Lembrança do presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da internet | Mateus Henrique de Faria Pereira

Mateus Henrique de Faria Pereira Imagem Varia Historia
Mateus Henrique de Faria Pereira | Imagem: Varia História

No atual século, poucos livros no campo da teoria da história alcançaram um índice de repercussão como Regimes de historicidade: Presentismo e experiências do tempo (originalmente publicado em 2003), de François Hartog (2013). O livro se tornou referência fundamental nos estudos acerca da experiência do tempo com a proposta de criação de um “instrumento”, a categoria “regimes de historicidade”, para a averiguação de como sociedades e culturas estabeleceram em distintos momentos históricos determinadas ordens do tempo. Do mesmo modo, a obra vem sendo alvo de importantes reavaliações (ver ARAUJO; PEREIRA, 2018ARANTES, 2014LORENZ; BEVERNAGE, 2013; GUIMARÃES; RAUTER, 2021; TURIN, 2016, entre outros), que questionam tanto as pretensões heurísticas da categoria anunciada por Hartog, quanto a sua hipótese mais fundamental acerca do “presentismo”, isso é, a prevalência do presente sobre as dimensões do passado e do futuro, sendo que, no caso do último, ainda se impõe uma importante sensação de fechamento, ao contrário do que se via na concepção moderna de história, como teorizada por Koselleck (2006).

Compondo essa mesma linhagem crítica e saindo pela mesma editora que publicou o livro de Hartog no Brasil, Lembrança do presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da internet, de Mateus Henrique de Faria Pereira (2022), aparece como uma obra disposta a analisar os impactos do novo para a redefinição dos papéis da historiografia sem qualquer olhar nostálgico de uma antiga condição, ao mesmo tempo que aceita o desafio de pensar as possibilidades que a era da internet traz para uma efetiva inserção do historiador e da historiadora num debate público amplo e democrático. Leia Mais

¡Presente! la política de la presencia | Diana Taylor

Enquanto caminha pelo tempo e pelo espaço com, para e entre artistas e ativistas políticos do continente americano, Diana Taylor narra suas experiências e nos desafia a pensar como estar ¡presentes! em um mundo saturado de impossibilidades. Em ¡Presente! la política de la presencia (2020), a autora enfatiza a importância do posicionamento político e ético diante da questão “o que posso fazer quando não há nada o que fazer e o fazer nada não é uma opção?”. Analisando criticamente o seu posicionamento frente as cercas, em cima das cercas, ao transpassar as cercas e ao tentar derrubar as cercas que nos separam, ela expõe as narrativas de suas vivências, sentidos e afetos diante das performances experimentadas.

O projeto, concebido simultaneamente em espanhol e em inglês, foi lançado originalmente pela Duke University Press em agosto de 2020, e em dezembro do mesmo ano pela Ediciones Universidad Alberto Hurtado, versão traduzida pela historiadora australiana Ana Stervenson. O ¡presente! como tema central é abordado como algo que está para além da presença em si, e a palavra/ato segue a grafia em espanhol também na edição inglesa, na tentativa de enfatizar a sua potência pelos dois pontos de exclamação que a acompanha. Leia Mais

Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet | Mateus Henrique de Faria Pereira

Existe atualmente uma ampla literatura dedicada a refletir sobre as conexões entre história e internet. As revoluções que o universo online aporta nas práticas de pesquisa e ensino de história têm sido objeto de densas análises por especialistas em diversas áreas do campo historiográfico. O novo livro de Mateus Henrique de Faria Pereira adentra esse debate com uma contribuição original, que está situada nas fronteiras entre Teoria da História e História do Tempo Presente. Leia Mais

A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo – ROUSSO (RTA)

ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016. Resenha de: MAYNARD, Dilton Cândido Santos. Rumo à catástrofe. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.20, p.333‐338. jan./abr., 2017.

A história do tempo presente está na moda. De uma abordagem comparada em curioso tom pejorativo ao jornalismo e à sociologia, nos últimos anos ela passou a receber tratamento atencioso no mercado editorial e obteve demonstrações de prestígio na Academia. Da rarefação passamos à oferta ampla. Este movimento, que levou a HTP da periferia para o cerne dos debates historiográficos, pôde ser observado no número crescente de congressos, workshops, simpósios temáticos, grupos de pesquisa e publicações dedicadas à rubrica.

