Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) – SOUZA (Tempo)

SOUZA, Robério S.. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Unicamp, 2015. 270p. Coleção Várias Histórias, 42.Resenha de Mac CORD, Marcelo. Acionando a chave de desvio dos trilhos: repensando a história social do trabalho ferroviário no Brasil império. Tempo v.23 no.1 Niterói jan./abr. 2017.

Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) é a mais recente obra de Robério Souza. O livro desse talentoso pesquisador, que atualmente é professor do curso de história da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), oferece ao leitor uma série de análises das complexidades políticas, econômicas, culturais, sociais e étnicas que envolveram a construção da Bahia and San Francisco Railway. Publicado pela Editora da Unicamp em 2015, o livro, que faz parte da consolidada “Coleção Várias Histórias”, baseia-se na premiada tese de doutorado do autor, que, sob a orientação de Silvia Lara, foi defendida dois anos antes no Cecult-IFCH-Unicamp.

O livro Trabalhadores dos trilhos, com suas significativas inovações historiográficas, consolida a carreira de Robério Souza como um dos mais destacados especialistas sobre o mundo do trabalho brasileiro. E ratifica sua importância como historiador do mundo do trabalho ferroviário. Em 2011, pela EDUFBA, o pesquisador baiano publicou outro livro sobre a temática: Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Nesse trabalho inovador, fruto de sua dissertação de mestrado, o autor analisa os conflitos de classe e de cor naquela mesma ferrovia, mas privilegiou uma temporalidade que nos permite conhecer as lutas dos trabalhadores negros contra formas de trabalho análogas aos tempos da escravidão (Souza, 2011).

Ambas as publicações fazem parte da mais refinada história social de matriz thompsoniana produzida em nosso país. Tal historiografia, absolutamente identificada com a Unicamp, reconhece a importância da agência dos subalternos na condução de suas próprias vidas e de seu protagonismo na luta de classes – com desdobramento nas mais variadas lutas dos “de baixo” por direitos jurídicos, sociais, culturais, econômicos e políticos. De forma muito especial, o livro Trabalhadores dos trilhos ainda aponta para a possibilidade de convergências entre a história social da escravidão e a história social do trabalho stricto sensu, dissolvendo, assim, as fronteiras analíticas e temáticas que ainda existem entre elas.2

Em sua sólida trajetória acadêmica, Robério Souza não escolheu seus objetos de estudo aleatoriamente ou de forma diletante. Nascido em Alagoinhas, cidade cortada pela antiga Bahia and San Francisco Railway, a vida do autor, oriundo da classe trabalhadora, esteve ligada direta e indiretamente aos trilhos de ferro. Tal peculiaridade ganha ainda mais significado quando sabemos de sua cor preta. A experiência étnica e de classe do pesquisador foram fundamentais em suas investigações, permitindo que seu esforço científico desconstruísse uma historiografia que invisibilizava os negros como protagonistas tanto na construção da primeira estrada de ferro baiana quanto na organização das históricas lutas dos “de baixo” por direitos trabalhistas e sociais.

Do ponto de vista formal, Trabalhadores dos trilhos é um livro muito bem enredado. São cinco capítulos que dialogam entre si, abordando os seguintes temas: implicações político-econômicas da construção da Bahia and San Francisco Railway, engajamento da mão de obra nacional e estrangeira, acordos sobre contratos e arranjos de trabalho, surgimento de alguma consciência de classe nos canteiros de obras da ferrovia e conflitos entre empregados, patrões, encarregados e autoridades públicas. A documentação utilizada é vasta e densa: correspondências governamentais, registros policiais, processos criminais, periódicos, leis, relatórios oficiais, fotografias etc. Todo o material compulsado foi encontrado em arquivos baianos e ingleses.

Logo nas primeiras páginas, Robério Souza demonstra como muitos historiadores e cientistas sociais do século passado, pouco afeitos ao trabalho empírico, se apoiaram acriticamente na legislação imperial que proibia o uso de mão de obra escrava na construção de ferrovias. Aprovada em 1852, a norma acabou induzindo leituras sociologizantes sobre a temática, o que reforçou a explicação de que existiu uma transição teleológica do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil oitocentista. E, nessas sentenças, a ferrovia surgiu como símbolo de “modernização”, ou, em outras palavras, como um empreendimento que viabilizou o amadurecimento das relações capitalistas e do mercado de trabalho em nosso país.

No livro, o tradicional consórcio entre “modernização” do mundo do trabalho e construção das ferrovias brasileiras começa a ser desconstruído assim que o autor demonstra a relação umbilical dos ingleses da Bahia and San Francisco Railway e das autoridades locais com o escravismo. Segundo Robério Souza, por exemplo, muitos empreiteiros e técnicos britânicos compraram e mantiveram cativos em suas próprias casas. Portanto, no cotidiano baiano, era impossível dissociá-los. Para justificar e compreender essa prática, o pesquisador nos remete ao fato de que capitais e homens de negócios ingleses estiveram intimamente envolvidos com o tráfico atlântico ilegal até 1850 – pouco antes da abertura dos canteiros de obras da ferrovia.

As fontes compulsadas por Robério Souza ainda revelam que os profissionais britânicos responsáveis pela construção da Bahia and San Francisco Railway contratavam escravos para os canteiros de obras da ferrovia. Eles alegavam ser impossível identificar a real condição jurídica dos negros que buscavam serviço. De certa forma, em alguns momentos, como salienta o pesquisador, os contratadores poderiam dizer a verdade. Contudo, acostumados com o escravismo e preocupados em viabilizar as empreitadas, pouco se esforçavam para verificar a situação legal das pessoas escravizadas que se passavam por livres. E, aproveitando-se dessa situação, precarizavam ao máximo a força de trabalho dos africanos e de seus descendentes.

Os escravos que se passavam por homens livres, por sua vez, encaravam os serviços oferecidos pela primeira ferrovia baiana como uma possibilidade de se “esconderem” de seus senhores, como propõe Robério Souza. Conseguir um emprego nos trilhos de ferro também era uma forma de os cativos se passarem por homens livres, tendo em vista as determinações impostas pela lei imperial de 1852. Ainda sobre as estratégicas apropriações feitas pelos “de baixo”, o autor afirma que a construção da Bahia and San Francisco Railway serviu como forma de esconderijo para outros sujeitos, como criminosos e desertores. Tais indivíduos queriam ficar invisíveis aos agentes da polícia, da justiça, das milícias e das forças militares.

Entre os trabalhadores que estiveram vinculados às rotinas dos canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway, Robério Souza afirma que poucos eram africanos livres (gente ilegalmente traficada da África para o Brasil entre os anos 1831 e 1850) ou “índios”. Nas páginas de Trabalhadores dos trilhos, sobre o primeiro grupo, observamos que alguns grandes proprietários baianos desviavam os “escravos da nação” mais jovens, saudáveis e fortes para suas terras, impedindo que o governo utilizasse essa mão de obra nos canteiros de obras da ferrovia. Para substituí-los, os senhores de terra e de gente mandavam para as empreitadas os cativos mais velhos e alquebrados de sua propriedade.

Além de escravos que se passavam por livres, africanos livres, “índios”, criminosos e desertores, a Bahia and San Francisco Railway também contou com a mão de obra do nacional livre. Estes últimos eram referidos pelos contratantes e pelos administradores do empreendimento como “preguiçosos” e “inconstantes”. Robério Souza deixa claro que tais julgamentos eram preconceitos étnicos e classistas. Os nacionais livres não aceitavam certas condições de trabalho, rebelavam-se quando injustiçados e tinham na roça seu principal meio de sustento. De acordo com a sazonalidade de seus cultivos e das vantagens financeiras que poderiam auferir, eles conjugavam ou não o plantio de subsistência com os canteiros de obras ferroviários.

Em meio a tanta gente de pele escura (livre, liberta e escrava) em um empreendimento “moderno” e “modernizador”, o operário estrangeiro também se fez presente. Os italianos chegaram à Bahia com a promessa de “moralizar” e “morigerar” os canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway. Apesar de serem os únicos a terem contratos formais de trabalho, também foram explorados pelos contratantes, tendo seus acordos constantemente desrespeitados. Robério Souza, por meio de farta análise documental, demonstra que isso gerou fortes tensões. Uma greve foi deflagrada por causa da insatisfação dos italianos, o que gerou forte repressão e posterior controle policial, com toques de recolher e cerceamento da livre circulação.

