Políticas Culturais dos Partidos Comunistas na América Latina | Adriana Petra

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Adriana Pedra | Imagem: Infobae

As políticas culturais dos Partidos Comunistas (PCs) da América Latina, especialmente as publicações impressas, constituem-se o centro das análises dos capítulos apresentados nesta obra. Destaca-se, no entanto, que as produções cinematográficas soviéticas e suas relações com o cinema hollywoodiano sobressaem-se como uma contribuição relevante do quinto capítulo para a historiografia chilena sobre o Partido Comunista do Chile (PCCh). Os capítulos demonstram que a militância política e a produção teórica caminharam juntas na região da América do Sul. Embora estivessem submetidas ao contexto da Guerra Fria (1947-1989) e aos laços com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) – e seu Partido Comunista (PC) –, a potência e originalidade dos projetos culturais dos comunistas latino-americanos superavam os limites do estalinismo1.

O primeiro capítulo Libros y folletos de la Internacional Comunista en América Latina. Algunos apuntes para su historia, do historiador chileno Manuel Loyola, trata das formas de difusão de publicações da Internacional Comunista (IC) para a América Latina. Apresenta e estabelece as bases de possíveis investigações futuras sobre a atividade publicística que caracterizou a proposta lectoral da IC para a região da América Latina. Leia Mais

Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro | Petrônio Domingues

Petronio Domingues
Petrônio Domingues | Foto: INFONET/Acervo pessoal

Em 2019, o livro Irmã outsider, da feminista negra estadunidense Audre Lorde (1934-1992), foi publicado no Brasil. Reunindo escritos das décadas de 1970 e 1980, a obra é, segundo Cheryl Clark (1947-), seu “trabalho em prosa mais importante”[1]. Um dos textos mais avassaladores da obra é Aprendendo com os anos 1960.  Bem, mas o leitor ou a leitora poderá estar se perguntando se este texto não é uma resenha sobre o livro do historiador brasileiro Petrônio Domingues – docente da Universidade Federal de Sergipe (UFS) –, Estilo Avatar. Sim, exatamente.

A leitura desta obra fez-me refletir sobre o conceito de militância presente no texto supracitado de Audre Lorde. Como mulher negra, lésbica, poeta e escritora, ela defendeu que a militância é, entre outras coisas, “trabalhar ativamente pela mudança, às vezes sem nenhuma garantia de que ela esteja a caminho. Significa fazer o trabalho tedioso e nada romântico, ainda que necessário, de formar alianças relevantes, significa reconhecer quais alianças são possíveis e quais não são”[2].

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A constituição de 1824 e o problema da modernidade: O conceito moderno de constituição, a história constitucional Brasileira e a teoria da constituição no Brasil | David F. L. Gomes

GOMES D
David Gomes | Foto: ComoEuEscrevo.com

GOMES D A ConstituicaoDavid F. L. Gomes é professor efetivo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e possui longa trajetória de pesquisa nas áreas de Teoria da Constituição, Teoria do Estado, Sociologia e História do Direito.

Fruto de sua tese de doutorado, o livro A Constituição de 1824 e o problema da modernidade: O conceito moderno de constituição, a história constitucional Brasileira e a teoria da constituição no Brasil foi lançado em 2019, pela editora D’Plácido. Na obra, utilizando-se de um diálogo crítico entre as teorias de Jürgen Habermas (1929-) e Karl Marx (1818-1883), o autor busca reconstruir o conceito moderno de Constituição à luz da perspectiva materialista, a partir da história da Constituição Brasileira de 1824 [1]. Leia Mais

Os antigos habitantes do Brasil | Pedro Paulo Abreu Funari

FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Os antigos habitantes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2019. Resenha de: SILVA, Filipe Noe da. Arqueologia para uma outra história do Brasil. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v. 2, n. 4, p. 243-247, jan./jun. 2020.

