Trofei e prigionieri: una foto ricordo della colonizzazione in Brasile | Piero Brunello

O livro Trofei e prigionieri: una foto ricordo della colonizzazione in Brasile, do historiador italiano Piero Brunello, publicado em 2020 pela Editora Cierre Edizione, tem muito a nos dizer sobre Santa Catarina, a imigração dos italianos no Sul de nosso estado (mais precisamente nas colônias de Urussanga, Grão-Pará, e Nova Veneza), o rapto de crianças indígenas e as expedições que massacraram a população dos Botocudos/Laklãnõ-Xokleng na região, durante o final do século XIX e início do século XX. Mas, essas não são afirmações genéricas do nosso passado, na tentativa de buscar responder ausências no que tange à região e que, muitas vezes, foram compartimentadas em temáticas pela nossa historiografia. A ideia aqui se apresenta muito mais do que fazer uma história da colonização, da imigração italiana ou da história de como os Botocudos/Laklãnõ-Xokleng foram perseguidos durante a colonização de Santa Catarina; já que é o encontro entre todas essas dinâmicas e temáticas que dá o tom do livro.

Piero Brunello é um historiador italiano e professor aposentado de História Social da Università Ca’ Foscari di Venezia. Durante sua trajetória profissional, pesquisou sobre diversos temas: emigração/imigração, escrita, história urbana, cultura popular, música e anarquismo. Entre as diferentes publicações de sua carreira, encontram- -se, principalmente, Pionieri: gli italiani in Brasile e il mito della fronteira (1994), Storie di anarchici e di spie: polizia e politica nell’Italia liberale (2009) e Colpi di scena: La rivoluzione del Quarantotto a Venezia (2018). Apesar de ter estudos sobre o Brasil e a emigração/imigração de italianos no nosso país, nenhuma de suas obras foi traduzida para o português. Por esta via, o interesse de um historiador italiano por Santa Catarina pode suscitar críticas, positivas ou desfavoráveis, uma vez que um olhar estrangeiro pode trazer tanto uma contribuição interessante às questões que não foram pensadas ou ditas pela historiografia catarinense, quanto assustar, por poder representar mais uma perspectiva europeia interessada no “excepcional”. Leia Mais

Escolarização, culturas e instituições: escolas étnicas em terras brasileiras | Terciane Ângela Luchese

A organizadora da obra é professora da graduação e da pós-graduação, nos Programas de Pós-graduação em História e em Educação da Universidade de Caxias do Sul. Além disso, ela é líder do grupo de pesquisa História, Educação, Imigração e Memória (Grupheim2), no qual os integrantes têm especial interesse no campo da História da Educação e a marca da presença de diferentes grupos étnicos, seus processos de escolarização e as culturas escolares. A presente obra apresenta resultados de pesquisa tanto de integrantes do Grupheim quanto de pesquisadores convidados, estabelecendo assim uma profícua interlocução com múltiplas perspectivas acerca do tema proposto para trabalho: as escolas étnicas instituídas no Brasil, com ênfase na escolarização, culturas e instituições escolares. Os capítulos apresentados têm como marco inicial o momento de intensificação das massas imigratórias italianas no Brasil, fim do século XIX e marco final a década de 1940 quando do fechamento das últimas escolas étnicas em decorrência do acirramento da nacionalização de ensino.

A obra é composta por nove capítulos, antecedidos pelo prefácio escrito pelo reconhecido pesquisador Angelo Trento, publicado na íntegra em duas línguas: português e italiano. A apresentação ficou sob a responsabilidade da organizadora da obra Terciane Ângela Luchese. Ao final do livro encontram-se ainda as informações sobre os autores, situando o leitor sobre os contextos em que se inserem cada pesquisador. Leia Mais

Escolas italianas no Rio Grande  do Sul: pesquisas e documentos – RECH; LUCHESE (RHHE)

RECH, Gelson Leonardo; LUCHESE, Terciane Ângela. Escolas italianas no Rio Grande  do Sul: pesquisas e documentos. Caxias do Sul, EDUCS, 2018. Resenha de: FERNANDES, Cassiane Curtarelli. Escolas italianas no Rio grande do Sul: pesquisas e documentos. Revista de História e Historiografia da Educação, Curitiba, Brasil, v. 2, n. 6, p. 241-245, setembro/dezembro de 2018.

Escolas italianas no Rio Grande do Sul: pesquisas e documentos, é o título da obra composta pelos pesquisadores Gelson Leonardo Rech e Terciane Ângela Luchese, publicada em 2018, pela editora EDUCS. O escrito é fruto da continuidade das pesquisas empreendidas pelos autores em torno dos processos educativos entre imigrantes italianos e seus descendentes no Rio Grande do Sul, assim como dos diálogos mantidos no Grupo de Pesquisa História da Educação,  Imigração e Memória (GRUPHEIM) da Universidade de Caxias do Sul/RS.

De uma forma acessível, Gelson e Terciane partilham seus empreendimentos de pesquisa com o público interessado na temática da imigração italiana no estado gaúcho. As páginas, escritas a quatro mãos, reúnem três movimentos: narram uma história das escolas italiano no estado, apresentam uma reflexão metodológica e transcrevem documentos primários, alguns até então inéditos para a área da História da Educação.

O livro, organizado em três capítulos, inicia com prefácio elaborado pelo Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara, que aborda brevemente o processo imigratório italiano no Rio Grande do Sul. Em seguida, há uma apresentação da obra pelos autores, desejando que “a leitura das páginas que seguem possa inspirar outros investigadores e interessados pela temática a pensarem os processos educativos étnicos como uma importante singularidade no contexto brasileiro” (RECH; LUCHESE, 2018, p. 12).

No primeiro capítulo intitulado O processo escolar entre imigrantes italianos e descendentes no Rio Grande do Sul (1875-1938), os pesquisadores apresentam os resultados das investigações realizadas nos últimos anos acerca do processo escolar entre imigrantes e descendentes de italianos no estado, nos anos finais do século XIX, mais especificamente nas colônias da Serra gaúcha e na capital Porto Alegre.

