Sêneca e o estoicismo | Paul Veyne

Buscar a sabedoria, exercer as virtudes e eliminar as paixões humanas. O estoicismo foi uma filosofia helenística que ao chegar a Roma, ainda no período republicano, pregava uma vida baseada nos princípios filosóficos que ordenavam todo o cosmos e o destino dos homens segundo as leis da natureza. Paul Veyne, historiador e arqueólogo francês especializado em Roma Antiga, lecionou na Escola Francesa de Roma, na Sorbonne e na Universidade de Provença. Em 1975 entrou para o Collège de France, onde foi titular da cadeira de história romana até 1998. A obra em análise, Séneque: Entretiens Lettres a Lucilius (1993), leva a assinatura deste brilhante historiador e chega ao Brasil com o título Sêneca e o estoicismo (reimpressão em 2016). Veyne debruçou-se sobre diversas obras do filósofo romano Lúcio Aneu Sêneca (1 a 65 d.C.) e captou em sua pesquisa aspectos históricos e do pensamento Antigo que retratam a sociedade romana nos governos dos Imperadores Cláudio e Nero.

O livro foi organizado em três grandes momentos: Prólogo; Sêneca e o estoicismo; e por fim um epílogo que descreve a última fase da vida de Sêneca que se afastou da vida política para dedicar-se mais ao otium da filosofia até sua condenação ao suicídio após Nero descobrir que o mesmo estava envolvido na famosa conspiração de Caio Calpúrnio Pisão, um senador romano, em 65 d.C.

A riqueza da obra de Veyne convida o leitor a realizar uma reflexão sobre diversos conceitos que ainda são amplamente discutidos no mundo contemporâneo: a moralidade, a felicidade, as virtudes, as paixões, a honestidade, o suicídio, o exílio, o tempo, entre outros temas, que permeiam a escrita senequiana e levam o historiador francês a debater sobre tais assuntos com vários pensadores que se destacaram na História do pensamento ocidental como Aristóteles, Kant e Freud. Para Veyne, o estoicismo de Sêneca procurava libertar seus discípulos das mazelas humanas geradas pelas paixões irracionais exemplificadas pelas ambições desenfreadas das riquezas, as lutas de gladiadores, o gosto pelas artes cênicas e musicais, e tudo o que afastava o indivíduo de uma vida virtuosa guiada pela razão estoica. Tal visão, onde o estoicismo se constituiria como uma filosofia libertadora das angústias da alma direcionando o homem da Antiguidade Clássica para uma vida equilibrada e longe das dores irracionais ocasionadas pelas paixões, também foi analisada por Cícero Cunha Bezerra em seu artigo A filosofia como Medicina da alma em Sêneca (2005). A filosofia estoica é compreendida por este autor como um remédio contra as práticas irracionais que afastavam o homem de uma vida tranqüila e equilibrada.

Nesse sentido, Veyne inicia seu livro com a parte introdutória do prólogo descrevendo a trajetória da vida do estoico e sua formação filosófica destacando seus primeiros passos na arte da filosofia transmitidos por seu mestre Átalo até sua ascensão como preceptor do jovem Nero (54 a 65 d.C.). Nascido em Córdoba, cidade hispânica da província da Bética (atual Espanha), Sêneca pertencia a uma família rica onde seu pai (Sêneca, o velho) desejava que os filhos estudassem em Roma e se enveredassem na arte da retórica e da esfera política. O talento de Sêneca como pensador rapidamente o conduziu para os círculos políticos do Senado Romano e a convivência na corte imperial de Cláudio.

Foi durante o governo de Cláudio que Sêneca sofreria uma condenação ao exílio na ilha de Córsega por se envolver em um suposto adultério e possíveis intrigas palacianas. O retorno de Sêneca a Roma seria um projeto da esposa deste imperador, Agripina, que confiaria a educação do filho Nero para o filósofo cordobês. O futuro princeps deveria governar Roma de acordo com os princípios virtuosos da razão estoica, tornando-se o modelo do bom governante, ou seja, um rei sábio.

Neste sentido, Veyne destaca a obra Sobre a clemência de Sêneca, escrita e direcionada para que Nero viesse a exercer a sabedoria e se afastasse de um governo tirânico, sendo clemente com todos os povos do Império. O bom governante deveria servir seus súditos e agir de acordo com o equilíbrio cósmico estruturado pelas leis da natureza, pois todo tirano acaba sendo derrubado do poder ou assassinado por aqueles que fazem parte de sua corte. A obra Imagens de Poder em Sêneca – Estudo sobre o De Clementia, de Marilena Vizentin (2005) apresenta como o princeps deveria ser clemente com seus opositores buscando desta forma perdoá-los transformado assim os inimigos em aliados. Mas o livro de Veyne vai além das expectativas do leitor que apenas tem por objetivo se prender aos aspectos filosóficos do estoicismo. O historiador analisa a sociedade romana no período dos Imperadores da dinastia Julio-Claudiana sem cair na mera descrição dos fatos.

É possível perceber na escrita de Veyne a preocupação em comparar as fases do estoicismo com filosofias da Modernidade (Kant e Rousseau) ou com as ideias de progresso e do devir da História presentes em estudos como os que Marx realizou para que a classe proletária compreendesse seu processo de libertação inserido na luta de classes contra a burguesia europeia. Veyne consegue relacionar as teorias desses pensadores sem perder de vista seu foco investigativo, aproximando-se constantemente de Sêneca e mergulhando nas obras do filósofo romano. Explora com maestria os diversos escritos senequianos como as Questões Naturais, as Consolações a Márcia e a um liberto de Cláudio conhecido como Políbio, o tratado intitulado Sobre os benefícios e finalmente as cartas direcionadas ao discípulo que Sêneca mais estimava e pertencia à ordem dos cavaleiros romanos, Gaio Lucílio Junior. As Cartas a Lucílio não apenas fazem parte do grande conjunto de obras de Sêneca, mas acabam por se constituir na fonte histórica mais citada nos estudos de Veyne. Foram escritas durante o período de afastamento de Sêneca da vida política (63 a 65 d.C.), onde Nero já demonstrava aversão aos conselhos do estoico e inclinava-se para uma vida regada pelos prazeres.