Mesmo se considerarmos o abismo provocado pela desigualdade social, ainda nos parece possível afirmar que o vastíssimo (e diverso) universo escolar brasileiro, nos dias atuais, funciona a partir de metodologias e ferramentas de ensino bastante variadas. Apesar da paulatina informatização do ensino, com o uso cada vez mais frequente de videoaulas, canais e redes sociais, as apostilas e livros didáticos de todas as disciplinas ainda constituem suportes informativos de ampla difusão no quotidiano das escolas brasileiras1. Em muitos casos, pode-se mesmo conjecturar que o material didático é o primeiro livro da vida de muitos de nossos estudantes, e permanece como “[…] o principal instrumento do qual se podem valer os professores” 2.

No ensino de História, em particular, os livros didáticos e paradidáticos coexistem com documentos que, a priori, não foram elaborados com finalidades pedagógicas, mas que são empregados na sala de aula para tal fim: filmes, músicas, imagens, fotografias, documentários, obras de arte, poemas e artefatos arqueológicos, com frequência, são convertidos em documentos de grande valia para o estudo da História3. Do mesmo modo, narrativas pessoais e memórias orais, igualmente convertidas em fontes históricas, têm revelado aos(às) jovens estudantes as percepções daqueles e daquelas que, em muitos casos, testemunharam as inúmeras transformações, invenções e rupturas que atingiram suas sociedades no último século4.

São muitas as investigações sobre os discursos históricos apresentados pelos livros didáticos do presente e do passado: além das tradicionais memórias nacionais, temas referentes às questões étnico-raciais, às relações de gênero e ao silenciamento das populações subalternas, em geral, têm colocado em evidência os propósitos políticos e identitários das publicações didáticas mundo afora5.

Como no caso do estudo da Antiguidade, cujos livros didáticos apresentam “[…] anacronismos, erros, simplificações, juízos de valor e, principalmente, falta de atualização dos assuntos tratados” 6, não é raro encontrarmos, em muitos materiais voltados ao ensino da História, narrativas eurocêntricas, elitistas e baseadas em uma perspectiva “civilizadora” dos colonizadores. Dentro dessa perspectiva histórica, como constatou Francisco Silva Noelli7, a experiência dos povos indígenas do Brasil, por vezes, figura de maneira apenas preambular nos livros escolares: “[…] se compararmos o status desses temas com os demais conteúdos do currículo básico de História do Brasil e das Histórias Regionais, facilmente constataremos que eles são irrisórios em termos quantitativos”8.

Apesar de não ser um livro didático stricto sensu9, a segunda edição d’Os antigos habitantes do Brasil, de Pedro Paulo Funari, docente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), oferece uma alternativa valiosa para o atual ensino da História das populações indígenas do território brasileiro. Em consonância com as teorias sociais pós-colonialistas, sua narrativa constitui uma ferramenta pedagógica fundamental para a superação do senso comum e dos muitos estereótipos racistas e etnocêntricos associados a esses povos. Ao demonstrar, por exemplo, que a ocupação humana no Brasil extrapola os 10 mil anos, a referida publicação coloca em xeque a hipótese, ainda vigente em âmbito escolar, de que não existe História onde inexiste a escrita. Frente à escassez de documentos escritos, por sua vez, o autor recorre à Arqueologia, ao estudo da cultura material produzida de maneira espontânea e quotidiana pelos próprios indígenas.

Reconhecida no Brasil e em âmbito internacional, a trajetória acadêmica do professor Funari promove uma profícua (e original) amalgamação de estudos sobre História Antiga (com ênfase nas camadas populares sob uma perspectiva da História Cultural), Antropologia e Arqueologia: reflexo de uma formação híbrida e da abertura, por parte do autor, ao diálogo e à interdisciplinaridade. Ao converter tal erudição em uma linguagem acessível e agradável aos estudantes de nível Fundamental e Médio, Funari, em seu livro sobre Os antigos habitantes do Brasil, aproxima seus leitores e leitoras de temas particularmente complexos à História e à Arqueologia contemporâneas, tais como a origem das populações ameríndias e as transformações (territoriais, sociais e faunísticas) decorrentes das mudanças climáticas.

