A descolonizar las metodologías: investigación y pueblos indígena | Linda Tuhiwai Smith

Professora de educação da Universidade de Waikato (Nova Zelândia), Linda Tuhiwai Smith dedica-se especialmente ao estudo das comunidades indígenas, em particular dos maoris, povos nativos da Nova Zelândia. Seu estudo sobre o papel da pesquisa ocidental voltada às comunidades indígenas no contexto da colonização e da neocolonização, aqui resenhado, foi traduzido para diversas línguas, tendo recebido o prêmio New Year Honours (2013), em seu país de origem. Publicado pela primeira vez, em inglês, em 1999, foi traduzido para o espanhol, nesta edição chilena, por Kathryn Lehman.

Sem se preocupar exatamente com o método, mas com o contexto em que os problemas de investigação são pensados e projetados, bem como com as implicações da pesquisa para o investigador e o investigado (em especial os indígenas), a autora propõe tratar das relações entre um conhecimento colonizador e povos colonizados. Daí entender, de início, a investigação como “um conjunto de ideias, práticas e privilégios que está embutido no expansionismo imperial e na colonização, e institucionalizado nas disciplinas acadêmicas, escolas, currículos, universidades e poder” (SMITH, 2016, p. 13). Desse modo, não se trata de ir contra a investigação ou o conhecimento, mas de propor novas maneiras de conhecer e descobrir, novas maneiras de pensar a investigação com povos indígenas. Leia Mais

Rap e política. Percepções da vida social brasileira | Roberto Camargos

Originalmente escrita como dissertação de mestrado na Universidade Federal de Uberlândia, Rap e política é resultado de intensa pesquisa, que mereceu mais de um prêmio antes mesmo de ser publicado. Seu autor, Roberto Camargos, é, atualmente, doutorando na Universidade Federal de Uberlândia, a mesma universidade em que fez a graduação e o mestrado. Para a pesquisa que resultou nesta publicação, pesquisou centenas de músicas daquele gênero, gravadas entre 1990 e 2005, num trabalho que demandou muita pesquisa e apuro crítico.

O autor começa discordando das posições críticas que desautorizam o rap como arte, expressão cultural, comportamento etc., afirmando que é necessário Leia Mais

Literatura comparada. Reflexões – COUTINHO (A-EN)

COUTINHO, Eduardo. Literatura comparada. Reflexões. São Paulo: Annablume, 2013. Resenha de: SILVA, Maurício. Alea, Rio de Janeiro, v.18 n.1, jan./apr. 2016.

Professor titular de Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e de diversas universidades estrangeiras, além de membro fundador e ex-presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), Eduardo Coutinho publica em 2013 um livro que, de certo modo, é uma espécie de continuação do livro que publicou há dez anos (Literatura comparada na América Latina: ensaios), como o próprio autor lembra em seu prefácio. Privilegiando aspectos do comparatismo literário na segunda metade do século XX e no contexto da América Latina, Coutinho elenca alguns textos publicados anteriormente em revistas acadêmicas ou coletâneas de estudos teóricos sobre o tema. Pode-se dizer que são três os temas principais analisados e discutidos pelo autor nesse seu novo livro: 1. o comparatismo literário em geral e suas relações com áreas afins (crítica literária, historiografia literária, tradução etc.); 2. a relação entre a Literatura Comparada e o advento do pós-modernismo/pós-modernidade; 3. a presença da Literatura Comparada na América Latina, problematizando essa proximidade.

Em relação ao primeiro tema, Coutinho destaca – em “Literatura comparada: reflexões sobre uma disciplina acadêmica” (2013: 11-31) – o fato de que a Literatura Comparada tem como marca fundamental o conceito de transversalidade, tanto em relação à fronteira entre nações e idiomas quanto em relação aos limites entre áreas do conhecimento. Retoma, nesse sentido, alguns momentos do comparatismo literário, como o de Guyard (La littérature comparée, 1951), com o predomínio dos binarismos da Escola Francesa ou o de Pichois e Rousseau (La littérature comparée, 1967); como o de Owen Aldridge (Comparative literature, 1969), com uma perspectiva mais abrangente, relacionada à interdisciplinaridade, da Escola Americana ou o de Henry Remak (Comparative literature, 1961). Para o autor, a noção de transversalidade, contudo, se faz mais explícita na inter-relação da literatura com outras áreas do conhecimento, tendência que vem se ampliando cada vez mais atualmente. Trata-se, portanto, de uma das principais preocupações teórico-metodológicas dos pesquisadores da área, repercutindo, no presente, a contribuição dos Estudos Culturais e Pós-Coloniais no campo do comparatismo, que desvia a ênfase no literário (ainda presente mesmo na Escola Americana) para outras áreas do saber: hoje, pode-se dizer, prevalece um sentido de interdisciplinaridade entre culturas.

