Nordeste do Brasil na Segunda Guerra Mundial – Flávia Pedreira

PEDREIRA Flávia de Sá Segunda Guerra Mundial
Da esquerda para direita: autores Armando Siqueira, Gabriella Cordeiro e Luiz Gustavo; Flávia Sá (organizadora) e convidados /  

PEDREIRA, Flávia de Sá. Nordeste do Brasil na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: LCTE Editorial, 2019. 340 p. Resenha de: VAINFAS, Ronaldo. Nordeste flagelado pelos nazistas. Varia História. Belo Horizonte, v. 36, no. 71, Mai./ Ago. 2020.

A Segunda Guerra Mundial terminou há 75 anos. Terminou na Europa em maio de 1945, com a rendição alemã aos soviéticos após o suicídio de Hitler e no Japão em setembro, após as bombas lançadas pelos EUA, em agosto, sobre Hiroshima e Nagasaki. O Brasil passou por tudo isso. Viveu a crise da democracia liberal nos anos 1930, tempo do Estado Novo; participou da Segunda Guerra, enviando tropas para a Itália.

Mas o que aqui nos interessa é o Brasil no tempo da Segunda Guerra Mundial. Memórias de combatentes e pesquisa historiográfica reconstruíram a atuação brasileira na Itália. Elogio do alto comando dos aliados à bravura dos soldados brasileiros. Risco alto que alguns enfrentaram, depois da guerra, desmontando minas em diversos países ocupados pela Alemanha. Heróis de guerra, foram desprezados na volta ao Brasil, sobretudo a soldadesca, porque os oficiais foram condecoradíssimos. A maioria dos “pracinhas” que lutaram na Itália foram recrutados nas regiões Norte e Nordeste do país. A região foi sistematicamente atacada pelos submarinos alemães em 1942.

O livro organizado pela historiadora Flávia de Sá Pedreira, Nordeste do Brasil na Segunda Guerra Mundial, publicado pela LCTE Editorial em 2019, não deixa dúvida a respeito. Os ataques começaram no Sergipe, em agosto de 1942, quando o submarino U-507 afundou seis cargueiros brasileiros de diversas tonelagens que, acrescente-se, também faziam transporte de passageiros. Luiz Pinto Cruz e Lina Aras abrem o livro com texto bem documentado sobre tais ataques. Eles ocorreram entre 15 e 17 de agosto, afundando os navios Baependy, por ironia de fabricação alemã, o Araraquara, o Aníbal Benévolo, o Itagiba e o Arará. A cada navio torpedeado, pânico total na capital e até no interior. Parentes desesperados à procura de sobreviventes. Corpos despedaçados nas praias. Medo de uma iminente invasão alemã. Blackouts.

Dilton Maynard nos conta como o medo assolou Aracajú naqueles dias, com a explosão do Baependy. Os ataques prosseguiram na costa baiana, onde os alemães torpedearam outros quatro navios brasileiros. Total de desaparecidos no Sergipe e na Bahia: 612. Luana Quadros Carvalho analisa as consequências dos ataques ao litoral de Salvador: crises de abastecimento, inflação, mercado paralelo, o que atingiu sobretudo a população pobre da cidade.

É sabido que o número de navios mercantes brasileiros afundados por submarinos alemães – e também italianos – foi muito maior do que os torpedeados na costa nordestina. Mas a Segunda Guerra alcançou o Nordeste de forma implacável, antes de tudo porque os ataques ocorreram em mar brasileiro. O impacto social dos eventos foi tremendo. Como a censura do DIP levou dias para permitir a divulgação das notícias, o Nordeste vivenciou uma autêntica caça às bruxas nos primeiros dias da tragédia. Casas e lojas de estrangeiros, suspeitos de espionagem, foram vandalizadas. Quando a imprensa é censurada, predomina o boca-a boca e todo abuso se torna banal.

Seja como for, havia uma rede de espionagem alemã espalhada pelo Brasil e por outros países sul-americanos, como a Argentina e o Chile. Juliana Leite reconstrói a rede de espionagem nazista, que contava com cerca de dez células ramificadas em vários estados do país. A autora particulariza o caso pernambucano, onde empresas alemãs instaladas no Recife funcionavam como locais de recrutamento, a exemplo da Siemens Schukert S.A e a Dreschler & Cia. Os grandes espiões, porém, provinham da diplomacia alemã instalada no país, e não era desconhecida das autoridades brasileiras, com sua DIP sempre atenta.

