravas ao alforriarem na segunda metade do século XVIII em Minas Gerais, Carlo Guimarães Monti nos apresenta as estratégias de mulheres escravizadas em busca por alforrias. Nesta linha, levantou e avaliou um amplo escopo documental, composto de inventários e testamentos de senhores de escravizados. Sua análise foi constituída com vistas nas redes familiares, pontos fundamentais para os escravizados alcançarem seus intentos de liberdade. Deteve-se também sobre o caráter privado das alforrias, como instrumento fundamental para a tentativa de manutenção da sujeição dos escravizados.

Marcelo Ferreira Lobo, em Para além da alforria: Mobilidade e sobrevivência de Libertos no Brasil (Grão-Pará, 1800-1888), analisa as noções de cidadania e direitos construídas ao longo do século XIX no Grão-Pará. Para isso, lançou mão de problematizações sobre as possibilidades de mobilidade social e liberdade no cotidiano de mulheres e homens alforriados, a partir da análise de testamentos de senhores e libertos. Investigou, desse modo, regiões intermediárias entre a escravidão e a liberdade, onde se fizeram presentes reinvenções do paternalismo, mas também as lutas de negras e negros frente a miséria, insegurança econômica e perseguição das forças de segurança.

Pedro Nicácio Souto, em Escravidão e Pecuária na Paraíba: São João do Cariri (1870-1888), discorre sobre as singularidades das formas de escravidão ocorridas em São João do Cariri – PB, no final do século XIX. São apresentados diferentes aspectos do panorama econômico, social e demográfico local, nas últimas décadas da escravidão. Delineiam-se particularidades da sociedade escravista desta localidade, marcada pela importância da pecuária e da agricultura de subsistência. Souto aborda como as relações sociais em torno da pecuária influenciaram as maneiras como constituídas as experiências dos escravizados e suas relações junto aos senhores.

No artigo Em defesa da classe: Pós-Abolição, racismo e imprensa negra em Campinas e Piracicaba, Willian Robson Soares Lucindo aborda os jornais produzidos nas cidades paulistas de Piracicaba e Campinas no pós-abolição. Apresenta importante chave interpretativa para a compreensão do racialismo e do racismo enquanto fundamentos de criminalização das populações negras. Para tanto, deslinda ações diversas dos grupos dominantes e de mulheres e homens negros subalternizados, ressaltando também a importância da imprensa negra no debate público e na denúncia das concepções preconceituosas em (re)estruturação naquele contexto.

Em A Docência como Missão na América Latina: Reflexões sobre a formação professores e professoras de história na Amazônia Oriental, Maria Clara Sales Carneiro Sampaio efetua um movimento reflexivo sobre sua experiência docente na regência de disciplinas relacionadas a história da América e história indígena, na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Sampaio articula experiências vivenciadas na história recente da Amazônia Oriental com realidades mais distantes no espaço e tempo, visando o melhor entendimento das tensões e desafios presentes no contato entre os missionários e os povos indígenas durante a colonização da América.

O dossiê se encerra com o artigo As vozes escritas de Pepetela: identidade angolana, literatura e colonialismo em “Mayombe” e “A geração da utopia”. À luz da hermenêutica e de uma postura etnográfica, João Matias de Oliveira Neto nos apresenta uma análise de dois romances históricos do escritor angolano Pepetela. Tomando como objeto essa literatura, o autor reflete sobre as dinâmicas identitárias e as percepções de diferentes sujeitos sociais, constituídas nos processos colonial e pós-colonial pelos quais passou o atual Estado de Angola. Tais questões se fazem presentes na escrita de Pepetela, a partir das situações históricas experienciadas e refletidas pelos personagens.

Sob os auspícios deste quadro, emoldurado por abordagens em diversas perspectivas, convidamos os(as) leitores(as) a imergirem nessas múltiplas historicidades vivenciadas no Brasil, Angola e outros locais de colonização Ibérica em contextos coloniais e pós-coloniais.

Sérgio Luiz de Souza – Professor Adjunto no Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de Rondônia (UNIR) – Campus Porto Velho, onde atua no Programa de Mestrado em História e Estudos Culturais. Pesquisador associado ao Centro de Estudos das Línguas e Culturas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN) da UNESP / Araraquara. E-mail: [email protected]

Janailson Macêdo Luiz – Professor Assistente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Campus Marabá. Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]


SOUZA, Sérgio Luiz de; LUIZ, Janailson Macêdo. Apresentação. Mnemosine Revista, Campina Grande – PB, v.9, n.1, jan / jun, 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê