Religiões e cidades, Rio de Janeiro e São Paulo | C. Mafra e R. de Almeida

Qual é a religião de uma cidade? Em um país de uma cultura tão rica e complexa como a nossa, essa pergunta é muito difícil de responder, e, em se tratando das duas nossas maiores metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo, a resposta parece impossível de conseguir.

Isso se pensarmos em uma religião, mas, quando ampliamos o leque religioso e deixamos que ele se abra para outras religiões, percebemos uma multiplicidade de crenças. É isso que propõe o livro Religiões e cidades, Rio de Janeiro e São Paulo, uma coletânea do núcleo de antropologia urbana da Universidade de São Paulo que aborda as múltiplas crenças que encontramos no Rio e em São Paulo.

Dividida em três partes – “Circuitos e segmentações”, “Sagrado no tempo e espaço metropolitano” e “Usos e gestão do espaço público –, a coletânea nos apresenta com brilhantismo a situação da religião em grandes áreas urbanas.

Entretanto, ao contrário do que se pensa, a religião na metrópole não é como em uma Babel, tão diversa e misturada que chega a confundir o olhar; na verdade, vemos diversas religiões, mas cada uma delas bem definida. Temos essa afirmação logo no primeiro capítulo do livro, “Religião e metrópole”, de José Guilherme Cantor Magnani.

Magnani (2009, p. 20), que apresenta com maestria um estudo sobre a relação entre religião e espaço na cidade, afirma o seguinte no começo do capítulo:

Ao contrário de localidades menores, onde a oferta dos serviços religiosos é reduzida e a filiação sujeita a um controle social mais atento, no contexto de uma grande metrópole a vivência religiosa tem mais alternativas de exercício e manifestações.

Essa ideia norteará todo seu pensamento sobre a relação entre religião e metrópole, e, acredito que de toda a coletânea, na cidade grande é mais fácil não se comprometer tanto com a dogmática de sua religiosidade. Além disso, pelo maior número de opções, é mais fácil também “passear” por várias religiões, o que o autor chama de passagens, de trocas.

Cita o exemplo do católico que consulta o centro espírita, por exemplo. Contudo, apesar de existirem essas passagens, as metrópoles não constituem locais onde todas as religiões se misturam formando um caldeirão de crenças, uma verdadeira Babel como foi afirmado anteriormente. Ao contrário, há regularidades, termo usado pelo autor para afirmar que, apesar das trocas, ainda existem padrões nos comportamentos religiosos dos moradores de grandes cidades.

A propagação de tantas formas de religiosidade sem conflitos realmente sérios é explicada por Magnani (2009) como sendo resultado “do ar da cidade que torna livre o espírito”, segundo o adágio medieval. Nas cidades mais populosas, as pessoas são mais tolerantes ao diferente, segundo o autor. Magnani (2009, p. 28) encerra a análise com palavras brilhantes, poéticas:

Uma cidade cosmopolita como São Paulo não apenas acolhe as diferenças religiosas de seus moradores, mas permite que elas sejam exercidas, manifestadas e tornadas públicas. As dificuldades e embates que possam ocorrer em função das modalidades de contato, das trocas e dos caminhos de negociação seguem o padrão geral da cultura urbana para a qual não apenas a diversidade mas também os canais e instrumentos conquistados para seu exercício, como direito de cidadania, têm sua raiz na própria constituição da forma-cidade. Quem sabe a estratégia seguida pelo apóstolo Paulo no Areópago de Atenas, no início de sua pregação, tenha, de alguma forma, ecoado no Pátio do Colégio, que deu origem à cidade que leva seu nome.

O segundo capítulo começa realmente onde o primeiro termina, com um título bem sugestivo, “Pluralismo religioso e espaço metropolitano”, de Ronaldo de Almeida, cujo objetivo central é mostrar os “caminhos dos crentes”, ou seja, mapear as áreas religiosas da região metropolitana de São Paulo e o aspecto mais curioso e fascinante delas: as rotas.

Por meio de estatísticas e mapas, Almeida consegue fazer uma espécie de cartografia religiosa de São Paulo, ao apontar a religião que mais atrai fiéis e as camadas da sociedade envolvidas nesse trajeto, com destaque especial aos evangélicos. O autor constata ainda a “morte” das paróquias católicas ante os templos pentecostais.

