Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa – MAGALHÃES et. al. (A-RL)

MAGALHÃES, I.; MARTINS, A. R.; RESENDE, V. de M.. Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Ed. da UnB, 2017. 259p. Resenha de: OTTONI, Maria Aparecida. Análise de discurso crítica e Etnografia. Alfa – Revista de Linguística, São José Rio Preto, v.12 n.2 São Paulo May/Aug. 2018.

Há quase vinte anos, Izabel Magalhães vem defendendo uma proposta de pesquisa etnográfico-discursiva, segundo a qual a Análise de Discurso Crítica e a etnografia, em uma relação de complementaridade, são articuladas para a análise das práticas sociais. Contudo, ainda não havia sido publicada no Brasil uma obra centrada nesse tipo de pesquisa e o livro Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa vem oportunamente preencher essa lacuna, o que o torna singular e de suma relevância.

Nesse sentido, a obra tem um enfoque que a distingue de todas as outras relacionadas à Análise de Discurso Crítica (ADC) publicadas no Brasil: a ADC como um método de pesquisa qualitativa e sua relação transdisciplinar com a etnografia. Ela traz uma contribuição ímpar, especialmente a estudantes e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento interessados na análise das práticas sociais de que os textos são parte, o que demanda uma pesquisa de campo.

Considerando que toda prática social é constituída de elementos: atividade produtiva; meios de produção; relações sociais; identidades sociais; valores culturais; consciência; e semiose (FAIRCLOUGH, 2012), para compreender o seu funcionamento e as relações do discurso/semiose com os outros elementos da prática social, é necessária uma abordagem que vá além da análise textual do discurso e que não se paute apenas no aspecto discursivo das práticas. É preciso, como defendem Magalhães, Martins e Resende, realizar pesquisa etnográfica para o estudo do discurso como um dos elementos das práticas, ou seja, adotar uma abordagem etnográfico-discursiva. Isso implica não perder de vista o papel do discurso na compreensão dos momentos da prática nem a relação dialética entre eles.

Tendo em vista esse enfoque, o livro é constituído de nove capítulos, organizados em três partes, cada uma composta de três capítulos: Um método de pesquisa qualitativa para a crítica social (parte 1); Análise de Discurso Crítica e etnografia (parte 2); Um método de análise textual (parte 3), além da introdução e da conclusão.

Na introdução, os autores expõem o objetivo principal da obra e descrevem como ela está organizada. No primeiro capítulo, Pesquisa qualitativa, crítica social e Análise de Discurso Crítica, fazem uma apresentação geral da ADC, situando-a na tradição da pesquisa qualitativa e a relacionando à crítica social. Eles destacam a existência de diferentes abordagens em ADC, as concepções de discurso e de texto e a importância do conceito de texto para o estudo dos processos sociais contemporâneos, uma vez que os textos são artefatos para esse estudo e “causam efeitos – isto é, eles causam mudanças” (FAIRCLOUGH, 2003, p.8).

No segundo capítulo, ADC – teoria e método na luta social, Magalhães, Martins e Resende enfatizam o papel da ADC na luta social. Primeiramente, retomam algumas considerações gerais sobre essa teoria e método, dando especial atenção para os conceitos de discurso, interdiscursividade, intertextualidade, poder e ideologia e para o lugar do discurso na modernidade posterior e na mudança social. Na sequência, elencam alguns procedimentos metodológicos que consideram básicos na seleção do foco de investigação em ADC e no processo de análise, reforçando, com isso, a relação da ADC com a pesquisa etnográfica. A apresentação desses passos a serem seguidos no desenvolvimento de uma pesquisa etnográfico-discursiva constitui uma contribuição importante do capítulo, pela orientação clara e útil que fornece a estudantes e pesquisadores, iniciantes ou não nos estudos do discurso.

Em Textos e seus efeitos sociais como foco para a crítica social, último capítulo da primeira parte, os autores concentram o olhar em um aspecto já mencionado em capítulo anterior – os efeitos sociais dos textos. Eles descortinam como esses efeitos podem ser usados em pesquisas voltadas para a crítica social, a partir da análise de reportagens publicadas em jornal sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes em Brasília e de entrevista com uma das educadoras do projeto GirAÇÃO, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do Distrito Federal, o qual foi afetado de forma direta pelas reportagens. No capítulo, o exame da intertextualidade e da polifonia em uma das reportagens constitui uma referência a outros pesquisadores sobre como organizar e tecer uma análise com base nessas duas categorias. A abordagem da entrevista revela os efeitos das reportagens na atuação do projeto mencionado e como a análise textual sozinha não consegue elucidar o “envolvimento de textos na construção de significado e o efeito causal de textos” (p.91). Sem dúvida, é uma mostra da produtividade de uma pesquisa etnográfico-discursiva.

A segunda parte do livro, denominada Análise de Discurso Crítica e etnografia, é constituída dos capítulos quatro, cinco e seis. Dois deles – o quarto e o sexto – são muito próximos tanto em relação ao título quanto ao objetivo. No capítulo quatro, Análise de Discurso Crítica e Etnografia – uma relação complementar, e, no capítulo 6, Etnografia e Análise de Discurso Crítica, os autores advogam a complementaridade entre etnografia e ADC. Julgando por esse propósito comum dos dois capítulos e pela semelhança dos títulos, a reunião deles em um só poderia representar uma escolha produtiva e resultar em uma abordagem mais ampla e aprofundada da relação complementar a favor da qual argumentam os autores.

No capítulo 4, Magalhães, Martins e Resende tratam sobre os tipos de notas de campo, apresentam exemplos de notas conceituais, recomendam a complementaridade entre ADC e etnografia como uma forma de validação da pesquisa e dedicam uma seção à exposição sobre a metodologia etnográfico-discursiva. Tendo em conta o fato de que é uma obra escrita por três pesquisadores, é necessário eliminar as marcas de autoria individual de capítulos, como a primeira pessoa do singular, na página 120 deste capítulo, em que se tem “Existe uma série de fatos que, a meu ver, são verdadeiros”.

No capítulo 6, ressaltam a importância da coerência entre ontologia e epistemologia e evidenciam “[…] que há inconsistência entre a perspectiva ontológica da ADC e sua tradição de análise documental.” (p.155), uma vez que essa tradição não permite a construção de conhecimentos sobre todos os componentes ontológicos do mundo social inter-relacionados, conforme a concepção adotada pela ADC faircloughiana. Nessa direção, o paradigma etnográfico articulado ao método para análise textual da ADC é indicado como um caminho adequado. Entretanto, os autores alertam para o fato de que apenas as abordagens etnográficas “que preveem um engajamento com o contexto de pesquisa e com os participantes” (p.156) são coerentes com a ADC. Tal alerta é fundamental, especialmente para os principiantes nesse tipo de pesquisa. Ainda no capítulo seis, Magalhães, Martins e Resende explicam como se pode construir um planejamento de pesquisa articulando ADC e etnografia, o que inclui uma relação entre reflexões e decisões de caráter ontológico, epistemológico e metodológico. Explanam que essas decisões “[…] dão-se num eixo de sucessividade, isto é, as decisões ontológicas são prévias às epistemológicas […], que são prévias às metodológicas.” (p.161) e que pode haver inúmeras possibilidades de paradigmas epistemológicos para uma versão ontológica, o que significa que não há um só caminho a ser seguido. Posteriormente, os autores discutem sobre a geração e coleta de dados etnográficos e sobre os métodos usados para esse fim. Também no capítulo seis são oferecidas várias indicações de leitura sobre todos os aspectos nele contemplados, o que pode auxiliar os leitores no aprofundamento dos conhecimentos sobre a pesquisa etnográfico-discursiva. É um capítulo com valor inestimável na obra, pelo seu conteúdo, organização e pertinência.

O capítulo cinco, Mudança social – prática e discurso, que igualmente integra a parte dois, parece destoar do foco desta parte, o que é perceptível por meio da comparação dos títulos das seções que o compõem com os das que constituem os outros dois capítulos da segunda parte – o quatro e o seis –, uma vez que não há referência alguma à etnografia. Observa-se que o capítulo cinco tem proximidade com o segundo do livro, pois nele os autores voltam a tratar da modernidade tardia ou posterior (os autores usam um termo no capítulo dois e outro no capítulo cinco) e da mudança social e, assim como no segundo capítulo, tecem considerações sobre os conceitos de prática social e de prática discursiva, estabelecendo uma distinção entre eles. A discussão sobre os dois conceitos é de grande interesse a todos os analistas do discurso e é tecida de modo a tornar mais claras as relações entre eles e a produtividade do trabalho com ambos em ADC. Entretanto, considerando-se o foco da primeira e da segunda parte do livro e o dos capítulos dois e cinco, o enquadramento destes não se mostrou o mais adequado. Uma inversão na ordem dos dois poderia contribuir para maior harmonia e fluidez do texto.

Quanto à terceira parte do livro, seu título – Um método de análise textual – anuncia que seu foco não é o diálogo da ADC com a etnografia, mas, sim, a ADC como um método de análise textual. Seguindo esse foco, nos capítulos que constituem tal parte são apresentadas análises de reportagens, de um relatório sucinto de uma reunião e de uma notícia. Ela é iniciada pelo capítulo 7, ADC e minorias – representação e peso político na esfera pública. Ao discorrerem sobre a ADC e minorias, os autores jogam luz a um caminho de diálogo e de possibilidades e apontam cinco frentes de lutas: “[…] o conhecimento e acompanhamento da situação social; a descoberta e preservação da identidade social; a luta por direitos e por mais democracia; a luta por espaço na esfera pública; e o empenho pela representação positiva na mídia.” (p.178). Além de explicarem cada uma, eles demonstram como a ADC pode ser útil na efetivação dessas frentes e analisam quatro reportagens publicadas em jornal, que tratam da situação das comunidades quilombolas na área rural de Alcântara no Maranhão. A análise contempla as dimensões do texto, da prática discursiva e da prática social.

No capítulo oito, Análise de Discurso Crítica: conceitos-chave para uma crítica explanatória com base no discurso, os autores relevam a interdisciplinaridade como uma das características comuns a todas as abordagens vinculadas à ADC. Como uma teoria preocupada com o funcionamento social da linguagem, a ADC não pode desconsiderar teorias do funcionamento da sociedade, o que significa um estabelecimento necessário de articulação entre a ADC e estas teorias. Magalhães, Martins e Resende também sublinham, como um dos aspectos centrais da ADC, a abordagem da relação de constituição mútua entre linguagem e sociedade e focalizam os conceitos de discurso, gênero e texto. Eles acreditam que a distinção entre esses conceitos tem sido uma das principais dificuldades dos estudantes na compreensão do modelo teórico-metodológico da ADC e que a confusão entre eles tem implicações teóricas que comprometem o trabalho empírico. Para ilustrar as distinções entre os termos, os autores apresentam um texto, Relatório sucinto da reunião, e o analisam de modo a esclarecer a concepção de discurso, de gênero e de texto e a auxiliar outros pesquisadores no desenvolvimento de seus estudos e análises.

