Anarquismo, Estado e pastoral do imigrante. Das disputas ideológicas pelo imigrante aos limites da ordem: o caso Idalina – SOUZA (RBH)

SOUZA, Wlaumir Donizeti de. Anarquismo, Estado e pastoral do imigrante. Das disputas ideológicas pelo imigrante aos limites da ordem: o caso Idalina. Sn. Editora da Unesp, 2000. 243p. Resenha de: ALMEIDA, Vasni de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

Um bom estudo em ciências humanas, um estudo histórico em particular, ganha relevância ao primar por dois aspectos: a preocupação com as mudanças que marcam uma sociedade numa determinada trajetória histórica e a atenção redobrada com as alterações verificadas nas instituições inseridas e ativas nesse processo de transformação1. Um tratamento cuidadoso para com as redes de interdependências entre diferentes grupos no estabelecimento de uma nova ordem social e cultural e para com os rearranjos internos que acompanham cada um dos grupos envolvidos aponta para a eficácia de um estudo acadêmico transformado em publicação. Esse é o caso do livro de Wlaumir Donizeti de Souza, voltado para a imigração italiana para o Brasil, ocorrida entre a segunda metade do século XIX e os primeiros decênios do século XX. Transição da monarquia para o sistema republicano de governo, a imigração como fator de mudança cultural e social e os elementos sociais em conflito (Estado, catolicismo e anarquismo) formam o esteio da obra.

Procurando se desvincular das armadilhas que tendem a estreitar “o leito do rio”, o autor verificou e destacou a intrincada teia de interesses desse significativo período de mudanças políticas e culturais pelo qual passou o País. Seu olhar esteve atento para as ações da Igreja Católica em relação às forças sociais externas a ela e em relação aos “catolicismos” coexistentes na sua esfera interna. Da mesma forma, sua atenção se voltou para os movimentos anarquistas em suas relações com o poder social do catolicismo, notadamente no que tange ao trato com o imigrante. Completando as forças que se locomoviam ao redor do trabalhador imigrante, estava o agricultor contratador de mão-de-obra. Esses são os elementos básicos que compõem a trama tecida pelo autor.

Para Donizeti de Souza, a população imigrante italiana, contratada para trabalhar no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, foi instrumentalizada pelo catolicismo ultramontano, com a Igreja Católica buscando influenciar a política imigratória num período em que se aproximava o rompimento formal e tardio entre essa religião e o Estado brasileiro. Na tentativa de estabelecer os critérios para a arregimentação de trabalhadores, o catolicismo romanizado estimulou a elaboração de pastorais voltadas para o enquadramento do imigrante, tendo em vista o seu projeto religioso e político. Aos scalabrinianos, instituição missionária fundada em 1887, por dom Giovanni Baptista Scalabrini, religioso com larga experiência no trato com os postulantes `a imigração nas suas cidades de origem, coube essa tarefa. Para sustentar sua análise, o autor se apega ao conceito de imigrante ideal, ou seja, um trabalhador lapidado para atender a interesses econômicos políticos dos grupos que pensavam no sentido de nação, que então se desenhava lentamente, tanto na visão de fazendeiros quanto na de políticos de linhagem conservadora. O imigrante ideal seria aquele comprometido com os laços culturais e religiosos propostos na perspectiva romana de sociedade e indivíduo, imagem idealizada também pela oligarquia que o contratava. Para os fazendeiros, o estrangeiro contratado deveria ser “dócil, ordeiro, familiar e trabalhador”, uma mão-de-obra com as marcas da “resignação”. Na visão do poder religioso ultramontano, caberia ao catolicismo a moldagem do imigrante que satisfizesse os requisitos dos contratantes. O autor aponta com acuidade a conexidade entre o ideal de trabalhador desenvolvido pelo catolicismo romano e o tipo de trabalhador procurado pelo coronel para ser empregado na lavoura. Os dois ansiavam por trabalhadores obedientes. Quais as pretensões de um catolicismo que se via ameaçado por intrincada e complexa rede de inimigos, dentre os quais podemos encontrar os anarquistas, os maçons, os políticos liberais e os protestantes? Donizeti de Souza responde sem mais delongas: ser fonte inspiradora da cidadania brasileira e fonte única de unidade nacional. Enquanto o chefe local buscava aumentar o lucro (com a devida ordem) na unidade agrícola, o catolicismo buscava forjar, sob seus auspícios, a unidade cultural e religiosa do País. O que um fazendeiro esperava de um padre era que este ressaltasse “as obrigações morais do empregado para com o patrão, seu dever de obediência, de humildade, de docilidade e resignação, aceitando sua situação como desígnio divino, uma vez que a ordem social era por ele estabelecida”.