Porém este avanço inspira cuidados. Como lembrou Robert Darnton ao tratar do Iluminismo, quando algo “está começando a ser tudo”, pode findar sendo nada (DARNTON, 2005:18). É preciso, então, buscar uma definição mais acertada das fronteiras, dos procedimentos e das especificidades da história do tempo presente. É este o desafio assumido no livro A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo, do historiador francês Henry Rousso, publicado no Brasil pela Editora da Fundação Getúlio Vargas em 2016.

Nos quatro e densos capítulos – além da introdução e da conclusão –, a obra originalmente publicada em francês com o título La dernière catastrophe : L’histoire, le présent, le contemporain (Paris, Gallimard, 2013) propõe questionamentos e apresenta respostas possíveis com desenvoltura e coragem. Com o objetivo de “retraçar a evolução, compreender os móbiles, explicar os paradigmas e os pressupostos dessa parte da disciplina histórica que passou, em algumas décadas, da margem ao centro” (18), Rousso toma a metáfora da catástrofe como “revolvimento” e “desenlace teatral”(28) para, no desenrolar dos ensaios, oferecer uma leitura que parece colocar ordem no caos de abordagens sobre a história do tempo presente.

Os ensaios escritos pelo pesquisador nascido no Cairo, em 1954, são distribuídos através dos capítulos: 1. A Contemporaneidade no passado (31‐98), 2. A guerra e o tempo posterior (99‐164), 3. A contemporaneidade no cerne da historicidade (165‐218) e 4. O nosso tempo (219‐280). Os dois primeiros ensaios percorrem a trajetória da história do tempo presente, enquanto nos seguintes, sobretudo no último, Rousso encara o desafio de pensar respostas aos problemas que levanta na obra.

Assim, após demonstrar a persistência da ideia de uma história do tempo presente na longa duração, o autor evidencia uma forma “particular” de HTP a partir dos anos 1970. O olhar de Rousso percorre a historiografia produzida na Inglaterra, Alemanha e América do Norte, mas é na França, a sua base acadêmica – lembramos que ele é pesquisador do renomado Institut d’histoire du temps present, além de possuir atuação frequente no universo acadêmico dos EUA – o espaço de maior atenção, justamente por ver ali algumas das manifestações centrais ao desenvolvimento do campo.

De modo geral, na argumentação de Rousso, temos dois vetores importantes, dois “momentos inaugurais” fundamentais: a I Guerra Mundial – na qual emergem a testemunha, a busca por coleções e a figura do expert, e a II Guerra Mundial – que reforça a importância do passado recente enquanto objeto.

Mas se as duas guerras mundiais foram elementos fundamentais para uma mudança na prática e na percepção histórica, é nos anos 1950‐1970, que a HTP amplia a sua inserção como disciplina e obtém considerável apoio da mídia. A ideia de acontecimento e “acontecimento‐monstro”, como chamou Pierre Nora (1976), ganha contornos mais evidentes com episódios como o caso dos reféns nas Olimpíadas de Munique (1972) ou a Guerra do Vietnã (1955‐1975), eventos televisionados que ampliaram a demanda social por explicações “históricas”. Um sintoma deste avanço pode ser percebido na ocupação pelos historiadores de importantes espaços midiáticos na Europa (Georges Duby foi, provavelmente, o caso mais emblemático).

Mas quais as fronteiras do presente? Onde ele começa? Para Henry Rousso, na última catástrofe. O autor nos lembra do anjo pintado por Paul Klee (1879‐1940), o Angelus Novus (1920), o mesmo mencionado por Walter Benjamin (1892‐1940) em suas Teses sobre o conceito de História, de 1940. Ali, na nona tese lê‐se que “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés” (BENJAMIN, 1994:226).

Portanto, são os historiadores a definir a última catástrofe. Tais eventos catastróficos exigem das gerações a reflexão e a consequente síntese da sua história recente, implicam em muitas vezes reposicionar elementos da memória, transformam as identidades e acabam por reordenar as interpretações do passado. E quais os eventos “inaugurais” possíveis? Anos emblemáticos como 1789, 1917, 1940 (ao menos para a França), 1945, 1989 e 2001? Para além dos anos inaugurais, conforme o autor, a história contemporânea enquanto um conhecimento constituído a partir da mediação é caracterizada pelo peso dos eventos catastróficos, pela demanda social em torno do historiador, pelo quase inevitável envolvimento judicial e pela importância dada à memória e à testemunha. A propósito, a presença da testemunha é marca deste tipo de pesquisa e é necessário considerar os influxos da emergência da “testemunha que vê, a testemunha que fala, a testemunha que escreve, seja o próprio historiador, desempenha claramente um papel essencial, uma vez que é um mediador primário, para não dizer único” (282), como adverte Rousso.

