Trabalho e trabalhadores no Nordeste – Análises e perspectivas de Pesquisas Históricas em Alagoas, Pernambuco e Paraíba | Tiago Bernardon de Oliveira

A noção de “experiência” concebida por Edward Thompson na sua célebre obra A Formação da classe operária inglesa, publicada pela primeira vez em 1963, foi cara para o desenvolvimento da História do Trabalho no mundo e no Brasil [1]. No país, desde sua ascensão no departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nas últimas décadas do século XX, pesquisadores tentam deslocar temas e objetos historiográficos que ligam a história de trabalhadores com, apenas e necessariamente, seus órgãos organizadores – partidos, sindicatos e líderes políticos –, mas juntando estes com suas próprias tradições, culturas, ideias, pensamentos, ideologias e construções sociais.

Não obstante, uma tendência ainda forte parece perdurar no país, embora com embates significativos e pesquisas já consolidadas em sua contramão – a narrativa de uma História do Trabalho e de trabalhadores centrada no eixo Rio-São Paulo ou, quando não, tomando exemplos destes estados e suas experiências como centros de referências e moldes a serem seguidos pelos agentes, organismos e instituições de outras regiões. A historiadora Silvia Petersen, em meados dos anos 1990, já havia alertado que “a história operária brasileira poderia alcançar outro patamar político se houvesse a articulação dos resultados das pesquisas regionais”[2], mas o fato é que o “Rio de Janeiro e São Paulo foram constituídos como centros definidores de sentido para a história operária do Brasil”[3] e que, no caso de seu objeto de estudo,

[…] as pesquisas acadêmicas sobre o movimento operário no Rio Grande do Sul, que aparecem nos anos 70, também tiveram por horizonte o que aconteceu no centro do país, tomado como padrão. Há uma preocupação correta em buscar referências nas regiões política e economicamente hegemônicas, mas estes trabalhos tiveram via de regra o viés de fazer aproximações na ausência de investigações mais precisas, de transferir explicações para suprir lacunas na investigação local.[4]

O símbolo do anarquista italiano de São Paulo ou do trabalhismo carioca, assim como a industrialização dessas cidades, não parecia encaixar-se em uma população marcada pela perduração do coronelismo, uma industrialização incipiente, uma menor onda de imigração e a permanência de trabalhos análogos à escravidão, como no Nordeste e Norte. Só cabia ao examinador dessas regiões tratar qualquer manifestação política ou social como exógena ao movimento operário brasileiro do período. Focos de estudos das relações de trabalho como no Ceará e na Bahia, a partir da Universidade Federal do Ceará (UFC), por exemplo, estão descentralizando tal visão. As reflexões de Marcel Van der Linden sobre a História Global do Trabalho e a ideia de que as considerações e experiências do hemisfério sul apresentam diferentes performances, igualmente sintomáticas para entendermos o capitalismo mundial e suas resistências, também tiveram papel fundamental neste processo[5].

É nesse ínterim, que o livro Trabalho e trabalhadores no Nordeste – Análises e perspectivas de Pesquisas Históricas em Alagoas, Pernambuco e Paraíba, organizado por Tiago Bernardon de Oliveira, e que conta com a colaboração de diversos especialistas e estudiosos de tais regiões, está alocado. Ele é resultado do I Ciclo de Debates sobre História do Trabalho, realizado no Centro de Humanidades da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), entre os dias 12 e 14 de agosto de 2013, onde, de acordo com seu organizador,

[…] cerca de 300 estudantes e professores dos cursos de Licenciatura em História, Geografia, Pedagogia, Letras e Direito debateram perspectivas de análise histórica sobre o trabalho e os trabalhadores do Nordeste com painelistas vindos da Paraíba, de Pernambuco e de Alagoas, que se dirigiram ao Brejo paraibano com recursos praticamente inexistentes e desprendida generosidade, baseada no compromisso de fazer expandir o conhecimento histórico como forma de ação política.[6]