Historiador social arguto e sensível, Robério Souza entende a repressão sofrida pelos italianos como mais uma forma de constatarmos os tênues limites entre trabalho escravo e trabalho livre no Brasil império. Sobretudo após a deflagração da greve, os operários europeus da Bahia and San Francisco Railway foram vigiados mais de perto pelas autoridades policiais baianas e por seus patrões. Sob forte ameaça, tinham de seguir rapidamente dos canteiros de obras para seus alojamentos e ficaram com mobilidade limitada em seus momentos de lazer e de descanso. Ao exigirem o devido respeito aos contratos, os italianos experimentaram contratempos muito semelhantes àqueles que foram impostos aos africanos e seus descendentes escravizados.

Como podemos perceber, entre os anos 1858 e 1863, os canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway reuniram os mais variados tipos que viviam do suor do próprio rosto. O livro Trabalhadores dos trilhos chama nossa atenção para essa diversidade social e demográfica. E, mais do que isso, permite que conheçamos as alianças e os conflitos vivenciados pela multidão que construiu a primeira estrada de ferro baiana. Por um lado, como afirma Robério Souza, a precariedade possibilitou alguma consciência de classe: italianos e escravos criaram planos conjuntos de sublevação; as festas e as relações de vizinhança uniam pessoas. Por outro lado, ainda segundo o autor, refluxos ocorreram pelas diferenças de cor, nacionalidade e cultura.

Na construção da Bahia and San Francisco Railway, os fluxos e os refluxos da formação de alguma consciência de classe, processo muito bem analisado por Robério Souza, é um dos pontos altos do livro Trabalhadores dos trilhos. Inspirado por E. P. Thompson, o autor endossa a crítica de que a classe operária é uma construção histórica motivada por certas condições sociais. Portanto, como algo que é forjado na luta, a classe operária não surge pronta e acabada em determinado espaço-tempo, como algo exigido pela necessidade histórica – fruto do devir. O marxista inglês nos ensina que sua construção precisa dialogar com o processo histórico, algo que exige dos analistas especial atenção aos sujeitos, à crítica aos modelos engessados e à empiria.3

Por tudo isso, um dos maiores méritos de Trabalhadores dos trilhos é pensar a história social do trabalho sem engessamentos ou isolamentos teóricos. Robério Souza se apropria de instrumentos analíticos e categorias como etnia, classe, nacionalidade, trabalho escravo, trabalho livre e “modernização” sem perder de vista o processo histórico, a ação política dos sujeitos e a relação dos conceitos com sua pesquisa empírica. Ele ainda conseguiu tecer uma potente análise baseada na história social sem descuidar de elementos das histórias política, cultural e econômica. Utilizando a imagem da própria ferrovia, o livro é um entroncamento que nos permite visitar muitas estações da experiência humana.

Referências

CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando T da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas, v. 14, p. 11-50, 2009. [ Links ]

SOUZA, Robério S . Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Salvador: EDUFBA; São Paulo: Fapesp, 2011. [ Links ]

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2Sobre as fronteiras entre história social da escravidão e história social do trabalho stricto sensu, consultar Chalhoub e Silva (2009, p. 11-50).

3Para saber mais, consultar Thompson (19971981).

Marcelo Mac Cord – Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói(RJ) – Brasil. E-mail: [email protected].

Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) – SOUZA (RBH)

SOUZA, Robério S. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Ed. Unicamp, 2016. 272p. Resenha de: VITO, Christian G. de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017.  