A relação entre os seres humanos e o meio-ambiente, fonte fundamental de sobrevivência às populações indígenas, não é apresentada de maneira determinista, como se as populações nativas fossem apenas submissas e passivas frente às imposições da natureza hostil. Ao contrário, com o intuito de evidenciar o protagonismo e a originalidade desses povos, o autor demonstra, de maneira sutil e didática, que atividades como a caça, a coleta e a pesca teriam coexistido com a agricultura no território brasileiro desde antes da chegada dos portugueses.

Devido às escolhas curriculares, é bastante usual nas escolas brasileiras que a agricultura seja apresentada enquanto um apanágio restrito às civilizações localizadas no Crescente Fértil mesopotâmico, e que dali teria se difundido a outros povos e lugares. Nas escolas do estado de São Paulo, por exemplo, o desenvolvimento da agricultura, outrora denominado por Vere Gordon Childe como “Revolução Neolítica”, ou simplesmente a “[…] progressiva utilização de técnicas para a produção de alimento (agricultura e criação de gado) em substituição das técnicas da simples exploração (caça e coleta) de tudo quanto já estava presente na natureza”10 tem integrado, ainda que de maneira subordinada ao tema do “Oriente Próximo”, o grupo de habilidades e competências previstas para o 4º e 6º anos do Ensino Fundamental e à 1ª série do Ensino Médio. Em nenhum dos currículos11 (2010 ou 2019), no entanto, há qualquer referência aos processos de desenvolvimento agrícola ocorridos de maneira independente no continente americano em períodos pré-coloniais, ou noutras localidades do planeta12.

Sobre a chegada dos primeiros seres humanos à América, em particular, o autor apresenta duas hipóteses principais: por um lado, os ameríndios seriam descendentes de asiáticos que teriam atravessado os noventa quilômetros do chamado Estreito de Bering em uma época em que o nível das águas teria sido mais baixo. Por outro lado, devido à presença de restos mortais de indivíduos oriundos da Oceania, outras possibilidades de povoamento, seus limites e incertezas, também são apresentadas de maneira didática e elucidativa. O uso de mapas e ilustrações na explicação das duas hipóteses também constitui uma boa opção pedagógica acerca do tema.

Por meio da cultura material produzida pelos indígenas, Funari demonstra toda a diversidade, autonomia e criatividade das etnias espalhadas pelo Brasil. Entre tupis e marajoaras, a cerâmica, as habitações, os sambaquis, os artefatos líticos e as pinturas, todos ilustrados pelos belíssimos traços de Isabel Voegeli Stever, aproximam alunos e alunas de civilizações complexas e cuja produção material, segundo o próprio autor, nada deixaria a desejar se comparada àquela dos gregos e egípcios da Antiguidade, por exemplo. Sem prescindir do rigor necessário às investigações sobre o passado, os inúmeros artefatos arqueológicos são apresentados em fotografias de alta resolução e suas descrições convidam os(as) estudantes a tecerem suas próprias interpretações sobre esses objetos.

Para além do eventual diálogo com as teorias pós-processualistas da Arqueologia13 e sua respectiva ênfase na subjetividade do conhecimento arqueológico, também julgamos pertinente uma aproximação às considerações do educador Paulo Freire sobre o respeito às formas de conhecimento trazidas pelos(as) discentes como forma de respeito e estímulo à autonomia intelectual:

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos na prática comunitária (…). Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm dos indivíduos?14

Temas contemporâneos, como a divisão social do trabalho e o protagonismo das mulheres nas sociedades indígenas, ajudam a compor um livro que, embora verse preponderantemente sobre o passado, fá-lo a partir das demandas e reivindicações sociais do tempo presente. Conforme consta na recente Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a compreensão sobre “Os povos indígenas originários do atual território brasileiro e seus hábitos culturais e sociais”15 constitui um objeto de estudo a ser explorado nas aulas de História do 6º Ano do Ensino Fundamental. Se for este, de fato, o documento fundamental que norteará os rumos da educação básica no Brasil durante os próximos anos, o livro Os antigos habitantes do Brasil, uma vez inserido nos currículos estaduais e municipais, parece-nos profundamente necessário e atual, principalmente porque apresenta uma perspectiva democrática e inclusiva sobre a História dos indígenas a todos os estudantes brasileiros.