Uma coisa importante é que o autor não apenas provoca questionamentos, mas demonstra coragem em respondê‐los no decorrer das 341 páginas do livro. A obra nos convida a refletir sobre o ofício do historiador e suas tarefas no século 20. Rousso aponta a relevância do debate sobre o problema fundamental da periodização. A proximidade com os eventos e os desdobramentos disto. Em que medida o historiador deve estar afastado? “A queda do Muro de Berlim ou os atentados de 11 de setembro podem por sua vez constituir fronteiras para um novo período contemporâneo? É… cedo demais para dizê‐lo” (279). Não há resposta fácil quando se trabalha com história do tempo presente.

O livro demonstra que a ideia de contemporaneidade sofreu profunda evolução.

Se “toda história é história contemporânea”, como afirmou Benedetto Croce (1866‐1952), Rousso adverte, no entanto, que: “Isso não significa, contudo, que existe uma concepção contínua e imutável através de vários milênios na maneira de escrever sobre o seu próprio tempo: as modalidades, os métodos, as finalidades de escrita da história mudaram consideravelmente de uma civilização para a outra” (281).

Mas, sim, toda história é contemporânea na medida em que “a história do passado encerrado que seria distinto, e até mesmo cortado em relação ao tempo presente, não tem sentido realmente” (41). Diferente de outros momentos, não se trata de obter o conhecimento a partir de uma ação da Providência ou de uma revelação, é importante considerar a história como conhecimento mediado como uma mudança crucial no sentido atribuído ao tempo presente.

Por sua vez, a ideia de memória é fundamental à história do tempo presente, pois ela descola a HTP do presentismo, da ideia de uma história imediata. A memória confere duração. Deste modo, Henry Rousso ressalta que se configura como um antídoto ao presentismo, não de um sintoma deste fenômeno. A desconstrução de uma leitura linear da história e a valorização das idas e vindas, da presença do passado no presente e do presente no passado exige o trabalho em duas frentes, como lembra o autor: “a da história e a da memória, a de um presente que não quer passar, a de um passado que volta para assombrar o presente, sendo a distinção entre as duas por vezes indisfarçável” (302).

A publicação da obra em português ocorre em momento bastante adequado, em tempos de ampla demanda por reflexões dos historiadores, dias de tensão nos rumos do Brasil, do Mundo, mas também em momento de duros questionamentos acerca do papel social do historiador, da sua necessidade nas salas de aula e da sua validade na orientação das políticas públicas. Neste aspecto, a obra contempla a situação de inúmeros intelectuais que, em diferentes países e contextos, foram chamados a colaborar em processos judiciais, foram interpelados pelas vítimas e pressionados pelos agressores.

Neste sentido, Henry Rousso nos lembra que “o historiador do presente mantém relações conflituosas com o poder, seja religioso, seja político” (282). Em tempos de Donald Trump acelerando o relógio do Armagedon na Casa Branca, Marine Le Pen tocando o tambor da xenofobia na França e quando, no Brasil, assistimos, atônitos, alguém democraticamente eleito ser afastado do cargo com votos dos que celebram eufóricos, cheios de ódio e preconceito, os piores momentos da ditadura e seus torturadores mais temidos, ler A Última Catástrofe é convite irrecusável.

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. I.p.222‐234 DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

NORA, Pierre. O Retorno do Fato. in NORA, Pierre, LE GOFF. Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.p.179‐193 ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016.

Dilton Cândido Santos Maynard – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe, e do Programa de Pós‐Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal de Sergipe. Bolsista Produtividade CNPq. Brasil [email protected].

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Présent, nation, mémoire – NORA (RBH)

NORA, Pierre. Présent, nation, mémoire. Paris: Gallimard, 2011. 432p. Resenha de: BOEIRA, Luciana Fernandes. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, n.63, 2012.