O texto inicia com um panorama histórico acerca do processo imigratório italiano no estado, apontando brevemente as causas da imigração, o interesse do governo brasileiro no fenômeno migratório, assim como a formação das diversas colônias estabelecidas a partir de 1870. Em seguida, apresenta o contexto educacional do Rio Grande do Sul entre o século XIX e o XX. Depois, direciona o olhar para o processo escolar entre imigrantes italianos e os seus descendentes, apontando que “diversas foram as iniciativas dos imigrantes na organização de escolas” (RECH; LUCHESE, 2018, p. 25). Entre estas iniciativas, os pesquisadores destacam as escolas étnico-comunitárias rurais, as escolas étnico-comunitárias mantidas por Associações de Mútuo Socorro e as escolas ligadas a congregações religiosas. Ainda, ressaltam que às escolas públicas – isoladas, grupos escolares e colégios elementares, foram também requisitadas pelos imigrantes. No entanto, ressaltam que:

Essa escola frequentada pelos imigrantes, seus filhos e netos, mesmo sendo pública, era marcada por elementos étnicos. O próprio prédio escolar e a terra onde estava localizada, muitas vezes, foram doados pela comunidade, assim como os móveis. As comunidades frequentemente interferiam na nomeação e/ou indicação do professor, como averiguou Luchese (2007). As práticas pedagógicas e o sotaque dialetal, bem como outros elementos culturais étnicos, marcavam presença nas salas de aula. (RECH; LUCHESE, 2018, p. 37).

Após, os autores apresentam algumas iniciativas de escolarização tendo como pano de fundo à capital Porto Alegre. Assim, evidenciam a organização do Instituto Médio Ítalo-Brasileiro que funcionou como um colégio-internato, entre os anos de 1917 a 1930, fundado pelo Professor Augusto Menegatti e sua esposa Linda Menegatti, como também a reorganização das escolas étnicas na capital.

Concluem este primeiro capítulo elencando algumas dificuldades encontradas para se manter as iniciativas das escolas étnico-comunitárias, bem como as influências do governo fascista de Mussolini a partir de 1922, sobre as escolas étnicas italianas e a preferência dos imigrantes e descendentes pela escola pública.

Análise documental histórica: considerações metodológicas sobre a história da escola entre imigrantes italianos e seus descendentes é o título do segundo capítulo organizado pelos autores, tendo como objetivo compartilhar considerações sobre os caminhos teóricos e metodológicos de suas investigações (RECH; LUCHESE, 2018). Sendo assim, destacam a utilização do aporte teórico-metodológico da História Cultural, a importância de tomar os documentos como monumentos nas pesquisas e o trabalho com a análise documental – organização e interpretação dos dados.

Nesta segunda parte do livro, os autores partilham com os demais pesquisadores da área, seis preocupações necessárias trabalho com a análise de documentos textuais, a saber: 1) as condições de produção do documento; 2) os procedimentos internos; 3) as condições de circulação do documento; 4) a materialidade do documento; 5) a apropriação; 6) a preservação. Da mesma forma, demarcam a importância do cruzamento das fontes selecionadas nas pesquisas, a diversificação das mesmas – textuais, orais e iconográficas, o diálogo com a teoria e o cuidado com as referências de localização dos vestígios com compõe o corpus documental da investigação. Desse processo, emerge “a tessitura da escrita”, nas palavras de Rech e Luchese (2018, p. 74). Para ambos:

Nesse jogo de vida e morte, de passado e presente, de documentos e monumentos, não podemos esquecer que as narrativas históricas da educação, derivadas das pesquisas que produzimos, são resultados de trabalho com questões de pesquisa possíveis no tempo em que vivemos e que, para respondê-las, construímos um corpus empírico. Destarte, indícios, rastros, sinais que são ordenados, montados, questionados na análise, na inter-relação e contextualização que procedemos para escrever história, escrever um possível sobre o passado educacional, reconhecendo a precariedade e a necessidade de revisitar documentos, munidos por novos questionamentos. É o movimento constante da pesquisa. (RECH; LUCHESE, 2018, p. 77).

No terceiro e último capítulo denominado Repertórios documentais, Gelson e Terciane, de forma generosa, compartilham quatro documentos que auxiliam na compreensão da história da escola entre imigrantes italianos e descendentes no estado do Rio Grande do Sul.

O primeiro documento apresentado pelos autores é um relatório elaborado pelo italiano Ranieri Venerosi Pesciolini, que em visita aos estados do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Santa Catarina, escreve no ano de 1912, sobre a vida nas colônias italianas, incluindo um tópico sobre a as escolas e a instrução. A segunda fonte também é um relatório e foi produzida em 1923, pelo professor italiano Vittore Alemanni que escreve sobre as escolas italianas no Brasil. O terceiro do-cumento é um recorte do texto apresentado no livro Cinquantenario della colonizzazione italiana nel Rio Grande del Sud (1875-1925) por Benvenuto Crocetta em 1925, onde o mesmo compõe um pequeno escrito sobre as escolas. O último vestígio é uma carta de Celeste Gobbato, intendente de Caxias do Sul, endereçada a Benito Mussolini, no ano de 1927, “pedindo a intervenção do Duce para que os padres salesianos implantassem um ginásio em Caxias do Sul” (RECH; LU-CHESE, 2018, p. 150). Os documentos disponibilizados são apresentados na sua versão original em língua italiana e acompanham as res-pectivas traduções realizadas pelos autores do livro.

A obra escrita por Rech e Luchese (2018) é uma importante contribuição para os estudos historiográficos em torno dos processos educativos nas colônias de imigrantes e descendentes de italianos. A partir das investigações dos autores é possível perceber que a escola foi alvo de desejo e de interesse por parte das famílias italianas desde os anos iniciais de formação dos núcleos coloniais.

Sendo assim, além de compartilhar os conhecimentos construídos sobre a temática do livro, os autores dividem com os jovens pesquisadores da área da História da Educação os seus modos de trabalhar com a análise documental e narrar uma história. Refletem acerca do problema de pesquisa e do uso de documentos, apontam autores dentro do referencial teórico-metodológico da História Cultural e sugerem caminhos para a metodologia da análise documental. Ao final, ainda nos brindam com a reprodução de quatro documentos que tratam sobre a escolarização. Escolas italianas no Rio Grande do Sul: pesquisas e documentos é uma publicação inspiradora e que merece nossa atenção.

