História militar do Mundo Antigo: guerras e representações | Pedro Paulo A. Funari et. al

A obra História Militar do Mundo Antigo, lançada em 2012 pela editora Annablume, é dividida em três volumes: I – Guerras e Identidades, II – Guerras e Representações e III – Guerras e Culturas. A série é organizada pelos estudiosos Pedro Paulo Abreu Funari, professor da Universidade Estadual de Campinas, Margarida Maria de Carvalho, da Universidade Estadual Paulista (campus de Franca), Claudio Umpierre Carlan, docente de Unifal, e Érica Cristhyane Morais da Silva, da Universidade Federal do Espírito Santo. Nesta resenha, será analisado o segundo volume, que objetiva mostrar como distintas culturas do Mundo Antigo se representavam nos conflitos bélicos.

O livro se inicia com uma apresentação dos organizadores que recapitula o estudo da História Militar e defende como ele tem sido renovado graças à incorporação de temas relacionados à vida sexual, às identidades sociais, ao colonialismo, às relações de gênero, às subjetividades e ao abastecimento militar. O primeiro artigo do tomo é de Katia Maria Paim Pozzer, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e de título “Guerra e Arte no Mundo Antigo: Representação Imagética Assíria”. Nele, Pozzer investiga os baixo-relevos de palácios assírios, advogando-os como fundamentais na organização social daquela sociedade, em particular na guerra. Isto porque os relevos apresentam, muitas vezes, as vitórias assírias obtidas no campo de batalha, em especial a crueldade empregada contra seus atacantes. Além disso, mostravam o monarca como campeão militar, aspecto de primeira grandeza em sua legitimidade.

O segundo artigo do volume é “Marchando ao som de auloí e trompetes: a música e o lógos hoplítico na Grécia Antiga”, do docente da Universidade Federal de Pelotas, Fábio Vergara Cerqueira. O autor defende que a música encontrava-se no âmago na sociedade grega Antiga, se fazendo presente até nas mais ígneas batalhas, conforme encontrado em autores clássicos e na iconografia de vasos de cerâmica. Também é destacado o pioneirismo espartano no uso de instrumentos em campos de guerra, facilitando a comunicação entre os combatentes. Maria Regina Candido, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e Alair Figueiredo Duarte, doutorando da mesma instituição, assinam o texto “Atenas entre a Guerra e a Paz na Região de Anfípolis”. Analisando como região de Anfípolis era de grande importância estratégia devido a seus recursos naturais e questões relativas ao abastecimento militar, os estudiosos relatam toda a série de escaramuças que ocorrem por seu controle. Já Ana Teresa Marques Gonçalves, professora da Universidade Federal de Goiás, e Henrique Modanez de Sant’Anna, docente da Universidade de Brasília, põem sua rubrica no texto “As Mandíbulas de Aníbal: os Barca e as Táticas Helenísticas na Batalha de Canas (216 a.C.)”. O artigo desvenda as estratégias do célebre general cartaginês durante as Guerras Púnicas, alegando que a vitória avassaladora das forças de Cartago na batalha de Canas teria promovido uma profunda reorganização das tropas romanas, que voltaram a pautar seu contingente pelo apelo aos “soldados-cidadãos”.

O escrito “Aquisição de inteligência militar entre Alexandre e César: dois estudos de caso” é de lavra de Vicente Dobroruka, também da Universidade de Brasília. Nele, define-se aquisição de inteligência militar como a obtenção de informações acerca do inimigo, aspecto explorado na análise das trajetórias dos conquistadores supracitados. Valendo-se de trechos de autores como Plutarco, Arriano e do próprio César, Dobroruka objetiva demonstrar como a obtenção de dados sobre os adversários é um prática que data de há muito, embora com notáveis diferenças em relação ao mundo hodierno. Claudia Beltrão da Rosa, professora da Unirio, contribui com “Guerra, Direito e religião na Roma tardo-republicana: o ius fetiale”. Os ius fetiale, mencionados no título, eram sacerdotes romanos responsáveis por uma declaração formal de guerra, por meio de uma série de rituais, o que os colocaria como personagens de relevo numa sociedade marcada pela interseção entre o direito, a guerra e a religião. Fundamental mencionar que estes rituais sofreram mudanças ao longo do tempo, em particular durante o período imperial, no qual as batalhas eram travadas a distâncias cada vez maiores da Península Itálica.

O professor Fábio Joly, da Universidade Federal de Ouro Preto, é responsável pelo capítulo “Guerra e escravidão no Mundo Romano”. Nele, o que mais chama a atenção é o relato das ressignificações que a figura do escravo rebelde Espártaco teve no correr dos séculos, de ícone da luta proletária marxista a baluarte da disputa por liberdade política na Europa do Antigo Regime. A docente da UFPR, Renata Garraffoni, assina “Exército romano na Bretanha: o caso de Vindolanda”. Garraffoni revisita as formas por meios das quais a História e a Arqueologia abordaram as relações culturais no Mundo Antigo, primeiro com modelos normativos rígidos e depois com abordagens mais multifacetas e fluidas. No caso de Vindola, região da Bretanha Romana, mostra-se como inscrições encontradas em cultura material podem advogar em favor de uma sociedade na qual as mulheres também possuíam certa voz ativa. Lourdes Feitosa, da Universidade Sagrado Coração, e Maximiliano Martin Vicente, da Unesp/Bauru, também analisam as questões de gênero em “Masculinidade do soldado romano: uma representação midiática”. O estudo de caso dos autores é o seriado “Roma”, exibido nos canais HBO e BBC. De acordo com os estudiosos, a série reforça os estereótipos de Roma com uma sociedade violenta e libidinosa. Neste particular, as personagens masculinas, como legionários e centuriões, são, amiúde, representadas como beberrões, mulherengos e impetuosos.

“O Poder romano por Flávio Josefo: uma compreensão política e religiosa da submissão” é o título do texto de Ivan Esperança Rocha, da Unesp/Assis. Ao aquilatar os escritos de Josefo, o autor pondera sobre os seus aspectos dúbios, uma vez que eles, ao mesmo tempo, são elogiosos tanto a romanos quanto a judeus. Regina Maria da Cunha Bustamante, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, emprega sua pena em “Bellum Iustum e a Revolta de Tacfarinas”. O conceito romano de Bellum Iustum liga-se à noção “guerra defensiva”, ou seja, um conflito militar que tem sua origem numa infâmia provocada pelo inimigo. Já a Revolta de Tacfarinas foi um levante que insurgiu contra o jugo romano no norte da África no princípio do século I. Andrea Rossi, da Unesp/Assis, é a autora de “As guerras dádicas: uma leitura da fontes textuais e da Coluna de Trajano (101 d.C – 113 d.C.)”. Visando a uma diálogo entre as fontes materiais e textuais, o artigo analisa a expansão territorial promovida pelo Imperador supracitado tanto à luz dos autores clássicos como das imagens de seu triunfo estampadas na famosa coluna. “Exército, Igreja e migrações bárbaras no Império Romano: João Crisóstomo e a Revolta de Gainas”, de Gilvan Ventura da Silva (Universidade Federal do Espírito Santo) é o último artigo do volume. O autor versa a respeito de toda a série de conflitos ocorridos no período final do Império romano em virtude das migrações bárbaras e suas relações com os imperadores e as práticas religiosas.

Diante do que foi exposto, fica patente que História Militar do Mundo Antigo: guerras e representações é uma obra de grande valor. Trata-se de um volume com artigos de alto grau de sofisticação e com reflexões que, decerto, irão interessar não somente aos aficionados pelos combates travados na Antiguidade, mas a todos que têm em mente a máxima de Heráclito: “a guerra é o pai de todas as coisas”.

Thiago do Amaral Biazotto – Graduado em História pela Unicamp. Mestrando em História pela mesma instituição.


FUNARI, P. P. A.; CARVALHO, M. M.; CARLAN, C.; SILVA, E. C. M. (Orgs.). “História militar do Mundo Antigo: guerras e representações”. São Paulo: Annablume, 2012. Resenha de: BIAZOTTO, Thiago do Amaral. Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo. Jaguarão, v.9, n.1, p.160-163, 2014.

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Sexo e Violência – Realidades antigas e questões contemporâneas – GRILLO et al (RMA)

GRILLO, José Geraldo C.; GARRAFFONI, Renata S.; FUNARI, Pedro Paulo A. (Orgs.). Sexo e Violência – Realidades antigas e questões contemporâneas. São Paulo: Annablume, 2011. 284p. Resenha de: POZZER, Katia Maria Paim. Revista Mundo Antigo, v.I, jun., 2012.

Este livro é o resultado de encontros. Encontro entre jovens pesquisadores e experimentados estudiosos, encontro entre o mundo antigo e o mundo contemporâneo. Todos dispostos a refletir sobre dois assuntos que são, ao mesmo tempo, absolutamente atuais e muito antigos: sexo e violência. Para tratar destes temas os organizadores da obra optaram por uma perspectiva multidisciplinar, onde a história, a antropologia, a psicologia, a arqueologia, a filosofia, a educação física, entre  outras, são chamadas a colaborar neste debate. Além disso, o livro apresenta recortes cronológicos que retomam as práticas e as percepções dos homens e mulheres de outros tempos acerca da sexualidade e da violência.