Os princípios filosóficos estoicos são analisados por Veyne em seu segundo capítulo Sêneca e o estoicismo. São diversos os conceitos que compõem o arcabouço teórico nas obras senequianas. Veyne demonstra como o estoicismo estava fundamentado nas leis da natureza. O homem era um ser cosmopolita, pois se ligava ao cosmos através da razão, representando em seu espírito (hegemonicon) as leis da natureza. Tal representação seria traduzida em ações retas (kathekontas) ou virtuosas livrando o indivíduo de uma vida pautada pelos vícios, ou seja, as más condutas. Sobre a representação estoica, Luizir de Oliveira (1998) afirma que a presença da virtude no homem constituía o próprio bem sendo o momento onde o indivíduo se harmonizava com o cosmos e se tornava parte dele. Era nesse momento que o hegemônico (hegemonicon), a parte diretiva da alma, realizava a representação compreensiva ao buscar na realidade descobrir a verdade em consonância com o cosmos.

A razão, ou a Natureza, nada mais seria do que o princípio formador e ordenador de toda a realidade cósmica e dos homens. No livro de Jean Brun, O Estoicismo (1986), a razão estoica é comparada a um fogo artífice. Esta teoria, segundo Brun, se aproxima da teoria de Heráclito de Éfeso, antigo pré-socrático do século VI a.C., que acreditava ser o universo formado por um lógos que era o fogo demiurgo de toda a realidade.

Viver conforme a natureza era se submeter a um deus providencial que possibilitaria ao homem alcançar uma vida sábia. Ser sábio significava vencer as dores e os sofrimentos gerados durante a existência independente das riquezas ou da pobreza, da saúde ou das doenças, da liberdade física ou da escravidão. De acordo com o estoicismo, para se obter uma vida feliz, serena e sábia, era necessário seguir os ditames deste princípio ordenador. Exercer a razão era praticar ações virtuosas como a temperança, a justiça, a coragem e a prudência, definidas por Veyne como as quatro virtudes estoicas. Em História da Filosofia Antiga (2002), Giovanni Reale destaca que as demais virtudes existentes eram subordinadas a estas.

Sêneca enfatiza em suas Cartas a Lucílio a importância de se vencer todos os infortúnios do destino alicerçado nos ensinamentos de sua filosofia. Neste sentido, outro aspecto necessário para se tornar um sábio estava na ideia de se buscar constantemente uma espécie de segurança interna, criando uma fortaleza interior capaz de resistir a qualquer tipo de sofrimento. Para um estoico a vida somente teria valor quando as virtudes estavam sendo praticadas e direcionavam o sábio para uma vida feliz. A felicidade não era definida pela riqueza ou pelos cargos conquistados na carreira política (cursus honorum). A felicidade deveria estar de acordo com as leis da physis, colaborar com o fluxo do universo, levando o indivíduo a viver no presente sem se abalar com os reveses do destino. Veyne ainda destaca que para Sêneca a felicidade deveria colaborar com a coletividade e não apenas ser algo efêmero e particular.

Talvez seja por isso que a morte nunca assustou Sêneca. Um dos pontos culminantes na teoria senequiana, e que comprova a tese de que um estoico deve ser impassível perante a dor, a perda das riquezas ou até mesmo perante a morte, será o tema que envolve o suicídio. Diante de um quadro político marcado por assassinatos (Veyne descreve o assassinato de Agripina e do jovem Britânico), perseguições aos opositores republicanos e um Principado caracterizado pela tirania de Nero, Sêneca retira-se da vida política. A morte de nosso filósofo é descrita na última parte do livro de Veyne intitulada de Epílogo. Os escritos de Tácito são as lentes de Veyne para narrar o episódio que levou Sêneca ao suicídio.

Acusado por participar de uma conspiração palaciana contra Nero, Sêneca será condenado ao suicídio por seu antigo discípulo. A narrativa de Tácito emociona o leitor que revive a cena final eternizando assim a firmeza moral senequiana perante a morte. Enfim, o livro de Veyne proporciona ao leitor e aos estudiosos do estoicismo, um rico material que apresenta não apenas a filosofia de Sêneca, mas diálogos com importantes pensadores do mundo da Modernidade e da contemporaneidade. Constitui-se como obra indispensável para aqueles que buscam aprofundar seus estudos sobre o estoicismo de Sêneca e do mundo romano na Antiguidade Clássica.

Referências

BEZERRA, Cícero Cunha. A filosofia como medicina da alma em Sêneca. Ágora Filosófica, Recife, v.5, n.2, p. 7-32, 2005.

BRUN, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986.

OLIVEIRA, Luizir de. Sêneca: a vida na obra, uma introdução à noção de vontade nas epístolas a Lucílio. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – PUC, São Paulo, 1998.

REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. São Paulo: Loyola, 2002. v.3.

VEYNE, Paul. Sêneca e o estoicismo. São Paulo: Três Estrelas, 2016, 279p.

VIZENTIN, Marilena. Imagens de poder em Sêneca: estudo sobre o De Clementia. São Paulo: Ateliê, 2005.

Fabrício Dias Gusmão Di Mesquita – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Bolsista pela Fundação de Amparo a Pesquisa de Goiás (Fapeg). E-mail: [email protected]


VEYNE, Paul. Sêneca e o estoicismo. São Paulo: Três Estrelas, 2016. Resenha de: MESQUITA, Fabrício Dias Gusmão Di. Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo. Jaguarão, v.2, n.2, p.1-6, 2018.

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História militar do Mundo Antigo: guerras e representações | Pedro Paulo A. Funari et. al

A obra História Militar do Mundo Antigo, lançada em 2012 pela editora Annablume, é dividida em três volumes: I – Guerras e Identidades, II – Guerras e Representações e III – Guerras e Culturas. A série é organizada pelos estudiosos Pedro Paulo Abreu Funari, professor da Universidade Estadual de Campinas, Margarida Maria de Carvalho, da Universidade Estadual Paulista (campus de Franca), Claudio Umpierre Carlan, docente de Unifal, e Érica Cristhyane Morais da Silva, da Universidade Federal do Espírito Santo. Nesta resenha, será analisado o segundo volume, que objetiva mostrar como distintas culturas do Mundo Antigo se representavam nos conflitos bélicos.

