O cordel e o migrante nordestino: companheiros de viagem | Júlia Constança Pereira

O cordel e o migrante nordestino: companheiros de viagem é um livro de Júlia Constança Pereira Camelo, professora do curso de História da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). A obra é uma versão da dissertação de mestrado em História defendida pela autora na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Assis), no ano de 2000. O livro se relaciona à trajetória de vida da autora, “nordestina, pernambucana, de origem rural, após trilhar um longo caminho permeado por algumas migrações”.[1]

O objetivo da obra é analisar como os poetas migrantes do Nordeste, radicados no Rio de Janeiro, desenvolveram a produção de cordel no período entre 1960 e 1990, em função do público.[2] O recorte é explicado da seguinte maneira: parte-se da década de 60, “que apresentou uma crise [na produção de folhetos de cordel] observada por todos aqueles que compararam 60 com 50” [3] ; e estende-se até as décadas de 80 e 90, porque nesse período “encontra-se a principal tendência do cordel urbano”: produção de folhetos e biografias de personagens ilustres, políticos, escritores, cientistas, pensadores e até pesquisadores voltados para a cultura popular.[4] Leia Mais

Kakupacal e Kukulcán: iconografia e contexto espacial de dois reis-guerreiros maias em Chichén Itzá – NAVARRO (RAP)

NAVARRO, Alexandre Guida. Kakupacal e Kukulcán: iconografia e contexto espacial de dois reis-guerreiros maias em Chichén Itzá. São Luís: Café & Lápis; EDUFMA, 2012, 96 p. Resenha de: FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira; KALIL, Luis Guilherme Assis. Revista de Arqueologia Pública, Campinas, n.7, julho 2013.

O México tem mais de 32 mil sítios arqueológicos catalogados. Dentre eles, Chichén Itzá é um dos três mais visitados. Patrimônio Cultural da Humanidade, foi eleita em 2007 uma das novas Sete Maravilhas do Mundo. A antiga cidade maia, por situar-se a meros 200 km de Cancún, principal destino turístico do país, recebe milhares de turistas por ano, que, por sua vez, atraem algumas centenas de “guias locais”, vendedores de artesanato “maia” e toda sorte de pessoas tentando ganhar a vida à custa dos visitantes, quase sempre boquiabertos diante da magnificência do local.

O interesse dos turistas, inclusive brasileiros (cerca de 130 mil visitaram o país em média anual, desde 2010), entretanto, não encontra equivalente entre os nossos pesquisadores.

Chichén Itzá permanece ainda pouco estudada em nosso país. Por isso, a obra de Alexandre Guida Navarro já seria de suma importância. Uma publicação acadêmica escrita em português por um especialista que passou anos estudando in loco a grande cidade maia já representaria um avanço pelo simples motivo de chamar a atenção para o tema e o período.

Prefaciado pelo arqueólogo e historiador Pedro Paulo Funari, Kakupacal e Kukulcán é um desdobramento das reflexões apresentadas no doutorado de Navarro, defendido na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). No livro, o especialista apresenta sua hipótese de trabalho logo nas primeiras páginas. A partir da constatação de que os dois personagens-guerreiros do título estão representados apenas na iconografia do conjunto arquitetônico conhecido como “Grande Nivelação”, e não em toda a cidade de Chichén Itzá, o autor busca demonstrar como as representações de Kakupacal e Kukulcán fazem referência, na realidade, não apenas a deuses do panteão maia, mas a dois indivíduos reais, os Capitães Serpente e Disco Solar, dois guerreiros que teriam governado a cidade durante algum momento do Clássico Terminal (800-1000 d.C.): “nossa hipótese é que a construção da Grande Nivelação está estritamente relacionada com as realizações políticas destes guerreirosgovernantes como um espaço de legitimação de poder através da construção de arquitetura monumental” (p. 14).

Nesse sentido, Navarro expõe o conceito central de seu trabalho, o de humanização do espaço: “partimos do pressuposto de que os espaços arquitetônicos representam uma visão simbólica da composição social dos grupos humanos em relação com sua própria identidade, do meio que o rodeia e seu esforço para humanizá-la” (p. 14). Partindo de tal premissa, demonstra como a região da Grande Nivelação tem uma arquitetura com símbolos e representações em formas de imagens bastante distintas da do restante do sítio arqueológico.

