História Oral, trabalho, trabalhadoras (es) | História Oral  | 2020

As formas de relações de trabalho e a subjetivação da ideia de trabalhadora e trabalhador têm sido pontos de intensas disputas entre diversos setores sociais nos últimos anos. A massificação da internet, das redes sociais, dos aparelhos celulares e seus aplicativos produziram novas ferramentas e uma nova linguagem para definir e significar o mundo do trabalho.

Nesse cenário, gostaríamos de destacar dois elementos: o discurso de liberdade e os significados da legislação trabalhista. Ao controle e opressão patronais sofridos pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras nas fábricas, nos canaviais e outros espaços, foi contraposto um forte discurso de liberdade. Sem patrão, com livre-iniciativa, com a possibilidade de escolher o horário de trabalho, bem como o tempo dedicado, assim se apresentam as novas formas laborais para as pessoas que se identificam e são identificadas como empreendedoras. Desde os entregadores dos aplicativos de comida em todo Brasil até as costureiras em Toritama, no Agreste de Pernambuco, a promessa da ausência de patrões e dos mecanismos de controle direto empregados pelos mesmos, significaria uma nova fase de mais liberdade e possibilidade de novos ganhos, dependendo apenas do esforço de cada trabalhador ou trabalhadora.

O outro elemento advém do processo de desregulamentação dos direitos trabalhistas, por meio das reformas na legislação. Para tanto, a gramática da modernização e do progresso é agenciada para ressignificar as ditas reformas e a supressão de diversos direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores. A linguagem do novo e do progresso, operada no campo da tecnologia e da internet, das mídias sociais e dos aplicativos, é mobilizada para prometer um novo horizonte de possibilidades de ganhos que colocaria as leis trabalhistas como algo ultrapassado, antiquado e até mesmo inútil, pois controlaria e limitaria as ações dos trabalhadores e trabalhadoras, bem como seus possíveis ganhos, regulando carga-horária diária e semanal, salários e diversas regras laborais.

Essa gramática anunciadora da modernização e da novidade produz uma linguagem para dar significados às novas relações de trabalho e seus sujeitos. Aposta no indivíduo e em sua própria ação, descartando ou, ao menos, enfraquecendo a coletividade sindicatos e associações de classes passam a serem lidos, por parcelas da população, como formas desnecessárias de organização. Não são mais pensados como caminhos possíveis para se obter direitos coletivos frente aos empregadores. Os aplicativos de entrega de comida ou de transporte de passageiros criam perfis e avatares, com avaliações, classificações e bonificações individuais. As oportunidades de ganhos seriam crescentes e a responsabilidade para isso é apenas da trabalhadora e do trabalhador. Empreendedores de si, com projetos para si, empregadores de si mesmos.¹

A promessa de uma liberdade de ação ao alcance da mão, por meio de aparelhos e da tecnologia que oferecem variadas formas de ganhos, comunicação, consumo, convence parte da população. Pessoas vulneráveis, muitas vezes, que não são atendidas por políticas públicas de emprego e renda, que não integram o sistema de previdência e proteção social. Para essa parcela da população, a troca dos direitos trabalhistas pelo novo sistema de empreendedorismo não é uma questão, visto a impossibilidade de vivenciar os primeiros deixa caminho livre para o segundo.

E mesmo para parte dos que eram atendidos pelo sistema de garantias de direitos, o mundo criado pela internet, celulares e aplicativos ganha sentido quando lido e apreendido por meio da linguagem do progresso, da liberdade individual e da modernização tecnológica. São tropos sedutores, que oferecem lógicas explicativas para as novas experiências de tempo, comunicação, relacionamento e trabalho mediados pela dimensão digital.

Este dossiê da revista História Oral se dedica ao estudo das relações de trabalho e das trajetórias das trabalhadoras e dos trabalhadores, sejam urbanos ou rurais, suas organizações políticas e sociais. Essa temática continua sendo fundamental para pensarmos a história do Brasil. Os artigos publicados nos ajudam a conhecer e pensar a historicidade das relações trabalhistas durante o século XX e com isso procurar entender como esse passado reminiscente faz sua aparição e se choca com o presente composto por trabalho online, conectado, desregulamentado. Esperamos dessa colisão formar “um clarão, um brilho, uma constelação onde se libera alguma forma para nosso próprio futuro”.2

É interessante pensar a palavra conectado, tão repetida e valorizada no momento atual. Estamos conectados a quê e/ou a quem? Há uma memória, uma história de lutas de organizações dos trabalhadores e das trabalhadoras para exigiram seus direitos com as quais pouco se conecta hoje. Há uma destruição na transmissão dessas vivências e de suas narrativas, para pensar junto com Walter Benjamin. E tal condição, ainda segundo o filósofo, nos tornaria disponíveis para todas as novidades que se apresentam, fazendo ainda os derrotados da história integrarem o “desfile triunfal dos vencedores”.