No dia 6 de outubro de 2011 o historiador e editor francês Pierre Nora lançou, simultaneamente, dois livros: Historien public Présent, nation, mémoire, ambos publicados pela prestigiada Gallimard, editora por ele dirigida desde 1965. As duas obras reúnem artigos escritos por Nora ao longo de sua extensa carreira. Nas mais de quinhentas páginas do primeiro livro, o autor apresenta inúmeros manifestos, intervenções públicas e tomadas de posição por ele sustentados nos seus mais de cinquenta anos de vida pública. Entre vários assuntos, Nora expõe considerações sobre o fazer editorial e tece observações sobre a história contemporânea e a nação francesa. Fala, ainda, sobre a Guerra da Argélia e a respeito da importante revista Le Débat, fundada por ele e por Marcel Gauchet em 1980 e que alcança, até hoje, grande êxito no mundo intelectual.

Présent, nation, mémoire integra a Coleção Bibliothèque des Histoires e reúne mais de trinta artigos do historiador, todos girando em torno das mutações entre história e memória. Essa volumosa gama de artigos é resultado das reflexões que precederam, acompanharam e sucederam a publicação de Les lieux de mémoire, a monumental obra coletiva em sete volumes escrita entre 1984 e 1992 e que constituiu o empreendimento editorial mais importante que Nora dirigiu em sua carreira, na qual soma-se, também, Faire de l’Histoire (organizado em parceria com Jacques Le Goff, em 1974), outro estrondoso sucesso da Coleção Bibliothèque des Histoires, composto por três volumes e no qual inúmeros historiadores franceses apresentavam suas reflexões sobre a nova história da década de 1970.

Tudo em Présent, nation, mémoire se relaciona com Les lieux de mémoire e, portanto, é inseparável da obra. Assim, o que dá uma unidade aos seus 32 artigos, alocados em três partes distintas – Presente, Nação e Memória (que são, também, os três eixos centrais através dos quais os artigos se relacionam e, como afirma Nora, constituem os três polos da consciência histórica contemporânea) –, é a pretensão de representarem uma introdução aos lieux de mémoire. Embora os assuntos de cada um dos artigos sejam bastante diversos (Nora explora desde a questão do patrimônio até referências a Michelet e Lavisse como modelos de história nacional, passando por temas como o fim do gaullo-comunismo na França, a aparição do best-seller no mercado editorial ou o trauma causado pela lembrança de Vichy), os três eixos sob os quais se dividem acabam por orientar a leitura do material. Um material que o próprio autor admite estar apresentado de maneira inabitual, tanto pelo assunto que o título da obra anuncia, quanto pelo conteúdo, que foge aos cânones eruditos da disciplina histórica. Porém, como ele mesmo sublinha, sua intenção, ao propor a coletânea, não foi a de fazer uma reflexão teórica sobre a história, e sim expor uma reflexão que brotou de sua prática enquanto historiador.

E é justamente essa prática historiadora e os eventos que a compuseram que Nora mostra, fazendo uma retrospectiva dos momentos mais importantes vividos pela disciplina histórica durante o século XX, particularmente a partir do advento dos Annales e que culminariam, nos anos 1970 e 1980, com a eclosão do que ele chama de uma ‘onda de memória’ que varreu não só a França, mas o mundo ocidental como um todo e do qual o momento presentista e dominado pela patrimonialização seria herdeiro.

Pensar o advento dessa onda memorialística generalizada e, com ele, o movimento de aceleração da história, que condenou o presente à memória, é a intenção maior do livro. Mesmo propósito, diz Nora, que ele e mais de cem historiadores tiveram quando lançaram Les lieux de mémoire, tentando entender quais foram os principais lugares, sejam eles materiais ou abstratos, em que a memória da França se encarnou.