A obra em foco inclui estudos sobre várias cidades nordestinas, examinando a reação popular aos afundamentos de cargueiros brasileiros e outros aspectos da entrada do Brasil na guerra. Osias Santos Filho analisa o impulso que a guerra mundial deu à indústria têxtil maranhense. Mas, a partir de 1942, algumas atividades refluíram, como a exportação de babaçu, cujo principal importador era a Alemanha, além da carestia, inflação, racionamentos e falta de combustível. No vizinho Piauí, Clarice Lira analisa a grande mobilização popular em 1942. Não faltaram perseguições a alemães, italianos e japoneses residentes em Teresina.

A Paraíba, como expõe Daviana da Silva, foi estado dos mais destacados na mobilização do Brasil, com passeatas e comícios em Campina Grande e João Pessoa. O jornal A União publicou fotografias de paraibanos que viajavam nos navios afundados, incluindo notícia sobre a vida de cada um. A autora sugere que tais eventos despertaram não apenas um surto de brasilidade como a emergência de um sentimento de paraibanidade, assunto caro à história regional, como a de outros estados que por séculos gravitaram na órbita pernambucana. Sérgio Conceição estuda o caso de Alagoas e concentra o capítulo na história socioeconômica da região, analisando a ascensão da produção de borracha, incentivada pelo regime Vargas, vista com grande entusiasmo por algumas lideranças, criticada por outros apegados à produção de cana e de algodão.

Antônio Silva Filho examina o cotidiano de Fortaleza nos anos 1940, cidade que também abrigou base militar dos EUA, discorrendo sobre os primórdios da “americanização” de certos costumes locais. Na abertura do capítulo, uma alusão ao carnaval de rua na capital, em 1946, em especial a formação de um bloco chamado “Cordão das Coca-Colas”, formado por sargentos brasileiros da FAB, que satirizava “as moças da sociedade local que haviam namorado soldados norte-americanos” (p.37). O autor é cauteloso na análise do tal desprezo pelas moças que “namoravam ianques”, citando mesmo uma crônica de Raquel de Queiroz, datada de 1944, para quem “só os rapazes são um pouco contra os nossos aliados, rosnam bastante, falam em mentalidade colonial (das mulheres cearenses)” (p.38). Por minha conta, digo que esse bloco era tremendamente misógino e machista, conforme sugeriu, com elegância, a grande escritora brasileira.

Em obra com tal recorte regional, é certo que não poderia faltar capítulos sobre o Rio Grande do Norte, antes de tudo por causa do famoso Parnamirim Field, então distrito de Natal, hoje município autônomo, que abrigou duas bases norte-americanas nos anos 1940. Parnamirim Field não foi a única base aeronaval dos EUA no Brasil, como muitos sabem, mas era a principal, designada em mapas militares dos EUA como Trampoline of Victory porque estava na rota ofensiva dos norte-americanos nas campanhas da África e do sul da Itália. Foi nela que ocorreram os contatos mais intensos entre a população brasileira e os norte-americanos, tema que já foi objeto de estudos sérios e documentados.

A obra contém três capítulos sobre a terra potiguar. Anna Cordeiro estuda o bairro da Ribeira, em Natal, favorecido pelo boom populacional ocorrido na cidade; Luiz Gustavo Costa contribui com biografia de um natural do Rio Grande do Norte, veterano da FEB na Itália; e enfim, Flávia Pedreira contribui com trabalho sobre os intelectuais potiguares em face da base norte-americana erigida em Natal. Entre eles, Câmara Cascudo, que se mostrou ambivalente, segundo Flávia, diante da influência de Paranamirim Field sobre a cultura local: ora reconhecia o valor da “boa música” tocada pelas orquestras norte-americanas nas praças natalenses, ora depreciava a difusão de artigos como a “borracha açucarada”: os chicletes.

As balizas teórico-metodológicas do livro aparecem na apresentação da organizadora. Em primeiro lugar, uma alusão ao clássico de Hannah Arendt, Origens do totalitarismo (2000), para realçar que as atrocidades do nazismo contaram com o apoio das massas. Isso é válido para a Alemanha hitlerista, e o seria para a Itália fascista e para a o regime stalinista na URSS. Para o Brasil não, apesar de que o regime liderado por Getúlio Vargas, após 1937, aspirava a ser um Estado fascista, do tipo definido por Mussolini: “Tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”.