Sobre esse passado das trabalhadoras e dos trabalhadores que se pretende soterrado, ultrapassado pelo discurso do novo e do progresso, devemos nos debruçar. “Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava”, afirma Walter Benjamin. E continua alertando que “se ilude quem só faz o inventário dos achados e não sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho”.3 É papel social do historiador e da historiadora, por meio de suas pesquisas, apresentar essa espessura do tempo, as várias camadas pelas quais passou nas suas escavações em busca de restos e vestígios do passado.

A memória é um dos locus onde se dá essa vivência do passado. Por meio dos relatos orais, essas memórias e suas vivências nos são apresentadas. Esses relatos podem nos oferecer rastros e reminiscências que a metodologia da História Oral transforma em documentos históricos a serem enredados nas narrativas dos pesquisadores e das pesquisadoras. São 15 artigos integrantes deste dossiê. Passamos para uma rápida apresentação de cada um com o objetivo de despertar o interesse do leitor a avançar sobre os textos.

Gianne Chagastelles apresenta o trabalho das ceramistas no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. A partir das narrativas produzidas por essas mulheres, investiga-se a conceito de cultura popular e a relação da produção artísticas com o ambiente do Vale. Um instigante artigo que envolve História Oral, Antropologia e Sociologia. Ainda sobre a região de Minas Gerais, temos o artigo de Juliana Resende, A atuação das quitandeiras de Minas Gerais nas economias de mercado e de autoconsumo a partir de 1930. O estudo mergulha no ofício das quitandeiras mobilizando preceitos da História Econômica e da História Social para narrar sobre a experiências dessas mulheres na produção e circulação dos produtos de quitanda.

O artigo de Bernardo Macedo, também nas terras de Minas Gerais, O trabalho tal como aparece nas experiências de sujeitos no quilombo Córrego do Narciso do Meio, Vale do Jequitinhonha (MG), percorre lugares de memória e situações etnográficas para investigar como as atividades laborais se manifestam no quilombo Côrrego Narciso do Meio, no Vale do Jequitinhonha, e conferem sentido ao trabalho e a vida das/dos quilombolas.

Pro giro do ‘Sul’”: indígenas Xukuru-Kariri trabalhando na lavoura canavieira em Alagoas (1952-1990), de autoria de Adauto Santos, analisa a partir dos relatos orais de indígenas Xukuru-Kariri, habitantes em Palmeira dos Índios, Alagoas, a experiências de trabalho no cultivo e corte de cana para usinas de açúcar na Zona da Mata em Alagoas. O texto nos revela como essa experiência de trabalho, dominação, exploração e resistência, foram experenciadas e narradas da perspectiva social e política dos Xukuru-Kariri.

Evandro Machado produziu um artigo sobre a história do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Calçado de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, entre 1964 e 1986, e o enquadramento de memória produzido sobre a atuação dos operários. Em “Era um pequeno sindicato”: o enquadramento da memória sobre o movimento operário na Ditadura Civil-Militar (Novo Hamburgo/RS, 1964-1986), o autor questiona a narrativa construída pelo chamado “novo sindicalismo”, que reduziu as ações políticas de seus antecessores ao termo “assistencialismo”.

Sarah Campelo analisa os impactos e repercussões da chegada do agronegócio na região de Apodi, Rio Grande do Norte, na vida dos pequenos agricultores. A partir dos relatos orais, a autora narra como se organizava a vivência dos camponeses do cultivo de arroz vermelho na região e suas experiências de trabalho com a introdução da monocultura do arroz branco pelo agronegócio.

As vozes da juventude trabalhadora na periferia de Uberlândia (MG) são apresentadas no artigo de Douglas Gonsalves Fávero e Sérgio Paulo Morais. As pressões sociais, morais e culturais que as relações de trabalho exercem sobre aqueles jovens revelam uma experiência social marcada por relações de classe, que perpassam o contraponto da noção de trabalhador com a visão de criminosos e invasores de propriedade que as condições de periferia e ocupação impõem.

O texto As piqueteiras: mulheres e participação política na greve metalúrgica de 1979 no Rio de Janeiro de Marco Aurélio Santana e Alexandre Barbosa Fraga, registra as mulheres trabalhadoras e sua participação na greve dos/as metalúrgicos/ as de 1979 no Rio de Janeiro, final do regime militar brasileiro. Onze mulheres são porta-vozes do movimento das piqueteiras, na construção da retomada das mobilizações de massa e públicas da classe trabalhadora no Rio de Janeiro. O movimento sindical, associado ao cuidado da casa e dos filhos, foi tecido por estratégias próprias para garantir a efetividade de participação das mulheres.