Em fins da década de 1970 e no início dos anos 1980, os ‘lugares de memória’ de Nora constatavam o desaparecimento rápido da memória nacional francesa, e, naquele momento, inventariar os lugares em que ela efetivamente havia se encarnado e que ainda restavam como brilhantes símbolos (festas, emblemas, monumentos, comemorações, elogios fúnebres, dicionários e museus) era uma forma de destrinchar, de dissecar a memória nacional, a nação e suas relações. Em 2011, Présent, nation, mémoire, a reunião de artigos escritos ao longo de toda uma vida, apresenta uma dupla função: servir de base para Les lieux de mémoire, mas, independentemente disso, mostrar ao público como Nora constituiu seu próprio percurso enquanto pesquisador e, concomitantemente, como foi construindo um novo campo de estudos. Um campo, diz ele, delimitado por estas três palavras: presente, nação e memória. Termos que, para Nora, condicionam a forma da consciência histórica contemporânea e palavras que lhe permitiram, além disso, reagrupar os artigos que compõem o volume segundo uma lógica que ele chama ‘retrospectiva’ e que, para ele, teria um ‘sentido pedagógico’ eficaz em sua intenção de demonstrar como ele formou esse campo de estudos que envolve a memória e a história no tempo presente.

No livro, Nora não atualiza os artigos. No máximo, muda sutilmente alguns dos títulos. Também não apresenta-os de maneira cronológica, mas de acordo com o assunto que está tratando em cada parte, de forma que podemos ter um texto escrito em 1968 após outro escrito em 1973, ou um assunto trabalhado em 2007 colocado imediatamente após outro artigo, relacionado àquele, mas escrito em 1993. Esse recurso é bastante interessante, pois possibilita ao leitor perceber uma coerência no percurso do autor no que toca aos temas levantados e há quanto tempo estes fazem parte de seu universo de preocupações.

Nesse olhar retrospectivo acerca de sua própria obra enquanto escritor, Nora admite que cada um dos textos que formam a coletânea poderia ter sido objeto de um desenvolvimento maior e quem sabe, até mesmo gerado livros específicos, o que de fato não aconteceu. Isso porque, embora o volume de artigos que Nora publicou até hoje seja bastante grande, sua dedicação, como historiador, à escrita de obras próprias, é muito pequena. Antes da publicação desses dois volumes que reúnem alguns de seus muitos textos dispersos, Nora havia participado apenas de empreendimentos coletivos e publicado um único livro: Les Français d’Algérie, em 1961.

Seu interesse em dar a conhecer esses tão variados textos no volume que denominou Présent, nation, mémoire residiria, segundo Nora, tão somente em reconstituir um percurso intelectual e mostrar como ele formou, durante sua trajetória, um canteiro de obras composto por vários estratos historiográficos que esquadrinhou enquanto historiador.

Porém, pelo teor dos artigos que costuram o volume, o que se percebe é que Pierre Nora faz questão de pontuar o significado que sua própria obra teve na renovação dos estudos históricos na França. Somente para citar um exemplo, no artigo “Une autre histoire de France”, originalmente publicado no Diccionnaire des sciences historiques, de André Burguière (1986), sob o título de “Histoire national”, Nora destaca que o momento em questão era aquele da renovação historiográfica da história nacional, no qual os historiadores estavam interessados em dissecar a herança do passado. Para ele, Les lieux de mémoire se inseriam perfeitamente nessa perspectiva: apreendendo as tradições nas suas expressões mais significativas e mais simbólicas, os ‘lugares de memória’ souberam fazer uma história crítica da história-memória e produziram uma vasta topologia do simbólico francês. Aqui, uma forma até certo ponto sutil de Nora reverenciar seu empreendimento como uma contribuição singular para a renovação historiográfica contemporânea. No artigo seguinte, “Les lieux de mémoire, mode d’emploi”, um prefácio escrito pelo autor para a edição norte-americana da obra, publicada entre 1996 e 1998, Nora é muito mais enfático ao situar seu trabalho e, também, muito mais direto em reafirmar a importância que Les lieux de mémoire tiveram na ‘era da descontinuidade historiográfica’ da nova historiografia francesa.

E se Nora é mestre em pontuar a importância de sua obra, ele também sabe defendê-la. O texto por ele escolhido para fechar o volume, “L’histoire au second degré”, publicado em sua revista Le Débat em 2002, é uma resposta do autor às críticas que Paul Ricoeur fez aos “insólitos lieux de mémoire“, em A memória, a história, o esquecimento, publicado naquele mesmo ano. No artigo, Nora, mais uma vez, denuncia a atual invasão do campo da história pela memória ao ponto de estarmos mergulhados em um mundo do ‘tudo patrimônio’ e da história como comemoração. Diz ele partilhar das mesmas análises de Ricoeur sobre a comemoração e de suas irritações a respeito do ‘dever de memória’, mas com uma única diferença: para ele, não há a possibilidade de se escapar dessa situação, como acreditava o filósofo. Segundo Nora, a melhor forma de lidar com a tirania da memória seria apreendê-la e percebê-la em seu interior, como propõem, ao fim e ao cabo, seus lieux de mémoire.