Em um estudo essencialmente de distribuição espacial e de análise iconográfica, o autor argumenta que a construção deste complexo arquitetônico foi feita dentro de um complexo programa de estratégia política que envolvia propaganda proselitista dos governantes, direcionada aos habitantes da cidade e àqueles que a visitavam (p. 31).

Nos capítulos do livro, à maneira de um cuidadoso relatório de campo, o estudioso expõe-nos seus objetivos, a bibliografia existente sobre o tema, a metodologia que embasou seu trabalho, os dados obtidos e sua interpretação. Por meio do texto, ficamos sabendo de pelo menos três mensagens simbólicas expressas através da cultura material estudada: um esquema cognitivo de códigos e regras culturais, para demonstrar a ideia de transição de poder; que estas regras envolviam certo grau de controle pelos indivíduos ou grupos que aludiam a um controle do comportamento (por parte dos governantes da cidade); e que o espaço é uma forma de comunicação de diferentes naturezas e serve para a manifestação de aspectos específicos, como o culto a Kukulcán.

Tais associações, entre arquitetura e poder, são pensadas a partir de Michel Foucault e Gilles Deleuze. Sendo assim, Navarro conclui que as mudanças políticas ocorridas em Chichén Itzá estão relacionadas com os complexos arquitetônicos construídos no período bem como com o calendário maia: “Pensamos que Kakupacal foi um importante governante de Chichén Itzá quando a cidade alcançou seu poder construindo o setor sul do centro urbano. O seu governo coincide com um fim de ciclo maia ou Katún Ahau (período de 20 anos), que é quando o grupo no poder é substituído por outro […] Esta evidência calendárica demonstra que houve uma mudança de governo na cidade, que culmina com o controle da cidade por parte de um novo grupo social, que parece ser o Capitão Serpente”. Além disso, o arqueólogo insinua que estas mudanças representam transformações ainda mais profundas dentro de Chichén Itzá. Abrindo caminho para novas pesquisas, afirma que as imagens dos capitães captaria o momento de transformação social entre uma sociedade de cacicado (o setor sul do sítio) em direção à formação de um Estado (a Grande Nivelação) e da própria sociedade maia (p. 76).

Além da demonstração de sua tese principal, o livro também fornece um panorama sobre a civilização maia e qual o papel de Chichén Itzá no emaranhado de cidades-estados da época (cf. Capítulo 1). Dessa forma, ficamos sabendo que, entre os anos 800 e 900 d.C., a cidade controlava a rota de sal em toda a área maia, além das rotas marinhas e impostos, bem como servia de centro de peregrinação, “cujos vários edifícios foram usados para o culto de divindades como Kukulcán, a serpente emplumada, e Chaac, o deus da chuva” (p. 16).

Também encontramos no livro uma ampla revisão bibliográfica sobre os maias (cf.

Capitulo 2) além de várias fotografias, mapas, desenhos e um glossário de termos arquitetônicos que se tornam fundamentais para a compreensão da obra por parte dos leitores não especializados que procuram uma primeira leitura sobre os maias.

Como ressalva a esta importante publicação, apontamos o fato do autor não explicar mais detidamente quais foram os critérios adotados por ele para selecionar as representações das ruínas de Chichén Itzá que seriam utilizadas em sua pesquisa. Navarro afirma que, devido à deterioração de algumas edificações, optou por utilizar desenhos feitos por estudiosos que visitaram a cidade no século XIX: “Utilizamos, portanto, aquelas que acreditamos serem mais fieis à pintura mural original” (p. 38). Porém, não ficam claros para o leitor que elementos levaram o autor a fazer afirmações como a de que alguns desenhos “são muito importantes pois estão livres de todo o excesso artístico e fantasioso que prevalecia nessa época” (p. 18).

Processo semelhante ocorre em outro momento da obra. Ao descrever seu trabalho de campo, Navarro afirma que ignorou representações que poderiam ser consideradas como alusões ao Capitão Disco Solar por não estarem com os símbolos recorrentes (capa de jaguar, toucados elaborados, associação com Chaac) (p. 38). Contudo, páginas depois, analisa nova imagem do Capitão sem um de seus símbolos, mas cuja ligação com a divindade não é questionada: “O Capitão Disco Solar está desprovido de seu disco e parece estar representado, metaforicamente, pelos raios de sol” (p. 47). Seria interessante que houvesse, especialmente para o leitor leigo, uma explicação mais detalhada dos papeis exercidos por estes símbolos dentro das imagens e os possíveis significados de suas ausências ou substituições.

Há, também, pouca análise da relação entre relatos coloniais sobre os maias (citados, em vários momentos, como base de sua interpretação de etno-história) e a cultura material estudada. O autor chega a citar passagens de autores como Diego de Landa e outros, mas numa sequência que reforça seu caráter ilustrativo.

Para além disso, o livro torna-se uma bem vinda literatura sobre uma cidade tão visitada e, ao mesmo tempo, tão pouco conhecida.

Luiz Estevam de Oliveira Fernandes – Professor Adjunto do departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), pesquisador do Núcleo de Estudos de História da Historiografia e Modernidade, e líder do Grupo de Estudos “História das Américas: fontes e historiografia”, ambos do CNPq.

Luis Guilherme Assis Kalil – Doutorando do programa de História Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Grupo de Estudos “História das Américas: fontes e historiografia”, do CNPq.

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O Epaminondas Americano – trajetórias de um advogado português na Província do Maranhão | Yuri Costa e Marcelo Cheche Galves

As mais recentes teorias que amparam a investigação sociológica têm em comum a crença de que o processo social é fruto da relação dialética entre sujeito e estrutura, dinâmica que gera e reproduz o social. Em “O Epaminondas Americano” os autores apresentam os resultados de uma análise que parte desse pressuposto, especialmente valioso também para a nova história social. Nos territórios de Clio, esse movimento tem sido entendido como “a volta do sujeito”.

Perseguindo as trajetórias do advogado português Manoel Paixão dos Santos – que, além de adicionar o apêndice “Zacheo”, “o puro”, ao seu sobrenome, adotou outros epítetos, como “Epaminondas Americano” – os autores penetram no emaranhado período final da experiência colonial, abarcando as conjunturas de Portugal, do Brasil e do Maranhão. A partir da perspectiva extremamente singular da experiência do indivíduo – que vivenciou e que foi agente no contexto observado – a obra nos leva ao cerne de movimentos importantes que ocorriam paralelamente e que se articulavam de formas bastante variadas. Zacheo nos leva a testemunhar um momento importante na história do pensamento jurídico, atravessado por transformações profundas no final do século XVIII. Aproxima-nos das grandes renovações políticas e sociais também em andamento, e permite que se vislumbre a expressão desses fenômenos no Brasil, condicionados pelas circunstâncias singulares do país. Leia Mais

O Epaminondas Americano: trajetórias de um advogado português na Província do Maranhão | Yuri Costa e Marcelo Cheche Galves

O título do livro soa pomposo. A quem os autores chamam de Epaminondas Americano? Logo nas primeiras páginas vimos não se tratar de um pseudônimo, mas de um dos heterônimos assumidos por um português, o bacharel em Direito Manoel Paixão dos Santos Zacheo, em vários escritos que fez publicar, nos decênios de 1820 e 1830, manifestando seus posicionamentos nos debates ocorridos no Maranhão, após a Revolução do Porto (ou Vintismo) e nos primeiros tempos da constituição do Estado brasileiro.

Esse advogado é um personagem intrigante. Na Universidade de Coimbra, onde estudou, seu nome consta como Manoel Paixão dos Santos, mas o sobrenome Zacheo ou Zaqueu já estava incorporado nos documentos que atestam sua chegada ao Maranhão em 1810, e permaneceu nos registros posteriores. Os autores do livro levantam a hipótese de ele ter querido associar sua imagem à conotação hebraico-religiosa do termo “zacheo”, que significa “puro”. Quanto ao heterônimo Epaminondas, supõem ser uma possível “referência ao general tebano, que liderou a vitória contra as tropas espartanas na batalha de Leuctras (371 a. C.)”. E explicam:

Vencedor de lutas sangrentas – que lhe custaram a vida –, Epaminondas também ficara conhecido como homem de larga cultura e pelo princípio de jamais mentir. Coragem, conhecimento e sinceridade, aliadas à “pureza” pregressa, parecem compor a base da personalidade assumida por Manoel Paixão dos Santos – o Zacheo-Epaminondas –, forma de legitimar uma imagem de si e desqualificar a de seus oponentes (p.27).