O livro se inicia com uma apresentação dos organizadores que recapitula o estudo da História Militar e defende como ele tem sido renovado graças à incorporação de temas relacionados à vida sexual, às identidades sociais, ao colonialismo, às relações de gênero, às subjetividades e ao abastecimento militar. O primeiro artigo do tomo é de Katia Maria Paim Pozzer, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e de título “Guerra e Arte no Mundo Antigo: Representação Imagética Assíria”. Nele, Pozzer investiga os baixo-relevos de palácios assírios, advogando-os como fundamentais na organização social daquela sociedade, em particular na guerra. Isto porque os relevos apresentam, muitas vezes, as vitórias assírias obtidas no campo de batalha, em especial a crueldade empregada contra seus atacantes. Além disso, mostravam o monarca como campeão militar, aspecto de primeira grandeza em sua legitimidade.

O segundo artigo do volume é “Marchando ao som de auloí e trompetes: a música e o lógos hoplítico na Grécia Antiga”, do docente da Universidade Federal de Pelotas, Fábio Vergara Cerqueira. O autor defende que a música encontrava-se no âmago na sociedade grega Antiga, se fazendo presente até nas mais ígneas batalhas, conforme encontrado em autores clássicos e na iconografia de vasos de cerâmica. Também é destacado o pioneirismo espartano no uso de instrumentos em campos de guerra, facilitando a comunicação entre os combatentes. Maria Regina Candido, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e Alair Figueiredo Duarte, doutorando da mesma instituição, assinam o texto “Atenas entre a Guerra e a Paz na Região de Anfípolis”. Analisando como região de Anfípolis era de grande importância estratégia devido a seus recursos naturais e questões relativas ao abastecimento militar, os estudiosos relatam toda a série de escaramuças que ocorrem por seu controle. Já Ana Teresa Marques Gonçalves, professora da Universidade Federal de Goiás, e Henrique Modanez de Sant’Anna, docente da Universidade de Brasília, põem sua rubrica no texto “As Mandíbulas de Aníbal: os Barca e as Táticas Helenísticas na Batalha de Canas (216 a.C.)”. O artigo desvenda as estratégias do célebre general cartaginês durante as Guerras Púnicas, alegando que a vitória avassaladora das forças de Cartago na batalha de Canas teria promovido uma profunda reorganização das tropas romanas, que voltaram a pautar seu contingente pelo apelo aos “soldados-cidadãos”.

O escrito “Aquisição de inteligência militar entre Alexandre e César: dois estudos de caso” é de lavra de Vicente Dobroruka, também da Universidade de Brasília. Nele, define-se aquisição de inteligência militar como a obtenção de informações acerca do inimigo, aspecto explorado na análise das trajetórias dos conquistadores supracitados. Valendo-se de trechos de autores como Plutarco, Arriano e do próprio César, Dobroruka objetiva demonstrar como a obtenção de dados sobre os adversários é um prática que data de há muito, embora com notáveis diferenças em relação ao mundo hodierno. Claudia Beltrão da Rosa, professora da Unirio, contribui com “Guerra, Direito e religião na Roma tardo-republicana: o ius fetiale”. Os ius fetiale, mencionados no título, eram sacerdotes romanos responsáveis por uma declaração formal de guerra, por meio de uma série de rituais, o que os colocaria como personagens de relevo numa sociedade marcada pela interseção entre o direito, a guerra e a religião. Fundamental mencionar que estes rituais sofreram mudanças ao longo do tempo, em particular durante o período imperial, no qual as batalhas eram travadas a distâncias cada vez maiores da Península Itálica.

O professor Fábio Joly, da Universidade Federal de Ouro Preto, é responsável pelo capítulo “Guerra e escravidão no Mundo Romano”. Nele, o que mais chama a atenção é o relato das ressignificações que a figura do escravo rebelde Espártaco teve no correr dos séculos, de ícone da luta proletária marxista a baluarte da disputa por liberdade política na Europa do Antigo Regime. A docente da UFPR, Renata Garraffoni, assina “Exército romano na Bretanha: o caso de Vindolanda”. Garraffoni revisita as formas por meios das quais a História e a Arqueologia abordaram as relações culturais no Mundo Antigo, primeiro com modelos normativos rígidos e depois com abordagens mais multifacetas e fluidas. No caso de Vindola, região da Bretanha Romana, mostra-se como inscrições encontradas em cultura material podem advogar em favor de uma sociedade na qual as mulheres também possuíam certa voz ativa. Lourdes Feitosa, da Universidade Sagrado Coração, e Maximiliano Martin Vicente, da Unesp/Bauru, também analisam as questões de gênero em “Masculinidade do soldado romano: uma representação midiática”. O estudo de caso dos autores é o seriado “Roma”, exibido nos canais HBO e BBC. De acordo com os estudiosos, a série reforça os estereótipos de Roma com uma sociedade violenta e libidinosa. Neste particular, as personagens masculinas, como legionários e centuriões, são, amiúde, representadas como beberrões, mulherengos e impetuosos.

“O Poder romano por Flávio Josefo: uma compreensão política e religiosa da submissão” é o título do texto de Ivan Esperança Rocha, da Unesp/Assis. Ao aquilatar os escritos de Josefo, o autor pondera sobre os seus aspectos dúbios, uma vez que eles, ao mesmo tempo, são elogiosos tanto a romanos quanto a judeus. Regina Maria da Cunha Bustamante, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, emprega sua pena em “Bellum Iustum e a Revolta de Tacfarinas”. O conceito romano de Bellum Iustum liga-se à noção “guerra defensiva”, ou seja, um conflito militar que tem sua origem numa infâmia provocada pelo inimigo. Já a Revolta de Tacfarinas foi um levante que insurgiu contra o jugo romano no norte da África no princípio do século I. Andrea Rossi, da Unesp/Assis, é a autora de “As guerras dádicas: uma leitura da fontes textuais e da Coluna de Trajano (101 d.C – 113 d.C.)”. Visando a uma diálogo entre as fontes materiais e textuais, o artigo analisa a expansão territorial promovida pelo Imperador supracitado tanto à luz dos autores clássicos como das imagens de seu triunfo estampadas na famosa coluna. “Exército, Igreja e migrações bárbaras no Império Romano: João Crisóstomo e a Revolta de Gainas”, de Gilvan Ventura da Silva (Universidade Federal do Espírito Santo) é o último artigo do volume. O autor versa a respeito de toda a série de conflitos ocorridos no período final do Império romano em virtude das migrações bárbaras e suas relações com os imperadores e as práticas religiosas.