Já em “Criação e crítica: reflexões sobre o papel do crítico literário” (2013: 99-108), Coutinho trata do papel e da natureza da Crítica Literária, afirmando que “é possível intuir-se até certo ponto a qualidade de uma obra, mas não estabelecerem-se critérios objetivos de avaliação” (2013: 101). Essa situação se torna mais evidente com questões trazidas pela pós-modernidade, levando a Crítica a “mergulha(r) em terreno pantanoso, sem parâmetros definidos” (2013: 104), resultando numa “espécie de relativização segundo a qual os critérios de avaliação passam a oscilar de acordo com o olhar adotado e o locus de enunciação do estudioso” (2013: 105). Reflexões análogas a esta o autor faz em relação à tradução, quando – em “Literatura comparada e tradução no Brasil: breves reflexões” (2013: 109-119) – lembra que a tradução vem sendo tradicionalmente considerada uma atividade secundária, situação que sofre significativa transformação com o advento dos Estudos Culturais, os Estudos Pós-Coloniais e a Desconstrução: a Tradução (ou o que passou a se chamar Estudos de Tradução) torna-se mais valorizada, destacando diferenças históricas e culturais, rompendo com a hierarquia entre o original e o traduzido: “dentro dessa perspectiva, traduzir se torna estabelecer um diálogo, e não apenas no nível linguístico, mas principalmente no nível cultural” (2013: 112); ou quando lembra – em “O comparatismo nas fronteiras do conhecimento: contradições e conflitos” (2013: 121-133) – que, ao contrário da lógica iluminista, a pós-moderna considera o conhecimento como algo instável, desqualificando a noção de fronteira e a compartimentação de saberes e valorizando noções como as de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade e, finalmente, colocando em xeque o “privilégio concedido ao texto literário” (2013: 123) pelo comparatismo tradicional. Amplia-se, assim, a reflexão em torno da produção literária, incentivando suas relações extrínsecas com contextos históricos, sociológicos, psicológicos etc. e promovendo o diálogo com as demais disciplinas: “as fronteiras, embora tênues, que ainda marcavam o comparatismo foram amplamente esgarçadas, e a disciplina [Literatura Comparada], além de absorver elementos de outras e de prestar subsídios a suas elaborações, tem-se erigido como espaço de reflexão sobre a produção, a circulação e a negociação de objetos e valores, contribuindo assim de maneira decisiva para a esfera mais ampla dos Estudos de Humanidades” (2013: 127). Tem-se, desse modo, que os princípios tradicionais do comparatismo literário foi combatido pelos Estudos Culturais, além de ter muitos de seus pressupostos questionados pelos Estudos Pós-Coloniais.

Em relação ao segundo tema, o autor – em “Revisitando o pós-moderno” (2013: 33-58) – começa distinguindo pós-modernidade de pós-modernismo, nos seguintes termos: “encaramos a pós-modernidade como um fenômeno geral, uma Weltanschauung, que implica uma série de transformações no panorama cultural ocidental, e o pós-modernismo como um estilo de época, marcado por traços mais ou menos definíveis, que refletem tais transformações” (2013: 34). O autor se propõe a abordar esses conceitos no contexto latino-americano (em particular, no brasileiro), tendo como eixo da discussão a tensão entre identidade e diferença. Lembra, por exemplo, que o Modernismo, ao se opor à representação realista, instaura uma crise da representação, conferindo à obra de arte uma autonomia que a dissociava do contexto histórico e a destituía de preocupações fora da ordem estética, ligando-se à racionalidade. Após a Segunda Guerra Mundial, essa perspectiva começa a apresentar sinais de exaustão, e a partir dos anos 50-60 seus pressupostos começam a ser colocados em xeque pelo que, depois, se convencionou chamar de pós-modernismo. A obra de arte, então, deixa de ser modelar, rompendo-se a separação entre o erudito e o popular e revalorizando o contexto histórico: “partindo da consciência de sua condição de discurso e do reconhecimento de seu caráter histórico, o pós-moderno põe em xeque princípios como valor, ordem, significado, controle e identidade, que constituíram premissas básicas do liberalismo burguês, e se erige como um fenômeno fundamentalmente contraditório, marcado por traços como o paradoxo, a ambiguidade, a ironia, a indeterminação e a contingência. Desaparece, assim, a segurança ética, ontológica e epistemológica, que a razão garantia no paradigma moderno e o pós-moderno se insurge como o reino da relatividade” (2013: 40). E completando:

O fenômeno pós-moderno se revela justamente naquelas obras em que se vislumbra uma pluralidade de linguagens, modelos e procedimentos, e onde oposições como aquelas entre realismo e irrealismo, formalismo e conteudismo, esteticismo e engajamento político, literatura erudita e popular cedem lugar a uma coexistência em tensão desses mesmos elementos. Utilizando-se da paródia e de outros recursos técnicos desestabilizadores, o Pós-Modernismo desestrutura figuras e vozes narrativas estáveis e problematiza toda a noção tradicional de conhecimento histórico, pondo em questão ao mesmo tempo todas as instituições e sistemas que constituem as fontes básicas de significado e valor da tradição estética ocidental. (2013: 41)

Analisando o fenômeno do Pós-Modernismo historicamente, Coutinho lembra que, nos anos 1960, ele se afirma como um movimento de contestação e irreverência, ligando-se aos movimentos de arte pop e, de certo modo, revitalizando alguns movimentos de vanguarda e dando-lhes uma roupagem mais norte-americana; nos anos 1970 e 1980, o conceito se alia a uma visão mais crítica da realidade, para, nos anos 1990, a participação de minorias conferir-lhe um sentido próximo da então chamada literatura pós-colonial (e, também, dos Estudos Culturais), retomando, além disso, a questão da representação e do sujeito, fazendo com que o Pós-Modernismo adquira um sentido mais político, na medida em que passa a contestar toda sorte de etnocentrismo. Para o autor, no contexto latino-americano, o conceito de Pós-Modernismo remete, principalmente, à produção artística pós-segunda metade do século XX.

Finalmente, em relação ao terceiro tema, começa tratando – em “América Latina: o móvel e o plural” (2013: 59-67) – do termo América Latina, desde a chegada dos europeus associado à ideia de colonização e, na sequência, vinculado a processos de independência e de afirmação de identidades locais. A ideia passa por algumas ampliações semânticas, incluindo o Brasil e, posteriormente, a América Central, caráter mais inclusivo que vai se afirmando também com as novas correntes teóricas de reflexão acerca da cultura (Nova História, Estudos Culturais, Estudos Pós-Coloniais etc.).

Em “Transferências e trocas culturais na América Latina” (2013: 69-84), afirma que a Literatura Comparada, desde o início, surge “como um conceito relacional, ou, melhor, como o estudo das relações entre produções literárias distintas” (2013: 69), diferenciando-se das literaturas nacionais por ter como objeto “produtos literários, e por extensão culturais, distintos, caracterizando-se como o estudo dos contatos, trocas, intercâmbios e embates entre tais produtos, ou, para colocar em termos mais acadêmicos, como o estudo, mais ou menos sistemático, dos diálogos entre culturas” (2013: 70). Após uma fase de ênfase quase que exclusiva no texto literário (como se verifica na Escola Americana), o advento dos Estudos Culturais ressaltou, no âmbito do comparatismo literário, aspectos mais gerais da literatura, contribuindo para “situar a reflexão literária num âmbito mais geral que diz respeito à cultura de uma ou de várias sociedades” (2013: 71). Essa postura contribui significativamente para uma compreensão mais larga da realidade latino-americana, quase sempre vista numa dependência da europeia, prejudicando leituras que a pudessem contemplar como um “espaço distinto do eurocentrismo” (2013: 73). É o que propõem teorias como as de heterogeneidade cultural (Cornejo Polar), culturas híbridas (Canclini), heterogeneidade cultural heterônoma (Brunner), pós-ocidentalismo (Mignolo) e outras, novos modos e novas estratégias de leitura diante de um espaço cultural plural. Nesse contexto, o atual papel da Literatura Comparada (não, evidentemente, a tradicional, que aborda as relações a partir do modelo europeu) torna-se fundamental, no sentido de promover “um comparatismo que permita o contraste entre distintas práticas sociais discursivas procedentes de culturas diferentes que convivem em um mesmo espaço-tempo” (2013: 89). Trata-se, assim, de um comparatismo que reconhece a existência de práticas discursivas próprias de contextos colonizados; reconhece, portanto, o conhecimento produzido pelo outro: “trata-se, em última instância, de um comparatismo situado no contexto de onde olhamos, que, ao contrastar as produções locais com as provenientes de outros lugares, instaure uma reciprocidade cultural, uma interação plural, que induz conhecimento a partir do contacto com outras culturas” (2013: 83).