A autoimagem favorável aparece em outro heterônimo que usou em duas publicações – o Arguelles da província. Para este, os autores levantam a hipótese de uma “provável alusão a Augustin de Arguelles Alvarez, deputado espanhol às Cortes de Cadiz, instância na qual ficou conhecido como o ‘divino’, dada a qualidade de sua oratória” (p.28).

No Maranhão, Zacheo não tardou a se integrar em várias redes de sociabilidade. Quando seus escritos vêm a público, dez anos após sua chegada, está casado com uma moça da terra, é advogado do Tribunal da Relação do Maranhão, juiz demarcante dos julgados do Mearim e das vilas de Viana, Tutóia e Icatu, além de declarar-se dono de fazendas e escravos em Rosário e Alcântara. Atuava, portanto, na capital da Província, a cidade de São Luís, situada numa ilha costeira, e em localidades do continente.

Em abril de 1821, foi um dos oito cidadãos que votou contra o prolongamento da administração de Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca – o último governador da província do Maranhão antes do Vintismo – e defendeu a instalação de uma junta governativa. Em janeiro daquele ano, uma representação de sua autoria havia sido lida nas Cortes portuguesas. Outras foram apresentadas nos meses seguintes. Denunciava tramoias do governador e fazia sugestões para o trabalho dos constituintes. A oposição a Pinto da Fonseca levou-o a refugiar -se na vizinha província do Grão-Pará e Rio Negro, para escapar da prisão que este lhe decretara. Retornou ao Maranhão no ano seguinte.

No início de 1823, como essa província permanecesse fiel a D. João VI, Zacheo foi um dos deputados eleitos para a segunda legislatura das cortes portuguesas. Viajou para Lisboa, mas não assumiu o cargo, pois encontrou as Cortes dissolvidas e o antigo regime restaurado. Permaneceu alguns meses em Portugal. Em 1º de janeiro de 1824, a bordo da escuna que o trazia para o Brasil, participou de um ato solene de juramento à independência do novo país. Retornando ao Maranhão, retomou as atividades políticas. Continuou com os escritos inflamados; os opositores acusavam-no de ter “má língua”. Apoiou o conturbado governo de Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce, o primeiro presidente nomeado pela Coroa brasileira para a província. Criticou D. Pedro I, mas dedicou-lhe um trabalho de quase cem páginas, para subsidiar os Códigos Civil e Criminal que o Brasil precisava elaborar. Elegeu-se deputado para o Conselho Geral da Província e integrou o Conselho Presidial (ou de Governo).

A singular personalidade de Zacheo, sua trajetória de vida e o teor dos escritos que publicou o tornam um objeto de estudo privilegiado. Yuri Costa e Marcelo Cheche Galves, professores da Universidade Estadual do Maranhão, foram extremamente felizes ao escolhê-lo, especialmente porque puderam potencializar o capital cultural acumulado em outras vivências intelectuais. Galves defendeu, em 2010, na Universidade Federal Fluminense, a tese de doutorado em História, intitulada “Ao público sincero e imparcial”: imprensa e independência do Maranhão (1821-1826). E Costa fundamenta-se na dupla formação de historiador e bacharel em Direito.

Os autores foram felizes também na maneira como apresentam os resultados do estudo realizado. Organizaram o livro O Epaminondas Americano em duas partes. Na Parte I – Advogado, Proprietário e Político –, estruturada em quatro capítulos, a proposta é fazer um “recorte biográfico”, entremeado pelas tensões de “ação individual” e “contexto” (p.19). Na Parte II – Documento, nos presenteiam com a reprodução facsimilar de um exemplar existente na Fundação Biblioteca Nacional – Brasil da publicação, que certamente é a mais importante entre as lançadas pelo advogado: Projectos do Novo Código Civil e Criminal no Império do Brasil, oferecidos ao Senhor D. Pedro I, Imperador Constitucional seu Protector e Defensor Perpétuo e ao Soberano Congresso Nacional e Legislador.