Diante do que foi exposto, fica patente que História Militar do Mundo Antigo: guerras e representações é uma obra de grande valor. Trata-se de um volume com artigos de alto grau de sofisticação e com reflexões que, decerto, irão interessar não somente aos aficionados pelos combates travados na Antiguidade, mas a todos que têm em mente a máxima de Heráclito: “a guerra é o pai de todas as coisas”.

Thiago do Amaral Biazotto – Graduado em História pela Unicamp. Mestrando em História pela mesma instituição.


FUNARI, P. P. A.; CARVALHO, M. M.; CARLAN, C.; SILVA, E. C. M. (Orgs.). “História militar do Mundo Antigo: guerras e representações”. São Paulo: Annablume, 2012. Resenha de: BIAZOTTO, Thiago do Amaral. Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo. Jaguarão, v.9, n.1, p.160-163, 2014.

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Revisão legal e renovação religiosa no antigo Israel | Bernard M. Levinson

É com entusiasmo que recebemos em língua portuguesa uma obra de Bernard M. Levinson.2 Temos em mãos uma pesquisa multidisciplinar seminal, cujo objetivo do autor é “abrir o diálogo entre os Estudos Bíblicos e as ciências humanas” (p. 33). As abordagens científicas são dos documentos legais da Bíblia hebraica, mas não se restringem a eles, tendo como cenário o Sitz im Leben siro-palestino no contexto das transições sociais envolvendo a população judaíta entre os séculos VIII-V a.C. Diante das quase restritivas especializações acadêmicas o objetivo é digno de nota, por isso o livro traz já em seu primeiro capítulo, “Os estudos bíblicos como o ponto de encontro das ciências humanas”, a argumentação conceitual sobre o “cânon” como uma possível ponte entre disciplinas que trabalham a reavaliação das forças intelectuais e históricas, as ideologias e códigos definidores do cânon bíblico e de outros cânones.[3]Para o autor, a “ausência de diálogo com os Estudos Bíblicos empobrece a teoria contemporânea em disciplinas nas ciências humanas e a priva de modelos intelectuais que de fato favoreceriam o seu intento” (p. 28), mormente em seu emprego crítico das teorias das suposições ideológicas que objeta a noção de um cânon por ser a mesma uma entidade autossuficiente, um fóssil literário imutável.

É por este pressuposto que os estudos em história, arqueologia, filosofia, filologia e antropologia – acrescentaríamos a psicologia –, mesmo como disciplinas, podem contribuir conjuntamente com os Estudos Bíblicos quanto ao exame das construções teóricas e processos metodológicos com base histórica, pois o próprio cânon sanciona a centralidade da teoria crítica. Nesse sentido, “a interpretação é constitutiva do cânon” (p. 39). As camadas literárias, particularmente, e os livros da Bíblia hebraica não devem ser vistos somente como “teologia”, mas mormente como obra intelectual. Desse modo, a teoria cultural, por exemplo, atingiria maior fundamentação em diálogo com a pesquisa cujo foco é o rigor filológico. Aqui está realmente um dos temas em que o livro se encaixa nos debates contemporâneos, problematizado por várias abordagens.

Em princípio, a eliminação dos códigos legais do corpus bíblico da noção de lex ex nihilo. A cultura material do antigo Oriente-Próximo tem comprovado que as leis cuneiformes, originadas na Suméria no final do terceiro milênio a.C. e descobertas em escrita suméria, acadiana e hitita, ao espalhar-se pelo Mediterrâneo influenciaram inclusive os escribas israelitas, que passaram a copiá-las (como o modelo de tratado neoassírio pressuposto como modelo no livro do Deuteronômio, capítulo 28). “Usando as categorias da crítica literária, pode-se dizer que uma voz textual era dada a essas coleções legais por meio de tal moldura, que as coloca na boca de um monarca reinante. Não é que o divino esteja desconectado da lei no material cuneiforme” (p. 46). De fato, as chamadas leis humanitárias israelitas são expressão revelada do divino, de forma que inexiste atribuição autoral, mas um mediador venerável.

Nessa reorganização de textos, surge a necessidade por parte dos revisores de evitar o questionamento à infalibilidade de Deus e o conceito de revelação divina, resolver o acaso de injustiça de Deus e manter a perpetuidade das leis. Estas questões estão arguidas e pesquisadas exemplarmente do capítulo dois ao quatro no livro e com suas implicações melhor elaboradas no capítulo cinco – intitulado “O cânon como patrocinador de inovação”. Entretanto, resta a constatação, não vista por Levinson, de que o Deus do antigo Israel nunca refere a sua palavra (dabar) como “lei” (dat), mas como “instrução” (torah). Estes problemas são elucidados pelo autor à medida que identifica as técnicas literárias israelitas, mormente nas composições sacerdotais do período pós-exílico (após 538 a.C.) com evidências na Antiguidade Clássica, nomeadamente a subversão textual estruturada como “lema”, “retórica de encobrimento”, “exegese harmonística”, modelos e terminologias dos tratados de Estado hititas, neoassírios e aramitas, o straw man (técnica retórica de superar a proposição original), o tertium quid (presente no Targum), a paráfrase homilética, retroprojeção, adição editorial, pseudepigrafia, glosa. Todo o trabalho hermenêutico intracanônico, literariamente revisionista, ocorre tendo como tempo narrado o ambiente político das ameaças neoassíria e, em seguida, neobabilônica aos grupos populacionais israelitas na faixa leste-oeste da região do Jordão, cujo tempo presente dos escribas são os períodos arqueológicos persa e grego.