Um aspecto genial desse capítulo refere-se ao surgimento de templos da Assembleia de Deus e da Universal do Reino de Deus. Segundo o autor, os templos da Assembleia de Deus são construídos para atender às necessidades espaciais de suas ovelhas, ou seja, perto de seus fiéis, nos bairros mais residenciais.

Já os templos da Universal do Reino de Deus, para que possam atender às necessidades comerciais, precisam fazer propaganda, de templos cheios de pessoas, que não são necessariamente vistas como fiéis membros da igreja. Daí os templos serem construídos em áreas com grande circulação de pessoas, como em avenidas, perto de paradas de ônibus. Uma igreja quer ser presente, a outra, vista; essa realmente é uma tese genial.

No terceiro capítulo, “Dinâmicas espaciais em Macaé: lugares públicos e ambientes religiosos”, de Claudia Wolff Swatowiski, o cenário é o Rio de Janeiro, onde os espaços de culto são apropriados pela população e transformam-se em algo muito mais abrangente que apenas lugares para se cultuar.

Macaé, segundo a autora, é uma cidade que cresceu muito depois da implantação da plataforma da Petrobras, modificando assim as relações da cidade, onde o crime e a violência aumentaram com a economia e a importância da cidade no cenário estadual. Swatowiski defende que, com uma nova “cara”, a cidade também passou a ver os templos religiosos com outros olhos. No capítulo, a autora dá menção especial à Igreja Universal do Reino de Deus.

As pessoas que frequentam os templos não buscam apenas religião, mas também paz, tranquilidade e sensação de segurança, como se fosse um lugar mais seguro, mais honesto, mais limpo. Um dos aspectos mais fantásticos do trabalho de Swatowiski é a percepção de como os templos transformaram positivamente a população de Macaé e deram um novo significado à vida das pessoas da cidade.

Trata-se de uma população que valoriza mais a família do que o dinheiro. A autora cita o exemplo de um homem que, quando trabalhava em uma plataforma da Petrobras, passava duas semanas no mar e duas com a família. Ele reviu essa situação e optou por viver de bicos, mas ao lado da família. Comportamento diferente se comparado com a grande São Paulo. Para uma comunidade que preserva valores familiares, ter um templo que representa sensação de segurança é essencial, esta talvez seja a grande contribuição desse capítulo.

Continuando no Rio, Clara Mafra, em “Distância territorial, desgaste cultural e conversão pentecostal”, analisa o pentecostalismo principalmente em Magé, município da religião metropolitana do Rio de Janeiro. A análise é muito interessante, pois a autora aponta a conversão ao pentecostalismo e a opção de vida ao ethos pentecostal como uma alternativa cultural.

Segundo a autora, o catolicismo não conseguia mais atender às necessidades da população mais carente da região, e o pentecostalismo, com sua concepção da presença do divino na vida secular, criou uma forma de ética própria capaz de atingir esse objetivo:

Meu argumento é que o pentecostalismo tende a reorganizar todo o modo usual de circulação de pessoas e símbolos na metrópole, justamente porque reordena os termos tradicionais de mediação entre homens e deuses (MAFRA, 2009, p. 81).

De acordo com Mafra, o proselitismo é necessário no pentecostalismo, pois não se trata apenas de uma religião de herança como o catolicismo.

Porém, essa nova religiosidade em que Deus é mais presente, através do Espírito Santo, não conseguiu os mesmos efeitos com as classes mais abastadas que reagiram de forma preconceituosa, o que, segundo a autora, contribui para o pentecostalismo se configurar não apenas como uma religião, mas também como uma alternativa cultural.

Todavia, em meio a tanto brilhantismo, a autora comete um deslize ao afirmar o seguinte: “Essas manifestações do Espírito Santo são altamente desejadas, pois remontam os vínculos entre homens e Deus, levando em conta que o Deus cristão é um Deus distante e de difícil acesso” (MAFRA, 2009, p. 84) Acredito que a autora errou, pois parece que está falando de Deus e do Espírito Santo como se fossem dois deuses, o que não é verdadeiro, segundo o cristianismo, e se Deus e o Espírito Santo é o mesmo Deus, como o Deus cristão pode então ser distante, se Ele se manifesta na Pessoa do Espírito Santo? Apesar desse deslize, o texto é brilhante.