Notas

1. CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 549-566, set./dez. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v30n3/a12v30n3.pdf  Acesso em: 12 abr. 2020; BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de História. Fundamentos e Métodos. São Paulo: Editora Cortez, 2005.

2. SILVA, Glaydson José. Os avanços da História Antiga no Brasil. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26., 2011, São Paulo. Anais eletrônicos […]. São Paulo: ANPUH, 2011.

3. BITTENCOURT, op. cit.

4. Sobre este tema, em particular, vide: BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1979.

5. CHOPPIN, op. cit., p. 554.

6. SILVA, Semíramis Corsi. Aspectos do Ensino de História Antiga no Brasil: algumas observações. Alétheia: Revista de estudos sobre Antiguidade e Medievo, São Paulo, v. 1, p. 145-155, jan./jul. 2010. Disponível em: https://periodicos.unipampa.edu.br/index.php/Aletheia/article/view/73/62. Acesso em: 12 abr. 2020.

7. NOELLI, Francisco Silva. Resenha: Os antigos habitantes do Brasil. Educ. Soc, Campinas, v. 24, n. 82, p. 341-342, abr. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302003000100027.  Acesso em: 12 abr. 2020.

8. Ibidem, p. 341.

9. De acordo com Circe Bittencourt, os livros didáticos convencionais estariam sujeitos a interesses editoriais e de mercado: “[…] Como produto cultural fabricado por técnicos que determinam seus aspectos materiais, o livro didático caracteriza-se, nessa dimensão material, por ser uma mercadoria ligada ao mundo editorial e à lógica da indústria cultural do sistema capitalista”. Ver: BITTENCOURT, op. cit., p. 301.

10. LIVERANI, Mario. Antigo Oriente. História, Sociedade e Economia. São Paulo: EDUSP, 2016. p. 71.

11. No antigo currículo (2010), o tema do “Oriente Próximo” integrava os estudos de História do 6º Ano do Ensino Fundamental e 1ª Série do Ensino Médio. Conferir: SÃO PAULO. Currículo do Estado de São Paulo. Ciências Humanas e suas tecnologias. São Paulo: Secretaria da Educação, 2010. Já o novo Currículo Paulista aborda o tema da Agricultura de maneira genérica por meio do objeto de conhecimento: “A ação das pessoas, grupos sociais e comunidades no tempo e no espaço: nomadismo, agricultura, escrita, navegações, indústrias, entre outras”. Cf.: SÃO PAULO. Currículo Paulista. São Paulo, 2019. p. 466.

12. Para uma síntese desses processos, vide: MAZOYER, Marcel; ROUDART, Laurence. História das agriculturas no mundo. Do neolítico à crise contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 66-67.

13. HODDER, Ian. Interpretación en Arqueología. Barcelona: Crítica, 1994. p. 195; TRIGGER, Bruce Graham. História do Pensamento Arqueológico. São Paulo: Editora Odysseus, 2004. p. 373.

14. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2011. p. 21-22.

15. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ensino Fundamental. Brasília: MEC, 2018.

Filipe Noe da Silva –  Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Professor das Faculdades Integradas Maria Imaculada (FIMI) Mogi Guaçu, SP, Brasil. E-mail: [email protected]  Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5075-0131

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Trabalho e trabalhadores no Nordeste – Análises e perspectivas de Pesquisas Históricas em Alagoas, Pernambuco e Paraíba | Tiago Bernardon de Oliveira

A noção de “experiência” concebida por Edward Thompson na sua célebre obra A Formação da classe operária inglesa, publicada pela primeira vez em 1963, foi cara para o desenvolvimento da História do Trabalho no mundo e no Brasil [1]. No país, desde sua ascensão no departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nas últimas décadas do século XX, pesquisadores tentam deslocar temas e objetos historiográficos que ligam a história de trabalhadores com, apenas e necessariamente, seus órgãos organizadores – partidos, sindicatos e líderes políticos –, mas juntando estes com suas próprias tradições, culturas, ideias, pensamentos, ideologias e construções sociais.