Decerto, a apresentação de uma obra ou biblioteca autorizada como obra aberta não é novidade, mas não a tarefa de repensá-la a partir da sua “fórmula de cânon” em relação à exegese e à hermenêutica intracanônicas,[4] histórica e filologicamente apropriadas como instrumentos de renovação cultural. Bernard M. Levinson empreende tal pesquisa com as camadas literárias legais tendo como fontes as coleções legais reais do Oriente-Próximo e a sua noção de um vínculo jurídico obrigatório, compreendidas como sendo feitas em perpetuidade. A fórmula nos textos do antigo Oriente tem a intenção de impedir inovações literárias, preservar o texto fixado originalmente. Com isso, as gerações posteriores têm o desafio de ampliar um corpus delimitado, suficiente e autorizado através da incorporação das suas vidas, adaptando-o às realidades em suas amplas esferas não contempladas na época de sua composição. Destarte, esses procedimentos etnográficos, não raros no antigo Oriente-Próximo, estão presentes na literatura do antigo Israel.

A originalidade da historiografia bíblica [5] é explorada na pesquisa sobre a revisão legal para demonstrar a própria ideia de história legal em que o tempo narrativo serve como um tropo literário em apoio à probabilidade jurídica. Quanto a isso, Bernard M. Levinson apresenta uma interpretação metodologicamente complexa e inovadora do livro de Rute da Bíblia hebraica, apresentando-o como oposição revisionista e talvez subversiva das “leis mosaicas” operadas pelo escriba judeu Esdras no final do século V a.C. Assim, ele introduz o debate sobre as identidades étnica e social no âmbito das questões jurídicas e sua transferência para o domínio teológico.

Fundamentando-se em sólido trabalho documental (chamamos a atenção para as notas de rodapé!), a pesquisa da revisão legal no antigo Israel apresenta como seu ponto alto da multidisciplinaridade os textos do livro do profeta Ezequiel da Bíblia hebraica (profeta ativo de c. 593-573 a.C.).[6] Aqui o debate profético dá-se com o Decálogo e a sua doutrina do “pecado geracional”. O profeta revisa a doutrina, minuciosamente historicizada por Levinson apreendendo a técnica do straw man: o profeta lança mão de uma estratégia para absolvição por rejeição popular da torah divina através de institucionalização de sabedoria popular, o que extrapola como história social os limites da teologia. De forma adequada para prosseguir na abordagem da interpretação e revisão da “lei” no livro do Deuteronômio e nos Targumim, [7] Levinson demonstra que o livro do profeta Ezequiel ao rejeitar por completo a doutrina do pecado geracional está argumentando “que o futuro não está hermeticamente fechado” (p. 78), o que para a sua época soaria como uma pedagogia da esperança. O argumento é de que “a despeito da sua terminologia religiosa, ela [a formulação da liberdade elaborada pelo profeta] é essencialmente moderna em sua estrutura conceitual” (p. 79), comparável na história da filosofia ao conceito de liberdade moral de Immanuel Kant (1724-1804).

Tanto quanto Ezequiel fez, Kant prepara uma crítica pungente da ideia de que o passado determina as ações de uma pessoa no presente. Ele desafia qualquer colocação que reduza uma pessoa ao seu passado e impeça o exercício do livre arbítrio ou a possibilidade de mudança. Ele sustenta que as pessoas são livres a cada momento para fazerem novas escolhas morais. Sua concepção de liberdade é dialética: embora não exista na natureza nenhuma liberdade proveniente da causalidade (de uma causa imediatamente precedente), a liberdade de escolha existe para os seres humanos com base na perspectiva da ética e da religião (p. 79).

Assim como o filósofo Immanuel Kant rejeita filosofias coetâneas (Thomas Hobbes, o determinismo associado ao “espinosismo”, Gottfried Leibniz), o profeta Ezequiel rejeita o determinismo pactual templar do período da monarquia israelita, tendo a seu favor o caráter dialético do conceito de autoridade textual presente no antigo Israel. Portanto, não é difícil desfazer o ponto cego filosófico entre razão e revelação. E, ao contrário do que comumente se pensa, a revisão do cânon é intrínseca ao próprio cânon, pois “a revelação não é anterior nem externa ao texto; a revelação é no texto e do texto” (p. 95); daí a pseudepigrafia mosaica, que contribui teórica e metodologicamente para uma história da recepção e interpretação dos textos.

Em adição, um terço do livro, isto é, o sexto capítulo, dedica-se ao pesquisador, a nosso ver, sem prejuízo dos demais leitores; o autor o chama de “genealogia intelectual” ou história da pesquisa por meio de pequenos ensaios bibliográficos de várias das mais importantes obras científicas sobre a literatura e a sociedade do antigo Israel, desde a produção do final do século dezenove até a mais recente. Por fim, saliente-se que o autor do livro não esboçou alguma tentativa de conceituar “etnicidade e identidade” – assim mesmo enunciado, como fundações construcionistas isoladas [8] – e a sua aplicação aos grupos populacionais da Antiguidade, omissão que não compromete a importância e a qualidade científica do livro, que certamente interessará aos estudiosos da grande área de Ciências Humanas.

Notas

3. Com relação à literatura clássica ocidental, basta consultar as últimas obras de Harold Bloom (Yale University) para perceber que ele dedicou-se a esta tarefa; com relação à literatura hebraica, mencionamos a importante produção de Robert Alter (University of California). Sem embargo, é sempre pertinente voltarmos à obra-prima fundante de Eric Auerbach, Mimesis (publicada no Brasil pela editora Perspectiva).

4. Para Levinson, exegese ou hermenêutica é o conjunto de estratégias interpretativas destinado a estender a aplicação de um cânon à vida e suas circunstâncias não contempladas. Para conceito e abordagem diferentes sugerimos a opus magnum em três volumes de Jorn Rüsen, publicada pela editora da Universidade de Brasília, Teoria da história I (2001), Teoria da história II (2007) e Teoria da história III (2010).