A historiografia brasileira, porém, com a exceção da produzida em São Paulo, qualifica o Estado brasileiro entre 1937 e 1945 como autoritário, mas não fascista, muito menos totalitário. A própria aliança do Brasil com os EUA, em 1942, contribui, factualmente, para relativizar, ou mesmo negar, a vocação fascista do Brasil na ditadura de Getúlio Vargas. Com a eclosão da guerra, em 1939, o governo permaneceu no attentisme, atento ao desenrolar do conflito, como diria o historiador francês Pierre Laborie (2010), ao caracterizar a atitude dos franceses em face da ocupação alemã. A maioria não resistiu à ocupação nazista, tampouco foi colaboracionista, senão agiu conforme as circunstâncias, transitando no que chama, com acuidade, de zona cinzenta.

Getúlio Vargas parece ter esposado o attentisme, atuando em uma zona cinzenta no campo diplomático. Muitos historiadores brasileiros preferem tratar o Estado Novo como berço do Trabalhismo, com seu viés nacionalista e popular, ao invés de assimilá-lo aos totalitarismos alemão e italiano. Nesse ponto, o paradigma teórico adotado no livro é um tanto anódino, em especial porque a imensa maioria dos textos da coletânea descreve experiências de ataques alemães ao Nordeste e sua repercussão, sem operar com o conceito. O totalitarismo funciona, antes de tudo, como pano de fundo histórico, em geral atribuído ao regime nazista. Mas vale dizer que, em todos os textos, os autores apontam, de várias maneiras, a contradição visceral do Estado Novo, uma ditadura inspirada nos regimes autoritários europeus, que depois se alia aos EUA na luta pela democracia no mundo.

Por outro lado, a alusão de Flávia Pedreira a Paul Ricoeur (2008) parece-me exata para exprimir as pesquisas que dão corpo ao livro. Nas palavras da organizadora, “faz-se a inclusão de entrevistas orais com aqueles que vivenciaram a época e/ou seus descendentes, trazendo à tona um verdadeiro exercício de memória que muito tem a esclarecer os fatos e personagens envolvidos” (Pedreira, 2019, p.8). Uma opção metodológica que atravessa todos os ensaios e nisso acerta em cheio o seu propósito.

Mas penso que não vale a pena alongar tais considerações teórico-metodológicas, por vezes nominalistas, a propósito de livro tão relevante. A história não deve, a meu ver, demonstrar teorias, senão valer-se delas para reconstruir o passado. O livro em causa faz isso à perfeição, malgrado o que afirmei acima. Vista no conjunto, a obra conta uma história do Nordeste para além das secas e da exploração da miséria, desafiando mitologias. Mostra ao vivo o Nordeste atacado pelo nazismo em 1942. Assunto fascinante e obra à altura do tema.

Referências

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. [ Links ]

LABORIE, Pierre. 1940-1944. Os franceses do pensar-duplo. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (org.). A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX, vol. 1: Europa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. [ Links ]

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008. [ Links ]

Ronaldo Vainfas – Universidade Federal Fluminense Departamento de História Campus de Gragoatá, Niteroi, RJ, 24220-900, Brasil. [email protected].

Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII – FRAGOSO; MONTEIRO (LH)

FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Org). Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2017, 476 pp. Resenha de: VAINFAS, Ronaldo. Ler História, v.75, p. 275-279, 2019.

1 O livro organizado por João Fragoso e Nuno Gonçalo Monteiro recoloca a problemática do império marítimo português, em particular aquela dedicada a investigar as dinâmicas imperiais nos séculos XVII e XVIII. O título, é certo, evita a palavra império e adota uma fórmula original, “um reino e suas repúblicas no Atlântico”. O termo república, aliás, como bem sabem os especialistas, procura exprimir o que, na documentação da época, aparecia como conquistas ou domínios ultramarinos, raramente como colónias, exceto a partir do final do século XVIII. É opção interessante, pois além de mais ou menos frequente em documentos coevos, tal nomenclatura ilustra a perspectiva jurisdicional, uma vez focada nos sistemas e agentes da comunicação entre as diversas esferas de poder, desde as instituições administrativas do reino às agências locais, a exemplo das câmaras municipais, passando pelas governanças coloniais, fossem estados ou vice-reinos, sem prejuízo de outras instâncias de peso, como juizados vários, tribunais de segunda instância e corporações militares.