Com esses capítulos, encerra-se a primeira parte da coletânea, e com “O sagrado, o convento, e ‘cidade’”, de Renata de Castro Menezes, inicia-se a segunda. Esse texto segue a mesma linha do trabalho de Swatowiski, ao analisar a apropriação da população do conceito de templo religioso e dar-lhe um novo significado. Swatowiski principalmente com a Igreja Universal do Reino de Deus, e Menezes o fará com um convento.

Como um convento no centro da cidade do Rio de Janeiro, local criado para ser de reclusão, atrai tantos visitantes? O que eles procuram? A autora chega a chamá-lo de ilha no centro do Rio e relata os horários em que as pessoas o visitam. Em uma cidade marcada pela violência, o convento, sua arquitetura e seu ambiente, logicamente religiosos, representam paz.

O curioso é que, nos dois capítulos, o templo, que aqui (na análise do segundo capítulo) se transformou em santuário, passa a ter uma importância maior para a população e, portanto, um novo significado a partir de ambientes marcados pela violência. Trata-se de um aspecto curioso porque vivemos em tempos em que a mídia enfoca muito guerras religiosas que parecem intermináveis, como entre Israel e a Palestina, Paquistão e Índia, Afeganistão, Iraque e mais recentemente a mulher acusada de adultério no Irã, e quem não se lembra da verdadeira guerra civil entre católicos e protestantes na Irlanda, e aqui no Brasil um crime ligado a praticantes do Santo Daime.

Por que, em meio a um contexto em que a mídia retrata a religião como a mãe das guerras, pastores traficam armas, fiéis oram ao receber dinheiro sujo e padres abusam de menores, os templos religiosos ainda passam para a população a sensação de paz, segurança e tranquilidade? Creio que essa é a maior contribuição desse artigo, apesar de essa preocupação não estar presente no texto.

Apesar de o convento ser frequentado até por não católicos, ele oferece ao visitante aquilo que este veio buscar, um local onde encontra a paz, pelo menos no tempo em que estiver ali. A autora analisa o convento a partir do conceito de representação, “Representação, segundo Chartier, pensada quer como algo que permite ‘ver uma coisa ausente’, quer como ‘exibição de uma presença” (CARDOSO; VAINFAS, 1997, p. 154), ou seja, é aquilo que quero ver ou perceber. Ao concluir seu trabalho, Menezes (2009, p. 107) afirma:

Assim a programação do convento e os tipos de serviços oferecidos ao público que o frequenta serão eficazes à medida que sejam sustentados por essas representações, que seriam, como diria Bourdieu, representações “estruturantes de/estruturadas pelas” relações sociais aí encontradas.

Continuando nessa mesma linha, o significado do lugar religioso, temos também o texto “Ser única e universal: materializando a autenticidade na cidade do Rio de Janeiro”, de Edlaine de Campos Gomes. Aqui a Igreja Universal do Reino de Deus é retratada não apenas como um lugar onde se encontra sensação de segurança, mas também como o espaço do templo se transforma em uma espécie de ligação espiritual com Israel, a Terra Santa.

As ideias desse trabalho são extremamente pertinentes em tempos em que a imprensa acaba de divulgar o mais novo projeto ambicioso da Igreja Universal do Reino de Deus: construir uma réplica do Templo de Salomão em São Paulo. Qualquer um pode ver o vídeo na internet, em que a igreja faz a apresentação do projeto; o que me chama a atenção é a ausência do Santo dos Santos; em seu lugar está o altar com a Arca da Aliança e na parede a frase “Jesus Cristo é o Senhor”, palavras que identificam essa igreja.

O que tudo isso significa? Será que a Igreja Universal do Reino de Deus pretende realmente trazer Israel para o Brasil ou ela se julga o próprio Israel brasileiro? Não importa a conclusão, pois ambas são perfeitamente cabíveis à ideia da autora.

Saindo do universo cristão, temos o texto de Rafael Shoji e Frank Usarski, “Religião e festivais japoneses na liberdade: espaços híbridos e memória coletiva”, que mostra a construção da Liberdade como um bairro japonês, a partir de uma espécie de cultura Nikkei, ou seja, só foi sentida a necessidade de construir essa identidade quando surgiram imigrantes japoneses que decidiram ficar no Brasil.