Não obstante, uma tendência ainda forte parece perdurar no país, embora com embates significativos e pesquisas já consolidadas em sua contramão – a narrativa de uma História do Trabalho e de trabalhadores centrada no eixo Rio-São Paulo ou, quando não, tomando exemplos destes estados e suas experiências como centros de referências e moldes a serem seguidos pelos agentes, organismos e instituições de outras regiões. A historiadora Silvia Petersen, em meados dos anos 1990, já havia alertado que “a história operária brasileira poderia alcançar outro patamar político se houvesse a articulação dos resultados das pesquisas regionais”[2], mas o fato é que o “Rio de Janeiro e São Paulo foram constituídos como centros definidores de sentido para a história operária do Brasil”[3] e que, no caso de seu objeto de estudo,

[…] as pesquisas acadêmicas sobre o movimento operário no Rio Grande do Sul, que aparecem nos anos 70, também tiveram por horizonte o que aconteceu no centro do país, tomado como padrão. Há uma preocupação correta em buscar referências nas regiões política e economicamente hegemônicas, mas estes trabalhos tiveram via de regra o viés de fazer aproximações na ausência de investigações mais precisas, de transferir explicações para suprir lacunas na investigação local.[4]

O símbolo do anarquista italiano de São Paulo ou do trabalhismo carioca, assim como a industrialização dessas cidades, não parecia encaixar-se em uma população marcada pela perduração do coronelismo, uma industrialização incipiente, uma menor onda de imigração e a permanência de trabalhos análogos à escravidão, como no Nordeste e Norte. Só cabia ao examinador dessas regiões tratar qualquer manifestação política ou social como exógena ao movimento operário brasileiro do período. Focos de estudos das relações de trabalho como no Ceará e na Bahia, a partir da Universidade Federal do Ceará (UFC), por exemplo, estão descentralizando tal visão. As reflexões de Marcel Van der Linden sobre a História Global do Trabalho e a ideia de que as considerações e experiências do hemisfério sul apresentam diferentes performances, igualmente sintomáticas para entendermos o capitalismo mundial e suas resistências, também tiveram papel fundamental neste processo[5].

É nesse ínterim, que o livro Trabalho e trabalhadores no Nordeste – Análises e perspectivas de Pesquisas Históricas em Alagoas, Pernambuco e Paraíba, organizado por Tiago Bernardon de Oliveira, e que conta com a colaboração de diversos especialistas e estudiosos de tais regiões, está alocado. Ele é resultado do I Ciclo de Debates sobre História do Trabalho, realizado no Centro de Humanidades da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), entre os dias 12 e 14 de agosto de 2013, onde, de acordo com seu organizador,

[…] cerca de 300 estudantes e professores dos cursos de Licenciatura em História, Geografia, Pedagogia, Letras e Direito debateram perspectivas de análise histórica sobre o trabalho e os trabalhadores do Nordeste com painelistas vindos da Paraíba, de Pernambuco e de Alagoas, que se dirigiram ao Brejo paraibano com recursos praticamente inexistentes e desprendida generosidade, baseada no compromisso de fazer expandir o conhecimento histórico como forma de ação política.[6]

Percebe-se, tanto nessa intenção bem como na escolha dos capítulos do livro, a ação política e social que seus autores e idealizadores estavam buscando, incluindo aí desde o escrever sobre o tema nestas regiões, quando divulgar tais pesquisas, ainda mais em universidades e centros educacionais sem tantos recursos, quanto no sudeste do país. Nisso, é perpassado também a relação dos estudos do trabalho com a questão racial. Muitas pesquisas da temática desconsideram o peso da escravidão e da diferença de cor de trabalhadoras e trabalhadores que ocupavam os mesmos postos de trabalho, assim como a relevância de discutir o tema da escravidão como fator considerável para a constituição das relações trabalhistas no Brasil. O livro traz importantes contribuições nesse sentido, ainda mais no Nordeste, onde a tese do “imigrante branco do trabalho livre” substituindo o negro no período republicano cai por terra.