Percebe-se, tanto nessa intenção bem como na escolha dos capítulos do livro, a ação política e social que seus autores e idealizadores estavam buscando, incluindo aí desde o escrever sobre o tema nestas regiões, quando divulgar tais pesquisas, ainda mais em universidades e centros educacionais sem tantos recursos, quanto no sudeste do país. Nisso, é perpassado também a relação dos estudos do trabalho com a questão racial. Muitas pesquisas da temática desconsideram o peso da escravidão e da diferença de cor de trabalhadoras e trabalhadores que ocupavam os mesmos postos de trabalho, assim como a relevância de discutir o tema da escravidão como fator considerável para a constituição das relações trabalhistas no Brasil. O livro traz importantes contribuições nesse sentido, ainda mais no Nordeste, onde a tese do “imigrante branco do trabalho livre” substituindo o negro no período republicano cai por terra.

É necessário citar que esse projeto tem relação com a construção do Núcleo de Documentação Histórica do Centro de Humanidades (NDH-CH) da UEPB, “cujo início remonta a meados de 2010, quando começaram as negociações que resultaram em um convênio firmado entre a UEPB e o Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região (TRT-13)”[7] , no qual está se tentado o impedimento “às ordens de descarte dos autos findos arquivados por mais de cinco anos pelas instâncias superiores daquele tribunal”[8] , o que revela a dificuldade em conseguir documentos para tais pesquisas. Mesmo diante disso, Tiago Bernardon de Oliveira, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em História do Trabalho, atuante principalmente no tema da construção do anarquismo e do sindicalismo revolucionário no Brasil, para além dos eixos comuns, mas também interessado na história do reformismo sindical e do socialismo e ultimamente na História do Trabalho no Nordeste, encabeçou a organização da obra, que foi publicada também no SciELO books, mostrando a preocupação com a divulgação e leitura democráticas de tal livro.

Na realidade, numa duração um pouco maior, também podemos alocar o livro dentro dos esforços do GT Mundos do Trabalho, projeto no interior da Associação Nacional de História (ANPUH), organizado durante o XX Simpósio Nacional de História (Florianópolis, 1999), onde um grupo de historiadores resolveu encabeçar um espaço de debate particular dentro dos encontros e congressos propostos pelo organismo, que tem as renovações da história do trabalho em âmbito global e brasileiro como eixo norteador. Desde aí, este GT contribui para reunir pesquisadores de todo o Brasil, além de favorecer iniciativas que descentralizem a história do trabalho e dos trabalhadores além de seus polos mais estudados.

O livro em questão foi dividido em 14 capítulos, além de uma apresentação, que envolvem diversos temas correlatos ao fenômeno do trabalho em Alagoas, Pernambuco e Paraíba, como as relações escravistas, o pós-abolição e suas características nestas regiões, o movimento operário e suas performances, cotidiano, cultura e repressão, além da reflexão sobre as fontes utilizadas – fato que evidencia seu lugar nos recentes debates da História do Trabalho. O primeiro capítulo, O mundo do trabalho na sociedade escravocrata brasileira: um panorama sobre a Paraíba escravista, escrito por Solange Pereira da Rocha e Matheus Silveira Guimarães, versa sobre a escravidão indígena e a africana nos princípios da colonização do Brasil, que embora seja alocada aos séculos XVI e XVII, nos dá indícios sobre as relações estruturais trabalhistas na longa duração que foi construída no Brasil. O segundo capítulo, O homem livre e pobre no Brasil oitocentista, de Cristiano Luís Christillino, continua, nesse sentido, num período depois, no século XIX, analisando os pobres numa sociedade escravocrata e as conexões entre este processo no Rio Grande do Sul e na Paraíba.

O terceiro capítulo, Para o estudo das origens da organização dos trabalhadores em Alagoas: periodizando o mutualismo, de Osvaldo Batista Acioly Maciel, abre no livro as pesquisas sobre as relações trabalhistas de caráter livre, no período republicano brasileiro, embora nas regiões estudadas, e em boa parte do país, a linha entre o trabalho escravo e livre era bem tênue como ressaltada na obra. O autor faz uma análise atenciosa do mutualismo de Alagoas e suas transformações particulares, marcadas pelas relações clientelistas, e sua transição para o sindicalismo. Já em Reformistas e revolucionários: as lutas internas do movimento operário pernambucano e a formação do Grupo Comunista de Recife (1917-1922), de Frederico Duarte Bartz, é mostrada a dinâmica do movimento operário num momento tido como ápice na historiografia, que teve, nas regiões estudadas, influência do reformismo, embora com tensionamento do anarquismo e, com a Revolução Russa, a construção do comunismo. Nesse período, nem sempre houve resistências explícitas e somente políticas, mas culturais e versadas no cotidiano, fato estudado por Waldeci Ferreira Chagas em Cotidiano de trabalhadores urbanos na Parahyba moderna.