Já em “Cartografias literárias na América Latina: algumas reflexões” (2013: 85-108), o autor afirma que a nova historiografia literária vem procurando formular um “discurso fundamentalmente plural, heterogêneo, representado por múltiplos sujeitos, que dê conta da diversidade dos universos representados” (2013: 86), desafiando os historiadores literários a produzir um relato inclusivo. Assim, o discurso nacional contemporâneo precisa ser um espaço de negociação e conversação pelos sujeitos que compõem o cenário da nação, sendo colocada em suspeição a ideia de uma versão oficial e única dos fatos. No âmbito da historiografia literária, portanto, “a busca da construção de uma história democrática da produção literária de uma nação [deve] passar necessariamente pelo questionamento [do] cânone [oficial], sobretudo com seus vieses excludentes e elitistas” (2013: 87). Nesse processo de redimensionamento da historiografia literária, os Estudos Culturais desempenham papel relevante, incluindo entre as preocupações daquela dos discursos e saberes, ultrapassando as fronteiras do que até então era considerado literário: “agora, ao lado do exame do texto, bem como dos gêneros, estilos e topos, que por tanto tempo alicerçaram as obras de História da Literatura, torna-se relevante também a análise do campo em que se produziu a experiência literária, e o contexto de recepção da obra é tratado com a mesma importância do de produção” (2013: 89). Nesse novo contexto, o discurso da historiografia literária passa a ser visto como uma construção: “Como são muitos os sujeitos sociais que passam a narrar a história, e esses sujeitos procedem de origens distintas, o idioma canônico deixa de ser a única forma de expressão de uma determinada comunidade, passando a aceitar outras linguagens, e rompendo-se, assim, com toda sorte de visão monolítica do real” (2013: 90). Nesse contexto ainda, em que a episteme pós-moderna coloca em xeque os discursos autoritários, a historiografia literária vem adquirindo uma nova face, que se organiza tanto no eixo temporal (substituindo uma noção de progressão/evolucionismo pela de simultaneidade) quanto no espacial (considerando regiões culturais até então excluídas do cânone), além de um alargamento das formas literárias, incorporando algumas tradicionalmente excluídas da historiografia (como o corrido mexicano ou o cordel brasileiro).

Por fim, em “Velhas dicotomias que se enlaçam: voz/letra, público/privado no universo latino-americano” (2013: 135-145), o autor trata, entre outras coisas, da reverência à cultura letrada no processo de colonização da América Latina (“A palavra falada, a voz, pertencia ao reino do inseguro e do precário; e a escritura, ao contrário, possuía rigidez e permanência, um modo autônomo que arremedava a eternidade”, 2013: 138).

Pode-se dizer que seu livro é uma consciente e bem fundamentada apologia dos ganhos e achados oferecidos ao comparatismo literário – em vários de seus níveis de atuação prática – pelas novas teorias que, na contemporaneidade, recebem a designação de Estudos Culturais e Pós-Coloniais e abordagens congêneres, dentro do que o autor chama de episteme pós-moderna.