É necessário citar que esse projeto tem relação com a construção do Núcleo de Documentação Histórica do Centro de Humanidades (NDH-CH) da UEPB, “cujo início remonta a meados de 2010, quando começaram as negociações que resultaram em um convênio firmado entre a UEPB e o Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região (TRT-13)”[7] , no qual está se tentado o impedimento “às ordens de descarte dos autos findos arquivados por mais de cinco anos pelas instâncias superiores daquele tribunal”[8] , o que revela a dificuldade em conseguir documentos para tais pesquisas. Mesmo diante disso, Tiago Bernardon de Oliveira, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em História do Trabalho, atuante principalmente no tema da construção do anarquismo e do sindicalismo revolucionário no Brasil, para além dos eixos comuns, mas também interessado na história do reformismo sindical e do socialismo e ultimamente na História do Trabalho no Nordeste, encabeçou a organização da obra, que foi publicada também no SciELO books, mostrando a preocupação com a divulgação e leitura democráticas de tal livro.

Na realidade, numa duração um pouco maior, também podemos alocar o livro dentro dos esforços do GT Mundos do Trabalho, projeto no interior da Associação Nacional de História (ANPUH), organizado durante o XX Simpósio Nacional de História (Florianópolis, 1999), onde um grupo de historiadores resolveu encabeçar um espaço de debate particular dentro dos encontros e congressos propostos pelo organismo, que tem as renovações da história do trabalho em âmbito global e brasileiro como eixo norteador. Desde aí, este GT contribui para reunir pesquisadores de todo o Brasil, além de favorecer iniciativas que descentralizem a história do trabalho e dos trabalhadores além de seus polos mais estudados.

O livro em questão foi dividido em 14 capítulos, além de uma apresentação, que envolvem diversos temas correlatos ao fenômeno do trabalho em Alagoas, Pernambuco e Paraíba, como as relações escravistas, o pós-abolição e suas características nestas regiões, o movimento operário e suas performances, cotidiano, cultura e repressão, além da reflexão sobre as fontes utilizadas – fato que evidencia seu lugar nos recentes debates da História do Trabalho. O primeiro capítulo, O mundo do trabalho na sociedade escravocrata brasileira: um panorama sobre a Paraíba escravista, escrito por Solange Pereira da Rocha e Matheus Silveira Guimarães, versa sobre a escravidão indígena e a africana nos princípios da colonização do Brasil, que embora seja alocada aos séculos XVI e XVII, nos dá indícios sobre as relações estruturais trabalhistas na longa duração que foi construída no Brasil. O segundo capítulo, O homem livre e pobre no Brasil oitocentista, de Cristiano Luís Christillino, continua, nesse sentido, num período depois, no século XIX, analisando os pobres numa sociedade escravocrata e as conexões entre este processo no Rio Grande do Sul e na Paraíba.

O terceiro capítulo, Para o estudo das origens da organização dos trabalhadores em Alagoas: periodizando o mutualismo, de Osvaldo Batista Acioly Maciel, abre no livro as pesquisas sobre as relações trabalhistas de caráter livre, no período republicano brasileiro, embora nas regiões estudadas, e em boa parte do país, a linha entre o trabalho escravo e livre era bem tênue como ressaltada na obra. O autor faz uma análise atenciosa do mutualismo de Alagoas e suas transformações particulares, marcadas pelas relações clientelistas, e sua transição para o sindicalismo. Já em Reformistas e revolucionários: as lutas internas do movimento operário pernambucano e a formação do Grupo Comunista de Recife (1917-1922), de Frederico Duarte Bartz, é mostrada a dinâmica do movimento operário num momento tido como ápice na historiografia, que teve, nas regiões estudadas, influência do reformismo, embora com tensionamento do anarquismo e, com a Revolução Russa, a construção do comunismo. Nesse período, nem sempre houve resistências explícitas e somente políticas, mas culturais e versadas no cotidiano, fato estudado por Waldeci Ferreira Chagas em Cotidiano de trabalhadores urbanos na Parahyba moderna.