O capítulo 9, intitulado Identidades e discursos de gênero, encerra a terceira parte do livro. Nele, os autores se propõem “examinar algumas contribuições dos estudos críticos do discurso” (p.213). Cabe destacar que é a primeira vez que Magalhães, Martins e Resende fazem referência a Estudos Críticos do Discurso (ECD) e que o fazem sem qualquer explicação acerca da relação desses estudos com a ADC e de modo que se constrói uma representação de que a ADC e os ECD são sinônimos, pois dão continuidade ao texto tratando da ADC sem voltar a mencionar os ECD, o que é um problema neste capítulo. Partindo da concepção de que as práticas incluem discursos, letramentos e identidades femininas e de que a notícia de jornal é um produto de práticas socioculturais, os autores analisam uma notícia de jornal sobre um crime contra uma mulher com o intuito de investigar a construção textual de identidades de gênero. Para isso, observam as escolhas lexicais, as relações intertextuais, os discursos articulados na notícia, as identidades de gênero construídas e os letramentos. Os autores destacam os resultados da análise, mas reafirmam que ela deve ser complementada pela pesquisa de natureza etnográfica, o que é coerente com o enfoque da obra. Cabe neste capítulo uma correção na figura 9.1 da p.230, em que o termo “interdiscursividade” está indevidamente repetido. A segunda ocorrência do termo deve ser substituída por intertextualidade, em conformidade com a análise desenvolvida no capítulo.

É inegável a contribuição desta terceira parte da obra. Todavia, considerando que há no Brasil várias publicações com exemplos de análises pautadas na ADC como método de análise textual, seria mais profícuo e apropriado ao enfoque da obra se a terceira parte fosse constituída de capítulos que trouxessem exemplos de pesquisas, com detalhamento de resultados, nas quais a relação de complementaridade entre ADC e etnografia tivesse sido estabelecida.

No tocante à conclusão, os autores fazem uma retomada de algumas bases nas quais se sustenta a ADC, mostrando em qual capítulo da obra elas foram contempladas, e chamam a atenção dos leitores para o fato de que a ADC, como teoria e método, está em construção e sujeita a reformulações, o que implica que tem limitações. Além disso, salientam que a relação complementar entre ADC e etnografia é muito benéfica para os dois campos, pois a ADC ganha com ela no que toca à validade e à consistência analítica e a etnografia ganha com a articulação com métodos para análise de textos e de interações desenvolvidos por analistas de discursos. Desse modo, a leitura deste livro é indispensável a estudantes, profissionais e pesquisadores interessados na análise das práticas sociais e não apenas na análise de sua representação no discurso, o que requer a realização de uma pesquisa etnográfico-discursiva. Ele constitui um convite e um incentivo ao desenvolvimento desse tipo de pesquisa.

Referências

FAIRCLOUGH, N. Análise Crítica do Discurso como Método em Pesquisa Social Científica. Tradução de Iran Ferreira de Melo. Linha d’Água, São Paulo, v.25, n.2, p.307-329, 2012. [ Links ]

FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres and New York: Routledge, 2003. 270 p. [ Links ]

Maria Aparecida Resende OTTONI – Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Instituto de Letras e Linguística, Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. [email protected].

Análise de Discurso Crítica – MAGALHÃES (B-RED)

MAGALHÃES, I; MARTINS, A. R.; RESENDE, V. M. Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Editora da UnB, 2017. 260 p. Resenha de: ARGENTA, Júlia Salvador. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.13 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2018.

A obra Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa, de Izabel Magalhães, André Ricardo Martins e Viviane de Melo Resende, lançada em 2017 pela editora da Universidade de Brasília, é uma contribuição aos estudos de Análise de Discurso Crítica/ADC, principalmente quanto aos aspectos metodológicos. Sendo uma área de estudo relativamente nova, com sua consolidação nos anos de 1980, a ADC surge como uma teoria e um método capazes de interpretar qualquer texto, superando a Linguística Crítica/LC (MAGALHÃES, 2005)1. Fairclough é um dos precursores deste campo, tendo publicado diversos trabalhos, tanto analíticos quanto teóricos (por exemplo, FAIRCLOUGH, 20032; 20103). Outros estudiosos importantes para a ADC em esfera mundial são Teun A. Van Dijk, Theo Van Leeuwen e Ruth Wodak, para citarmos alguns.

Izabel Magalhães, em seu livro Eu e tu: a constituição do sujeito no discurso médico, publicado em 20004, desenvolveu o termo etnografia discursiva, uma proposta metodológica que une Análise de Discurso Crítica e pesquisa etnográfica. Desde então, orientou diversos estudantes de pós-graduação a adotarem tal método em suas pesquisas. Porém, até agora, não havia sido publicado nenhum livro que abordasse exclusivamente a etnografia discursiva enquanto método da ADC. Por isso, a obra em questão vem para preencher essa lacuna e para contribuir ainda mais com o debate da ADC. Para que isso fosse possível, os autores dividiram o livro didaticamente em três partes: Um método de pesquisa qualitativa para a crítica socialAnálise de Discurso Crítica e etnografia e Um método de análise textual.

Na primeira parte da obra, os autores justificam suas escolhas pela abordagem etnográfico-discursiva em estudos discursivos críticos através da recapitulação dos principais trabalhos desenvolvidos em ADC. Afirmam que, apesar de serem importantíssimos para a ADC, as análises apresentadas são puramente textuais. Para os autores, uma análise mais consistente e válida precisa da etnografia como ponte de acesso a práticas sociais e discursos, permitindo, consequentemente, maior compreensão da produção, distribuição e consumo de textos. “Textos são objetos que constroem significados para as pessoas, relacionando-se com outros objetos do contexto local e mesmo translocal” (p.35). Assim, a ADC não é apenas um campo teórico, mas sim, um método de pesquisa qualitativa capaz de produzir crítica social.