O livro abre com um polêmico texto de Ian Buruma, jornalista e professor de direitos humanos em Nova York, originalmente publicado no Corriere della Sera, na Itália. Ele propõe uma discussão sobre a relação entre a sexualidade e o fascismo na Europa dos anos 40 e, a sexualidade a intolerância na Europa dos dias de hoje. Leia Mais

O Imperialismo romano: novas perspectivas a partir da Bretanha – GARRAFFNI et al (RAP)

GARRAFFONI, Renata Senna; FUNARI, Pedro Paulo A.; PINTO, Renato (Orgs.). O Imperialismo romano: novas perspectivas a partir da Bretanha. Trad. Luciano César Garcia Pinto. São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: RUFINO, Rafael Augusto Nakayama. Revista Arqueologia Pública, Campinas, n.6, 2012.

Os estudos acerca do mundo clássico vêm recebendo, a partir do ponto de vista da História e da Arqueologia, propostas de análises inovadoras. Ao contrário das tradições interpretativas que concebiam as sociedades antigas como modelos de homogeneidade social e cultural, utilizando conceitos tais como legado, herança, civilização, helenização, romanização, alguns historiadores e arqueólogos que tematizam o mundo antigo têm direcionado seus esforços para o estudo das apropriações modernas da Antiguidade.

Inseridos em uma discussão epistemológica mais recente, esses estudos chamam a atenção para o aspecto discursivo dos estudos clássicos, rechaçando posturas objetivistas. Convergem, nesse sentido, para “uma reação subjetivista, que coloca no centro de qualquer visão sobre o passado o autor dessa visão, que vê de determinada posição social, econômica, histórica, de gênero (homem, mulher)” (Garraffoni; Funari, 2007: 4). Comumente vistos como afastados do campo da política moderna, os estudos sobre a Antiguidade, como é ressaltado por Martin Bernal, “têm sido marcados por uma atitude francamente política” (2005: 13).

É nessa perspectiva que está inserido o livro O Imperialismo Romano: novas perspectivas a partir da Bretanha de Richard Hingley, professor do Departamento de Arqueologia da Universidade de Durham, na Inglaterra. Este volume reúne quatro artigos, inéditos em língua portuguesa, publicados em primeira versão entre 1991 e 2008. Em comum entre eles é a pretensão de se analisar os modelos interpretativos utilizados nos estudos sobre a Roma clássica pelos estudiosos britânicos, no ensejo de desconstruir os discursos imperialistas do início do século XX que fundamentaram leituras sobre o passado romano, tanto na História como na Arqueologia. A partir dessas críticas é que são propostas análises inovadoras, influenciadas, em grande medida, pelas teorias pós-colonialistas, que tentam construir interpretações mais flexíveis acerca do Império romano.

No capítulo de abertura, O “legado” de Roma: ascensão, declínio e queda da teoria da romanização (texto originalmente publicado em 1996), Hingley discute as mudanças sociais ocorridas com a chegada dos romanos na Bretanha, e como isso pode ter refletido na cultura material. Estabelece, então, uma discussão disposta em três tópicos com temáticas inter-relacionadas.

No primeiro, seu intento é “examinar alguns dos modos pelos quais os britânicos usaram a imagem da Roma clássica para identificar e fundamentar suas próprias nacionalidade e expansão” (p.28). Muitos paralelos e associações com Roma foram estabelecidos durante os períodos medieval e moderno, principalmente entre os sistemas imperiais britânico e romano (p.29). Já no início do século XX, entre 1899 e 1914, um paralelo particular foi promovido por políticos e intelectuais que “argumentavam que a história de Roma fornecia ‘moralidade’ aos britânicos numa época de particular pressão internacional” (p.30). Esse paralelo romano, segundo Hingley, “foi empregado para definir uma linha de continuidade no desenvolvimento cultural europeu desde o passado clássico até o presente” (p.31).

O principal acadêmico do período estudado é o arqueólogo e historiador Francis Haverfield (1860-1919), pioneiro na Arqueologia sobre o período romano-britânico, que está “entre os estudiosos que advogavam pelo especial valor moral que os estudos sobre Roma tinham para os britânicos” (p.32). Um dos conceitos promovidos por Haverfield é o de “Romanização”, do qual Hingley é crítico, onde é estabelecido “um modelo para o processo de mudança progressiva que tem muito em comum com os conceitos de ‘progresso’ e de ‘desenvolvimento’, próprios do século XIX e do início do século XX” (p.33). Essa idéia seria “comprovada” pela “transformação gradual da cultura material, na província, de nativa a romana, durante todos os três séculos e meio de dominação romana” (p.34).