5. Este domínio da História há muito tem sido tema de importantes pesquisas de historiadores, arqueólogos, antropólogos e filólogos, das quais arrolamos algumas não citadas por Levinson: CHÂTELET, François. La naissance de l’histoire. Tomes 1 et 2. Paris: Éditions de Minuit, 1996; MOMIGLIANO, Arnaldo. Problèmes d’historiographie ancienne et moderne. Paris: Gallimard, 1983; SETERS, John van. Em busca da história: historiografia no mundo antigo e as origens da história bíblica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008; ASSMANN, Jan. La mémoire culturelle: écriture, souvenir et imaginaire politique dans les civilisations antiques. Paris: Éditions Flammarion, 2010; PRATO, Gian Luigi. Identità e memoria nell’Israele antico: storiografia e confronto culturale negli scritti biblici e giudaici. Brescia: Paideia Editrici, 2010; LIVERANI, Mario. Oltre la Bibbia: storia antica di Israele. 9. ed. Roma, Editori Laterza, 2012 [1. ed., 2003].

6. John Baines em importante investigação sobre a realeza egípcia (BAINES, John. “A realeza egípcia antiga: formas oficiais, retórica, contexto”. In: DAY, John (org.). Rei e messias em Israel e no antigo Oriente Próximo. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 48-49), ao referir-se à religião e crenças egípcias oferece uma informação relevante sobre a Bíblia hebraica: “Assmann [Jan] considera a evocação pelo rei da ordem geral parte do caráter de ‘religião primordial’ das crenças egípcias: a ‘religião’ egípcia é de uma sociedade ou civilização única e não pode ser separada da ordem social dessa sociedade. O mundo da Bíblia Hebraica era um mundo de fé declarada e de compromisso com uma divindade e um sistema religioso determinados por grupos principalmente de elite em uma sociedade organizada relativamente pequena que se insurgiu contra outras sociedades circundantes, mas também tinha aspirações universalizantes; suas crenças normativas também eram objeto de intensa discussão interna”. Em adição, a nosso ver, por uma forte corrente religiosa posicionar-se em favor do “povo da terra” e contra a monarquia, que mantinha o templo como uma espécie de anexo legitimador do palácio, a religião do antigo Israel pré-exílico manteve características suprassociais e maior atenção aos movimentos vitais.

7. Apenas como informação geral, a grafia para expressar uma determinada quantidade de Targum ou o seu plural não é “targuns”, como traduzido no livro (p. 92), mas Targumim.

8. Em contrário, “identidade” é um termo autoexplicativo usado de diferentes maneiras, não é algo estático, mas um processo contínuo e interativo; portanto, construímos identidades étnica, religosa, de gênero etc. Sobre isto, à época da sua pesquisa Bernard M. Levinson teria provavelmente acesso à importante obra: DÍAZ-ANDREU, Margarita et al. The archaeology of identity: approaches to gender, age, status, ethnicity and religion. London: Routledge, 2005. Em adição, recomendamos ao leitor: CARDOSO, Ciro Flamarion S. “Etnia, nação e a Antiguidade: um debate”. In: NOBRE, Chimene Kuhn; CERQUEIRA, Fabio Vergara; POZZER, Katia Maria Paim (eds.). Fronteiras e etnicidade no mundo antigo. Anais do V Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Pelotas, 15-19 de setembro de 2003. Pelotas: Editora e Gráfica da Universidade Federal de Pelotas; Canoas: Editora da Universidade Luterana do Brasil, 2005, p. 87-104. Recentemente publicamos uma pesquisa com esta temática: SANTOS, João Batista Ribeiro. “Os povos da terra. Abordagem historiográfica de grandezas sociais do antigo Oriente-Próximo no segundo milênio a.C.: uma apresentação comparativa”, Revista Caminhando, v. 18, n. 1, p. 125-136, 2013.

João Batista Ribeiro Santos – Mestre em Ciências da Religião, com pesquisa na Bíblia hebraica, pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e mestre em História, com pesquisa em história antiga, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


LEVINSON, Bernard M.  Revisão legal e renovação religiosa no antigo Israel. Tradução de Elizangela A. Soares. São Paulo: Paulus, 2011. Resenha de: SANTOS, João Batista Ribeiro. Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo. Jaguarão, v.9, n.1, p.164-169, 2014.

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Writing and Empire in Tacitus | Dylan Sailor

Públio Cornélio Tácito é reconhecido hoje como um dos maiores historiadores do Principado. Considerando Ronald Haithwaite Martin [157] e Fábio Joly podemos afirmar que, ao pensarmos sobre vida e obra de Tácito, percebemos que sua obra histórica abarca o relato sobre as duas primeiras dinastias – dos Júlio-Claudianos e dos Flavianos – e a guerra civil de 69. Além de obras do gênero histórico, Tácito escreveu outras obras – Germânia, Agrícola e, possivelmente, Diálogo dos Oradores – e exerceu uma gama de cargos políticos dentro do Principado, entre eles estãoo de questor em Roma, no ano 81, e de procurador na Germânia, ainda no mesmo ano. Suas obras teriam sido compostas nos principados de Domiciano, Nerva e Trajano. Martin destaca ainda que os escritos de Tácito foram de grande importância e influência para os autores de século III e para os epitomadores dos séculos IV e V.

É na busca pela delimitação do estilo tacitista de escrita que Dylan Sailor compõe a obra Writing and Empire in Tacitus. Nesse livro o autor tenta mostrar como as obras e o estilo de Tácito são frutos de seu tempo e de sua carreira. Para isso , ao analisar as obras de Tácito, Sailor mostra como se desenvolvia a produção literária no Principado, não somente no tempo de Tácito, mas comparando com outros momentos da história do Principado, como quando remete a Sêneca e a outros autores citados nas próprias obras deTácito. É perceptível que, seguramente, a obra de Sailor segue a mesma linha de Sir Ronald Syme (Tacitus, 1958), em que credita o estilo de escrita de Tácito à carreira política e ao tempo em que escreveu. E que se contrapõe a O’ Gorman (Irony and Misreading in the Annals of Tacitus. Cambridge University Press, 2000) e Haynes (The history of make-believe: Tacitus on Imperial Rome. University of California Press, 2003) que creditariam o estilo taciteano a uma tradição em Roma, abalando o vínculo entre Tácito, sua obra e a realidade mais imediata. Evidentemente, para esses dois autores, Tácito estaria mais próximo de Tito Lívio, enquanto, para Syme e Sailor, um bom marco comparativo seria Salústio. Notoriamente, podemos ver que a opção tomada por Sailor parece mais adequada ao analisar a obra taciteana. Porém, ao contrário de Salústio, Tácito é envolto pelo regime imperial. Um regime que oprime por vezes a liberdade de se escrever o que pensa. A obra de Sailor aborda, de maneira muito enfática e convincente, que não é possível analisar as obras de Tácito sem conseguir enxergar o contexto de sua carreira, de sua obra literária e de sua vida social nas entre linhas de suas obras historiográficas.