Outro aspecto presente na obra que se faz cabal destacar é que os autores asseveram a necessidade da transdisciplinaridade em estudos discursivos críticos e de se conhecer discussões teóricas de outras áreas a respeito da modernidade tardia, da globalização, do poder, da ideologia (conceitos basilares da ADC) e de outros componentes teórico-sociais que se fizerem relevantes. Ademais, os autores chamam atenção para a urgência de se debater a relação entre linguagem e sociedade, com especial interesse nos efeitos sociais dos textos nas práticas sociais e discursivas. Portanto, a transdisciplinaridade, bem como o debate da relação linguagem-sociedade vão ensejar a articulação eficaz da análise textual com a análise de caráter social, que facilitará, por sua vez, o processo de reconhecer o papel do discurso e de outras semioses na preservação de interesses.

A segunda parte foi dedicada a explicar a abordagem metodológica da etnografia discursiva. Os autores recuperam a discussão de Chouliaraki e Fairclough (1999)5 sobre modernidade tardia, à luz de trabalhos de Giddens, Harvey e Habermas, para elucidar como se faz necessário que entendamos o papel do discurso nessa “nova” conjuntura social. As práticas discursivas são, então, formas de acessar as práticas sociais, para fim de desvelar ideologias e práticas hegemônicas de abuso de poder. A partir do reconhecimento dessa potencialidade das práticas discursivas, elas podem vir a ser utilizadas a favor da igualdade social e da democracia, para conseguir a tão desejada mudança social. Isso quer dizer que a linguagem se constitui como uma forma simbólica de luta. Resgatamos aqui o trabalho de Resende (2012)6, em que afirma que a ADC é um campo teórico-metodológico com especial interesse em examinar o discurso em situações de desigualdades sociais e que possui caráter posicionado, isto é, os pesquisadores assumem parcialidade.

Assim, os autores apresentam a etnografia articulada à ADC como método eficaz para estabelecer ligação entre textos, práticas discursivas e práticas sociais. Essa ligação proporciona a compreensão da estrutura social hegemônica que, por sua vez, molda e constrange tais textos, práticas sociais e práticas discursivas. Como proposta do livro, os autores, então, ensinam a planejar uma pesquisa articulando ADC e etnografia. Eles novamente reiteram a necessidade da inter e transdisciplinaridade nos estudos da ADC e esclarecem que uma pesquisa consistente, capaz de compreender e analisar os dados coletados e gerados, precisa ter decisões ontológicas e epistemológicas e escolhas metodológicas coerentes, que são feitas gradativamente. Primeiramente, são tomadas decisões ontológicas, que estão ligadas ao mundo social (estruturas, práticas e ações sociais e tudo o mais que esteja envolvido nelas), depois são escolhidos aportes epistemológicos, de natureza do conhecimento, a partir dos componentes ontológicos, que, por fim, limitarão as escolhas metodológicas para coleta e geração de dados.

A terceira parte do livro apresenta três análises utilizando o aporte teórico-metodológico da ADC, uma em cada capítulo, com o intuito de ilustrar na prática alguns conceitos, servindo, inclusive, de modelo de como fazer análise de discurso crítica para além da análise puramente textual. Com vistas a não simplificar as análises feitas pelos autores, nem apresentar seus resultados de forma descontextualizada, escolhemos abordar aqui os aspectos teóricos presentes nessa parte. No sétimo capítulo, os autores discutem o termo “democracia” e o que ele implica, bem como apontam que a ADC pode servir de instrumental teórico-prático nas lutas de minorias, e quais aspectos essas lutas devem contemplar para serem eficazes.

Já no oitavo, alguns componentes ontológicos são recuperados, por meio de discussão de conceitos do Realismo Crítico de Bhaskar, adaptados à ADC. Os autores ainda conceituam os termos “práticas sociais” e “discurso”, assim como o que o constitui (estilos, gêneros e discursos – no sentido mais concreto do termo). O intuito é explicitar que nem tudo é discurso nas práticas sociais, pois elas são compostas de outros elementos, tais como crenças, valores, desejos, relações sociais e atividade material. O último capítulo do livro é uma versão do artigo escrito por Izabel Magalhães, ao periódico Linha D’água em 20117. Nele, há a discussão sobre linguagem, poder, letramentos e identidades relacionados a questões de gênero em nossa sociedade, através da análise de uma reportagem cobrindo um gravíssimo caso de violência contra mulher.

De leitura instigante e fluida e de organização didática e gradual dos capítulos, a obra de Izabel Magalhães, André Ricardo Martins e Viviane de Melo Resende, apesar de não ser uma leitura introdutória, certamente atinge a todos os públicos, desde iniciantes nos estudos do discurso, quanto profissionais da área. Sua importância por propor um “novo” método de se fazer pesquisa qualitativa é incomensurável, representando avanços não só metodológicos quanto epistemológicos. Entendemos que a etnografia discursiva já existe há quase vinte anos; no entanto, como dito anteriormente, essa é a primeira obra dedicada completamente a discuti-la, visando sua descrição e ensino, tornando-a acessível a estudantes e pesquisadores de diversas áreas de estudo de todas as regiões do país.

Por ser uma obra tão inovadora, é compreensível que haja lacunas a serem preenchidas e aspectos a serem desenvolvidos. Por exemplo, acreditamos que obras futuras possam dedicar uma seção para a descrição de alguns instrumentos disponíveis para realização de pesquisa etnográfico-discursiva e de algumas posturas que o/a pesquisador/a deve adotar durante a pesquisa de campo. Em outras palavras, sentimos que a discussão de como fazer etnografia discursiva pode vir a ser aprofundada. Por isso, é importante que os mais diversos estudiosos, dos mais diversos campos do conhecimento, leiam o livro e adotem a ADC em seus estudos, para fim de desenvolvê-la, tornando-a cada vez mais transdisciplinar e profícua, contribuindo progressivamente com a mudança social.