No segundo tópico, Hingley percebe uma mudança ocorrida nos estudos sobre a “Romanização” nos últimos setenta anos, realizados por acadêmicos já no período de declínio ou posterior ao fim do Império Britânico: “a romanização deixou de ser vista como uma forma de progresso moral e social, mas sim vista à luz do desenvolvimento, ou aculturação, pelo qual a sociedade nativa, de imediato, adotou a cultura ‘romana’” (p.34). Nesse momento, portanto, a teoria passaria por uma mudança conceitual, constituindo-se um processo de adoção cultural, não imposição. O trabalho de Martin Millet (1955-), professor de Arqueologia clássica da Universidade de Cambridge (Inglaterra), é, para Hingley, ilustrativo a esse respeito, onde “indivíduos bem-intencionados das elites imperial, tribal e local gentilmente demonstravam as vantagens dos novos costumes aos interessados da sua parentela, de seus clientes e de seus escravos, e permitiam – até mesmo encorajavam – mudanças voluntárias em seus modos de vida. (…) Considerou-se, então, que mudanças na cultura material eram direcionais e que tinham resultado de um desejo, da parte dos provinciais, de se tornarem romanos” (p.36).

Por fim, Hingley propõe discutir a contribuição das teorias pós-coloniais para uma crítica dos discursos anteriores, pois “trabalhos cuja análise é póscolonial podem permitir-nos, todavia, ver e considerar as perspectivas que motivaram os estudos passados e, também, sugerir esquemas amplos para novas formas de compreensão” (p.35). Questiona os modelos interpretativos que “ignoram o papel ativo da sociedade nativa em determinar a função, o valor e o papel de suas próprias posses” (p.37), bem como as abordagens que sugerem que há um fenômeno tal como uma cultura material “romana”: “vários itens materiais que são tomados como índice de ‘romanização’ não provieram de Roma, mas de outras áreas do Império” (p.37).

Sendo assim, o que Hingley espera de uma Arqueologia acerca da Bretanha Romana é que ela “aceite a teoria de que indivíduos e comunidades adotavam ativamente novos símbolos e ideias para criar ou manter o controle das relações de poder; mas, ao mesmo tempo, ela pode opor-se a isso com uma segunda teoria: comunidades e indivíduos dominados reagiam às tentativas de dominá-los por meio de atos de oposição que tinham correlatos materiais” (p.41).

No segundo capítulo, O campo da Bretanha Romana: o significado das formas de assentamento rural (texto originalmente publicado em 1991), Hingley direciona sua atenção aos estudos dos assentamentos rurais romanobritânicos.

Aponta que seu objetivo será “considerar certos conceitos e temas relevantes ao estudo do assentamento rural Romano-britânico. (…) a intenção é considerar um conjunto de modelos que examinam a natureza das evidências” (p.49). Considera que os “sítios de assentamento romano-britânico variam em tamanho, forma, abundância, função e localização” (p.50), e esses aspectos tornam-se importantes para um estudo da organização sócio-econômica das comunidades das províncias da Bretanha Romana. Também é possível, por meio da cultura material, vislumbrar o propósito econômico de cada assentamento, seja ele comércio, indústria ou agricultura.

É tratado cada tipo de assentamento individualmente, oferecendo suas definições e principais características materiais: Outros assentamentos rurais (p.52); Pequenas cidades (p.52) – antes de explorar em detalhe a organização dos assentamentos e da paisagem que os cercam – A organização do assentamento (p.53); A organização da paisagem (p.58).

É a partir de um estudo crítico dos conceitos e temas que vêm sendo empregados para a interpretação da cultura material dos assentamentos romano-britânicos, bem como os modelos interpretativos arqueológicos utilizados, que Hingley procura mostrar que, dependendo do modelo utilizado, uma determinada situação sócio-econômica pode parecer muito mais complexa quando comparada a visões mais tradicionais.