Da sua parte, o ultramontanismo pretendia, além das prerrogativas políticas e econômicas, enquadrar religiosamente o colono do interior do País, pouco afinado com as doutrinas da Igreja, procurando “instar um tempo sem magia”. Sendo assim, os scalabrinianos foram os designados para acompanhar o homem católico, desde a partida até sua instalação definitiva na sociedade hospedeira, isso dada a experiência acumulada por esses religiosos na missão junto ao imigrante. Na visão dos scalabrinianos, a religião seria um fator de patriotismo e de princípios civilizadores para os imigrantes em terras brasileiras. No entanto, como acontece em todos os processos de incursões missionárias, o agente não fica incólume na sociedade envolvente, não tardando muito para que esses religiosos percebecessem os fatores complicadores de sua missão. Havia inúmeras dificuldades em implantar o projeto de pastoral de imigrante: falta de padres, custo das viagens de religiosos, descontinuidade na formação de trabalhadores contratados. Padres ávidos por lucros, ostentadores, boêmios, apresentavam-se também como percalços na organização de uma pastoral alicerçada no ultramontanismo.

Os scalabrinianos, assim, tencionavam atuar junto ao imigrante italiano com maior independência possível do clero local, dada a influência que esse exercia junto às populações interioranas e por serem poucos afeitos às exigências de um catolicismo disciplinador. A religiosidade praticada em regiões distantes dos grandes centros, com a complacência dos padres, poderia colocar em risco o projeto educacional que pretendiam implantar. As divergências entre os scalabrinianos e padres das paróquias logo emergiram e são reveladoras dos embates internos no seio de um catolicismo que atuava numa sociedade que passava por profundas transformações, tanto na esfera política quanto na cultural. Em determinado momento da missão dos scalabrinianos no Brasil, mais precisamente no período em que o padre Cansoni esteve no País, a ordem foi aconselhada a assumir paróquias, onde o sustento seria mais viável. Isso porque a inquietude entre o clero nacional e o ultramontano estava se tornando visível, com os primeiros cada vez mais resistentes à presença da ordem em sua área de atuação, já que esta tinha a liberdade de acompanhar os imigrantes em qualquer paróquia, mesmo sem estar comprometida com ela.

Uma proposta de Domenico Vicentine, substituto de Scalabrini na condução da ordem, restringia a missão dos carlistas à formação de quadros para o serviço junto aos imigrantes, cabendo aos bispos das dioceses a administração da política pastoral ao imigrante. Na verdade, o clero nacional pretendia enquadrar os scalabrinianos nas estruturas das paróquias, impedindo assim que a missão junto aos imigrantes invadisse a jurisdição das dioceses, o que contrariava a intenção da ordem, que era a de agir sem necessariamente estar vinculado às estruturas eclesiais vigentes. Percebendo as dificuldades em atuar na jurisdição das paróquias, os scalabrinianos fundaram um orfanato cujo objetivo seria o de amparar crianças órfãs que vagavam pelas ruas (esquálidas, tristes, fracas e miseráveis), preparando-as para o trabalho e para serem “bons cidadãos” e “cidadãs”. Utilizando como recurso de convencimento o fato de o orfanato ser um espaço de formação de crianças desvalidas, moldando-as para o trabalho, os scalabrinianos obtiveram dos fazendeiros o apoio necessário para a implantação do projeto, conseqüentemente, da estruturação da ordem no País. Lembra o autor que os orfanatos constituíam-se através de uma mentalidade tridentina, fato que mais uma vez denota a tentativa de romanização do imigrante por meio da ação educacional.Ao saírem em missão para angariar fundos para o orfanato, os padres scalabrinianos batizavam, ouviam confissões, faziam casamentos, enfim, atrelavam a proposta educacional à estruturação da ordem, funcionando o orfanato como um ponto estabilizador das missões.