Referências

1 MAGALHÃES, I. Introdução: a análise de discurso crítica. In: D.E.L.T.A. vol.21 nº. Especial, São Paulo 2005, p.1-9. [ Links ]

2 FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: Textual Analysis for Social Research. London: Routledge. 2003. [ Links ]

3 FAIRCLOUGH, N. Critical Discourse Analysis: the Critical Study of Language. 2. ed. Harlow: Pearson, 2010 [ Links ]

4 MAGALHÃES, I. Eu e tu: a constituição do sujeito no discurso médico. Brasília: Thesaurus, 2000. [ Links ]

5 CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity: Rethinking Critical Discourse Analysis. Edimburgo: Edinburgh University Press, 1999. [ Links ]

6 RESENDE, V. M. Análise de discurso crítica como interdisciplina para a pesquisa social: uma introdução. In: Iran Ferreira de Melo. (Org.). Introdução aos estudos críticos do discurso: teoria e prática. 1ed. Campinas: Pontes, 2012, pp.99-112. [ Links ]

7 MAGALHÃES, I. Textos e práticas socioculturais: discursos, letramentos e identidades. Linha D’Água, São Paulo, v.24, n.2, p.41-57, dec.2011. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/view/37356/40076>. Acesso em: 25 sep. 2017. [ Links ]

Júlia Salvador Argenta – Universidade de Brasília – UnB, Brasília, Distrito Federal, Brasil; [email protected].

Apologie de la polémique – AMOSSY (B-RED)

AMOSSY, R. Apologie de la polémique. Paris: Presses Universitaires de France, 2014. 240 p. [Coleção L’interrogation philosophique]. Resenha de: CARLOS, Josely Teixeira. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.10 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2015.

O livro Apologie de la polémique (Apologia da polêmica)1 é a mais recente obra em língua francesa de Ruth Amossy, professora emérita do departamento de francês da Universidade de Tel-Aviv e diretora do Grupo de Pesquisa Analyse du discours, Argumentation & Rhétorique (ADARR)2. Resultado de uma pesquisa global sobre o discurso polêmico na esfera democrática, realizada no quadro da Fundação de Ciências Israelense (ISF), foi publicado em março de 2014 pela editora Presses Universitaires de France, na coleção L’interrogation philosophique, dirigida pelo filósofo Michel Meyer, reconhecido pesquisador na área de Retórica e Argumentação e professor da Université libre de Bruxelles.

Fundamentada em um quadro teórico-metodológico preciso e na análise detalhada de casos concretos, e considerando que a polêmica não é de nenhum modo “uma comunicação desordenada”, Amossy mostra que a polêmica pública enquanto modalidade argumentativa, apesar de ser depreciada, desempenha um papel vital nas democracias pluralistas. O livro está organizado em três partes. Em sua Introdução, com relação à presença da polêmica no mundo contemporâneo, a autora enfatiza que os conflitos de opinião ocupam um lugar preponderante na cena política e que os meios de comunicação não param de forjar e de difundir de forma persistente as mais variadas polêmicas, ditas de interesse público. Uma prova disso é o uso constante do próprio termo “polêmica” na imprensa escrita francesa (Le Monde, Libération, etc.)3. Segundo a pesquisadora, essa presença poderia ser explicada duplamente tanto pela incapacidade dos cidadãos e dos políticos em seguir as regras de um debate racional, quanto pela curiosidade perversa do público no que se refere ao espetáculo da violência verbal. Mais do que constatar esse fato, Amossy defende que é necessário investigar em profundidade a natureza (o funcionamento e as funções sociais) dos debates conflituais nos quais se sustenta contemporaneamente a democracia em uma sociedade pluralista. No bojo dos estudos discursivos, das ciências sociais e das reflexões de Habermas, Perelman, Mouffe, dentre outros, para a professora interessa, portanto, verificar como, no âmbito de um espaço público e democrático, a polêmica se constrói no nível discursivo e argumentativo e modela a comunicação. No que toca ao posicionamento do pesquisador e às questões metodológicas na observação de debates polêmicos, ela chama a atenção para o fato de que o analista jamais pode se tornar também um polemista, exigindo deste o exame das controvérsias (seu surgimento, sua regulação, seus papéis sociais), mas nunca a tomada de partido por uma ou outra causa.

A primeira parte da obra apresenta as reflexões teóricas do trabalho e está dividida em dois capítulos. No primeiro – Gerir o desacordo na democracia: por uma retórica do dissensus, Amossy aborda por um lado a insistente busca pelo consenso e a obsessão pelo acordo, que está na base mesma da Retórica e dos estudos de persuasão, da Retórica clássica de Aristóteles à Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca, ao mesmo tempo em que descreve na sociedade contemporânea as condenações do dissensus e da polêmica, desde o Tratado da argumentação 4 de Perelman e Olbrechts-Tyteca, abrangendo as teorias da argumentação que o sucederam, como a lógica informal de Douglas Walton e a pragma-dialética da Escola de Amsterdam e de Van Eemeren.

Também nesse capítulo, a autora evoca a obra de Habermas, na qual é construída a noção de um espaço público gerado pelo discurso argumentativo, ou seja, segundo concebe esse autor, a esfera pública basear-se-ia em um modelo de discussão racional na qual os cidadãos alcançariam o acordo através da troca discursiva. A seguir, Amossy discorre sobre outro papel do dissensus (ou da divergência), apresentando um quadro teórico diverso do anterior, no qual existe uma revalorização do dissensus em diferentes domínios, particularmente no da Sociologia e da Ciência Política. Assim, a autora, partindo das reflexões advindas das ciências sociais, feitas por Lewis A. Coser, George Simmel, Chantal Mouffe e Pierre-André Taguieff, coloca a seguinte questão à página 37: “Estas perspectivas sociopolíticas podem ser traduzidas em termos de retórica para autorizar a consideração da polêmica e suas funções construtivas?”. Amossy sustenta que, se em uma democracia pluralista o conflito é inevitável e o acordo utópico, é necessário então o desenvolvimento de uma retórica do dissensus, na qual a confrontação polêmica seja vista como incontornável e útil na gestão dos conflitos.