No capítulo seguinte, Diversidade e unidade culturais: Império e Roma (texto inédito), Hingley escolhe como temática a ser desenvolvida a diversidade cultural do mundo da Roma clássica, e aponta como objetivo “explorar um aspecto da relação entre o mundo da Roma antiga e os nossos tempos atuais, ao destacar uma perspectiva que se desenvolve no interior dos estudos clássicos: a análise da diversidade, pluralidade e heterogeneidade culturais” (p.67). A proposta é analisar a questão do contexto político-social no interior do qual tais ideias emergiram e estão florescendo. Destaca, também, a questão da contemporaneidade dos estudos sobre a Roma clássica que “com freqüência explicam os fenômenos históricos antigos nos termos que satisfazem os gostos e os interesses modernos” (p.68), e o uso de Roma ao longo da história, pois “desde a queda do Império romano no ocidente, durante o século V d.C., a Roma clássica continuou a ser usada para ilustrar o presente de formas variadas e contrastantes” (p.69). Ilustrativo a esse respeito é o conceito de “Romanização”, uma categoria analítica criada, em especial entre os séculos XIX e XX, para enfatizar “um processo de ‘progresso’ desde uma cultura ‘bárbara’ até uma ‘romana’ na expansão do Império” (p.71), criando, dessa forma, polaridades e hierarquias que acabaram se configurando como ferramentas conceituais para o uso das nações imperialistas modernas.

Nesse sentido, a atenção deve ser voltada, segundo Hingley, “para o papel ideológico desempenhado pela arqueologia clássica e pela história antiga ao longo de toda a era moderna” (p.73).

Como crítica a essa visão, Hingley apresenta estudos que apontam para um cenário cultural e identitário muito complexo e diversificado, onde “a cultura ‘romana’ não é mais vista como uma entidade monolítica e claramente delimitada, mas como derivada de uma variedade de fontes ao longo do Mediterrâneo” (p.75), bem como estudos do início do século XXI que “começaram a fragmentar a identidade romana, ao se voltarem para interpretações mais complexas que, com freqüência, valem-se de vestígios materiais” (p.77). Menciona alguns estudiosos que vêm adotando essa perspectiva ao tratar da Roma clássica como Nicola Terrenato, Greg Woolf, Carol van Driel-Murray e Emma Dench.

Outras questões ainda são tratadas por Hingley como o conhecimento do latim, a urbanização, a militarização e a marginalização no Império romano para apresentar um cenário de grande heterogeneidade no mundo romano.

Por fim, aponta para a urgência do questionamento acerca dos propósitos, teorias e métodos relativos aos estudos contemporâneos sobre Roma. Ressalta que “os estudiosos do mundo clássico deveriam trabalhar a fim de procurar o contexto em que nosso entendimento do imperialismo romano se desenvolveu” (p.92). E conclui com um alerta: “se não encararmos o contexto político do trabalho que produzimos, seguiremos uma longa tradição acadêmica de recriar o fantasioso e o impossível: um campo neutro e apolítico dentro do qual os estudos clássicos pudessem funcionar” (p.93).

No último capítulo, O Muro de Adriano em teoria: uma nova agenda (texto originalmente publicado em 2008), Hingley inicia a discussão considerando a ocorrência de um enigma, qual seja, “o declínio sério e dramático, nas universidades britânicas, da pesquisa relativa ao primeiro monumento romano na Bretanha” (p.105). O monumento em questão é o Muro de Adriano, assim conhecido por ter sido construído por volta de 120 d.C., a mando de Públio Élio Trajano Adriano, imperador romano entre 117 e 138. Acrescenta, ainda, que há uma “estagnação dessa pesquisa em comparação aos estudos de urbanismo, de assentamento rural e de achados romanos” (p.106).

Ao apontar as razões para essa situação, Hingley coloca que existe uma noção de que “já possuímos a maior parte do que precisamos saber e que resta pouca coisa para se alcançar. (…) O monumento parece ser fácil de se interpretar, seguro e imutável, uma fundação sólida sobre a qual baseamos nossas ideias sobre o passado antigo de nosso país” (p.107). Esse entendimento solidificado sobre o monumento parece contar com o grande auxílio das escolas de educação básica, onde “toda criança educada em escolas da Inglaterra dá a impressão de ter aprendido uma versão de ‘fatos’ básicos acerca do Muro, e, em geral, é difícil enfrentar esse saber, por causa de sua provável importância como parte de mitos de origem fundamentais sobre a Inglaterra, Escócia e a Grã-Bretanha” (p.108). É justamente um enfrentamento que tem pela frente os estudiosos que almejam tornar novamente o Muro de Adriano um objeto de pesquisa, pois há uma forte relação entre o Muro e as identidades nacionais, inglesa e escocesa, que já se encontram naturalizadas.