Há muito tempo a história do trabalho é escrita exclusivamente sob as perspectivas do trabalho assalariado, da “proletarização” (ou mudança para o trabalho assalariado) e das organizações de trabalhadores assalariados. Enquanto esses aspectos têm sido confundidos com “modernidade” e com o surgimento e expansão do capitalismo, a escravidão e outras relações de trabalho forçado têm sido marginalizadas como “atrasadas” e não-capitalistas. Neste livro convincente e bem escrito, Robério S. Souza subverte essas abordagens tradicionais e mostra uma história do trabalho mais inclusiva, baseada em novas conceituações. O autor aborda a construção da ferrovia Bahia and San Francisco Railway no período de 1858 a 1863, mas em vez de vê-la como um símbolo da modernidade tecnológica, de investimentos estrangeiros “progressistas” e do trabalho livre, ele aponta para a compatibilidade do capitalismo com o trabalho forçado, indica múltiplas imbricações entre o capital britânico e os universos da escravidão, e destaca a presença de escravos na força de trabalho, contrariando os regulamentos da legislação imperial de 1852. Da mesma forma, o autor aborda os trabalhadores migrantes europeus – especialmente os “italianos” -, mas, em vez de corroborar a narrativa padrão de que eles seriam vetores de mão de obra livre qualificada, traz à baila a precariedade de sua liberdade e a compara com a dos “nacionais livres” e com as condições dos escravizados. Em termos mais gerais, Souza insiste na complexidade da composição da força de trabalho, em vez de buscar os trabalhadores assalaria­dos ideais típicos dentro dela: dessa perspectiva, ele consegue abordar as rela­ções concretas entre os trabalhadores permeando as condições legais e as relações de trabalho e apontando para as suas experiências e momentos de solidariedade compartilhados, bem como os conflitos que surgiram entre eles.

Esses argumentos fundamentais são brilhantemente apresentados na introdução, a estrutura do livro é bem projetada e o estilo mescla bem panoramas quantitativos precisos, momentos de reflexão e descrições detalhadas de eventos e biografias individuais. Os três primeiros capítulos informam o leitor sobre o mundo dos “senhores dos trilhos” e sua conexão com a economia escravista da província da Bahia (cap. 1), esboçam a “demografia social” da força de trabalho da ferrovia (cap. 2) e, em seguida, abordam a reconstrução da materialidade das tarefas, incluindo detalhes das obras em cada uma das cinco seções diferentes em que o canteiro de obras foi dividido (cap. 3). Os dois últimos capítulos focalizam, em detalhe, a agência e as experiências dos trabalhadores. O Capítulo 4 centra-se naqueles que migraram para o Brasil provenientes do Reino da Sardenha, descreve a greve que organizaram em 1859 e discute suas conexões mais amplas com as mobilizações de outros trabalhadores (incluindo os escravos) e as práticas de repressão e controle social implementadas pelas autoridades. O capítulo 5 examina de perto a multidão aparentemente desconexa e desordenada que compunha a força de trabalho e aborda as “lógicas internas que forjaram ou dificultaram a experiência e o processo de conformação de identidades” (p.34-35). Acompanhando o texto, um mapa histórico permite visualizar os territórios atravessados pela ferrovia (p.116), e 19 belas fotografias históricas – a maioria delas da Coleção Vignoles do Instituto de Engenheiros Civis de Londres – fazem que os trabalhadores, as localidades e as obras adquiram concretude para os leitores. De fato, em vez de serem apenas um suporte visual passivo, especialmente no capítulo 3, as fotografias são diretamente integradas e discutidas no texto. A maior parte das fontes primárias é extraída de várias seções do Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb) e inclui a correspondência entre várias autoridades, listas de passageiros que entraram no porto da Bahia e documentos produzidos pela polícia e pelas autoridades portuárias que se revelaram fundamentais para a compreensão tanto da dinâmica do controle social quanto da vida dos trabalhadores como indivíduos.