O livro é dividido em seis capítulos: “Introdução”, “Autonomia, autoridade e representação do passado sob o Principado”, “Agrícola e a crise de representação”, “Os encargos de Histórias”, “Em outros lugares de Roma”, “Tácito e Cremutio” e “Conclusão: conhecendo Tácito”. O autor constrói a sua obra mostrando como podemos distinguir o autor, do político e do homem aristocrata nas obras de Tácito.

A opção de Sailor por iniciar o livro com um capítulo focando os conceitos sobre os quais ele debate ao longo de sua obra parece ser a estratégia mais adequada. Isso porque nesse capítulo o autor discute justamente o caminho pelo qual seguirão seus argumentosao longo de sua obra. O autor começa o capítulo introdutório “Autonomia, autoridade e representação do passado sob o Principado” se indagando sobre a possibilidade de Tácito ter criticado tão claramente a hipocrisia do Principado – do qual fez parte como deixa claro sua extensa carreira política. Nesse capítulo percebe-se que é indispensável, para Sailor, termos em mente que, para os romanos, era essencial a separação entre o autor e a voz narrativa da obra.

Esse primeiro capítulo nos permite entender que, para Sailor (assim como para Ronald Syme) somente foi possível a Tácito exercitar esse distanciamento entre a pessoa e a obra porque ele eraa membro de uma elite de origem provincial. Segundo Sailor, as obras no mundo romano tinham várias funções, mas a principal seria se tornar um monumentum tanto para o presente quanto para a posteridade, sendo algo perdurável, simbólico com intenção de se tornar permanente. É a obra que dava peso ao nome do autor e lhe propiciava a noção de “grande dever” cumprido. Sailor apresenta nesse capítulo a ideia, que defende em toda em sua obra, de que Tácito, por estar presente no principado, não age apenas como um simples escritor, mas também como um agente social nesse meio. Essa ideia apresentada por Sailor, de que o historiador também é um agente social é bem interessante, e também se adéqua a outras personalidades do mundo romano que também registraram seus posicionamentos sobre o poder enquanto estavam dentro das estruturas de poder.

Os demais capítulos seguem a mesma linha de raciocínio, porém, é notório que o autor não aborda as questões conceituais como abordara no primeiro, tornando assim o capítulo inicial de mais relevância à obra. No segundo capítulo, intitulado “Agrícola e a crise de representação”, o autor comenta sobre o monopólio por parte da casa imperial dos triunfos militares e sobre como era perigoso se destacar à frente do Imperador. Essa crise das representações gera um processos de exageração das vitórias ou até mesmo a fabricação dessas. A partir das narrativas de Tácito, Sailor interpreta que Agrícola teria achado uma alternativa para esse processo, reconciliando realidade e representação. De acordo com Sailor, em certa medida a obra Agrícola, de Tácito, [158] se preocupa tanto com a representação quanto com o restabelecimento da verdade, ligada à negação do triunfo à Agrícola. Desse ponto, surgem duas questões. Se é negado à elite e à não-elite as honras pelo triunfo, o que as diferenciam? Se não existe mais o mérito pela honra, o que poderia motivar os membros da sociedade romana a se esforçarem pelo Império? Um dos pontos tocados pelo autor é a questão da virtude. Nesse momento do Império, qual seria o caminho para os homens ilustres mostrarem suas virtudes? Em uma seção do capítulo, Sailor apresenta como era fácil em outros tempos apresentar as virtudes para sociedade, e como era possível produzir esta noção de representação de modo claro.

No terceiro capítulo “Os encargos de Histórias”, Sailor diferencia os objetivos e o estilo de Agrícola e das Histórias. Sailor demonstra como ambas obras trazem a tona problemas políticos, mas em Agrícola, Tácito visa a enaltecer a memória de seu sogro em contraposição ao antagonista, Domiciano. Segundo a análise de Sailor, em Histórias pode se notar um amadurecimento de Tácito ao comentar sobre a tirania que foi se formando, até culminar no desfecho de Domiciano/Agrícola. Sailor aponta como a história da escrita de Tácito se confunde com a história política de Roma por mostrar as mudanças institucionais do Império e as reviravoltas que mudaram os poderes dentro da sociedade. Ao mesmo tempo, Tácito descreve a relação entre o historiador e o príncipe. Para Sailor, Tácito realizaria uma história da historiografia para explicar os motivos da escrita de seu livro.

Primeiramente, Tácito aponta a mudança de poder quanto à escrita da história que, a partir da batalha de Actium, esteve condicionada a uma pessoa: o príncipe. E que, após isso, as histórias estiveram condicionadas a analisarem as res gestae deste homem. A partir da instauração do principado há uma troca da eloquentia e libertas, comuns na escrita da história antes da batalha de Actium, pelo servilismo que passa existir em relação ao imperador. Outro ponto que o autor levanta é que as biografias realizadas até então foram presas à adulatio. Parece sensato destacar um ponto bem abordado por Sailor: nas Histórias, Tácito se livra da relação de poder entre súditos e imperador (caracterizada por uma relação de servilismo) removendo a figura de Trajano do prefácio. Assim, pode a Tácito ser configurada uma liberdade, que a meu ver é o grande diferencial de Tácito para os demais autores da era imperial.