Luciana Fernandes Boeira

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Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault – DUARTE (ARF)

DUARTE, André. Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Resenha de: FERNANDES, Antônio Batista. Argumentos – Revista de Filosofia, n.7, p.135-140, 2012.

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Warrior Politics – why leadership demands a pagan ethos | Robert Kaplan

Warrior politics – why leadership demands a pagan ethos, de Robert D. Kaplan, é um texto denso e agradável. Curto, o livro constitui-se de ensaios instigantes que podem ser lidos isoladamente, mas fazem mais sentido em conjunto. Duas idéias centrais enfeixam seus argumentos: a de que o fenômeno político, assim como o ser humano em sua condição mais essencial, pouco mudou desde os remotos tempos de Sun Tzu e Tucídides; e a de que a atenta leitura dos sábios do passado muito nos pode ensinar sobre o presente.

A primeira delas desdobra-se, de início, por meio de raciocínios lógicos sobre fenômenos presentes no passado e no presente: grupos humanos subjugando uns aos outros, não raro de forma cruel e sanguinária; homens empreendendo esforços para conciliar partidos opostos e para promover a paz. Em seguida, pelo recurso a exemplos históricos: líderes militares que, através dos tempos, utilizaram as mesmas técnicas em combate. A segunda permeia todo o argumento. Leia Mais

Enseigner le présent, le passé et le possible – BRUNER (CC)

BRUNER, Jerome. « Enseigner le présent, le passé et le possible ». In: L’éducation entrée dans la culture. Les problèmes de l’école à la lumière de la psychologie cultu- relle (The Culture of Education, Harvard College 1996, traduit de l’anglais par Yves Bonvin). Paris: Retz, 1996. pp. 111-126. Resenha de: BUGNARD, Pierre-Philippe. Le cartable de Clio – Revue romande et tessinoise sur les didactiques de l’histoire, Lausanne, n.1, p.219-222, 2001.

Ce bref chapitre constitue en fait un mani- feste élégant et convaincant pour une pédagogie du problème par le récit, notamment en histoire enseignée : le socio-constructivisme raconté à tous ! Bruner part d’un constat : l’absence « choquante » de tout inté- rêt porté à la manière dont les enseignants enseignent et les élèvent apprennent. A par- tir de là, il propose une nouvelle culture de l’apprentissage qui passe par le récit, au moyen de quatre « idées » :

1. La « réflexion ». Depuis le XVIIe siècle, on pense qu’« expliquer » de manière causale – en recourant à une théorie, c’est-à-dire à ce que la science considère comme un idéal – suffit pour faire « comprendre ». Au XIXe siècle, le positivisme « anti-illusion- niste » reproche aux sciences « molles » – l’histoire, les sciences humaines, la littéra- ture… – de se borner à « enrichir l’esprit» sans jamais se soucier de la preuve des choses. Pourtant, la vieille Europe continue à guerroyer, rejouant inlassablement toutes les histoires que l’Histoire raconte, avec la socio- logie et la littérature, ces disciplines qui jus- tement ne seraient bonnes qu’à « enrichir l’esprit » ! Or,

« Les gaz mortels et la Grosse Bertha étaient peut-être les fruits empoisonnés des sciences vérifiables, mais la pulsion qui nous avait amenés à les mettre en action venait, elle, de ces histoires que nous nous racontions. N’était- il pas temps que nous tentions de mieux com- prendre leur puissance, d’étudier comment les histoires et les récits historiques sont bâtis et ce qui, en eux, porte les peuples à vivre ensemble ou, au contraire, à s’estropier et à se massa- crer ?» (p. 115)

Comment faire pour amener une nouvelle génération à réexaminer notre histoire ?