O autor destaca que os scalabrinianos foram acossados, no final do processo imigratório, em três frentes: na primeira, pela oligarquia, já que o imigrante não mais se apresentava como um investimento seguro; na segunda, pelos párocos locais, temerosos de perder a arrecadação junto aos poucos imigrantes que ainda entravam no país; na terceira, sofria a concorrência dos anarquistas e dos maçons. Nessas frentes de combate, a que mais merecia atenção por parte do clero romano era a política desencadeada pelos anarquistas juntos aos imigrantes.

A celeuma entre a ordem scalabriniana e grupos anarquistas, na atuação junto aos imigrantes, mereceu por parte do autor um capítulo à parte. De posse de um documento desses religiosos sobre o desaparecimento de uma das internas do orfanato, Donizeti de Souza rastreou em publicações anarquistas o mesmo assunto. Nas leituras dos periódicos, percebeu com perspicácia a disputa que se travava entre o movimento político anarquista e o movimento religioso católico ultramontano pelo controle do imigrante. Tencionando alcançar o monopólio do acompanhamento ao imigrante em diversas regiões do País, as duas partes procuravam atingir a imagem do outro perante a opinião pública e perante o Estado. Não foi intenção do autor apontar o desenlace da trama envolvendo a menina Idalina, personagem central da discórdia, o que certamente o faria enveredar para um texto novelesco, tão em moda na historiografia atual. Antes, sua atenção esteve voltada para a distinção dos elementos em conflito, fazendo de sua obra uma possibilidade de compreensão dos interesses de instituições nas formulações ideológicas de um período que ainda carece de novos estudos.

Resta apontar os complicadores das considerações de Donizeti de Souza, que são de duas ordens: a primeira diz respeito à afirmação de que a intenção dos scalabrinianos era a de constituir, nas pequenas cidades em ascensão, dada a presença do imigrante italiano, “pequenas itálias”; o segundo complicador desse texto bem articulado reside na afirmação do autor de que no projeto dos religiosos estava embutido um projeto “neocolonial”. Não estariam essas responsabilidades aquém das forças de uma ordem religiosa que não se configurava entre as mais influentes dentre o escopo missionário católico, tanto no Império quanto na Primeira República?

Para além desse pequeno deslize (se é possível considerar como tal uma afirmação que não compromete o texto), essa obra é um alerta para quem reduz aos liberais, à maçonaria e ao protestantismo a capacitação de indivíduos voltados para uma sociedade ordeira e laboriosa, quesitos básicos para a consolidação da República. Em se tratando de moralização de condutas, as intenções de protestantes, católicos e maçons não eram tão díspares quanto podem parecer numa análise estreita. Os ultramontanos buscavam com disposição instilar o rigor disciplinar entre os trabalhadores imigrantes tendo em vista a composição de uma nova ordem social, um tanto quanto ameaçada pelos ideais políticos anarquistas, dos quais os italianos não estavam distantes.

Notas

1 Temos em mente, quando sinalizamos para a rede de interdependências em processos de mudanças (ou de desenvolvimento), as concepções teóricas de Norbert Elias sobre transformações sociais no processo civilizador. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, vol. 1.

Vasni de Almeida – Doutorando em História-UNESP/Assis.

Acessar publicação original

[IF]

“Ide por todo Mundo”: A Província de São Paulo Como Campo de Missão Presbiteriana 1869 – 1892 – BENCOSTTA (RBH)

BENCOSTTA, Marcus Levy Albino. “Ide por todo Mundo”: A Província de São Paulo Como Campo de Missão Presbiteriana 1869 – 1892. São Paulo: FAPESP, 1996. Resenha de: ALMEIDA, Vasní de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 35, 1998.

A publicação de Marcus Bencostta é resultado de um estudo rigoroso sobre a educação protestante e as transformações econômicas e sociais ocorridas na região de Campinas (SP), na segunda metade do século XIX. É um trabalho cativante que também trata a educação pelo viés da modernidade, conceito muito discutido nos círculos políticos e intelectuais a partir de 1850. Apesar de abordar um colégio protestante, o autor deixa bem claro que não se trata de um estudo sobre a educação e sim de “uma compreensão da presença religiosa dos missionários presbiterianos em Campinas como integrantes da sua Igreja no Brasil”1.