No quarto capítulo “Em outros lugares de Roma”, o autor discute a relação que existe entre a história escrita por Tácito, o regime do Principado, a cidade de Roma, e os demais componentes do Império. Para isso, Sailor analisa o uso da semiótica presente na obra de Tácito contrapondo, princeps a súditos, escravos a senhores, romanos a estrangeiros. O texto mostra como era a relação do princeps com a monumentalidade da cidade de Roma através de passagem que mostra obras erguidas por imperadores. Sailor mostra como Tácito trabalha com a crise da semiótica durante o período de Guerra Civil e que possibilita que os romanos matem uns aos outros. Esse, a meu ver, é o capítulo que Sailor tenta tirar Tácito de seu contexto político e o leva para o contexto social do Império. Sailor mostra nesse capítulo como o historiador latino se relacionava com os costumes dos antepassados e como os comparava com os do seu presente. É certo, pela obra de Sailor, identificar a inquietação de Tácito ao exercer uma reflexão sobre seu tempo.

No quinto capítulo “Tácito e Cremutio”, Sailor aponta para a dificuldade de recepção das obras de Tácito em seu tempo. Valendo-se de uma análise da obra Anais, de Tácito, demonstra os perigos existentes em se escrever tal tipo de obra, e os recursos utilizados para demonstrar tal fato. Para Sailor, diante de tal contexto, a obra Anais serve para nos convencer de todas as dificuldades que rondavam a escrita do historiador, e o risco destas obras despertarem desconfiança ou indiferença no contexto imperial. O que Sailor aponta é que Tácito, através do exemplo de Cremutio, expõe que escrever sobre o Principado era perigoso para o historiador, e que mesmo falando de imperadores mortos (mesmo de uma linhagem já morta!) continuava sendo perigoso tanto para a obra quanto para o autor. Esse capítulo faz um contraponto com o primeiro, quando discute a questão do mártir. Sailor chega à conclusão de que a obra Anais é perigosa porque ajuda os leitores da época a entenderem a natureza dos príncipes e os meios de tirar vantagem deles.

Em “Conclusão: conhecendo Tácito”, o autor fecha com duas ideias em torno do programático e da representação, que se cruzam constantemente na historiografia taciteana. A primeira, sobre a representação do papel do historiador e da história dentro da História, e, a segunda, das relações históricas de atores para obras do passado ou o futuro da história. Tácito, de acordo com Sailor, buscaria mostrar a finalidade de sua obra apresentando a representação do Império, da cidade ou até mesmo do julgamento de Cremutio. Por outro lado, não se abstém de uma discussão programática de seu ofício inserindo o leitor no contexto político que cerca a escrita de sua obra. O que Sailor aponta com esses dois elementos é que a obra de Tácito apresenta como escrever história poderia ser um modo de vida. A obra de Tácito teria permitido a ele se mostrar em um meio público e ao mesmo tempo indicar como o historiador latino se postava contra a ordem de poder existente.

Faço ainda duas ponderações sobre a obra de Sailor. A primeira é que, mesmo abordando grandes obras como Agrícola, Histórias e Anais o autor se abstém de uma análise de outras duas obras taciteanas: Germânia e Diálogo dos Oradores. Essas duas obras poderiam fundamentar ainda mais a tese dele, já que a primeira trata justamente do período em que Tácito esteve inserido como parte operante da política romana e que a segunda trata de uma reflexão sobre a oratória em seu tempo (ainda que sua autoria siga em debate). Nesse mesmo ponto, é visível que o autor se concentra por demais na análise de Vida de Agrícola e História, o que empobreceu a análise sobre Anais, obra com a mesma importância que as duas anteriores. A segunda ponderação, é que, em muitos momentos de sua obra, Sailor não torna possível reconhecer que um conceito usado na análise de uma obra se estende às demais. Por exemplo, se a mesma noção de virtude em Agrícola está presente em Anais. Ele consegue deixari bem clara a ideia de que todas as obras de Tácito são marcadas pela ambiguidade (porque o Principado é ambíguo), masdeixa obscuro se as demais ideias seriam percepctíveis em todas obras. Apesar disso, não vejodúvidas sobre o grande valor que a obra de Sailor traz aos pesquisadores de história antiga e de historiografia porcontribuir gerando uma bem fundada interpretação da escrita de Tácito

Notas

157. CF. MARTIN, R.H. Tacitus. In: Hornblower, Simon and Spawforth, Antony (Ed.). The Oxford classical dictionary. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 1469-1471.

158. Agrícola – obra de cunho biográfico que Tácito teria composto em louvor ao sogro ao qual o Imperador Domiciano teria o negado o triunfo pelas campanhas na Bretanha.

Willian Mancini – Mestrando pela Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected]


SAILOR, Dylan. Writing and Empire in Tacitus. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. Resenha de: MANCINI, Willian. Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo. Jaguarão, v.2, n.2, p.129-132, jul./dez., 2011.

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Alétheia | Unipampa | 2008

Aletheia 2 Alétheia

Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo (Jaguarão, 2008-) é um periódico eletrônico vinculado ao curso de História-Licenciatura do Campus de Jaguarão da Universidade Federal do Pampa.

Este periódico foi por pesquisadores de pós-graduação inicialmente vinculados à Universidade Federal de Goiás. Ao longo dos últimos anos, temos buscado promover esse espaço enquanto um local de promoção de pesquisas sobre Antiguidade e Medievo.

A partir de 2016, a revista está incorporada à base de periódicos da Universidade Federal do Pampa, que conta com dois de seus membros do quadro efetivo como editores da publicação.

Durante o ano de 2019, temos reorganizado as atividades e o funcionamento deste periódico de modo a restabelecer uma periodicidade e número de publicações mais adequado. Acreditamos que o resultado dessas modificações será mais bem perceptível a partir de 2020.

Atualmente, nosso objetivo consiste na divulgação de produções acadêmicas universitárias empreendidas por graduandos, pós-graduandos e doutores na área da História Antiga, História Medieval, Filosofia Antiga, Filosofia Medieval, e Letras Clássicas.

Nosso periódico tem como objetivo principal a disseminação de artigos científicos e resenhas de publicações recentes sobre a área de Antiguidade e Medievo.

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ISSN 1983-2087

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