Por fim, Hingley questiona se há razões para o otimismo e, então, sugere “uma série de áreas que poderiam formar a base de uma nova agenda de pesquisa. Essa lista não se pretende, de modo algum, definitiva ou exclusiva, e um grande número de outras questões de pesquisa deveriam ser formuladas” (p.109). Algumas questões são levantadas e somente sugeridas: O muro articulou um discurso romano de identidade imperial? (p.109); Como as experiências acerca do Muro de Adriano estavam relacionadas à existência de outras fronteiras (p.110); Como o Muro valeu-se de paisagens pré-existentes e como sua presença influenciou as experiências de vários eleitorados (p.111); O que o Muro significou para as populações posteriores? (p.112). A pretensão do autor é chamar a atenção para as pesquisas que levem em conta a complexidade do monumento e, por outro lado, questionar a solidez e a imutabilidade que caracteriza os estudos concernentes ao tema atualmente.

Foram apresentadas algumas idéias gerais sobre essa importante obra que busca perceber o mundo da Roma clássica de forma mais problematizada, ao considerar as leituras que são feitas para legitimar ações no presente, bem como os mecanismos de apropriação do mundo antigo para usos contemporâneos.

Busca-se, ainda, estabelecer um diálogo entre História e Arqueologia clássica, em uma postura interdisciplinar, que permite rever os conceitos e categorias utilizadas em prol da construção de modelos teóricos menos rígidos e excludentes, abrindo possibilidades de produção de novos conhecimentos sobre o mundo antigo, e romano, em particular.

Enfim, é uma obra que concede ao público brasileiro o acesso à produção acadêmica internacional, mostrando que os estudos sobre a Antigüidade clássica, muitas vezes vistos como conservadores e elitistas, permitem abordagens múltiplas, onde a ênfase é dada ao caráter heterogêneo, plural e conflitivo do mundo antigo.

Referências

BERNAL, Martin. A imagem da Grécia Antiga como uma ferramenta para o colonialismo e para a hegemonia européia. Trad. Fábio Adriano Hering. In: Textos Didáticos – Repensando o Mundo Antigo. IFCH/UNICAMP. nº49, abril de 2005.

GARRAFFONI, Renata Senna; FUNARI, Pedro Paulo A. Morte e vida na arena romana: a contribuição da teoria social contemporânea. In: Fênix: Revista de História e Estudos Culturais. Janeiro/Fevereiro/ Março de 2007. Vol. 04, ano IV, nº01. p. 4. Disponível em: www.revistafenix.pro.br.

Rafael Augusto Nakayama Rufino – Mestrando em História Cultural pelo IFCH/UNICAMP. Bolsista CNPq.

https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rap/article/view/8635744/3460

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s religiões que o mundo esqueceu. Como egípcios, gregos, celtas, astecas e outros povos cultuavam seus deuses – FUNARI (H-Unesp)

FUNARI, Pedro Paulo Abreu (Org). As religiões que o mundo esqueceu. Como egípcios, gregos, celtas, astecas e outros povos cultuavam seus deuses. São Paulo: Contexto, 2009, 216 p., ISBN 978-857244-4316. Resenha de: MARQUETTI, Flávia Regina. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

Um livro essencial, esta é a definição da obra organizada pelo professor Pedro Paulo Abreu Funari, que conta com diversos colaboradores nesta proposta de apresentar um painel das diversas formas religiosas que a Antiguidade conheceu. Como o próprio organizador enuncia na introdução: ‘a experiência religiosa, junto à capacidade de produzir e transmitir cultura, é a marca mais distintiva da humanidade’ e ter acesso às diversas formas deste conhecimento religioso é um privilégio de poucos, que agora se torna mais democrático.

A proposta dos autores e organizador é bastante clara e didática, apresentar, ao público leigo, algumas informações básicas e essenciais sobre as religiões de diversas culturas da Antiguidade. O livro é composto por treze capítulos alusivos às principais culturas antigas: egípcios, sumérios, gregos, romanos, gnósticos, arianistas, persas, celtas, vikings, albigenses, maias, astecas e índios, cada qual sob responsabilidade de um especialista na área. Os capítulos apresentam um padrão estrutural bastante interessante, que permite ao leitor confrontar as informações e ir construindo relações entre as diversas formas religiosas apresentadas, estabelecendo parâmetros importantes entre elas. Em todos observa-se uma delimitação espaço-temporal da sociedade e da cultura na qual a religião era praticada, seguida de informações sobre as concepções religiosas e míticas, das práticas religiosas, das formas assumidas pelos ritos e oferendas, da composição de seus cleros, locais de culto, etc. finalizando com uma pequena bibliografia sobre o tema. A cada abertura de capítulo encontra-se uma imagem significativa para o mesmo e um breve texto sobre a divindade principal do panteão, sobre sua concepção de mundo ou mesmo sobre os conflitos internos da estrutura religiosa. A abordagem teórica respeita os postulados da antropologia, da arqueologia e da história, sempre contemplando as relações entre práxis, sociedade e a religião.