Cassiane Curtarelli Fernandes – Doutoranda em Educação pela Universidade de Caxias do Sul, UCS (Brasil). Contato: [email protected].

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Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: um estudo sobre restaurantes, rituais, e (re)construção da identidade étnica | Maria F. C. Maranhão

A presente resenha é referente ao livro Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: Um estudo sobre restaurantes, rituais e (re)construção de identidade étnica, da autora Maria Fernanda Campelo Maranhão. A obra é uma dissertação de Antropologia social defendida na UFPR no ano de 1996 e publicada como livro em 2014, integrando a Coleção de Teses do Museu Paranaense. A autora possui graduação em Arqueologia pela Universidade Estácio de Sá (1986), no Rio de Janeiro e mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná (1996). É funcionária pública do Estado do Paraná desde novembro de 1987, estando locada no Museu Paranaense, e atualmente é responsável pelo Setor de Antropologia da instituição, onde atua na gestão, pesquisa, catalogação, e cadastramento de acervos Etnográficos e Imagéticos em banco de dados digital. Possui experiência em Etnologia Indígena, Acervos Etnográficos e História da Antropologia.

A obra é estruturada em cinco capítulos. Eles tratam, respectivamente, de descrever brevemente a imigração italiana no Paraná no âmbito do projeto nacional de formação de um campesinato; explorar a identidade italiana e realizar uma etnografia do bairro; apresentar o bairro como centro gastronômico; discutir sobre o estudo da comida na antropologia, evidenciando o caráter simbólico e de construção de identidade; e apresentar de que forma as políticas públicas interferiram na formação de identidade no bairro italiano.

Em sua introdução, Maranhão afirma que pretende se utilizar da comida típica e dos restaurantes de Santa Felicidade como recorte para discutir questões de etnicidade, relações interétnicas e transnacionalidade, sendo o foco principal de sua análise a comida italiana e seus restaurantes enquanto símbolos de etnicidade. Desta maneira, ela aborda também a influência das políticas públicas locais e transnacionais na (re)construção da identidade italiana no bairro, no âmbito das comemorações do aniversário de 300 anos de Curitiba, quando houve uma valorização das etnias europeias. Ainda na introdução, a autora explica sua metodologia, na qual trabalhou com entrevistas tanto com moradores quanto com turistas, além de fazer uso de matérias documentais de pesquisa histórica, como jornais e revistas.

No primeiro capítulo, Do Vêneto a Colônia de Santa Felicidade, a autora trata da formação histórica do bairro. Assim, ela aborda a questão do incentivo à imigração para o Brasil no século XIX, responsável por um grande fluxo imigratório. A partir da década de 1850, com a imigração a cargo das províncias que agiam por intermédio das companhias de imigração, ela comenta que, no caso do Sul do Brasil, se pretendia estabelecer um campesinato, baseado na pequena propriedade e no trabalho familiar. No Paraná, núcleos coloniais foram instalados próximos aos centros urbanos, para abastecer um mercado que não era autossuficiente.

Os imigrantes que se dirigiram para Santa Felicidade eram, no entanto, originalmente da região italiana do Vêneto, e haviam sido instalados na colônia Nova Itália, no litoral do estado, mas esse assentamento não progrediu, pois os colonos não conseguiram se adaptar, devido à falta de mercado consumidor para seus produtos, e também pela ausência de orientação sobre as doenças tropicais, assim como sobre o cultivo apropriado e sobre as pragas da lavoura. Dessa forma, as famílias decidiram se mudar para o planalto, seguindo as informações recebidas pelos tropeiros que passavam pela região. Quinze dessas famílias que deixaram a colônia Nova Itália adquiriram, no planalto, terras da portuguesa Felicidade Borges, e estabeleceram sua colônia, que passou a se chamar Santa Felicidade e a atrair mais colonos italianos. Estabelecidos, passaram a vender seus produtos no centro de Curitiba.

No capítulo Identidade italiana e etnografia do bairro, Maranhão fornece algumas informações acerca da transformação da colônia em bairro de Curitiba, fruto do crescimento da cidade. Também devido à legislação, a autora afirma que não é permitida a construção de edifícios com mais de dois andares no local, o que fez com que o bairro mantivesse algumas características da arquitetura inspirada no Vêneto. Ela comenta também a diferença entre o centro – próximo à Avenida Manoel Ribas – e a periferia do bairro – mais distante, e aborda o comércio, destacando o artesanato, o vime, o vinho, e dá ênfase para os restaurantes, que são um cartão postal da cidade.

Neste capítulo, Maranhão procura fazer uma diferenciação entre o que chama de italianos de Santa Felicidade, colocando-os em oposição aos outros italianos e aos curitibanos. Ela embasa essa ideia no conceito de grupo étnico de Barth, onde mais do que uma cultura comum, é necessária a autoatribuição e a atribuição pelos outros para que se reconheça esse grupo, baseando-se também no conceito de identidade contrastiva, no qual o indivíduo constrói a sua identidade afirmando-se como diferente diante de outros grupos, ou seja, identidade que surge por uma oposição. Neste tópico, a autora considera uma identidade de italianos de Santa Felicidade que se constrói em oposição tanto aos não italianos quanto aos italianos de imigração mais recente, que não passaram pela experiência do campo. Ela ressalta que nos dois casos a Igreja Católica teria apresentado um papel fundamental nessa construção de identidade. Para a autora, a configuração atual do bairro segue os moldes dos primeiros imigrantes, visto que muitas das famílias ainda vivem em lotes originais, só que agora divididos entre os membros herdeiros, configurando o que Maranhão chama de contradas. E a rede de parentesco, que é em maneira recorrente definida como endogâmica, faz com que muitos italianos de Santa Felicidade ainda se vejam como parentes. Ela também comenta sobre a chegada, em anos mais recentes, de outras famílias italianas ou de descendentes, que acabaram por se tornar donos de restaurantes de sucesso, mas que não fizeram parte da construção inicial do bairro. Maranhão diferencia ainda o bairro dos turistas daquele dos italianos, onde convivem os descendentes das famílias.