Avançando para além da fase da Primeira República, em Vigilância e ações de furto: estratégias de resistência operária na Companhia de Tecidos Rio Tinto (Paraíba-1959), de Eltern Campina Vale, é analisado o processo de repressão e resistências de trabalhadores com características próprias da região estudada, que, mesmo na fase convencionada como “redemocratização”, usava, por parte da classe dominante, uma linguagem e atitudes bastante repressivas e de controle social, a fim de controlar o trabalho e os trabalhadores na Paraíba. Em Golpe civil-militar e repressão ao movimento sindical no imediato pós-golpe no estado da Paraíba, Paulo Giovani Antonio Nunes aborda também o tema da repressão, neste caso, sobre os trabalhadores, a partir do Golpe de 1964. Neste estudo, utilizam-se a legitimação da violência e a repressão enquanto métodos que viriam a ser seguidos para conter a organização e a resistência à disciplina do trabalho na região estudada.

Debruçando-se em reflexões sobre fontes, personagens e temas atuais, Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva, em Acidentes, adoecimento e morte no trabalho como tema de estudo da História, também trata sobre a exploração da força de trabalho no capitalismo, e, em particular, nestas regiões que têm acidentes de trabalho, e nas doenças ocupacionais desenvolvidas nas atividades produtivas como forma de controle social e disciplina. Com essa mesma linha, n’A indústria dos corpos exauridos na plantation açucareira no Nordeste do Brasil, de José Marcelo Marques Ferreira Filho, é analisada a relação entre as doenças ocupacionais e os acidentes de trabalho, provenientes da exploração nas plantations canavieiras da Zona da Mata de Pernambuco, entre 1963 e 1973.

Mariângela de Vasconcelos Nunes, em Uma cultura da esperteza: histórias de ócios, táticas e astúcias no ofício do agave, revela algumas formas de resistência dos trabalhadores – longe de serem passivos a estes processos – da manufatura do agave, na região dos Velhos Cariris, no sertão da Paraíba. Fundindo a análise de resistências culturais e políticas, baseada, substancialmente, em depoimentos orais, emergem táticas desenvolvidas pelos trabalhadores da região como o ócio e outros mecanismos, que agiam como uma verdadeira forma de trabalho “moral”, construída pelos seus agentes. No capítulo seguinte, Maria do Socorro de Abreu e Lima, em Trabalhadores rurais diante da violência, defende que, apesar do uso de uma brutal violência dos latifundiários e do Estado diante das mobilizações e movimentos de Pernambuco, entre a década de 1960 e fins da de 1980, os trabalhadores rurais conseguiram forjar formas de organização, e de bastante complexidade, inclusive com disputas na construção do sindicalismo rural pernambucano. Essa tradição construiu e também se chocou com o período da redemocratização abordado por Marcela Heráclio Bezerra, intitulado “Com muita vara é que se levanta uma casa e com muita lenha é que se levanta o fogo”: greves e conquistas trabalhistas da classe canavieira em Pernambuco durante os anos 1980, no qual é investigado o processo de construção das lutas dos trabalhadores canavieiros do Estado de Pernambuco, na fase de abertura política – inclusive debatendo essa conjuntura e adicionando temas relevantes como os da violência de gênero entre trabalhadores.

No penúltimo capítulo, Christine Rufino Dabat n’A rica história dos trabalhadores segundo os arquivos da Justiça do Trabalho: incitação à pesquisa apresenta alguns trabalhos acadêmicos realizados ao longo da última década, feitos pelo Grupo de Estudos “Trabalho e Ambiente na História das Sociedades Açucareiras – UFPE”, coordenado pela autora, juntamente com Maria Socorro de Abreu e Lima, no qual se reflete sobre o uso de fontes, a partir de um debate historiográfico internacional sobre o tema. No último capítulo, Francisco Fagundes de Paiva Neto utiliza-se de um estudo micro-histórico n’A biografia de Monsenhor Luigi Pescarmona e as lutas sociais na Diocese de Guarabira-PB para revelar as conexões entre imigração, religião, e a construção da consciência de classe, a partir de elementos culturais e formas de resistência diversas, tal como encontrada na trajetória do personagem.