Na Introdução, avisam aos leitores que tratarão apenas da atuação pública de Zacheo no Maranhão, principalmente dos dois decênios em que publicou seus trabalhos. Mas fazem bem mais que isso. No primeiro capítulo da Parte I, Um publicista irrequieto, traçam uma narrativa biográfica que informa sobre a família, o local de nascimento e o período em que o biografado esteve em Coimbra; especulam acerca dos significados dos nomes que adotou; delineiam suas múltiplas inserções na vida política da Província e contextualizam as polêmicas em que ele se envolveu e que geraram seus escritos, além de outros aspectos de sua vida pública.

No segundo capítulo, O bacharel e as leis, enveredam pela cultura jurídica luso-brasileira da época. A intenção é situar a produção de Zacheo nos dois processos em que ele foi partícipe: a “modernização da cultura jurídica em Portugal” e a “construção organizacional e legislativa do Brasil independente”. É também buscar entender as “práticas e as representações que se originam no (ou perpassam o) campo jurídico e dão sentido à atuação de profissionais do Direito (p.43)”, em Portugal e no Brasil.

Expõem o teor da reforma acadêmica implantada na Universidade de Coimbra, a partir da década de 1770, e as principais mudanças que a reforma trouxe nas concepções e nas práticas jurídicas na metrópole e em sua possessão na América. Adotam a periodização da História do Direito Português, elaborada por Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, que lhes permite situar nosso advogado na transição do período de influência iluminista (que vai da metade do Setecentos à Revolução de 1820) para o período de influência liberal e individualista (dessa revolução liberal ao início do Novecentos). Mostram que Zacheo conviveu com a crítica ao Direito românico e à tradição medieval canônica, com a valorização do Direito nacional (o então chamado Direito pátrio), a formulação do Direito natural moderno e as concepções ilustradas sobre o Estado e o indivíduo. Veem em sua obra diferentes concepções teóricas, fruto da formação acadêmica e das experiências vividas na América Portuguesa. Era, por exemplo, um entusiástico defensor do constitucionalismo, julgando-o perfeitamente conciliável com a monarquia e a escravidão. Entendia que as “boas leis” eram fruto do intelecto humano, e não deveriam servir apenas para nortear as ações dos governantes, mas ser um meio de viabilizar “a distribuição da ‘felicidade’ no corpo social” (p.41). Além disso, seriam boas as leis que tivessem redação clara e simples, de modo a permitir compreensão correta e eficaz execução. E Zacheo procurava seguir esses princípios nas sugestões que enviou a legisladores e governantes.

Os autores entendem que ele, informado e formado nestes e por estes debates intelectuais e jogos políticos, procurou ser um cidadão participante, como jurista, publicista e político, tanto em relação ao Estado português quanto ao Estado brasileiro que via nascer. E historiam suas múltiplas atuações e analisam-lhe as publicações, dialogando com a literatura que trata das ideias presentes nos projetos políticos em discussão no Brasil nas primeiras décadas do Oitocentos.

No terceiro capítulo, Da justiça ou da falta dela, a análise dos escritos e da atuação de Zacheo volta-se mais para as denúncias que ele fez a homens públicos da província do Maranhão. Foi um áspero crítico dos desmandos das autoridades judiciais, acusando-as de negligência, abuso de poder e conluio com os governantes. Fundamentava as acusações com casos vivenciados como advogado no Tribunal da Relação dessa província e chegou a sugerir a extinção não só deste, como dos demais Tribunais da Relação, justificando que desembargadores, corregedores e juízes tinham práticas espúrias.

Mas sua ira não se voltava apenas para os togados. Era vigilante em relação aos jogos políticos e às ações dos ocupantes dos altos cargos do Executivo. Abordando essa faceta do biografado, os autores entram nos meandros da história da imprensa no Maranhão. Como a primeira tipografia da província foi instalada na administração de Pinto da Fonseca e sob os auspícios do governo, por ser desafeto dessa autoridade e crítico de outras pessoas gradas na política local, Zacheo precisou publicar a maior parte de seus primeiros escritos em outros lugares.