Um Bairro Gastronômico é como se intitula o terceiro capítulo da obra, no qual a autora discute a origem dos restaurantes. O primeiro deles teria sido o restaurante Iguaçu, estabelecido com o intuito de vender um prato feito para os caminhoneiros que por ali passavam, nos anos 1940. Constituíram-se outros estabelecimentos na sequência, e o bairro foi se tornando famoso pela gastronomia. Esses restaurantes são considerados empreendimentos familiares. Outra característica comentada pela autora é a de que além de servir refeições, estes lugares são palcos para eventos. Os restaurantes típicos são diferenciados dos demais estabelecimentos de Curitiba por serem informais, ambientes familiares, destaca Maranhão.

Tratando a maneira pela qual as famílias típicas se relacionam com os restaurantes, a autora comenta que são poucas as que os frequentam, pois muitas mantém a tradição culinária em casa. Porém, desde o sucesso dos anos 1970, recorrem a eles em ocasiões festivas. Como afirma Maranhão, o bairro é relacionado com o lazer dominical dos curitibanos, e a cidade é identificada e se identifica com o bairro turístico e gastronômico.

No quarto capítulo, A boa comida de Santa Felicidade, ela comenta que o interesse dos antropólogos no estudo da alimentação existe desde o surgimento dessa ciência, mas que o alimento analisado em relações simbólicas é algo feito por pesquisadores contemporâneos. A autora cita os estudos de Roberto Da Matta, pioneiro destas discussões no Brasil, fazendo uma distinção clara entre alimento – aquilo de que o corpo precisa para sobreviver – e comida – o que se consome com prazer. Outra questão apontada é de que se deve contextualizar a refeição, identificando o que se come em dias de semana ou finais de semana, no cotidiano ou em celebrações, além de se fazer a distinção entre comida de casa e da rua. Quanto à comida nos restaurantes, Maranhão afirma que ela é composta pelo frango a passarinho, polenta frita e risoto de miúdos. Esses pratos, ainda que alterados para o consumo local, legitimam uma culinária tradicional do Vêneto, que contribui para a reinvenção da identidade italiana e do bairro de Santa Felicidade enquanto reduto gastronômico. Essa reinvenção de tradição estabelece uma continuidade com o passado histórico da colônia. Esses restaurantes levaram a comida local ao gosto dos curitibanos, que até então, tinham reservas em relação a alguns deles, como a polenta.

A comida aparece também nas festas do bairro, sendo elas 4 Giorni in Italia, e as festas da Uva e do Vinho – a primeira, realizada em outubro, para dar visibilidade aos restaurantes, a segunda em fevereiro, em comemoração da colheita da uva, e a terceira em julho para celebrar a safra anual do vinho. Nelas, os italianos de Santa Felicidade reafirmam sua identidade, em detrimento dos outros italianos e dos curitibanos. Maranhão detém sua análise nas duas últimas. A organização dessas festas é de responsabilidade quase total dos descendentes de italianos, onde eles reforçam a sua identidade étnica, baseada nos valores de família, trabalho e religião. A abertura da festa é o momento onde se dá o encontro cultural entre os donos do evento – os italianos de Santa Felicidade – e os curitibanos – para quem ele é destinado. O consumo da polenta na festa é o que a autora chama de agregação, momento no qual todos comem juntos, italianos e visitantes. Ainda é relevante comentarmos que, de acordo com Maranhão, uma vez que a Festa da Uva teve início em moldes diferentes do que se estabeleceu depois, e que somente à medida que crescia e recebia mais pessoas ela se italianizou, não há continuidade histórica dela com práticas trazidas da Itália, mas se configura numa tradição inventada.

O quinto capítulo é Um bairro “italiano” na Curitiba dos 300 anos, onde a autora explora a relação entre Santa Felicidade e Curitiba, e o papel das políticas públicas na (re)construção da etinicidade do bairro. Para ela, a relação entre Santa Felicidade e Curitiba foi bastante clara em dois momentos distintos: o centenário de fundação da colônia, em 1978, e os trezentos anos da Capital, entre 1990 e 1993. Essa (re)construção de identidade intensificada desde os anos 1970 deve ser pensada em um contexto mais amplo, o de desaparecimento da identidade italiana, como no exemplo da repressão contra italianos, alemães e japoneses realizada pela política de nacionalização do Estado Novo, de Getúlio Vargas, nos anos 1930. Com essa repressão, grande parte das atividades culturais existentes em Santa Felicidade antes da guerra desapareceu. O renascimento cultural do bairro viria apenas no final dos anos 1970. Essa divulgação de imagem italiana se deu, para a autora, em dois momentos: em 1978, no ano do centenário, o bairro já era um atrativo turístico e gastronômico, quando recebeu investimento na divulgação de sua imagem italiana pela Prefeitura de Curitiba, além do investimento em transformações que pretendiam deixar o bairro com cara de cidade italiana. Outro momento de investimento deste tipo foi nos anos 1990, com o aniversário dos 300 anos de Curitiba. Desta data, dentre outas construções, se destaca o portal italiano. Ela ressalta que estes últimos investimentos estavam de acordo com um plano de estabelecer Curitiba como cidade de primeiro mundo, cosmopolita e multiétnica.

Em sua Conclusão, ela comenta que o bairro de Santa Felicidade constrói sua imagem de duas maneiras: na perspectiva externa, olhando as pessoas de fora do bairro como os outros, curitibanos e turistas, e a perspectiva interna, se reconhecendo como italianos, sendo a imagem externa unificadora, conferindo à Santa Felicidade o status de bairro italiano de Curitiba, com destaque para o apelo gastronômico. Já para os moradores italianos, o bairro ainda é uma colônia vêneta, e eles formam, segundo Maranhão, um grupo étnico em torno de um território comum, de fronteiras simbólicas, “de temporalidade e especificidades culturais singulares: ancestralidade comum, intensa sociabilidade, laços de vizinhança, uma complexa rede de parentesco e uma ativa participação nos rituais realizados no interior do grupo” (MARANHÃO, 2014, p. 212). Por fim, a autora reafirma o fato de como a comida italiana e a politização do grupo étnico nas celebrações dos 300 anos de Curitiba têm um papel fundamental na (re)construção dessa imagem italiana, da cidade que se quer afirmar como cosmopolita.