Além dos capítulos específicos, o livro apresenta ainda informações sobre as iconografias utilizadas na obra e uma breve biografia dos autores de cada capítulo. Ricamente ilustrada, trazendo imagens, símbolos, objetos de culto, manuscritos, a obra fornece ainda subsídios para o reconhecimento da arte de cada um dos povos, instigando o leitor a um aprofundamento neste rico universo das religiões esquecidas pelo mundo. Outra grande qualidade deste livro é a linguagem acessível, clara, que torna o texto agradável e envolvente.

Composta visando um público não iniciado, As religiões que o mundo esqueceu, com certeza, vai atrair o interesse também dos iniciados, uma vez que poucos dentre nós tem esta noção clara e abrangente sobre todas as religiões abordadas. Portanto, uma obra essencial para aqueles que querem se iniciar nos estudos das religiões antigas ou para aqueles que pesquisam e gostam do tema.

Flávia Regina Marquetti – Doutora em Letras pela FCLAR/UNESP. Pesquisadora do LINCEU – UNESP e do Núcleo de Estudos Estratégicos – NEE/UNICAMP. E-mail: [email protected].

Arqueologia de La Represión y la Reistencia en América Latina 1960 – 1980 – FUNARI (CL)

FUNARI, Pedro Paulo A.; ZARANKIN, Andrés. (Org). Arqueologia de La Represión y la Reistencia en América Latina 1960 – 1980. Córdoba: Encuentro Grupo Editor, 2006. Resenha de: MILHEIRA, Rafael Guedes. Cadernos do LEPAARQ – Textos de Antropologia, Arqueologia e Patrimônio, Pelotas, v.2, n.4, ago./dez., 2005.

O livro Arqueologia de la Represión y la Resistencia en América Latina 1960 – 1980, editado pelos arqueólogos Pedro Paulo Funari e Andrés Zarankin, retoma uma discussão importante para a história contemporânea da América, pois trata de um momento histórico que não deve nunca ser esquecido, mas contrariamente a isso, sempre recordado e refletido.

O título do livro sintetiza com precisão o seu conteúdo, visto que a repressão e resistência são faces opostas de uma mesma moeda; são forças que se equivalem num sistema dialético e conflitivo, mas que, na visão dos autores, não podem ser simplesmente pensadas como um mero exercício retórico, pois são forças que ainda competem na atualidade e são responsáveis pela estruturação de parte das relações sociais vigentes. Nesse sentido, as forças políticas e os conflitos sociais, além de objeto de estudos da arqueologia, que visa à análise das práticas sociais a partir da materialidade, devem ser temas de reflexão dos pesquisadores com base na explicitação de suas posturas políticas.

Os nove capítulos do livro retratam experiências arqueológicas e históricas, relacionadas aos períodos ditatoriais e repressores, desenvolvidas em vários países da América Latina, a saber: Bolívia, Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, México e Colômbia. Nota-se uma preocupação constante dos autores em relatar, mesmo que brevemente, o contexto histórico-político dos países quando da instauração dos regimes repressores, bem como apresentando a estruturação das resistências políticas.

O primeiro capítulo, escrito por Roberto Rodriguez Suárez, relata a experiência arqueológica relacionada à busca dos restos corporais do General Che Guevara e companheiros na Bolívia. O autor enfatiza os caminhos metodológicos, envolvendo técnicas apuradas de campo para identificar a localidade das covas comuns dos guerrilheiros.

O texto de Rodrigo Navarrete e Ana Maria López é um estudo sobre os grafismos do Cuartel San Carlos – Venezuela. As paredes, tetos e chão do quartel serviram de mural para as representações gráficas do cárcere de presos políticos daquele país e permitem compreender o imaginário a partir de uma perspectiva material do regime político-repressor do estado.

Patrícia Fournier e Jorge Martinez Herrera refletem sobre o massacre da “Plaza de las Tres Culturas”, ocorrido no ano de 1968 no México, quando centenas de civis em passeata foram assassinados a queima roupa pelo governo dez dias antes da abertura das olimpíadas. Muitas vítimas desse massacre ainda estão desaparecidas, sendo necessários projetos que envolvam arqueologia, antropologia forense, história e direitos humanos para averiguar com maior precisão o genocídio cometido.

Carl Henrik Langeback trata de um estudo voltado para os aspectos epistemológicos e políticos da disciplina arqueológica na Colômbia. A reflexão teórica emerge da comparação entre o conhecimento arqueológico produzido pelos arqueólogos, tido no texto como classificatório e desprovido de significado de memória e, por outro lado, pelos intelectuais de esquerda, que sem base no registro arqueológico produziram conhecimento sobre o passado indígena pré-hispânico baseados na teorias marxistas.