Avançando para além da fase da Primeira República, em Vigilância e ações de furto: estratégias de resistência operária na Companhia de Tecidos Rio Tinto (Paraíba-1959), de Eltern Campina Vale, é analisado o processo de repressão e resistências de trabalhadores com características próprias da região estudada, que, mesmo na fase convencionada como “redemocratização”, usava, por parte da classe dominante, uma linguagem e atitudes bastante repressivas e de controle social, a fim de controlar o trabalho e os trabalhadores na Paraíba. Em Golpe civil-militar e repressão ao movimento sindical no imediato pós-golpe no estado da Paraíba, Paulo Giovani Antonio Nunes aborda também o tema da repressão, neste caso, sobre os trabalhadores, a partir do Golpe de 1964. Neste estudo, utilizam-se a legitimação da violência e a repressão enquanto métodos que viriam a ser seguidos para conter a organização e a resistência à disciplina do trabalho na região estudada.

Debruçando-se em reflexões sobre fontes, personagens e temas atuais, Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva, em Acidentes, adoecimento e morte no trabalho como tema de estudo da História, também trata sobre a exploração da força de trabalho no capitalismo, e, em particular, nestas regiões que têm acidentes de trabalho, e nas doenças ocupacionais desenvolvidas nas atividades produtivas como forma de controle social e disciplina. Com essa mesma linha, n’A indústria dos corpos exauridos na plantation açucareira no Nordeste do Brasil, de José Marcelo Marques Ferreira Filho, é analisada a relação entre as doenças ocupacionais e os acidentes de trabalho, provenientes da exploração nas plantations canavieiras da Zona da Mata de Pernambuco, entre 1963 e 1973.

Mariângela de Vasconcelos Nunes, em Uma cultura da esperteza: histórias de ócios, táticas e astúcias no ofício do agave, revela algumas formas de resistência dos trabalhadores – longe de serem passivos a estes processos – da manufatura do agave, na região dos Velhos Cariris, no sertão da Paraíba. Fundindo a análise de resistências culturais e políticas, baseada, substancialmente, em depoimentos orais, emergem táticas desenvolvidas pelos trabalhadores da região como o ócio e outros mecanismos, que agiam como uma verdadeira forma de trabalho “moral”, construída pelos seus agentes. No capítulo seguinte, Maria do Socorro de Abreu e Lima, em Trabalhadores rurais diante da violência, defende que, apesar do uso de uma brutal violência dos latifundiários e do Estado diante das mobilizações e movimentos de Pernambuco, entre a década de 1960 e fins da de 1980, os trabalhadores rurais conseguiram forjar formas de organização, e de bastante complexidade, inclusive com disputas na construção do sindicalismo rural pernambucano. Essa tradição construiu e também se chocou com o período da redemocratização abordado por Marcela Heráclio Bezerra, intitulado “Com muita vara é que se levanta uma casa e com muita lenha é que se levanta o fogo”: greves e conquistas trabalhistas da classe canavieira em Pernambuco durante os anos 1980, no qual é investigado o processo de construção das lutas dos trabalhadores canavieiros do Estado de Pernambuco, na fase de abertura política – inclusive debatendo essa conjuntura e adicionando temas relevantes como os da violência de gênero entre trabalhadores.