Há alguns pontos que podemos destacar acerca da obra de Maranhão. O fato de a autora lançar um olhar antropológico sobre os moradores nos parece bastante relevante, pois, ela traz novas ferramentas para a pesquisa, como as entrevistas com moradores e turistas que, embora já tenham sido incorporadas pela historiografia como história oral, são consideradas características também da Antropologia. Ainda na questão das fontes, é interessante percebermos que a utilização da arquitetura e da geografia do bairro enriquece o seu trabalho.

Outro ponto relevante para analisarmos é a estruturação da obra. Maranhão explica desde o princípio o propósito de sua pesquisa, e constrói uma base sólida para essa análise ao longo do texto, tratando de como o bairro se constitui antes de fazer a sua análise crítica. Desta forma, o livro se torna uma leitura bastante clara e objetiva, que pode ser considerada como uma boa referência para quem pretende estudar o contexto da imigração italiana no Brasil.

Podemos comentar, por fim, a importância dos conceitos nos quais Maranhão se embasa para sua pesquisa. Citando Barth e Hobsbawm, ela deixa claro que sua análise se pauta em conceitos já bastante estabelecidos na Antropologia e na Historiografia. Trabalhando com as duas áreas de conhecimento, ela faz uma análise antropológica que acaba bastante enriquecida pela utilização conjunta de outras ciências, como a História.

Bruno Ercole –  Graduando em História Licenciatura e Bacharelado pela UFPR.


MARANHÃO, Maria Fernanda Campelo. Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: um estudo sobre restaurantes, rituais, e (re)construção da identidade étnica. Curitiba: SAMP, 2014. Resenha de: ERCOLE, Bruno. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.2, p.145-153, 2016. Acessar publicação original [DR]

Italianos em Mato Grosso: fronteiras de imigração no caminho das águas do Prata (1856 a 1914) – GOMES (RTF)

GOMES, Cristiane Thaís do Amaral Cerzósimo. Italianos em Mato Grosso: fronteiras de imigração no caminho das águas do Prata (1856 a 1914). Cuiabá: Entrelinhas; EdUFMT, 2011. Resenha de: SILVA, Giuslane Francisca da. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.

Em Italianos em Mato Grosso: Fronteiras de imigração no caminho das águas do Prata: 1856-1914, obra resultante de sua tese de doutoramento em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, Cristiane Thais do Amaral Cerzosimo Gomes se propõe a abordar as trajetórias de vidas, práticas e fazeres cotidianos de imigrantes italianos em Mato Grosso, enfatizando como estes, oriundos de diferentes partes da Itália, tiveram suas práticas culturais, incorporadas aos “sistemas de valores, ideias e formas institucionais do viver e fazer mato-grossense” (p.53). Tendo em vista a presença de imigrantes italianos em diferentes regiões da província, um dos eixos que move o trabalho da historiadora é destacar a importância desses imigrantes italianos e o que eles representaram para sociedade mato-grossense daquele período.

O recorte temporal da obra figura-se entre 1856 a 1914, O ano de 1856 liga-se ao Tratado de Aliança, Comércio, Navegação e Extradição, estabelecido entre Brasil e Paraguai, que possibilitou a abertura da navegação fluvial pelo rio Paraguai, facilitando a mobilidade de estrangeiros em terras mato-grossenses, assim como favoreceu a economia de importação e exportação entre Mato Grosso e os países do Prata (Paraguai, Argentina e Uruguai). 1914 refere-se ao momento em que a partir da construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que ligava a região sul de Mato Grosso (Corumbá) ao litoral de São Paulo (Bauru) fez com que houvesse uma diminuição da entrada de imigrantes italianos no estado, mediante a navegação fluvial, pela conhecida rota do Prata, haja vista que as ferrovias se apresentavam como um recurso de transporte mais viável.

A obra é composta de quatro capítulos, considerações iniciais e finais. No que diz respeito as considerações iniciais, Gomes, enfatiza que os italianos ao dei-xarem suas terras de origem, entre o final do século XIX e princípio do XX, a maioria destes, antes de estabelecer-se em Mato Grosso, dirigiam-se aos países platinos, para posteriormente se lançarem à navegação pelos rios do Prata, Paraná, Paraguai e Cuiabá, até alcançarem as terras mato-grossense. Esse percurso fluvial, que nesse momento representava a principal via de comunicação entre Mato Grosso e os paí-ses do Prata, ficou conhecido como “rota do Prata” ou “caminho das águas”, (p. 22).

Através de um minucioso levantamento documental que a autora se apoia, tais como “memorialistas, depoimentos, jornais, relatos de viajantes, registros e relatórios oficiais” (p.36), a possibilitou identificar o fluxo de imigrantes italianos em terras mato-grossenses, que se constituíram enquanto espaços, nos quais esses sujeitos se estabeleciam, casavam-se, alguns inclusive tornavam-se famosos e bem sucedidos comerciantes, e em muitos casos jamais retornavam às suas terras de origem.

Uma característica marcante do processo de imigração a Mato Grosso, no período abordado, se constitui na predominância de imigrantes solteiros, oriundos da Itália Meridional, especialmente das regiões da Calábria, Campânia e Basilicata. Com base nos Autos de Habilitação Matrimonial e de Justificação do Estado de Solteiro, uma documentação que visava comprovar o estado civil dos imigrantes que almejavam contrair matrimônio, foi possível traçar vários casos de italianos que se casaram com mulheres mato-grossenses, passando a constituir famílias, dedicando-se principalmente às atividades comerciais. Tal documentação evidencia ainda as particularidades do processo imigratório em Mato Grosso no final do século XIX e início do XX, sendo “possível surpreender origens, trajetórias e destinos desses imigrantes, bem como de suas práticas matrimoniais (…) numa perspectiva de apropri-ação e reapropriação de espaços, constituídos por relações sociais e culturais de italianos (…)” (p.43).

