Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar / Sandra Reimão

Desde a década de 1980, em que ocorreu a abertura política no Brasil, não se assistia a tão grande empenho em desvelar fatos relacionados ao período da ditadura militar brasileira, empenho que se verifica tanto em atos políticos deliberados (como a criação de uma Comissão da Verdade ou o acesso a documentos considerados sigilosos) quanto em estudos, acadêmicos ou não, voltados à compreensão e elucidação daquele conturbado período de nossa história recente.

Em Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar, Sandra Reimão lembra que uma das primeiras ações dos regimes autoritários é, justamente, a censura da liberdade de expressão, por meio da repressão à imprensa, aos livros, aos meios de comunicação etc. Nesse sentido, a autora se propõe estudar a censura de livros de ficção brasileira durante do regime autoritário de 1964 a 1985, em especial aqueles cujos processos (atualmente no Arquivo Nacional de Brasília) ficaram sob a responsabilidade do Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP), órgão vinculado ao Serviço de Censura e Diversões Públicas e ao Ministério da Justiça. Em relação ao conceito de censura, define a autora: “concebemos a censura como parte de um aparelho de coerção e repressão que, muito mais do que afetar a circulação de alguns bens culturais, restringia a produção e a circulação da cultura, implicando uma profunda mudança no exercício da cidadania e da cultura em geral” (p. 14).

A autora lembra que, antes do golpe de 1964, consolidou-se no Brasil uma “reflexão social de ideário esquerdista” (p. 19), presente em parte da produção artística e intelectual, manifestações que, num primeiro momento, foram relativamente preservadas pelos militares, permitindo, por exemplo, a publicação da revista Pif-Paf (1964, por Millôr Fernandes), dos livros O ato e o fato (1964, de Carlos Heitor Cony), Quarup (1964, por Antônio Callado), Senhor Embaixador (1968, por Érico Veríssimo) etc., embora alguns outros livros tenham sido apreendidos já naquele momento, sobretudo os que tratavam do próprio golpe militar, como Primeiro de abril (de Mário Lago), O golpe de abril (de Edmundo Muniz), História Militar do Brasil (de Nelson Werneck Sodré) e outros. Ações mais intensas e direcionadas foram, igualmente, perpetradas pelo poder constituído, ainda nessa primeira fase do golpe, como a perseguição ao editor Ênio Silveira, o expurgo de bibliotecas pelo Ministro da Educação Flávio Lacerda, a perseguição das obras de Nelson Rodrigues pelo Ministro da Justiça Carlos Medeiros Silva, uma série de atentados a editoras e livrarias (Editora Tempo Brasileiro, Editora Civilização Brasileira, Livraria Forense) etc.

Com a edição do Ato Institucional n. 5 (AI-5) pelo Presidente Costa e Silva, em dezembro de 1968, a censura se adensa, espalhando-se por todo o país e atingindo todos os meios de comunicação, mas, ao mesmo tempo, dando ensejo ao aparecimento de uma imprensa alternativa e, às vezes, clandestina (O Pasquim, Opinião).

Apesar da diferença de números entre pesquisadores do assunto (Zuenir Ventura fala em 200 livros; Deonísio da Silva fala em 430 livros), a censura à produção editorial no período da ditatura foi intensa, atingindo inclusive a publicação de peças de teatro (Guilherme Figueiredo, Oduvaldo Vianna Filho, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos etc.), filmes (Macunaíma, São Bernardo, Toda nudez será castigada etc.), livros teóricos (Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro, Guilhon Albuquerque, Rose Marie Muraro etc.) ou considerados pornográficos (Cassandra Rios, Adelaide Carraro, Márcia Fagundes Varella, Brigitte Bijou etc.).

Objeto de estudo da autora, os livros de ficção censurados, que constam nos arquivos do DCDP, são Quatro contos de pavor e alguns poemas desesperados (Álvaro Alves de Faria), Dez histórias imorais (Aguinaldo Silva), Meu companheiro querido (Alex Polari), Zero (Ignácio de Loyola Brandão), Em câmara lenta (Renato Tapajós), Aracelli, meu amor (José Louzeiro), Feliz ano novo (Rubem Fonseca), Diários de André (Brasigóis Felício) e os contos “Mister Curitiba” (Dalton Trevisan) e “O cobrador” (Rubem Fonseca), obras bastante diferentes, mas cujo tema comum a quase todas é a violência física e psicológica.

Tratando, em especial, do livro Feliz ano novo (1975, de Rubem Fonseca) e Zero (1976, de Ignácio de Loyola Brandão) – publicados num período (década de 1970) em que, segundo a autora, “a literatura tornou-se um centro de atenções” (p. 62) da ditadura militar -, Sandra Reimão afirma tratar-se de obras que têm no tema da violência um de seus assuntos principais. Sobre o livro de Aguinaldo Silva (Dez histórias imorais), afirma ter sido censurado quase dez anos após sua publicação, muito provavelmente em razão de sua militância contra o regime autoritário (trabalhou nos jornais Opinião e Movimento, ambos periódicos de resistência à ditadura) e em favor dos direitos dos homossexuais (foi, ao lado de outros escritores e intelectuais, fundador do jornal O Lampião, órgão da imprensa pioneiro nesse tema). Em relação ao livro Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós, a autora afirma ter sido um “caso único de autor preso durante a ditadura militar por causa do conteúdo de um livro” (p. 89), sendo, além disso, “o primeiro livro de memórias de ex-militantes políticos da década de 1960” (p. 91), a que se seguiram Os carbonários (Alfredo Sirkis) e O que é isso companheiro? (Fernando Gabeira). A autora trata, finalmente, dos dois contos censurados de, respectivamente, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca (ambos publicados na revista erótica Status, em 1978), tendo sido, ambos, no ano seguinte à censura, publicados em livro, sem contudo sofrerem censura desta vez.

Como conclusão, a autora chega a três constatações gerais: primeiro, a de que toda coação é temporária e limitada; segundo, a de que o ato censório é uma violência à própria cidadania, ultrapassando os limites da circulação de bens culturais; terceiro, a de que há quase sempre um grande número de ações de resistência à censura aos livros, da parte de editores, escritores, leitores etc.

O livro traz ainda alguns anexos: leis e pareceres, lista de livros censurados etc., o que, no conjunto, faz dele uma referência para os estudos sobre o tema e uma leitura necessária aos pesquisadores da censura cultural no Brasil do século passado.

Maurício Silva –Doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Nove de Julho (SP).


REIMÃO, Sandra. Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar. São Paulo, Editora da USP/FAPESP, 2011. Resenha de: SILVA, Maurício. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.24, p.195-197, jan./jul., 2014. Acessar publicação original. [IF].