Há uma grande tendência no meio acadêmico, quando se pesquisa a educação protestante no Brasil, em analisá-la em oposição ao ensino católico, muitas vezes enveredando pelos antagonismos atraso e progresso, conservador e liberal, científico e humanista e assim por diante, principalmente quando se trata de escrever sobre a modernidade do final do Império e início da República. Nesse sentido, logo no prefácio da obra Augustin Wernet alerta que a afinidade entre a elite progressista paulista e o ensino católico existiu de forma acentuada, prova disso foram os colégios organizados por várias ordens religiosas, sempre sob a orientação da alta hierarquia romana. Porém, esse não foi o caso de Bencostta, antes procurou analisar a educação presbiteriana no contexto da formação de uma intelectualidade progressista que procurava respostas à novas situações que surgiam no ambiente econômico e social daquela região em transformação. Bem mais do que se comprometer com as questões internas do presbiterianismo, este trabalho carrega uma preocupação com os padrões modeladores de condutas presentes em uma determinada região, onde diferentes atores sociais compõe e se contrapõe no jogo das representações simbólicas. No entanto, ele não se furta de buscar na cosmovisão calvinista a postura desses evangélicos a frente de uma instituição de ensino que recebia apoio de expressivas personalidades públicas campineiras. Da mesma forma que traça os contornos sócio-econômico e cultural da cidade, suas escolas, sua vida artística e seus projetos de desenvolvimento urbano, procura na organização da igreja mantenedora do Colégio Internacional a herança teológica e eclesiástica que permeavam a consciência de seus dirigentes. É a difícil arte de colar as representações religiosas a outros elementos que se interagem na construção da identidade regional. Essa é uma das contribuições da obra, mesmo que o autor não tenha “este trabalho como exercício de pesquisa em história regional”2.

Uma outra contribuição que esse trabalho traz é a que diz respeito à relação existente entre uma instituição de ensino e o grupo religioso que a dirige, ou melhor, entre o proselitismo que este último exige e liberdade religiosa que os diretores missionários pregam. Bencostta aborda com precisão a contradição existente entre a obrigação de cumprir a promessa de formar cidadãos nos preceitos liberais e democráticos e a de preparar líderes que assumissem o projeto religioso da Igreja. O que se percebe quando se analisa as propostas educacionais confessionais é que a posição dos responsáveis pelo seu funcionamento tem que estar carregada de muita flexibilidade. Há os compromissos externos e os internos, há dois mundos distintos aos quais esses educadores necessitam prestar contas; um é a sociedade com a qual se comprometeu e que em maior ou menor quantidade recebeu apoio, outro é composto pela hierarquia da religião responsável por esse modelo de educação. Além de impregnar de religiosidade o ensino, é ela quem dá a palavra final da necessidade ou não da existência de uma escola em um determinado espaço geográfico. É preciso se identificar com a linguagem da sociedade que se abriu para sua proposta de ensino e não desafinar com o grupo religioso em que se está comprometido. Foi essa relação que Bencostta percebeu na prática dos diretores do Internacional:

Por um lado, Morton utilizou de um discurso político-cultural junto à intelectualidade campineira, que procurou identificar a proposta do colégio como inerente ao mundo civilizado que o Brasil desejava participar. E, por outro, Lane valeu-se do discurso religioso e missionário em sua visita à Igreja Presbiteriana Americana ao expor a necessidade de transmissão dos preceitos do protestantismo através de uma educação escolarizada3.

Não há como negar que os interesses de componentes sociais distintos, num mesmo espaço geográfico se fundem, se sobrepõem e sofrem desfigurações, em nome do relacionamento que mantêm sua existência. No entanto, cada segmento social preserva, explícita ou implicitamente, o seu próprio, o seu jeito particular de ser.

Notas

1 BENCOSTTA. Marcus Levy Albino, op. cit. p.17.

2 Idem, p.17.

3 Idem, p.77.

Vasní de Almeida

Acessar publicação original

[IF]