No primeiro capítulo, Imigrantes italianos na fronteira de Mato Grosso, a auto-ra aborda o fluxo de imigrantes italianos, sobretudo de jovens solteiros para terras mato-grossenses, impulsionados pela abertura da navegação pelo rio Paraguai e pelas oportunidades de investimentos em terras mato-grossenses. São analisadas ainda as tentativas do governo em criar projetos de imigração e colonização na fronteira da província. O governo procurou criar mecanismos de aproximação e proteção aos povos indígenas que habitavam esta região fronteiriça, com o intuito de atrair nativos e deslocá-los para outros lugares, pois as terras indígenas eram vistas como pontos estratégicos para a colonização. No entanto, o projeto de colonização não obteve êxito, sendo empregados novos mecanismos de colonização, tendo como saída a criação de incentivos tais como a doação de faixas de terras a nacionais e estrangeiros, com o intuito de atrair imigrantes europeus, pois acreditava-se que com seus “braços civilizadores” viriam preencher os espaços “vazios” de Mato Grosso.

Através da abertura da navegação pelo rio Paraguai na segunda metade do século XIX, mais precisamente em 1856, ocorreu uma espécie de encurtamento das distâncias que separavam as cidades de Cuiabá, Corumbá, Assunção e Buenos Ayres, haja vista que os contatos entre estas cidades passaram a ser mais constantes. O aumento de embarcações que percorriam esse trajeto, que levavam e traziam passageiros, grande parte deles imigrantes que viriam a se estabelecer em Mato Grosso, “propiciou a aproximação entre grupos e povos, com diferentes costumes, idiomas e modos de vida” (p.74).

No segundo capítulo intitulado Italianos e portugueses entre a guerra do Para-guai e o Caminho das águas, Gomes apresenta as estratégias políticas do governo de Mato Grosso em criar meios de comunicação com os Países do Prata, mediante a livre navegação pelo rio Paraguai. Pois segundo a autora, apesar da localização geográfica de Mato Grosso ser privilegiada, a província desde o período colonial até metade do século XIX, enfrentava problemas de comunicação com as demais regiões, devido ao longo e oneroso percurso terrestre que ligava Mato Grosso a outras cidades. Objetivava-se com a abertura da navegação, assegurar o abastecimento de mercadorias, que devido ao longo percurso terrestre em tropas de mula, acarretava no encarecimento destas mercadorias, assim como visava o escoamento mais acelerado de matérias- primas produzidas na região.

Em 1856, após longas conversações e missões diplomáticas juntamente com o governo paraguaio, foi assinado o tratado que propiciou a abertura da navegação pelo rio Paraguai, abrindo para Mato Grosso “uma nova fase de prosperidade econômica, social e cultural” (p.104), visto que a comunicação entre a província e as cidades litorâneas passou a ser feita pelo “caminho das águas”, o que proporcionou a Mato Grosso uma euforia econômica, devido a possibilidade de escoamento de matérias-primas com maior rapidez, assim como a importação tanto de pro-dutos nacionais como estrangeiros. Assim, correntes de imigrantes europeus especialmente de italianos, que aportavam em terras mato-grossenses, tornaram-se cada vez mais frequentes. Esse súbito desenvolvimento econômico que Mato Grosso experimentava foi abalado pela Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870), quando a província de Mato Grosso novamente foi posta em uma situação se semi-isolamento, pois a navegação via rio Paraguai foi interrompida durante o conflito.

Gomes aborda os impactos da Guerra do Paraguai sobre a população ma-to-grossense, destacando como este conflito foi vivenciado por imigrantes italianos que residiam na cidade de Corumbá. Nessa perspectiva, a autora apoia-se no Memorandum do comerciante português Manoel Cavassa, que juntamente com sua famí-lia, presenciou a tomada de Corumbá pelos paraguaios, em janeiro de 1965, para apresentar os conflitos e dilemas vividos pelos imigrantes durante a invasão.

Concernente ao terceiro capítulo- Italianos em tempos de livre navegação- discute-se que a partir da reabertura da navegação pelo rio Paraguai ao final da Guerra da Tríplice Aliança, em 1870, Mato Grosso voltou a conectar-se com os países do Prata, novamente os “caminhos das águas” vieram orientar a dinâmica comercial de Mato Grosso, assim como permitia a entrada de uma grande leva de imigrantes. Gomes apresenta as trajetórias e experiências vividas por imigrantes italianos em Mato Grosso, assim como destaca o desenvolvimento de importantes casas comer-ciais de propriedade de imigrantes, que comercializavam uma grande variação de mercadorias, que iam desde a importação de artigos de luxo, vindos de Paris, Londres, tais como tecidos, chapéus, perfumarias, e etc. Assim como atividades de ex-portação de matérias-primas. Além de atuarem como representantes bancários.

Gomes enfatiza o papel da cidade portuária de Corumbá, que passou por um súbito crescimento demográfico e urbano nesse período, o que se justifica devi-do ao fato de os imigrantes que aportavam na província primeiramente, desembarcavam em Corumbá, para posteriormente decidirem seus destinos, além do mais a estratégica localização geográfica fez com que a mesma se tornasse um importante entreposto comercial de Mato Grosso, movimentando a economia provinciana.

No entanto, Gomes nos adverte que não se pode pensar o porto de Co-rumbá somente a partir da dinâmica comercial, pois este, muito mais de ponto de embarque e desembarque de mercadorias e passageiros, se configurava como um “espaço de vivências e experiências de indivíduos de diversas nacionalidades e pro-cedências, tornando-se um local de passagem, onde ocorriam encontros, desencontros e entrosamentos de nacionais e estrangeiros” (p.141) até então jamais visto em Mato Grosso.

No quarto e último capítulo- Da Itália ao sertão mato-grossense: “vendendo, construindo e consertando de tudo um pouco”– através da utilização de depoimentos orais de descendentes italianos em Mato Grosso, a autora busca desvendar as experiências de seus antepassados. Gomes chama a atenção para o papel do imigrante, que através de suas experiências, valores e concepções, passaram a reconfigurar a cultura urbana de Mato Grosso, especialmente da capital Cuiabá, a partir de suas maneiras diversificadas de seu modo de fazer, viver e trocar experiências.