A diversidade dos temas, embora buscando uma unidade – a construção da consciência de classe, a operação do capitalismo e do Estado Nacional brasileiro e suas formas de controle – na Paraíba, Pernambuco e Alagoas, mostra que, longe de ser um assunto sem nada para garimpar da História do Trabalho no Brasil, tem muito a ser feito, inclusive se levarmos em conta a proporção continental do nosso país, que está além das áreas tipicamente estudadas. Olhar além das fronteiras usualmente definidas – não deixando de ignorar aspectos fundantes e estruturais, já que, de fato, a questão da imigração em massa e das relações de trabalho, em áreas tipicamente mais industrializadas, são importantes para compreendermos muito dos processos e construções das relações de trabalho no Brasil – pode nos dar respostas sobre a experiência particular da nossa classe trabalhadora se juntarmos todos esses casos, o regional, o nacional e o global, ou seja, uma história que precisa ser alocada na história dos trabalhadores do mundo. Ademais, esses trabalhadores contidos no livro, ao estarem mais próximos aos trópicos, também podiam estar –mesmo com seus projetos e sonhos perdidos e esmagados – com respostas mais próximas ao sol, da redenção.

Notas

1. Ver MATTOS, Marcelo Badaró. E. P. Thompson no Brasil. Outubro, São Paulo, v. 14, n. 6, p. 81-110, 2006. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/e-p-thompson-no-brasil/. Acesso em: 27 ago. 2019.

2. PETERSEN, Silvia. Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a história operária brasileira. Anos 90, Porto Alegre, v. 3, n. 3, p. 129-153, 1995. p. 132. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/6150/3644. Acesso em: 26 ago. 2019.

3. Idem.

4. Idem.

5. Ver LINDEN, Marcel Van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma história global do trabalho. São Paulo: Editora Unicamp, 2013.

6. OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Trabalho e trabalhadores no Nordeste – Análises e perspectivas de Pesquisas Históricas em Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Campina Grande: Eduespb, 2015. p. 10.

7. Idem.

8. Idem.

Kauan Willian dos Santos –  Doutorando em História pela Universidade de São Paulo (USP) São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]  Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3677-9397

OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. Trabalho e trabalhadores no Nordeste – Análises e perspectivas de Pesquisas Históricas em Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Campina Grande: Eduespb, 2015. Resenha de: SANTOS, Kauan Willian dos. Trabalho e trabalhadores mais próximos ao sol. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v.2, n.3, p.158-164, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

História do Brasil | UFRB | 2018

Nordestina de Historia do Brasil

Revista Nordestina de História do Brasil  (São Paulo, 2018-) tem como objetivo publicar artigos, entrevistas, traduções e resenhas (de livros e artigos científicos) de pesquisadores especialistas em história do Brasil a partir de uma perspectiva local, regional e transnacional. As publicações ocorrem no modelo de Publicação Contínua (PC), conforme os Guias da SciElo, que orientam a publicação nesta modalidade.

Seus objetivos são: a) divulgar o conhecimento científico produzido pelos grupos e projetos de pesquisa vinculados aos Departamentos de História (DHs) e áreas afins das diversas Instituições de Ensino Superior (IES) do país e do exterior; b) criar uma rede de sociabilidade entre os pesquisadores de História do Brasil, especialmente aqueles que partem do recorte espacial supracitado para pensar nas diversas particularidades e diversidades do país; e c) fomentar uma rede de divulgação dos estudos oriundos das investigações realizadas na pós-graduação brasileira e nos outros países.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2596-0334 (Impresso)

ISSN 2674-7332 (Online)

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