No capítulo seguinte – O que é a polêmica? Questões de definição, a analista retoma categorias como debate, discussão, disputa, querela, altercação, controvérsia, interessando-se sobretudo por apresentar as especificidades da polêmica. Para tanto, fundamenta-se em três fontes diferentes: as definições lexicográficas dos dicionários, o discurso corrente e as conceitualizações dos pesquisadores em ciências da linguagem. A professora analisa aqui dois exemplos de polêmicas: uma em torno de uma foto “politicamente incorreta”, que exibe um homem de costas utilizando a bandeira da França no lugar do papel higiênico; e a outra acerca do exílio fiscal do ator Gerard Depardieu, após o projeto de reforma dos impostos lançado pelo presidente François Hollande em 2012. A partir da análise, constata que a polêmica é de fato um debate em torno de uma questão atual e de interesse público, que perpassa variados gêneros (panfleto, artigo de opinião etc.) e tipos de discurso (jornalístico, político etc.) e que deve ser distinguida de uma deliberação ordinária.

Na continuação do capítulo, Amossy avalia a polêmica de interesse público como modalidade argumentativa, compreendida em um continuum que passa pela dicotomização (choque de opiniões antagônicas, uma excluindo a outra), polarização (dois antagonistas diametralmente opostos polemizam diante dos espectadores da polêmica, que também devem se posicionar) e desqualificação do adversário (depreciação do ethos dos sujeitos, grupos, ideologias e instituições concorrentes). Na sequência da obra, todos os capítulos permitirão a visualização dessas modalidades em variados gêneros de texto5, investigados em sua materialidade discursiva e configuração argumentativa, bem como o esclarecimento das seguintes questões específicas: como funciona o discurso polêmico; como se constrói uma polêmica pública; qual a atuação da racionalidade nessas polêmicas; como se pode compreender, nelas, o papel e limites da violência.

É por esse prisma que a segunda parte do livro abordará as modalidades da polêmica, materializadas nos meios de comunicação, a partir do exemplo do estatuto das mulheres em dois espaços públicos diferentes: na França e em Israel. Antes de iniciar a análise, a professora evidencia que é necessário distinguir uma polêmica do discurso polêmico e da interação polêmica. “Uma polêmica” se refere ao conjunto das intervenções antagonistas sobre uma dada questão em um momento específico. Já o “discurso polêmico” define a produção discursiva de cada uma das partes antagonistas, nas quais necessariamente se inscreve o discurso do outro, como classifica Kerbrat-Orecchioni. A “interação polêmica”, por outro lado, corresponde à interação, face a face ou não, na qual dois ou mais adversários se engajam em uma discussão oral ou escrita, sempre se reportando um ao outro. Enquanto o discurso polêmicoé constitutivamente dialógico, mas não dialogal, a interação polêmica é por definição dialogal.

Com base, portanto, nessa distinção teórica, Amossy se debruça, no capítulo 3, na análise do discurso e interação polêmicos, entre junho de 2009 e outubro de 2010, no contexto do projeto de lei que pretendia proibir o uso da burca no espaço público francês. A autora exemplifica, assim, o discurso polêmico, analisando um artigo de opinião, assinado por Bénédicte Charles, da revista de esquerda Marianne (de junho de 2009), no qual examina os seguintes aspectos: a estrutura actancial e o jogo das dicotomias, o plano de enunciação e a responsabilidade jornalísticaa polêmica como evento midiático, a polarização na imprensa escrita, a jornalista como polemista. Já a interação polêmica é explorada em dois exemplos: uma interação face a face no debate televisionado entre o político Jean-François Copé e uma mulher com véu; e dois posts de um fórum de discussão eletrônico que respondem ao artigo de Marianne. Qualificando a polêmica como polílogo, para muito além do diálogo, Amossy destaca então que tanto o discurso quanto a interação polêmicos desempenham funções importantes, dentre as quais a da denúncia, a do protesto, a da chamada à ação, bem como a do entretenimento.

No capítulo 4, a autora exemplifica a polêmica pública em torno da fórmula “a exclusão das mulheres” em Israel, analisando o caso da jovem Tanya Rozenblit, que em dezembro de 2011, ao subir em um ônibus da linha Ashdod-Jerusalém, sentou-se na parte da frente do transporte público, quando a prática consuetudinária estabelecia que as mulheres devem sentar-se na parte de trás, para que os homens não possam olhá-la. O episódio ganhou, a partir daí, grande repercussão pública, fortemente alimentada pela imprensa (meios de comunicação pró ultra-ortodoxos e contra os ultra-ortodoxos), convertendo-se em um debate de ordem ideológica e identitária.

Amossy afirma que essa polêmica, protagonizada por discursos laicos, de um lado, e por discursos religiosos tanto moderados quanto ultra-ortodoxos, de outro, além de transformar a jovem Rozenblit em um símbolo da resistência contra o fanatismo religioso, mostra que mesmo que as posições antagônicas não se falem diretamente, não se entendam e não cheguem a um acordo com relação às noções de espaço público, do respeito ao direito das mulheres, do lugar da religião no Estado e da liberdade individual em uma democracia, de uma certa forma elas se comunicam, na medida em que tratam dos mesmos referentes e concordam sobre o fato de que é preciso discutir. Por essa perspectiva aparentemente contraditória, é justamente a polêmica pública, enquanto interação agônica, que permite a coexistência no dissensus, através de suas funções sociais que reúnem indivíduos de opinião radicalmente opostas.