Através de um minucioso levantamento documental, tais como periódicos, relatos orais, assim como os “Autos de Justificação do Estado de Solteiro”, foi possível, mapear e reconstruir particularidades do processo de imigração em Mato Grosso, percebendo as relações de parentesco estabelecidas, bem como analisando as atuações destes imigrantes em diferentes espaços de sociabilidades. Cerzósimo Gomes aponta que a vinda de imigrantes solteiros para Mato Grosso, resultou em uniões matrimoniais entre italianos e mulheres residentes em diferentes regiões ma-to-grossenses, tais práticas, evidenciam uma forma peculiar de integração social desses imigrantes na sociedade do período.

Giuslane Francisca da Silva – Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-graduação em História Av. Fernando Corrêa da Costa, nº 2367 – Bairro Boa Esperança – Cuiabá – MT – 78060-900 E-mail: [email protected].

Anarquismo, Estado e pastoral do imigrante. Das disputas ideológicas pelo imigrante aos limites da ordem: o caso Idalina – SOUZA (RBH)

SOUZA, Wlaumir Donizeti de. Anarquismo, Estado e pastoral do imigrante. Das disputas ideológicas pelo imigrante aos limites da ordem: o caso Idalina. Sn. Editora da Unesp, 2000. 243p. Resenha de: ALMEIDA, Vasni de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

Um bom estudo em ciências humanas, um estudo histórico em particular, ganha relevância ao primar por dois aspectos: a preocupação com as mudanças que marcam uma sociedade numa determinada trajetória histórica e a atenção redobrada com as alterações verificadas nas instituições inseridas e ativas nesse processo de transformação1. Um tratamento cuidadoso para com as redes de interdependências entre diferentes grupos no estabelecimento de uma nova ordem social e cultural e para com os rearranjos internos que acompanham cada um dos grupos envolvidos aponta para a eficácia de um estudo acadêmico transformado em publicação. Esse é o caso do livro de Wlaumir Donizeti de Souza, voltado para a imigração italiana para o Brasil, ocorrida entre a segunda metade do século XIX e os primeiros decênios do século XX. Transição da monarquia para o sistema republicano de governo, a imigração como fator de mudança cultural e social e os elementos sociais em conflito (Estado, catolicismo e anarquismo) formam o esteio da obra.

Procurando se desvincular das armadilhas que tendem a estreitar “o leito do rio”, o autor verificou e destacou a intrincada teia de interesses desse significativo período de mudanças políticas e culturais pelo qual passou o País. Seu olhar esteve atento para as ações da Igreja Católica em relação às forças sociais externas a ela e em relação aos “catolicismos” coexistentes na sua esfera interna. Da mesma forma, sua atenção se voltou para os movimentos anarquistas em suas relações com o poder social do catolicismo, notadamente no que tange ao trato com o imigrante. Completando as forças que se locomoviam ao redor do trabalhador imigrante, estava o agricultor contratador de mão-de-obra. Esses são os elementos básicos que compõem a trama tecida pelo autor.

Para Donizeti de Souza, a população imigrante italiana, contratada para trabalhar no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, foi instrumentalizada pelo catolicismo ultramontano, com a Igreja Católica buscando influenciar a política imigratória num período em que se aproximava o rompimento formal e tardio entre essa religião e o Estado brasileiro. Na tentativa de estabelecer os critérios para a arregimentação de trabalhadores, o catolicismo romanizado estimulou a elaboração de pastorais voltadas para o enquadramento do imigrante, tendo em vista o seu projeto religioso e político. Aos scalabrinianos, instituição missionária fundada em 1887, por dom Giovanni Baptista Scalabrini, religioso com larga experiência no trato com os postulantes `a imigração nas suas cidades de origem, coube essa tarefa. Para sustentar sua análise, o autor se apega ao conceito de imigrante ideal, ou seja, um trabalhador lapidado para atender a interesses econômicos políticos dos grupos que pensavam no sentido de nação, que então se desenhava lentamente, tanto na visão de fazendeiros quanto na de políticos de linhagem conservadora. O imigrante ideal seria aquele comprometido com os laços culturais e religiosos propostos na perspectiva romana de sociedade e indivíduo, imagem idealizada também pela oligarquia que o contratava. Para os fazendeiros, o estrangeiro contratado deveria ser “dócil, ordeiro, familiar e trabalhador”, uma mão-de-obra com as marcas da “resignação”. Na visão do poder religioso ultramontano, caberia ao catolicismo a moldagem do imigrante que satisfizesse os requisitos dos contratantes. O autor aponta com acuidade a conexidade entre o ideal de trabalhador desenvolvido pelo catolicismo romano e o tipo de trabalhador procurado pelo coronel para ser empregado na lavoura. Os dois ansiavam por trabalhadores obedientes. Quais as pretensões de um catolicismo que se via ameaçado por intrincada e complexa rede de inimigos, dentre os quais podemos encontrar os anarquistas, os maçons, os políticos liberais e os protestantes? Donizeti de Souza responde sem mais delongas: ser fonte inspiradora da cidadania brasileira e fonte única de unidade nacional. Enquanto o chefe local buscava aumentar o lucro (com a devida ordem) na unidade agrícola, o catolicismo buscava forjar, sob seus auspícios, a unidade cultural e religiosa do País. O que um fazendeiro esperava de um padre era que este ressaltasse “as obrigações morais do empregado para com o patrão, seu dever de obediência, de humildade, de docilidade e resignação, aceitando sua situação como desígnio divino, uma vez que a ordem social era por ele estabelecida”.

Da sua parte, o ultramontanismo pretendia, além das prerrogativas políticas e econômicas, enquadrar religiosamente o colono do interior do País, pouco afinado com as doutrinas da Igreja, procurando “instar um tempo sem magia”. Sendo assim, os scalabrinianos foram os designados para acompanhar o homem católico, desde a partida até sua instalação definitiva na sociedade hospedeira, isso dada a experiência acumulada por esses religiosos na missão junto ao imigrante. Na visão dos scalabrinianos, a religião seria um fator de patriotismo e de princípios civilizadores para os imigrantes em terras brasileiras. No entanto, como acontece em todos os processos de incursões missionárias, o agente não fica incólume na sociedade envolvente, não tardando muito para que esses religiosos percebecessem os fatores complicadores de sua missão. Havia inúmeras dificuldades em implantar o projeto de pastoral de imigrante: falta de padres, custo das viagens de religiosos, descontinuidade na formação de trabalhadores contratados. Padres ávidos por lucros, ostentadores, boêmios, apresentavam-se também como percalços na organização de uma pastoral alicerçada no ultramontanismo.