Pedro Paulo Funari e Nanci Vieira de Oliveira refletem sobre a emergência da arqueologia do conflito no Brasil, enfatizando que a história das sociedades é a história das relações conflitivas. Os autores, dessa forma, contextualizam a arqueologia brasileira e pensam sobre as bases epistemológicas dessa arqueologia, que não se debruça em estudar o passado recente e repleto de indicadores de conflitos sociais relativo à repressão do período ditatorial militar.

Luis Fondebrider realiza um breve balanço sobre os 21 anos de desenvolvimento da antropologia forense na Argentina, através da participação da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF). O autor enfatiza a necessidade de fortalecer institucionalmente a participação dos arqueólogos na sociedade contemporânea. Destacam-se no texto as imagens fotográficas de escavações de covas comuns de presos políticos assassinados nos regimes repressores da Argentina, Etiópia e Congo.

A relação entre tortura, verdade, repressão e arqueologia na Argentina é o tema tratado por Alejandro F. Haber. As práticas de tortura, desenvolvidas pelos aparelhos repressores, servem não somente como repressão do corpo e da mente, mas também como um meio de estabelecer a auto-narração da verdade, imposta à força e sem diálogo, não levando em consideração a memória social das vítimas.

Como disciplina que constrói narrações sobre o passado, a arqueologia da repressão se diferencia daquela estritamente acadêmica em função da utilização da memória social, sobretudo dos parentes e amigos dos desaparecidos políticos, para desenvolver interpretações subjetivas sobre o passado. A não utilização dessa mesma prática de inclusão da memória social na explanação sobre o passado indígena foi responsável pela constituição de um conhecimento desprovido de memória e significado sócio-político José Lopéz Mazz relata experiências de atividades de arqueologia forense desenvolvidas no Uruguai com o objetivo de entender os aspectos materiais do aparelho repressor, bem como compreender as relações sociais estabelecidas no cárcere e a estruturação material da resistência.

A arqueologia da arquitetura dos Centros Clandestinos de Detenção da Argentina é o objeto de estudo de Andrés Zarankin e Cláudio Niro. Os CCD’s foram tratados como estruturas físicas do aparelho repressor que comportam, no seu registro material, aspectos da memória do período ditatorial da Argentina. O espaço arquitetônico dos CCD’s denota a planificação da estrutura de repressão e permite que a relação torturador-torturado adquira sua forma mais explícita. Além dos aspectos objetivos de análise da estrutura arquitetônica dos CDD’s, existe uma preocupação constante dos autores em estabelecer uma conexão entre as práticas arqueológicas objetivas e a memória subjetiva das vítimas, referente às experiências sofridas no cárcere. O relato do cárcere de Cláudio Niro, enquanto vítima da ditadura elucida a possibilidade metodológica de construção de narrativas do passado com base na articulação entre arqueologia e memória em contraposição à história oficial.

Nesse sentido, as palavras mais usadas nos textos: política, direitos humanos, arqueologia da repressão, esquerda política, repressão, direita política, aparato de controle, manipulação do poder, resistência, governo, ditadura militar, conflitos sociais, memória, democracia, passado, narração, marxismo, etc., refletem o conteúdo e a postura política dos autores, não somente com relação à ditadura, mas também com relação à concepção teórica narrativa sobre o passado.

A arqueologia é refletida desde suas bases epistemológicas e é chamada a ser comprometida com a dinâmica social, ou seja, conclama-se que a arqueologia tenha uma função social de conscientização e sirva como ferramenta para interpretar o passado e compor uma memória alternativa à história oficial. “El investigador puede así, de manera explícita, asumir una posición activa en el proceso de interpretación de un pasado que ya no es el verdadero, sino apenas una interpretación” (Zarankin e Niro, 2006, p. 165).

De forma crítica, os autores com base em influência marxista, criticam e refletem sobre as bases epistemológicas da disciplina desde sua formação até a atualidade e nos questionam o seguinte: qual o papel da arqueologia e do arqueólogo frente à dinâmica social? Que postura deve tomar o profissional de arqueologia, na medida em que esse lida com aspectos da memória social coletiva? E, por fim, que tipo de conhecimento sobre o passado a demanda social requer?

Rafael Guedes Milheira – Mestrando em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE- USP), Brasil. Pesquisador do Laboratório de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas (LEPAARQ – UFPel), Brasil. E-mail: [email protected]

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