2 A obra se insere, portanto, na corrente revisionista da história portuguesa e ultramarina do Antigo Regime, embora também este conceito seja motivo de polêmica entre os historiadores, nos últimos vinte anos, quando aplicado às sociedades coloniais da época moderna. Polêmicas sobre a nomenclatura têm sido, de facto, muito intensas neste campo de estudos, e se, por vezes, exprimem divergências meramente nominalistas, outras vezes se relacionam a questões relevantes de ordem conceitual, tingidas por colorações políticas e ideológicas, em maior ou menor grau. Exceções à parte, as polêmicas deste campo de estudos me parecem cientificamente elevadas e se relacionam ao nó da questão. Trata-se, antes de tudo, de definir o estatuto das relações entre a coroa portuguesa e suas possessões marítimas. Trata-se, ainda, de compreender a dinâmica dessas relações que, obviamente, se modificaram ao longo dos séculos. Trata-se, em especial, de relacionar esta dinâmica com as diversas territorialidades, com as instâncias hierarquicamente graduadas de governança e com os agentes de poder em vários graus. Em uma fórmula banal : identificar quem mandava em quem, quando, onde e porquê ; e, sobretudo, como se comunicavam as diferentes esferas de poder, sobre quais temas, com que frequência, quem as protagonizava.

3 Claro está que o objeto de investigação em causa pressupõe a delimitação do todo e das partes. Da unidade e de seus componentes. Um reino e suas repúblicas é título sugestivo, como já disse, mas não pretende, quero crer, dar conta do imbróglio conceptual que a questão encerra. Diversos livros, seja os da historiografia tradicional, seja os da revisionista, recorrem à palavra reino para aludir à cabeça deste complexo sociopolítico, palavra que se reveza com coroa, monarquia, metrópole e império. A problemática de fundo reside nos nexos entre o centro e as periferias do mundo português, como sugeriu Russel-Wood, em texto clássico, embora o mesmo autor aponte que tais vínculos eram complexos, dinâmicos e relacionais. Determinada periferia poderia funcionar como centro de outras periferias do ponto de vista comercial, administrativo ou jurisdicional. O próprio Portugal, centro inconteste de suas conquistas ultramarinas, passou à órbita das monarquias secundárias da Europa após 1640, justamente na época em que o reino brigantino buscou incrementar seus mecanismos de controle, em especial sobre o Brasil e a África centro-ocidental.

4 Império ? Eis-nos diante de um conceito tremendamente complicador nas definições da unidade, decerto maior, dos dilemas relacionados às periferias. No livro em causa, evita-se o império no título, bem como na excelente apresentação dos autores sobre as pesquisas nele contidas. No prefácio assinado por António Manuel Hespanha, porém, “império português” é expressão usada sem hesitação, embora o autor a utilize exatamente para sublinhar o descentramento dele, considerado o “desenho de centros de decisão de vários níveis, interconectados segundo uma geometria variada…”. Um império fragmentado, descentralizado. Império sem unidade. Não é de estranhar que Hespanha assim o defina, sendo autor de obra matriz do revisionismo historiográfico português quanto ao caráter absolutista da monarquia, definindo-a como polissinodal, para sublinhar a pluralidade, quando não justaposição, das jurisdições decisórias até meados do século XVIII. Poucos estudos do livro adotam o império como referência e apenas um o estampa no título.

5 O conceito, ou apenas a expressão, de império português é aspecto central desta temática, considerada a trajetória de seu uso e a claudicação dos historiadores atuais em adotá-la. O livro em foco ilustra o dilema, embora prevaleça alguma parcimônia na utilização do termo, que perde, em menções, para a noção de reino. Mas, paradoxalmente, a restauração inovadora do conceito de império faz parte do revisionismo historiográfico das últimas décadas, seja do lado português, seja do brasileiro. Os organizadores se referem ao império a propósito da unidade que o mundo português teria eventualmente construído na época estudada : “no Setecentos, o termo ‘império’ parece ter tido uma utilização escassa, sobretudo literária, tornando-se mais frequënte em finais do século, também por influência da economia política”.