Os scalabrinianos, assim, tencionavam atuar junto ao imigrante italiano com maior independência possível do clero local, dada a influência que esse exercia junto às populações interioranas e por serem poucos afeitos às exigências de um catolicismo disciplinador. A religiosidade praticada em regiões distantes dos grandes centros, com a complacência dos padres, poderia colocar em risco o projeto educacional que pretendiam implantar. As divergências entre os scalabrinianos e padres das paróquias logo emergiram e são reveladoras dos embates internos no seio de um catolicismo que atuava numa sociedade que passava por profundas transformações, tanto na esfera política quanto na cultural. Em determinado momento da missão dos scalabrinianos no Brasil, mais precisamente no período em que o padre Cansoni esteve no País, a ordem foi aconselhada a assumir paróquias, onde o sustento seria mais viável. Isso porque a inquietude entre o clero nacional e o ultramontano estava se tornando visível, com os primeiros cada vez mais resistentes à presença da ordem em sua área de atuação, já que esta tinha a liberdade de acompanhar os imigrantes em qualquer paróquia, mesmo sem estar comprometida com ela.

Uma proposta de Domenico Vicentine, substituto de Scalabrini na condução da ordem, restringia a missão dos carlistas à formação de quadros para o serviço junto aos imigrantes, cabendo aos bispos das dioceses a administração da política pastoral ao imigrante. Na verdade, o clero nacional pretendia enquadrar os scalabrinianos nas estruturas das paróquias, impedindo assim que a missão junto aos imigrantes invadisse a jurisdição das dioceses, o que contrariava a intenção da ordem, que era a de agir sem necessariamente estar vinculado às estruturas eclesiais vigentes. Percebendo as dificuldades em atuar na jurisdição das paróquias, os scalabrinianos fundaram um orfanato cujo objetivo seria o de amparar crianças órfãs que vagavam pelas ruas (esquálidas, tristes, fracas e miseráveis), preparando-as para o trabalho e para serem “bons cidadãos” e “cidadãs”. Utilizando como recurso de convencimento o fato de o orfanato ser um espaço de formação de crianças desvalidas, moldando-as para o trabalho, os scalabrinianos obtiveram dos fazendeiros o apoio necessário para a implantação do projeto, conseqüentemente, da estruturação da ordem no País. Lembra o autor que os orfanatos constituíam-se através de uma mentalidade tridentina, fato que mais uma vez denota a tentativa de romanização do imigrante por meio da ação educacional.Ao saírem em missão para angariar fundos para o orfanato, os padres scalabrinianos batizavam, ouviam confissões, faziam casamentos, enfim, atrelavam a proposta educacional à estruturação da ordem, funcionando o orfanato como um ponto estabilizador das missões.

O autor destaca que os scalabrinianos foram acossados, no final do processo imigratório, em três frentes: na primeira, pela oligarquia, já que o imigrante não mais se apresentava como um investimento seguro; na segunda, pelos párocos locais, temerosos de perder a arrecadação junto aos poucos imigrantes que ainda entravam no país; na terceira, sofria a concorrência dos anarquistas e dos maçons. Nessas frentes de combate, a que mais merecia atenção por parte do clero romano era a política desencadeada pelos anarquistas juntos aos imigrantes.

A celeuma entre a ordem scalabriniana e grupos anarquistas, na atuação junto aos imigrantes, mereceu por parte do autor um capítulo à parte. De posse de um documento desses religiosos sobre o desaparecimento de uma das internas do orfanato, Donizeti de Souza rastreou em publicações anarquistas o mesmo assunto. Nas leituras dos periódicos, percebeu com perspicácia a disputa que se travava entre o movimento político anarquista e o movimento religioso católico ultramontano pelo controle do imigrante. Tencionando alcançar o monopólio do acompanhamento ao imigrante em diversas regiões do País, as duas partes procuravam atingir a imagem do outro perante a opinião pública e perante o Estado. Não foi intenção do autor apontar o desenlace da trama envolvendo a menina Idalina, personagem central da discórdia, o que certamente o faria enveredar para um texto novelesco, tão em moda na historiografia atual. Antes, sua atenção esteve voltada para a distinção dos elementos em conflito, fazendo de sua obra uma possibilidade de compreensão dos interesses de instituições nas formulações ideológicas de um período que ainda carece de novos estudos.

Resta apontar os complicadores das considerações de Donizeti de Souza, que são de duas ordens: a primeira diz respeito à afirmação de que a intenção dos scalabrinianos era a de constituir, nas pequenas cidades em ascensão, dada a presença do imigrante italiano, “pequenas itálias”; o segundo complicador desse texto bem articulado reside na afirmação do autor de que no projeto dos religiosos estava embutido um projeto “neocolonial”. Não estariam essas responsabilidades aquém das forças de uma ordem religiosa que não se configurava entre as mais influentes dentre o escopo missionário católico, tanto no Império quanto na Primeira República?

Para além desse pequeno deslize (se é possível considerar como tal uma afirmação que não compromete o texto), essa obra é um alerta para quem reduz aos liberais, à maçonaria e ao protestantismo a capacitação de indivíduos voltados para uma sociedade ordeira e laboriosa, quesitos básicos para a consolidação da República. Em se tratando de moralização de condutas, as intenções de protestantes, católicos e maçons não eram tão díspares quanto podem parecer numa análise estreita. Os ultramontanos buscavam com disposição instilar o rigor disciplinar entre os trabalhadores imigrantes tendo em vista a composição de uma nova ordem social, um tanto quanto ameaçada pelos ideais políticos anarquistas, dos quais os italianos não estavam distantes.

Notas

1 Temos em mente, quando sinalizamos para a rede de interdependências em processos de mudanças (ou de desenvolvimento), as concepções teóricas de Norbert Elias sobre transformações sociais no processo civilizador. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, vol. 1.

Vasni de Almeida – Doutorando em História-UNESP/Assis.

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