Como seu livro anterior sobre os emaranhados das relações de trabalho na Bahia no período imediatamente seguinte à abolição da escravidão, este trabalho mais recente de Souza está profundamente inserido na nova e revolucionária historiografia brasileira sobre o trabalho.1 O autor reconhece especialmente a sua dívida intelectual às obras de Sidney Chalhoub e Henrique Espada Lima (p.30). Ainda assim, precisamente por causa da qualidade deste livro, poder-se-ia esperar também um diálogo mais amplo do autor com as obras internacionais que abordam contextos comparáveis e questões relacionadas. Esse diálogo poderia ter fortalecido a sua interpretação em vários pontos e, simultaneamente, realçado o impacto deste volume para uma comunidade acadêmica maior. Por exemplo, os estudos sobre a força de trabalho igualmente complexa, mas montada de forma diferente, empregada na construção das ferrovias cubanas antes da abolição da escravidão na ilha caribenha (1880) poderiam ter fornecido referências comparativas úteis sobre a questão-chave da conexão entre liberdade e não-liberdade.2 Ao mesmo tempo, o livro de Souza é um complemento significativo às investigações recentes na História do Trabalho nos transportes, com as quais ele compartilha a crítica aos “binários padronizados entre coerção e liberdade” e para as quais contribui indiretamente expandindo o foco do “trabalho no transporte” para o trabalho que construiu as infraestruturas do transporte.3 A obra é também uma contribuição preciosa para a renovação da história da migração italiana do século XIX e início do século XX, para além das limitações dos estudos tradicionais que tendem a ver os trabalhadores italianos isolados do resto da força de trabalho e, particularmente, fora do trabalho forçado. Por sua vez, a nova abordagem acadêmica sobre a diáspora italiana, com a consciência da importância das conexões translocais e da pesquisa arquivística em múltiplos locais, poderia ter respaldado a sugestão de Souza sobre a relação entre as demandas dos trabalhadores sardos no Brasil e a turbulência política na Itália às vésperas da unificação nacional (p.188-190).4

Em um nível diferente, o argumento central do autor sobre a compatibilidade entre o capitalismo e o trabalho não-livre ecoa, entre outras, as descobertas do estudo pioneiro de Alex Lichtenstein sobre a economia política do trabalho de prisioneiros no período pós-emancipação do Sul dos Estados Unidos e as de um recente volume sobre trabalho forçado após a escravidão, organizado por Marcel van der Linden e Magaly Rodríguez García.5 De maneira mais geral, o argumento de Souza sobre as fronteiras fluidas entre liberdade e não-liberdade coincide com a questão-chave do longo debate sobre o trabalho livre e não-livre e também está alinhado com a reconceituação da classe operária proposta pelos estudiosos da História Global do trabalho, apontando para a necessidade de ir além do foco padrão sobre o trabalho assalariado, passando a estudar todos os tipos de relações trabalhistas que foram imbricadas no processo de mercantilização do trabalho.6 Finalmente, e de forma semelhante a outras obras brasileiras sobre a história do trabalho, os capítulos 4 e 5, em especial, mostram a importância do estudo simultâneo das relações de trabalho e da agência e organização dos trabalhadores – uma combinação que tem sido particularmente rara na História Global do trabalho até agora. De fato, a adoção do conceito de “experiência” – explicitamente tomado de empréstimo a E. P. Thompson – fornece a Souza uma ferramenta para adentrar a questão da formação contraditória da identidade de classe entre os trabalhadores que estavam “juntos, mas não misturados” (p.237) e, assim, frequentemente presos entre a unidade e a divisão em fronteiras nacionais, étnicas e legais.

Essas imbricações entre o trabalho de Souza e a historiografia do trabalho mais ampla ressaltam seu potencial para intervir em debates ainda maiores, beneficiando-se dela, ao mesmo tempo, em alguns pontos interpretativos. De modo algum essas observações críticas ofuscam os méritos deste livro. Na realidade, este volume é um daqueles preciosos estudos empíricos que podem inspirar e moldar pesquisas em outros locais e épocas, para além do seu tópico específico e do seu escopo cronológico. Por essa razão, traduções múltiplas deste livro são altamente desejáveis.

Referências

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Notas

1 SOUZA, 2011. Ver esp.: CHALHOUB, 1990LIMA, 2005CHALHOUB, 2012FORTES et al., 2013.

2Por exemplo: OOSTINDIE, 1984FADRAGAS, 1998.

3 BELLUCCI et al., 2014. Citação da Introdução dos editores, p.5.

4 GABACCIA; OTTANELLI, 2001.

5 LICHTENSTEIN, 1996LINDEN; RODRÍGUEZ GARCÍA, 2016.

6 BRASS; LINDEN, 1997LINDEN, 2010.

Christian G. de. Vito – Research Associate, University of Leicester; Lecturer, Utrecht University. Utrecht University, Department of History and Art History. Utrecht, The Netherlands. E-mail: [email protected].

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