No penúltimo capítulo, Christine Rufino Dabat n’A rica história dos trabalhadores segundo os arquivos da Justiça do Trabalho: incitação à pesquisa apresenta alguns trabalhos acadêmicos realizados ao longo da última década, feitos pelo Grupo de Estudos “Trabalho e Ambiente na História das Sociedades Açucareiras – UFPE”, coordenado pela autora, juntamente com Maria Socorro de Abreu e Lima, no qual se reflete sobre o uso de fontes, a partir de um debate historiográfico internacional sobre o tema. No último capítulo, Francisco Fagundes de Paiva Neto utiliza-se de um estudo micro-histórico n’A biografia de Monsenhor Luigi Pescarmona e as lutas sociais na Diocese de Guarabira-PB para revelar as conexões entre imigração, religião, e a construção da consciência de classe, a partir de elementos culturais e formas de resistência diversas, tal como encontrada na trajetória do personagem.

A diversidade dos temas, embora buscando uma unidade – a construção da consciência de classe, a operação do capitalismo e do Estado Nacional brasileiro e suas formas de controle – na Paraíba, Pernambuco e Alagoas, mostra que, longe de ser um assunto sem nada para garimpar da História do Trabalho no Brasil, tem muito a ser feito, inclusive se levarmos em conta a proporção continental do nosso país, que está além das áreas tipicamente estudadas. Olhar além das fronteiras usualmente definidas – não deixando de ignorar aspectos fundantes e estruturais, já que, de fato, a questão da imigração em massa e das relações de trabalho, em áreas tipicamente mais industrializadas, são importantes para compreendermos muito dos processos e construções das relações de trabalho no Brasil – pode nos dar respostas sobre a experiência particular da nossa classe trabalhadora se juntarmos todos esses casos, o regional, o nacional e o global, ou seja, uma história que precisa ser alocada na história dos trabalhadores do mundo. Ademais, esses trabalhadores contidos no livro, ao estarem mais próximos aos trópicos, também podiam estar –mesmo com seus projetos e sonhos perdidos e esmagados – com respostas mais próximas ao sol, da redenção.

Notas

1. Ver MATTOS, Marcelo Badaró. E. P. Thompson no Brasil. Outubro, São Paulo, v. 14, n. 6, p. 81-110, 2006. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/e-p-thompson-no-brasil/. Acesso em: 27 ago. 2019.

2. PETERSEN, Silvia. Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a história operária brasileira. Anos 90, Porto Alegre, v. 3, n. 3, p. 129-153, 1995. p. 132. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/6150/3644. Acesso em: 26 ago. 2019.

3. Idem.

4. Idem.

5. Ver LINDEN, Marcel Van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma história global do trabalho. São Paulo: Editora Unicamp, 2013.

6. OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Trabalho e trabalhadores no Nordeste – Análises e perspectivas de Pesquisas Históricas em Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Campina Grande: Eduespb, 2015. p. 10.

7. Idem.

8. Idem.

Kauan Willian dos Santos –  Doutorando em História pela Universidade de São Paulo (USP) São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]  Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3677-9397

OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Trabalho e trabalhadores no Nordeste – Análises e perspectivas de Pesquisas Históricas em Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Campina Grande: Eduespb, 2015. Resenha de: SANTOS, Kauan Willian dos. Trabalho e trabalhadores mais próximos ao sol. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v.2, n.3, p.158-164, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

Elementos Inflamáveis: organizações e militância anarquista no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1964) – SILVA (RBH)

SILVA, Rafael Viana da. Elementos Inflamáveis: organizações e militância anarquista no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1964). Curitiba: Prismas, 2017. 338p. Resenha de: SANTOS, Kauan William dos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.76 São Paulo set./dez. 2017

Uma visão clássica do anarquismo no Brasil e em algumas partes do mundo afirma que essa corrente política, predominante no movimento operário nas primeiras décadas do século XX, apresentou declínio evidente após 1920, sofrendo sua derrota em nosso país na Era Vargas, com suas mudanças no mundo sindical. Nas análises de certos militantes que buscam legitimar outras propostas de transformação, o anarquismo seria um movimento prematuro, com a ausência de alianças concretas e apresentando um projeto falho para a sociedade. Enquanto isso, para um número significativo de pesquisas atentas ao mundo do trabalho, reverberando em parte tal visão, o anarquismo quase desapareceu desde então e não apresentou grande influência para o movimento operário, principalmente depois da segunda metade do século XX.