6 Estão certíssimos, se lembrarmos que D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro da coroa, foi quem praticamente cunhou o termo “império luso-brasileiro”, em sua memória de 1797. Considerando que, após a independência das colônias inglesas da América do Norte, o império português corria o risco de fragmentar-se, sustentou a necessidade de reformas que aliviassem a pressão, sobretudo fiscais, sobre os colonos do Brasil. Recorrendo ao pensamento dos fisiocratas e de Adam Smith, pretendeu reforçar a unidade das conquistas como um todo. Concebeu um império que apostasse nas horizontalidades territoriais, sem destroçar a verticalidade inerente a um império colonial. “Afrouxar os laços para manter o enlace”, assim Fernando Novais se referiu ao projeto setecentista do Conde de Linhares. Quase sessenta anos antes de D. Rodrigo, D. Luís da Cunha havia exposto tese semelhante, nas Instruções Inéditas a Marco António de Azevedo Coutinho, de 1736, que viu no Rio de Janeiro a vocação para encabeçar um império atlântico português, no lugar de Lisboa. Romero de Magalhães o definiu, por isso, como um “visionário radical”, embora fosse ele, D. Luís, um ilustrado calculista. Chegou D. Luís a escrever que, por ser “florentíssimo e bem povoado aquele imenso continente do Brasil”, deveria o rei de Portugal tomar o título de “imperador do Ocidente” e ali estabelecer-se. O historiador brasileiro Evaldo Cabral de Mello abriu com D. Luís da Cunha um texto intitulado “Antevisões imperiais”, publicado em Um imenso Portugal (2002). De sorte que Fragoso e Monteiro estão certos ao indicar que o conceito de império, em Portugal, foi uma formulação tardia. O império luso-brasileiro, ao concretizar-se nos primeiros anos do XIX, preludiou a emancipação política do Brasil, como afirmou Emília Vitti da Costa.

7 Na historiografia brasileira dos anos 1930-1940, empenhada em desvelar a identidade brasileira, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. sequer mencionaram o império português. Estavam, os dois primeiros, empenhados em discutir o maior ou menor peso da cultura portuguesa na formação do país. Gilberto Freyre ao exaltar a plasticidade do português, embora realçando o triunfo das africanidades na identidade brasileira. Sérgio Buarque ao desmerecer o legado lusitano – predatório – mas reconhecendo que tudo, na formação histórica brasileira, foi adaptação maior ou menor da portugalidade. Caio Prado, por sua vez, marxista por vocação e formação, concentrou o foco nas contradições entre metrópole e colônia, ao destacar a exploração mercantil do Brasil em um sistema orquestrado pelo capital comercial europeu. Buscava as origens do subdesenvolvimento, do atraso e da pobreza brasileiras à luz do conceito leninista de imperialismo, ajustado para o período colonial. A mesma interpretação foi aggiornata nos anos 1970 por meio do conceito de Antigo Sistema Colonial, cunhado por Fernando Novais. Irrigou inúmeras pesquisas e livros didáticos brasileiros até o final do século passado.

8 Do lado português, o problema parece ser mais complexo. A noção de império colonial encorpou-se nas primeiras décadas do XX. Ainda na Ditadura Militar portuguesa (1926-1933), o ministro das colónias, Armindo Monteiro, defendeu a organização de um verdadeiro império, que Portugal não estruturara, apesar de possuir “um conjunto de parcelas espalhadas pelo mundo”. No Estado Novo esta ideia deslanchou. O própro Salazar publicou diversos textos em que celebrou a unidade do império português. Bastaria examinar as divisões e propósitos da Agência Geral das Colónias, fundada em 1924 e agigantada no salazarismo. Bastaria citar os eventos da Agência nos anos 1930, a exemplo do Congresso da Expansão Portuguesa no Mundo (1937). A Agência Geral das Colónias patrocinou centenas de publicações e criou colecções tipicamente colonialistas ou imperialistas, a exemplo de “Pelo império”.

9 É verdade que a Agência também publicou estudos de interesse, mas seu engajamento ideológico era indiscutivelmente salazarista, imperialista. Não admira que os historiadores à esquerda, como o grande Vitorino de Magalhães Godinho, jamais tenham utilizado o conceito de “império colonial”. Não admira que os historiadores formados ou consolidados após a “Revolução dos Cravos”, tenham seguido este caminho cético quanto à legitimidade do conceito de “império português”. Citemos a coleção História da Expansão Portuguesa, organizada por Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri a partir de 1998. O conceito de império serve de referência, quiçá eixo da obra, figurando no título de várias partes ou capítulos. Um império entendido em sentido abrangente, abrigando não apenas os fluxos mercantis, mas também as configurações políticas e culturais. Diria que a obra aprofunda no conteúdo, e alarga na temporalidade, o que Charles Boxer ofereceu no clássico O império marítimo português (1969). Porém, não obstante a excelência da colecção, os autores evitam discutir o conceito de império e o não explicitam no título, se é que chegaram a cogitar da hipótese.