Memórias e histórias de operários têxteis em Fernão Velho, Alagoas, nos anos 1930 – 1960, são trazidas no artigo de Marcelo Goés Tavares. Ritos cotidianos, iniciação e desenvolvimento do trabalho fabril entre jovens, constituição de famílias, formas de lazer, educação e formação moral, foram registrados por meio de relatos, relatórios, fotografia e matérias de jornais analisados pelo autor.

Francisco Fagundes de Paiva Neto, em A trajetória de Maria Preta no sindicalismo rural no município de Araçagi (PB) na década de 1990, registra a trajetória da sindicalista conhecida como Maria Preta. O artigo apresenta, entre outros aspectos, as relações políticas de mulheres em luta por uma cidadania ativa.

Três autoras, Valéria de Jesus Leite, Rosane Marçal da Silva e Cíntia Fiorotti Lima, no texto Experiências de pesquisa com trabalhadoras e trabalhadores por meio de fontes orais na História Social: caminhos e possibilidades, apresentam reflexões e desafios no trabalho metodológico com as fontes orais e as possibilidades que podem oferecer ao professor-historiador no trabalho com a História Social. O artigo registra as possibilidades do ouvir de trabalhadores e trabalhadoras a partir do cotidiano.

Il Quarto Stato, obra de Pellizza da Volpedo, é parte da interpretação proposta por Edison Luiz Saturnino no texto Memórias de trabalho: os trabalhadores e a cena política. O artigo aborda um conjunto de experiências relacionadas ao mundo do trabalho evocadas pelas memórias de sujeitos que interagiram com a imagem Il Quarto Stato, cujas reproduções tiveram ampla circulação no Brasil entre as décadas de 1970 e 1980. As condições de produção dos depoimentos orais são problematizas pelo autor, que registra memórias do trabalho associadas à experiência política, atuação de movimentos sociais, onde a imagem circulou com intensidade, e como ela contribuiu para estimular reivindicações, luta e organização dos trabalhadores.

O trabalho fabril é mais uma vez abordado no dossiê com o artigo de Karlene Araújo A fábrica-mãe: cotidiano fabril e a construção da memória dos operários da Willys Overland de Jaboatão. A fábrica norte americana Willys Overland construiu uma filial em Jaboatão dos Guararapes (PE) no ano de 1966. Homens e mulheres sem experiência de trabalho fabril foram empregados e a qualificação da mão de obra foi realizada dentro da fábrica, que construiu entre os trabalhadores e trabalhadoras a ideia de uma fábrica-mãe. Em contraponto a isso, a memória operária e processos trabalhistas revelam a exploração do trabalho, a disciplina e o silenciamento dessas práticas adotado pela fábrica.

O trabalho indígena é trazido mais uma vez no artigo de Edson Silva intitulado Os indígenas Xukuru do Ororubá e as formas de trabalho: de agricultores a operários e produtores orgânicos (Pesqueira e Poção/PE). A memória do trabalho indígena ganha destaque no texto, que aborda dificuldades e enfretamentos realizados pelos índios Xukuru do Orurubá, seja com a seca ou a negação do direito à terra. A demarcação do território indígena, em 2001, trouxe outras possibilidades e relação com o trabalho associado à agricultura.

O último artigo do dossiê é A saga dos pitangueiros em terras da Companhia: retalhos e fragmentos da memória (Pernambuco, 1986) de Samuel Carvalheira de Maupeou. A saga da ocupação do Engenho Pitanga por trabalhadores rurais na luta pela terra no ano de 1986 é o foco do artigo. O autor, alicerçado em relatos orais e memórias, problematiza o conflito, ressaltando subjetividades e a construção do processo democrático, destacando que das terras de Pitanga, ecoaram gritos de liberdade.

Notas

¹ HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.

2 DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Ufmg, 2011. p. 60

3 BENJAMIN, Walter. Escavando e recordando in Imagens do pensamento In Obras Escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Trad: J.C.M.Barbosa e H.A.Baptista. São. Paulo, Brasiliense, 1994.p. 239. (Obras Escolhidas, v. 3).


Organizadores

Regina Coelly – (UnB)

Pablo Porfirio – (UFPE)

Márcio Vilela – (UFPE)


Referências desta apresentação

COELLY Regina, PORFIRIO Pablo, VILELA Márcio. Apresentação. História Oral, v. 23, n. 2, p. 7-12, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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