Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista | Ana Flávia Magalhães Pinto

A narrativa sobre a circulação e experiências de homens negros livres, letrados, pensadores ativos na vida social no Rio de Janeiro e em São Paulo nas últimas décadas de vigência da escravidão é o tema predominante nessa obra, que teve sua origem no trabalho de pesquisa para o doutorado da autora, defendido na Universidade de Campinas em 2014. Agora vertida em livro e compondo o 46º volume da coleção Várias Histórias.

Marcada por um trabalho procedimental baseado na micro-história, a pesquisa é fartamente ancorada em um trabalho diligente e preciso sobre a documentação escolhida, explorada sob a autoridade de quem oportuniza ao leitor superar a visão, dominante em certa historiografia, de que se tratava de homens únicos e/ou isolados em sua geração e sociedade. Oferece-nos a autora desse livro a oportunidade de acessar, em sua proposta narrativa, uma prosopografia de negros brasileiros em atividade política e conexões urbanas, nas últimas décadas do século XIX, marcada pela “politização da raça a partir de escritos de liberdade (p.24).

Uma geração de negros livres ou libertos que promoveu debates estabelecidos em jornais diários, literatos, negros, emancipacionistas que lideraram a constituição de meios e condições de diálogo, crítica, confrontação e resistência na luta por liberdade. Essa abordagem escolhida para tratar suas trajetórias demonstra confluências e dissonâncias na ação, mas uma marca em comum: a experiência de racialização em contexto de transição de regime político (da monarquia à república) e social (da escravidão à abolição).

Dividido em três partes o livro oferece nos quatro primeiros capítulos um olhar sobre as trajetórias de José Ferreira de Menezes (1841-1881), Luiz Gama (1830-1882), José do Patrocínio (1853-1905), Machado de Assis (1839-1908) evidenciando as experiências biográficas e atuação, bem como os embates em torno da abolição, raça, ciência. Destaca-se da narrativa de A. F. M. Pinto (2018) o protagonismo dado à desenvoltura do grupo nos combates decorridos na imprensa, fonte por excelência da pesquisa, a revelar os óbices à participação social de homens negros livres, mas sobretudo as estratégias escolhidas por cada um deles – com suas peculiaridades – para participar“(…) dos movimentos da sociedade em que vive e de que depende” (p.146), como postulou Machado de Assis. Outros nomes se estacarão na narrativa, tais como Apulco de Castro, Vicente de Souza, Arthur Carlos, Ignacio de Araújo Lima e Theophilo Dias de Castro, entre outros, como parte de uma geração que “travou combate de ideias com muita gente em defesa da causa da liberdade (p. 74).

Na segunda parte da obra, os capítulos cinco e seis tem a narrativa urdida com uma tessitura que une a Revolta do Vintém (1879) como ápice de um clima de descontentamento político que vinha crescendo na capital do império, onde os protestos contra o aumento de impostos e os destratos à cidadania pelos agentes do estado, sobretudo da força pública, se ligam à presença reconhecida e mesmo publicamente ovacionada de emancipacionistas negros, que travavam combates de ideias em nome da liberdade e da cidadania (p. 206), confluindo para uma ação coletiva em torno das agremiações abolicionistas. Dentre as ações desse grupo de homens se destaca a relevância que a autora dá à denúncia pública que oferecem na imprensa à sociedade da injustiça e ilegalidade inerente a processos de reescravização, apelando ao constrangimento público e à condenação pública do escravismo. E colocando no centro do debate o problema, a querela ou a questão da liberdade.

Na terceira parte, composta pelos capítulos sete e oito é, particularmente significativo o trabalho da autora em evidenciar empiricamente o esforço envidado por homens negros em se inserir na vida política em São Paulo, seja na qualidade de eleitores ou de membros de partidos políticos em evidente movimento de busca por ampliação de espaços na participação política. Bem como restam nítidos os limites, as perdas e as diferentes posições entre o fim do período monárquico e o início da república. No oitavo e último capítulo dedicado às organizações negras e às dissonâncias políticas no pós abolição, a autora destaca as vulnerabilidades políticas, as diferenças entre republicanos e monarquistas e – sobretudo – as pautas em comum: manutenção do trabalhador negro no mundo do trabalho livre, acesso à educação e a ocupação de outros espaços sociais.