10 A partir dos anos 1990, do lado de cá e de lá do Atlântico, os historiadores passaram a valorizar a perspectiva imperial de Boxer, que nada tinha que ver com os dilemas políticos portugueses ou brasileiros. Uma tentativa de, mutatis mutandis, pensar a experiência imperialista portuguesa à luz da britânica e da holandesa, por ele estudadas desde os anos 1950. A afirmação de Boxer de que as câmaras e as misericórdias foram pilares do império português tornou-se clássica, inspirando várias investigações. Um incentivo aos estudos dos poderes locais na configuração do império lusitano. Mas penso que os estudos sobre impérios coloniais na época moderna tiveram peso na recuperação do conceito de império, como no livro de Jack Greene, Peripheries and Center : Constitutional Development in the Extended Polities of the British Empire and the United States, 1607-1789 (1990).

11 A obra em análise evita o conceito de império, mas flerta com ele. O próprio Fragoso adotou, sem pejo, o conceito de “império”, quer no pioneiro O Antigo Regime nos trópicos (2001) quer em A trama das redes : política e negócios no império português (2010), ambos organizados em parceria com Maria de Fátima Gouvêa. Em Um reino e suas repúblicas, evita-se o império em favor de conceito novo, da lavra de Monteiro : monarquia pluricontinental. Conceito adequado à realidade factual, que deve ser a mais importante para os historiadores. No entanto, para polemizar, diria que a monarquia hispânica possuía perfil similar, não obstante John Elliot a ter definido como monarquia compósita. Pois quem haverá de duvidar que Castela encabeçava uma monarquia pluricontinental no mesmo período, com o trunfo de ter engolido o império português entre 1580 e 1640 ?

12 Em todo caso, os critérios adotados para delimitar os “períodos de comunicação” são muito inovadores (p. 27). Os organizadores multiplicam as fases e, ao mesmo tempo, alargam as perspectivas para a investigação das dinâmicas imperiais no Atlântico português pós-restauração. Isto porque se ancoram na empiria (fluxo e disponibilidade das fontes) ; atentam para as conjunturas políticas e econômicas portuguesas do período ; procuram destacar os aspectos relacionais entre os vasos comunicantes no Atlântico português em várias escalas de poder. Oferecem uma tipologia arguta das dimensões do poder : a do reino, a da conquista, a donatorial, a local, a privada ou doméstica. Reconhecem, ainda, que a pesquisa deixa quase de fora a dimensão doméstica de poder, exceto quanto à incidência de solicitações de mercês pelas elites coloniais à monarquia. Um paradoxo formidável, considerado que o exercício do poder, no âmbito doméstico, era decisivo na estruturação das relações sociopolíticas da monarquia pluricontinental.

13 Vale indagar se, por deixar à sombra a esfera do poder senhorial no Brasil ou a dos potentados africanos que organizavam o tráfico, a obra se preocupa apenas com a face formal da comunicação política. Não penso ser este o caso, sobretudo porque alguns capítulos tangenciam a dimensão privada do poder, ao desvendarem malhas locais, como no texto de Roberto Guedes sobre a câmara de Luanda. Em segundo lugar, porque o relativo eclipse da esfera doméstica de poder resulta não de qualquer parti pris, senão do que as fontes oferecem. Em terceiro, porque a esfera jurisdicional, privilegiada na obra, verticaliza a fisiologia política do império. Círculos de poder com ligames formais de comunicação. Círculos concêntricos ? Talvez não, considerado o compromisso teórico dos autores com o descentramento. Talvez sim, se admitida alguma centralidade da coroa. Dilemas à parte, estamos diante de um grande livro. Pesquisa financiada por várias top agências de fomento. Inovação no tratamento da problemática. Equilíbrio entre a informação quantitativa e a interpretação qualitativa, erudita. Aproveitamento à exaustão das fontes disponíveis, com destaque para as do Arquivo Histórico Ultramarino. Historiadores e historiadoras de ponta, nos dois lados do Atlântico. Paixão pelo ofício em cada um dos trabalhos da obra.

Ronaldo Vainfas – Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ-FFP) e Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. E-mail: [email protected]

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O Império do Brasil | Lucia Bastos P. das Neves

NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira; MACHADO, Humberto. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Resenha de: VAINFAS, Ronaldo. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.2, n.2, p.186-189, 2004.

Acesso apenas pelo link original [DR]