Mauricio Silva possui doutorado e pós-doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo. Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação, na Universidade Nove de Julho (São Paulo), é autor dos livros A Hélade e o Subúrbio. Confrontos Literários na Belle Époque Carioca (São Paulo, Edusp, 2006); A Resignação dos Humildes. Estética e Combate na Ficção de Lima Barreto (São Paulo, Annablume, 2011), entre outros. É organizador da coleção de Literatura Brasileira Contemporânea, pela Editora Terracota, atualmente com três títulos publicados. Endereço para correspondência: Rua General Rondon, 44 – Ap. 10 – São Paulo – SP – 01204-010. E-mail: [email protected].

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Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar / Sandra Reimão

Desde a década de 1980, em que ocorreu a abertura política no Brasil, não se assistia a tão grande empenho em desvelar fatos relacionados ao período da ditadura militar brasileira, empenho que se verifica tanto em atos políticos deliberados (como a criação de uma Comissão da Verdade ou o acesso a documentos considerados sigilosos) quanto em estudos, acadêmicos ou não, voltados à compreensão e elucidação daquele conturbado período de nossa história recente.

Em Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar, Sandra Reimão lembra que uma das primeiras ações dos regimes autoritários é, justamente, a censura da liberdade de expressão, por meio da repressão à imprensa, aos livros, aos meios de comunicação etc. Nesse sentido, a autora se propõe estudar a censura de livros de ficção brasileira durante do regime autoritário de 1964 a 1985, em especial aqueles cujos processos (atualmente no Arquivo Nacional de Brasília) ficaram sob a responsabilidade do Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP), órgão vinculado ao Serviço de Censura e Diversões Públicas e ao Ministério da Justiça. Em relação ao conceito de censura, define a autora: “concebemos a censura como parte de um aparelho de coerção e repressão que, muito mais do que afetar a circulação de alguns bens culturais, restringia a produção e a circulação da cultura, implicando uma profunda mudança no exercício da cidadania e da cultura em geral” (p. 14).

A autora lembra que, antes do golpe de 1964, consolidou-se no Brasil uma “reflexão social de ideário esquerdista” (p. 19), presente em parte da produção artística e intelectual, manifestações que, num primeiro momento, foram relativamente preservadas pelos militares, permitindo, por exemplo, a publicação da revista Pif-Paf (1964, por Millôr Fernandes), dos livros O ato e o fato (1964, de Carlos Heitor Cony), Quarup (1964, por Antônio Callado), Senhor Embaixador (1968, por Érico Veríssimo) etc., embora alguns outros livros tenham sido apreendidos já naquele momento, sobretudo os que tratavam do próprio golpe militar, como Primeiro de abril (de Mário Lago), O golpe de abril (de Edmundo Muniz), História Militar do Brasil (de Nelson Werneck Sodré) e outros. Ações mais intensas e direcionadas foram, igualmente, perpetradas pelo poder constituído, ainda nessa primeira fase do golpe, como a perseguição ao editor Ênio Silveira, o expurgo de bibliotecas pelo Ministro da Educação Flávio Lacerda, a perseguição das obras de Nelson Rodrigues pelo Ministro da Justiça Carlos Medeiros Silva, uma série de atentados a editoras e livrarias (Editora Tempo Brasileiro, Editora Civilização Brasileira, Livraria Forense) etc.

Com a edição do Ato Institucional n. 5 (AI-5) pelo Presidente Costa e Silva, em dezembro de 1968, a censura se adensa, espalhando-se por todo o país e atingindo todos os meios de comunicação, mas, ao mesmo tempo, dando ensejo ao aparecimento de uma imprensa alternativa e, às vezes, clandestina (O Pasquim, Opinião).

Apesar da diferença de números entre pesquisadores do assunto (Zuenir Ventura fala em 200 livros; Deonísio da Silva fala em 430 livros), a censura à produção editorial no período da ditatura foi intensa, atingindo inclusive a publicação de peças de teatro (Guilherme Figueiredo, Oduvaldo Vianna Filho, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos etc.), filmes (Macunaíma, São Bernardo, Toda nudez será castigada etc.), livros teóricos (Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro, Guilhon Albuquerque, Rose Marie Muraro etc.) ou considerados pornográficos (Cassandra Rios, Adelaide Carraro, Márcia Fagundes Varella, Brigitte Bijou etc.).