Buscando rebater e relativizar tais visões temos em mãos Elementos inflamáveis, livro ligeiramente modificado da dissertação de mestrado de Rafael Viana da Silva, defendida em 2014 no programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Aproveitando pesquisas recentes e também proeminentes que já apontaram a resistência dos anarquistas, seja no âmbito cultural ou sindical, durante os anos de 1930 e 1945, o autor tenciona mostrar a reorganização do anarquismo durante a chamada redemocratização, entre os anos 1945 e 1964. Sem ignorar o contexto para tal, Silva mostra como, em meio à crise do Estado Novo, os anarquistas vão aproveitar brechas para se organizarem de forma mais sistemática e tentarem aumentar sua influência entre as classes populares, assim como incrementar suas fileiras militantes, fato que se deu nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e, em certa medida, no estado do Rio Grande do Sul.

Entre as primeiras atitudes dos adeptos da bandeira negra esteve a criação e a reativação de seus periódicos. Entre eles cita-se o Remodelações, que circulou entre 1945 e 1947 e era coordenado pelos militantes cearenses Moacir Caminha e Maria Iêda, contando também com militantes clássicos como José Oiticica. Em 1947 foi relançado o periódico A Plebe, um dos mais importantes para o anarquismo anos atrás e também essencial para a nova aproximação com as demandas sindicais. Outro importante órgão para a difusão da cultura política anarquista foi o Ação Direta, essencial para as propostas de organização interna do movimento.

Nesse último sentido surgem as primeiras contribuições importantes de Rafael Silva para o tema. Com a aproximação de diferentes gerações militantes concluiu-se em seus debates ser inadmissível ver as estratégias anarquistas como imóveis e imutáveis – era necessário encaixar as demandas libertárias aos novos condicionamentos. Esses militantes referiam-se principalmente à ausência de organização política entre os anarquistas durante as primeiras décadas do século XX, que seria uma das causas, nessa visão, da perda de suas influências. Os anarquistas brasileiros, diferentemente do que se observou em outros países, não conseguiram efetivar suas propostas de organização interna, chamadas de alianças ou partidos, que se protegeriam em momentos de refluxo e também garantiriam certa homogeneidade em suas práticas. Estando os anarquistas enraizados profunda e quase exclusivamente no movimento sindical, este quando foi transformado na década de 1930 garantiu o declínio da estratégia do sindicalismo revolucionário e da consequente influência anarquista, restando apenas seus grupos de afinidade dispersos para a continuação de suas propostas, perdendo assim o contato com os trabalhadores. Na perspectiva dos militantes anarquistas entre 1945 e 1964, portanto, antes de tudo era necessário se organizar politicamente e então garantir formas e estratégias diversas para recuperar esse e outros contatos.

Seguindo esse debate, Silva examina na primeira parte do livro as discussões e dilemas internos do anarquismo. No primeiro capítulo dessa seção, evidencia-se a importância da participação dos militantes em congressos internacionais, absorvendo e disseminando experiências transnacionais para o anarquismo em nível global. O autor segue analisando os congressos anarquistas no país, em 1948, 1953, 1959 e 1963, essenciais para a reorganização do movimento. No terceiro capítulo, debate-se a retomada da estratégia do sindicalismo revolucionário no papel da transformação da realidade para os anarquistas no período. Nesse sentido, longe de se ater principalmente a propostas culturais como se imaginou, a intentona majoritária anarquista continuou sendo, ao menos até 1959, o sindicalismo e o movimento operário, onde seus militantes dispensaram numerosas energias (p.182).

Percebemos que as principais referências metodológicas do livro nessa parte são os autores que desenvolvem as concepções de cultura política como Serge Berstein, já que é importante, para Rafael Silva, perceber o desenvolvimento do anarquismo dentro de suas próprias referências, da sua família política, suas leituras e dilemas. Já na segunda parte da obra o autor analisa como tais estratégias foram absorvidas e articuladas no movimento operário, em meio aos trabalhadores e, também, aos grupos militantes de outras vertentes ideológicas. Por isso, decide utilizar como referência Edward Palmer Thompson, inspirado nos estudos que mostram as ideologias e práticas como não estanques aos comportamentos de classe.