Na terceira e última parte da obra, igualmente dividida em dois capítulos, Amossy analisa o lugar da razão, da paixão e da violência nos debates polêmicos. No capítulo 5 – Racionalidade e/ou paixão, questionando se o pathos é um traço distintivo da e indispensável à polêmica, a pesquisadora se volta para a observação do debate polêmico ocorrido na França, em pleno momento de eclosão da crise financeira de 2008, acerca das formas de remuneração bonus e stock-options, distribuídos pelo Estado aos dirigentes dos bancos e das grandes empresas que declarassem estar em situação precária. Ao longo da análise, ela elucida que os debates polêmicos não se manifestam necessariamente por marcas discursivas de emoção e de paixão, esta última compreendida, no sentido retórico, como tentativa de suscitar afetos no auditório e como sentimento expresso com veemência por um locutor extremamente implicado em seu propósito. No entanto, no que concerne à presença da paixão na polêmica, a autora julga que dois fatos são inegáveis: a paixão não produz a polêmica, mas ela exacerba as dicotomias, a polarização e o descrédito ao outroa paixão e a razão aparecem como dois componentes que só podem ser entendidos em uma imbricação e nunca dissociados. É com esse olhar que Amossy propõe a seguir a consideração de uma racionalidade da paixão e das razões das emoções. Por esse viés, no que concerne à referência ao outro, paixão e razão se manifestariam através de três modalidades do discurso polêmico: a acusação (emoções fortes centradas na indignação e na cólera, com o uso de argumentos que revelam indiretamente as razões da emoção), a injunção (emoções fortes de maneira menos marcada, apresentando argumentos que as justificam) e a instigação(denúncia velada que recorre a argumentos racionais e mostra o pathosde modo superficial).

No capítulo 6 – A violência verbal: funções e limites, a pesquisadora investiga o papel da violência na polêmica, lançando luz para o fato de que esta é fundada pelo conflito, e não pela agressividade verbal. Baseada na análise de conversas digitais, mais particularmente do fórum de discussões na internet do jornal Libération sobre os bonus e stock-options distribuídos em período de crise, Amossy assegura que a violência verbal não é nem uma condição suficiente, nem necessária para a polêmica, configurando-se mais como um acessório do que como um traço definidor dos embates públicos. Por essa ótica, a violência verbal pode ser compreendida como um registro discursivo, e não como uma modalidade argumentativa. Como o pathos, ela igualmente amplifica a dicotomização, a polarização e o descrédito. Dentro desse quadro, a professora demonstra que a violência verbal não é de nenhum modo selvagem ou descontrolada, mas, pelo contrário, é regulada a partir de certas funções e limites, agindo diferentemente a depender do gênero do discurso na qual se manifesta (um debate na TV, uma carta aberta, uma discussão política entre amigos).

Na conclusão do livro – A coexistência no dissensus. As funções da polêmica pública, Amossy consolida e expande pontos centrais tratados no decorrer das análises, dentre os quais o fato de a polêmica pública não poder ser medida em termos de diálogo e o papel da mídia na construção da polêmica. A autora resume que a polêmica desempenha funções sociais e discursivas relevantes exatamente por aquilo em que nela é reprovado: a gestão verbal do conflito operada através do desconsentimento. Apesar de esta afirmação parecer paradoxal, a analista reforça que fazer uma apologia da polêmica ou defender a coexistência no dissensus é permitir a preservação do pluralismo e da diversidade no espaço social, na medida em que a polêmica pública ou a coexistência entre posições e interesses divergentes procura um meio de lutar por uma causa e de protestar contra as intolerâncias, de efetuar reagrupamentos identitários que provoquem interações mais ou menos diretas com os adversários, de gerar os desacordos, mesmo os profundos. Assim, a polêmica nos debates públicos é entendida como fundamento indispensável da vida democrática e contemporânea.

Importa notar que a publicação do livro Apologie de la polémique surge em um momento sensível da história da França, tendo antecipado um quadro de reflexões logo a seguir visíveis, em janeiro de 2015, no contexto do atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo, no qual a violência física e o ato desleal de um “antagonista” pulveriza a possibilidade de construção de um espaço democrático, produzido e mantido pela divergência de posicionamentos. Se a obra de Amossy evoca uma apologia da polêmica, não posso deixar de ressaltar que a polêmica tratada pela pesquisadora se constitui em uma guerra de plumas, em uma guerra verbal 6, pois, quando a divergência de posições e a discussão verbal dão lugar à agressão física, podem ser comprovados aí os verdadeiros riscos da atividade polêmica, como chama a atenção Mesnard7. Amossy admite, similarmente, que a violência verbal sob suas diferentes formas possa combater o outro simbolicamente, mas salienta que ela jamais pode servir de passarela a uma ação que inscreva a violência no corpo.

Em um mundo digital ao alcance das mãos, no qual a expressão e difusão de posicionamentos discursivos é tão intensa quanto imensa, Apologie de la polémique se configura como obra de referência não apenas para os estudiosos da linguagem verbal, da argumentação e da análise do discurso polêmico, mas para todos aqueles que defendem a necessidade de se cultivar diuturnamente o respeito ao outro, a liberdade de pensamento e de expressão, a tolerância e a convivência pacífica com as diferenças.

1A tradução para o português dos textos em língua francesa são de minha responsabilidade.

2Obras de sua autoria: L’argumentation dans le discours. Paris: Nathan, 2000; Paris: Armand Colin, 2012 [A argumentação no discurso]; La présentation de soi: Ethos et identité verbale. Paris: PUF, 2010; em português: Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Trad. D. F. da Cruz et al. São Paulo: Contexto, 2005. Amossy também é editora-chefe da revista on-line Argumentation et analyse du discours.

3Comprovando que o discurso polêmico está presente em variadas esferas discursivas, analiso em minha tese de doutorado a atuação da polêmica no campo das Artes, mais especificamente no da música brasileira do século XX (CARLOS, J. T. Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior686 p. Tese de Doutorado – área de concentração Análise do Discurso – Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014).

4PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. O. Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Original: Traité de l’argumentation. La nouvelle rhétorique. 6. ed. Bruxelles: Université libre de Bruxelles, 2008. (1. ed. 1958).

5Amossy afirma que as particularidades de cada um desses textos manifestam traços gerais, esclarecedores da natureza e das funções do fenômeno global discurso polêmico.

6Confrontar o texto de Kerbrat-Orecchioni La polémique et ses définitions. In: KERBRAT-ORECCHIONI, C.; GELAS, N. (Orgs.). Le discours polémique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1980. p.03-40.

7Para o autor, “ofensiva ou defensiva, a polêmica implica riscos, quando a paixão aumenta, chegando ao confronto armado, ou até mesmo ao mínimo ataque físico”. In: COLLECTIF. Cahiers V. L. Saulnier 2. Traditions polémiques, n° 27, Université Paris-Sorbonne, 1985. p.127-129. [Collection de L’École Normale Supérieure de Jeunes Filles].

Josely Teixeira Carlos – Université Paris Ouest Nanterre La Défense – Paris Ouest, Nanterre, Hauts-de-Seine, France; [email protected].

Análisis del discurso. Principios y procedimentos | Eni Orlandi

RECENSIÓN Y PRESENTACIÓN*

En la lectura del libro Análisis de discurso. Principios y procedimientos, intentaremos hacer lo mismo que Eni Orlandi propone para el análisis de discurso como praxis y correremos el riesgo, por lo tanto, de interpretar de forma equivocada los fundamentos que aporta y los procedimientos que plantea. Esta lectura no se suspende en la teoría, sino que guarda relación con el horizonte de la experiencia y la comprensión; así, al iniciar el comentario de este libro, nos asalta un gesto de sorpresa que manifiesta la extrañeza que surge frente a algo que rompe drásticamente con lo que en Chile ha sido asumido como ‘análisis de discurso’: lingüística clausular, amarrada a la fonética, y que definió el análisis desde un estructuralismo técnico y anquilosado, quizá porque en este país no se permitió casi nunca asumir la existencia del estructuralismo y de sus reformulaciones. Asimismo, se rechazaba la substancia epistémica y procedimental y se veía en los plumajes del estructuralismo y del postestructuralismo una suerte de divertimento francés que poco tenía que hacer con la fonética traspasada al texto que en Chile se hacía, plagada de historiografía, como bien se ejemplifica a través de la polémica entre Enrique Lihn e Ignacio Valente. Leia Mais

Análise crítica do discurso: do linguístico ao social no gênero midiático | Cleide Emília Faye Pedrosa

Pelo título – Análise Crítica do Discurso: do linguístico ao social no gênero midiático – o trabalho já demonstra o caminho a ser percorrido pelos leitores: uma reflexão sobre o gênero discursivo “Frase”, levando em consideração os aspectos da disciplina Análise Crítica do Discurso (ACD). Situando os estudos dos gêneros textuais e da ACD em um contexto universal.

Cleide Emilia Faye Pedrosa, autora do livro, é uma pesquisadora que se destaca com vasta e qualificada produção acadêmica sobre a ACD e também sobre os gêneros textuais. Pedrosa é doutora em Letras pela UFPE, e pósdoutora pela UERJ. Atuou na Universidade Federal de Sergipe de 1997 a março de 2009, como professora de Linguística, e coordenou o Mestrado em Letras de 2007 a janeiro de 2009. Atualmente é professora adjunta na UFRN. É membro da Academia Brasileira de Filologia, UERJ, como sócio correspondente pelo Estado de Sergipe. Membro do corpo editorial da revista LETRAS, da Universidad Pedagógica Experimental libertador, Instituto Pedagógico de Caracas, Venezuela. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Linguística Aplicada, atuando principalmente nos seguintes temas: discurso religioso, gênero textual, análise crítica do discurso, domínio jornalístico e enquadres. Atuou como professora-autor da UAB, em Sergipe, na disciplina Linguística em 2007 e 2008. Leia Mais

Appropiated pasts. Indigenous peoples and the colonial culture of Archaeology – MCNIVEN; RUSSEL (RAP)

MCNIVEN, Ian J., RUSSEL, Lynette Russell. Appropiated pasts. Indigenous peoples and the colonial culture of Archaeology. Walnut Creek. Altamira Press, 2005, 317 Páginas. Resenha de: CASTAÑO, Ana Maria Mansilla. Revista Arqueologia Pública, São Paulo, n.1, 2006.

Os títulos dos capítulos identificam já as differentes teorias que, sob o ponto de vista teórico, têm apoiado o colonialismo no discurso arqueológico. Sincronicamente são analisados os discursos desde as primeiras teorias que configuraram a própria disciplina até hoje. O segundo objetivo do livro, depois da análise de como o discurso arqueológico, juntamente com outros, tem contribuido e contribui ao colonialismo, que é oferecer alternativas para uma prática arqueológica descolonizada, se resolve rapido demais, uma vez que têm sido apresentadas questões terminológicas e conceituais de grande interesse, como a proposta de desconstrução do termo “Pré- História”. Isto porque, o sentido de tempo anterior à história resulta ofensivo para as populações indígenas que entendem que nenhum povo é povo sem história.

Perante os termos de “community archaeology” e “shared history”, que enfatizam as relações entre os arqueólogos e as comunidades locais, os autores sugerem sua sustituição pelo termo de “partnership research”. Aborda-se o caso australiano, mas nas frequentes referências a outras colonias de povoamento sente-se a falta de algumas experiências no contexto da America Latina e não apenas o olhar anglo-saxâo. O que não retira valor à sugestiva e exaustiva análise crítica das conflitivas relações entre a arqueologia e a sociedade contemporânea.

Ana Maria Mansilla Castaño – Escola Oficina de Restauro de Salvador. E-mail: [email protected]

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