Objeto de estudo da autora, os livros de ficção censurados, que constam nos arquivos do DCDP, são Quatro contos de pavor e alguns poemas desesperados (Álvaro Alves de Faria), Dez histórias imorais (Aguinaldo Silva), Meu companheiro querido (Alex Polari), Zero (Ignácio de Loyola Brandão), Em câmara lenta (Renato Tapajós), Aracelli, meu amor (José Louzeiro), Feliz ano novo (Rubem Fonseca), Diários de André (Brasigóis Felício) e os contos “Mister Curitiba” (Dalton Trevisan) e “O cobrador” (Rubem Fonseca), obras bastante diferentes, mas cujo tema comum a quase todas é a violência física e psicológica.

Tratando, em especial, do livro Feliz ano novo (1975, de Rubem Fonseca) e Zero (1976, de Ignácio de Loyola Brandão) – publicados num período (década de 1970) em que, segundo a autora, “a literatura tornou-se um centro de atenções” (p. 62) da ditadura militar -, Sandra Reimão afirma tratar-se de obras que têm no tema da violência um de seus assuntos principais. Sobre o livro de Aguinaldo Silva (Dez histórias imorais), afirma ter sido censurado quase dez anos após sua publicação, muito provavelmente em razão de sua militância contra o regime autoritário (trabalhou nos jornais Opinião e Movimento, ambos periódicos de resistência à ditadura) e em favor dos direitos dos homossexuais (foi, ao lado de outros escritores e intelectuais, fundador do jornal O Lampião, órgão da imprensa pioneiro nesse tema). Em relação ao livro Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós, a autora afirma ter sido um “caso único de autor preso durante a ditadura militar por causa do conteúdo de um livro” (p. 89), sendo, além disso, “o primeiro livro de memórias de ex-militantes políticos da década de 1960” (p. 91), a que se seguiram Os carbonários (Alfredo Sirkis) e O que é isso companheiro? (Fernando Gabeira). A autora trata, finalmente, dos dois contos censurados de, respectivamente, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca (ambos publicados na revista erótica Status, em 1978), tendo sido, ambos, no ano seguinte à censura, publicados em livro, sem contudo sofrerem censura desta vez.

Como conclusão, a autora chega a três constatações gerais: primeiro, a de que toda coação é temporária e limitada; segundo, a de que o ato censório é uma violência à própria cidadania, ultrapassando os limites da circulação de bens culturais; terceiro, a de que há quase sempre um grande número de ações de resistência à censura aos livros, da parte de editores, escritores, leitores etc.

O livro traz ainda alguns anexos: leis e pareceres, lista de livros censurados etc., o que, no conjunto, faz dele uma referência para os estudos sobre o tema e uma leitura necessária aos pesquisadores da censura cultural no Brasil do século passado.

Maurício Silva –Doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Nove de Julho (SP).


REIMÃO, Sandra. Repressão e Resistência. Censura e Livros na Ditadura Militar. São Paulo, Editora da USP/FAPESP, 2011. Resenha de: SILVA, Maurício. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.24, p.195-197, jan./jul., 2014. Acessar publicação original. [IF].

A arte de ler ou como resistir à adversidade | Michèle Petit

Abordagens teóricas sobre leitura e suas consequências na vida das pessoas têm sido relativamente comuns ultimamente. Não tão comum assim, contudo, é a tentativa de conciliar semelhante perspectiva a atividades próprias da psicoterapia e suas derivações, como procura fazer Michéle Petit em seu mais recente livro (A arte de ler ou como resistir à adversidade).

Refletindo sobre a atuação da leitura em lugares onde a crise é particularmente intensa (situações de guerra e violência, contextos de deslocamentos populacionais e recessões econômicas etc.), a autora começa lembrando que, em tais situações, a leitura poderia contribuir tanto na reconstrução de si mesmo quanto na promoção de uma atividade psíquica saudável. Nesse sentido, defende a apropriação da literatura nessa tarefa, na medida em que a literatura, além de mais crítica, torna-se mais capaz de explorar melhor a experiência humana. Semelhante atividade, completa a autora, tem sido desempenhada pelos mediadores de livros, cuja principal função seria auxiliar na compreensão da literatura como instrumento de organização e transformação da própria história dos leitores. São esses mediadores culturais que criam uma “abertura psíquica” (p. 50), revelando ao leitor o universo dos livros e da literatura, prática na qual a oralidade desempenha papel imponderável. Leia Mais