Esse capítulo analisa também as posições do advogado acerca do sistema escravista, criando a ocasião para Costa e Galves entrarem nos debates que tratam da história das ideias sobre a escravidão. Mostram que Zacheo, como muitos outros declarados adeptos do liberalismo àquela época, não via qualquer possibilidade de “grandeza” e “opulência” para o Brasil sem o recurso do braço escravo. A familiaridade dele com a obra de Antonil é notada não apenas na utilização desses dois termos; revela-se ainda na metáfora consagrada pelo padre de serem os escravos os “braços” e “pernas” de quem almejasse ser proprietário por essas terras. Assim, não propunha o fim da escravidão nem do tráfico humano transatlântico. Julgava que o constitucionalismo monárquico não era afetado pela existência de escravos, pois estes eram naturalmente inclinados ao cativeiro. Aliava este argumento – baseado na concepção milenar da “servidão natural”, que subordina alguns povos e/ou pessoas – a outros com base religiosa e racionalista. Desse modo, a inferioridade e a preguiça que atribue serem inatas aos “negros” e “índios” não resultariam apenas da vontade divina. Deus criara todos com o livre arbítrio de “obrar ou não obrar”. Foram eles que decidiram não trabalhar e permanecer na ociosidade e na libertinagem (p.98). No “estado natural” em que se encontravam, tornavam-se “cidadãos impossíveis”.

O quarto capítulo da Parte I, A adaptação aos novos tempos: o Zacheo “brasileiro”, aborda a inserção dele na política, após o retorno de Portugal, quando o Maranhão já fazia parte oficialmente do Império do Brasil. Os autores especulam sobre as razões que o teriam levado a optar pela volta.

Em tal decisão, talvez tenham pesado, de um lado, a guinada absolutista da política portuguesa; e de outro, a perspectiva constitucional brasileira, corporificada pela reunião de uma Assembleia Constituinte. Porém, não é possível ignorar outras razões, como os vínculos familiares que criou na província, o patrimônio que acumulou e a legitimidade que conquistou, como fatores de seu regresso (p102).

Seguindo indícios encontrados em escritos de Zacheo e de outros publicistas da época, consideram que ele integrava e (ou) apoiava o grupo político que subiu ao poder na Província, com o presidente Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce (1824-1825), após a adesão à Independência. O curto governo de Bruce foi bastante tumultuado. Por mais de uma vez os opositores tentaram derrubá-lo; houve repetidas sublevações da “tropa” e do “povo”; além de ter sido acusado de apoiar a Confederação do Equador. Acusação que recaiu também sobre nosso advogado, que conta em um de seus escritos ter sido preso em São Luís, no ano de 1824, possivelmente num dos motins contra esse governo.

Nesse capítulo o foco é no Zacheo que jurou a independência do Brasil e participou das tramas políticas em momentos de fortes manifestações de antilusitanismo na Província, quando a expulsão de portugueses constava da pauta das reivindicações dos movimentos populares. Inclusive, ele integrava o Conselho Presidial da Província, quando houve a Setembrada (em 1831) e participou das deliberações sobre as principais exigências dos rebelados: “expulsão dos postos militares dos ‘brasileiros por Constituição’; expulsão dos ‘brasileiros adotivos’ de todos os empregos civis, de Fazenda e Justiça […]“ (p.111).

Por fim, à guisa de introdução da Parte II, no texto Os Projetos de Zacheo e seu tempo, os autores fazem ainda uma análise do documento reproduzido, cotejando-o com outros projetos que lhe foram contemporâneos, à luz da discussão historiográfica sobre os assuntos abordados.

O Epaminondas Americano insere-se, portanto, na profícua produção acerca do processo de independência, da construção do Estado e formação da nação brasileira. Embora essas temáticas possuam lugar cativo nos clássicos da História do Brasil, nas últimas décadas foram retomadas com renovado interesse, devido ao fortalecimento da “nova história política” e à diversificação das abordagens no campo histórico. O vigor dos debates pode ser visualizado nos balanços historiográficos sobre a produção clássica e a recente, bem como na grande quantidade de novos títulos publicados, entre os quais este livro vem ocupar importante lugar.

Regina Helena Martins de Faria – Mestre e doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (CFCH/UFPE – Recife/Brasil), e professora no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão (CCH/UFMA – São Luis/Brasil). E-mail: [email protected]


COSTA, Yuri; GALVES, Marcelo Cheche. O Epaminondas Americano: trajetórias de um advogado português na Província do Maranhão. São Luís: Café & Lápis / Editora UEMA, 2011. Resenha de: FARIA, Regina Helena Martins de. Almanack, Guarulhos, n.2, p. 151-155, jul./dez., 2011.

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