Seguindo essa tendência, no quarto capítulo, primeiro dessa seção, evidencia-se o importante papel dos jornais e impressos também para disseminar a influência do anarquismo e de seus debates externos com outras correntes políticas, assim como em sua adaptação ao contexto. Nesse sentido, até mesmo a forma de venda ou doação desses periódicos foi importante, como numa banca de jornais em frente ao posto de trabalho da Light.

No quinto capítulo, Silva adentra com mais profundidade as relações e articulações políticas dos anarquistas em âmbito internacional e nacional. Na primeira parte, além de ver suas influências e ligações com a Federação Anarquista Ibérica (FAI) e a Solidariedade Internacional Antifascista (SIA), evidencia-se a recepção dos anarquistas aos imigrantes, principalmente saídos das ditaduras de Franco e Salazar, alguns com experiências na Revolução Espanhola. Esse contato foi essencial para a reformulação de estratégias e táticas e para alavancar o próprio movimento anarquista no país. Após isso, o autor nos mostra os embates no anarquismo com o Partido Comunista Brasileiro, principal força de esquerda do período. A principal crítica dos libertários ao partido se referia exatamente às posições do sindicalismo – os primeiros eram contrários a disputar a estrutura corporativista desses espaços, propondo novos organismos e frentes que respondessem aos interesses dos trabalhadores fora de um ambiente supostamente impregnado pelos mecanismos da classe dominante. O autor discorda da historiografia que viu os trabalhadores e militantes desse período como estagnados, presos à estrutura e aos condicionamentos do período, mas também rebate a corrente que afirma total liberdade e agência dos personagens em torno do sindicalismo do período. Sua posição é a de que os trabalhadores, de fato, negociavam e barganhavam em meio às regras do sindicalismo e da política do período, mas também, por vezes, se sentiam pressionados a essa estrutura e, além de não conseguirem alcançar seus alvos, também decidiam lutar recorrendo a outros instrumentos.

Esse debate se estende ao último capítulo da obra, no qual o autor adentra a inserção social do anarquismo. Na primeira parte, Rafael Silva analisa como as estratégias sindicais dos anarquistas foram recebidas e efetuadas na prática. Os anarquistas conseguiam dialogar com os marxistas críticos do stalinismo e sindicalistas independentes criando o Grupo de Orientação Sindical dos Trabalhadores da Light e deixando uma influência visível no Sindicato dos Trabalhadores Gráficos, também de caráter combativo, convergindo, posteriormente, para a criação do Movimento de Orientação Sindical (MOS). A inserção libertária nesses ambientes garantiu posições nas manifestações importantes no período, como a greve dos 400 mil em 1957. Na última parte da obra, o autor mostra como as ações culturais dos anarquistas eram mediadas entre as culturas de classe dos trabalhadores e dos grupos subalternos, ainda os principais alvos do anarquismo. Nesse sentido, mostra-se a importância de espaços como o Centro de Cultura Social para a formação de novos militantes e de trabalhadores, principalmente informais. Os periódicos também foram importantes para a criação de centros de cultura e estudos, poemas e debates públicos, inserção que se dava muito fortemente entre os estudantes universitários. As táticas educativas e o apoio às ações culturais nesse período foram importantes para garantir um lugar a partir do início da década de 1960, quando os militantes libertários deixavam aos poucos os ambientes estritamente sindicais, interpretando que gastavam muita energia para barrarem o reformismo e a disputa com outras tendências de esquerda. O apoio a outros ambientes, dessa vez discutidos e minimamente organizados nos congressos citados, garantiu a sobrevivência mínima do anarquismo nas décadas posteriores, durante a Ditadura Militar, quando os anarquistas enfrentaram outros dilemas.

Tudo isso torna o livro de Rafael Viana da Silva uma importante contribuição a um período não muito estudado, inclusive entre os próprios anarquistas contemporâneos, que preferem visualizar o anarquismo áureo a se ater em épocas nas quais foi mais difícil implementar e articular suas estratégias. Ainda assim, aprendemos que quando o anarquismo não foi um elemento explosivo, certamente foi um elemento inflamável.

Kauan Willian dos Santos – Doutorando em História Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

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