Já na primeira parte do livro, a historiadora Ana Flavia Magalhães Pinto (2018) demonstra a correlação da efervescência da vida cultural intrinsecamente relacionada à atividade de uma geração de negros livres, que podia “encontrar Callado dando aulas de flauta no Conservatório de Música e no Liceu de Artes e Ofícios do Rio Janeiro, bem como vê-lo executar suas aclamadas composições e tantas outras de autoria diversa em audições restritas ou destinadas a um público mais amplo” (2018, p. 09). Concertos para a família imperial, batizado de príncipe, evento no salão do conservatório, missa cantada por ocasião da festa do Senhor Bom Jesus dos Perdões no morro do Castelo, serenatas, bailes, festas. Em todos os espaços era possível dar com a presença de figuras respeitadas do universo musical. Além da Callado, o maestro Henrique Alves de Mesquita, mestres do Choro, de Chiquinha Gonzaga a Anacleto de Medeiros, o flautista e saxofonista Viriato Figueira da Silva. Enfim, a Companhia de Teatro Fênix Dramática em suas apresentações no Teatro de São José, a principal casa de São Paulo, que em 1876 tinha no renomado ator e dramaturgo Francisco Corrêa Vasques um nome de sucesso com seus personagens cômicos. Numa relação entre música e teatro se articulava o trabalho conjunto entre artistas negros. Ao narrar esse protagonismo a autora torna verossímil ao seu leitor a intensa e pública presença negra na cena cultural na capital do império.

A autora destaca que envolvidos nessa cena, disputando com outros grupos, estavam empenhados em oferecer feições delineadoras no nascedouro do Brasil. Essa geração desejava influenciar os progressos que se anunciavam então. Prescrutar pelos motivos e obstáculos que atrasavam a nação que se formava era uma questão fundamental. E nela se imiscuía a questão do sistema escravista, tipo de governo, composição demográfica e populacional. O século XIX aparece, sob as letras da autora, como o tempo que assistiu à emergência de assistiu a inúmeros projetos direta ou indiretamente apresentados na arena político-cultural brasileira.

Esse livro demonstra o modo pelo qual nessa dinâmica diferentes pensadores e literatos negros “forjaram suas trajetórias, vivenciaram incertezas, estabeleceram suas estratégias e alianças e, sobretudo, construíram seus entendimentos sobre o país do qual se consideravam parte e participantes” (p. 23), ainda que em virtude de sua identidade racial fosse, não raro, deslegitimados.

Ferreira de Menezes, Luiz Gama, Machado de Assis, José do Patrocínio, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos e Theophilo Dias de Castro, são alguns dos nomes que desfilam nessa obra, dentre os muitos outros “homens livres de cor”, que atuaram para de multiformes aspectos estabelecer e garantir seus espaços na cena pública, buscando influenciar os rumos do país.

Seus feitos eram constantemente focalizados na aproximação com plataformas políticas nas quais vislumbravam eventuais garantias de participação, fosse para os recém-libertos ou para as demais parcelas da população naquele país que se reorganizava. Sem dúvida a imprensa – e sua maquinaria tecnológica e social – assumia para aqueles homens um lugar central e uma arena para o lançarem-se no desenvolvimento de suas ideias e em busca de realizar seus anseios. Lançando-se ao debate alargaram no tempo a inscrição de suas palavras e trajetórias, legando ao país e fixando na memória as lutas de sua geração, ao tempo em que contribuíam para evidenciar o quão estreitos podiam ser os caminhos criados para os futuros passos do país. Num percurso tão bem recuperado pela historiografia produzida nesse livro.

Desse minucioso trabalho de pesquisa emerge uma análise acurada, que tanto demonstra que esse grupo de homens contribuiu com os debates na transição entre a monarquia a república, do trabalho escravo ao braço livre, quanto constituíram redes, estratégias, processos e grupos de confronto, resistência e produção de matéria política e social que visibilizou a presença política de negros livres letrados e fez incidir sobre a vida social a produção de suas ideias.

Uma sofisticada análise, que põe em tela as redes e as dinâmicas da “politização da raça” no Brasil do século XIX, a partir da experiências de homens negros letrados, literatos e pensadores.

Recomenda-se fortemente sua leitura, sobretudo às pessoas interessadas na história negro-brasileira, nas transformações recentes da historiografia nacional, na história social e das ideias, na história do Brasil no século XIX, na história política e na história urbana. Essa obra é atravessadas pelo interesse historiográfico nas narrativas que enunciam a presença e atividade de pensadores e literatos negros “Livres e pela liberdade em tempos de incerteza” (PINTO, 2018, p. 181).


Resenhista

Janira Sodré Miranda – Professora de história no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás e doutoranda em história pela Universidade de Brasília.


Referências desta Resenha

PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista. Campinas/SP: Editora UNICAMP, 2018. Resenha de: MIRANDA, Janira Sodré. Em defesa da causa da liberdade. Crítica Histórica. Maceió, v. 12, n. 23, p. 491-494, julho, 2021.

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