Retornando ao cristianismo, temos “Viramundo (1965) e Santa Cruz (2000): representações fílmicas do pentecostalismo em dois tempos”, de Cláudia Mesquita, que, apenas por analisar filmes, torna o trabalho instigante. Na análise que faz de Viramundo, a autora leva em consideração a imigração nordestina e o projeto das igrejas pentecostais para as classes mais pobres.

Vivia a ditadura, o objetivo era mostrar que esse fervor religioso mostrava um povo brasileiro alienado, já Santa Cruz tenta apresentar uma resposta à seguinte pergunta: “Por que uma religião que prega a privação atrai um povo que tem tão pouco?”. A resposta seria a necessidade de uma vida mais emocional, coisa que não se vê mais na sociedade industrial. As doutrinas das mais variadas denominações pentecostais e seus apelos emocionais supririam essa necessidade.

Esse capítulo encerra a segunda parte da coletânea, e “Memória, política e gestão religiosa do espaço: evangélicos em comunidade”, de Patricia Birman, abre a terceira parte. Nesse trabalho, temos a apresentação de uma exceção à regra, um estudo de uma comunidade evangélica, uma vila de pescadores, onde a vida é ditada e controlada pela Assembleia de Deus.

A descrição dos hábitos é por demais interessante, sobre as relações da igreja com o poder público municipal, que é controlado pela igreja, seus embates com os não crentes, com os interessados em explorar o potencial turístico da cidade, e também o mito fundador que justifica a autoridade da igreja.

Além de tudo isso, destaco a apresentação de conceitos da geografia da religião, ainda pouco explorada e compreendida, que, com certeza, tem muito a contribuir para todos aqueles que são interessados no estudo da religião.

Delcides Marques, em “O culto da rua e a rua do culto: pregadores da fé na Praça da Sé”, faz apropriadas considerações sobre o que é a Praça da Sé em São Paulo, um lugar, construído para propagar a imagem católica da cidade, ao exaltar a figura de Anchieta. Mas a Sé também é o local das grandes manifestações políticas da cidade, que, graças aos pregadores de rua, tem se transformado também no centro de uma rota evangélica que liga o templo da Igreja Deus é Amor, maior templo evangélico da América Latina, com capacidade para mais de 60 mil pessoas, e a Rua Conde de Sazerdas, conhecida como a rua dos crentes.

Ess


a ligação é fascinante, pois o fundador da Deus é Amor foi um pregador na Sé. Perceber então a necessidade de criar uma espécie de rota evangélica, a partir da Sé, não apenas dá um novo significado para a praça, mas também nos faz pensar sobre a capacidade que a religião tem de perceber as necessidades humanas e criar algo novo que revolucione o local.

Essa ideia está bem presente no capítulo que encerra a coletânea, “Religião e política no espaço público: moradores de favelas contra a violência e por justiça”, de Márcia Pereira Leite, em que se verifica como a dimensão religiosa transbordou seu campo para passar para o campo da luta pela paz, onde líderes religiosos marcharam no Rio de Janeiro. É interessante como a autora trabalha com a reinvenção da memória, quando afirma que, ao se manifestarem, as mães do Caju reivindicam a memória de seus filhos para se identificarem mais ainda com eles, fazendo com que a memória deles não morra e que os filhos se tornem verdadeiros mártires da paz. Nesse texto, a religião é vista com o poder de moldar a memória e a identidade.

A obra é de grande relevância para os estudos da religião nas grandes metrópoles do país, pois, por meio dela, podemos compreender melhor a nossa realidade religiosa e a classificação das religiões, e entender o pentecostalismo como um manifesto cultural.


Referência

CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (Org.). Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

Resenhista

Francisca Jaquelini de Souza Viração – Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Professora da Faculdade Vale do Salgado (FVS). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MAFRA, C.; ALMEIDA, R. de (Org.). Religiões e cidades, Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Fapesp; Terceiro Nome, 2009.  (Coleção Antropologia Hoje). Resenha de: VIRAÇÃO, Francisca Jaquelini de Souza. Ciências da Religião – História e Sociedade. São Paulo, v.11, n.2, p. 205-213, 2013. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.