« Comment éviter de nous tromper encore une fois ?» lance Bruner. Et bien justement, le premier quart du XXe siècle a opéré un « tournant interprétatif », d’abord dans le théâtre, puis dans la littérature, l’histoire, dans les sciences sociales, en épistémolo- gie… dans l’éducation, enfin. La nouvelle finalité, c’est désormais de comprendre, pas d’expliquer ! Instrument privilégié de ce nouveau paradigme : le récit, avec une exi- gence de « vérisimilarité », d’atteindre « ce qui ressemble à la vérité », la « vérité », ici, n’étant ni atteignable, ni vérifiable. Raconter des histoires pour comprendre, c’est bien plus que d’enrichir l’esprit : il s’agit d’une didactique que Kierkegaard (✝ 1855) a sug- géré depuis longtemps : « sans ces histoires, disait-il, nous en sommes réduits à avoir peur et à trembler. »

Aussi Bruner réclame-t-il que les méthodes interprétatives ou narratives de l’histoire soient enseignées avec la rigueur de l’explica- tion scientifique, hors de tout procédé rhéto- rique (Voir aussi un autre chapitre de Bru- ner : « Les sciences par les récits »). L’histoire devient alors une discipline qui vise à com- prendre le passé et pas seulement à raconter « ce qui est arrivé ». On apprend aux enfants à devenir historien en ne les traitant pas comme des « consommateurs d’histoires bien « propres » et soigneusement conser- vées ». Certains crieront au bradage des valeurs les plus sacrées par l’usage d’une « épistémologie pragmatique » ! Or ce qui est sacré, selon Bruner, et mérite le respect, c’est au contraire

«Toute analyse du passé, du présent et du pos- sible qui est bien faite, bien argumentée, scru- puleusement documentée et menée selon une perspective honnête. (…) Réfléchir avec rigueur et respect aux différentes «histoires » qui nous disent où en sont les choses (sans «effacer » celles qui nous gênent), n’est en rien contradictoire avec la pensée scientifique. »

Bruner propose en exemple une histoire « très intéressante », réclamant le recours à une théorie explicative précise et qui, construite par les élèves, leur permettrait de découvrir quand ils ont besoin d’une théorie et plus seulement d’une histoire : « Comment sommes-nous arrivés à ce que les trois quarts de la richesse de la nation soient entre les mains du quart de la population ?» (Suisse 1990 : 57,2 % de la fortune déclarée aux mains de 7,6 % des contribuables). Et on voudrait ajouter : « Alors que la Révolution française s’opposait déjà à ce qu’un quart des contribuables n’amasse deux tiers des richesses recensées»! On voit mieux, ainsi, ce qu’il faut entendre par une histoire « gênante ».

2 et 3. L’aptitude à agir et la collaboration. Ici, Bruner procède par opposition des contraires. L’idéologie anglo-américaine empirique de l’« apprentissage », théorisée par Locke, conçoit l’esprit comme une « tablette de cire » sur laquelle l’environne- ment grave un message indélébile, concep- tion de l’apprentissage à la fois solitaire et passive. Cette conception s’oppose à tout ce qu’on a découvert depuis et qui aboutit au contraire à considérer l’esprit comme « actif », à l’orienter vers la résolution de problèmes » : ce qui « entre » dans l’esprit dépend davantage des hypothèses, moyen- nant heuristique (stratégies et prises de déci- sion), que de ce qui sollicite les sens. Et ce qui a été aussi découvert, c’est que nous n’apprenons pas seuls et sans aide, « nus devant le monde » : c’est l’échange de la parole qui rend possible l’apprentissage, par la collaboration, par un processus discursif que nous exerçons en fait dès notre plus jeune âge. Ainsi, dans le projet pilote d’Oak- land (Californie) qu’Ann Brown a mené dans les années 1970,

« Non seulement les enfants émettent leurs propres hypothèses, mais ils les négocient avec les autres, y compris avec leurs enseignants. Ils occupent d’ailleurs aussi le rôle de l’ensei- gnant, offrant leur expertise à ceux qui en ont moins. » (p. 119)

Dans l’acquisition de cette « culture-mise-en- pratique » utile pour la vie, quel que soit son milieu social, les enfants apprennent à distin- guer récit explicatif et récit interprétatif. Ils apprécient le rôle de l’ethnographe qui fait périodiquement le point sur la manière dont évolue la collaboration et ils se montrent bien plus critiques que leurs propres enseignants. En maniant le récit, ils apprennent à penseren fonction du schéma : « histoire » = un Agent cherchant à atteindre un But dans un Cadre reconnaissable à l’aide de certains Moyens. Un défaut survient-il entre les diffé- rentes composantes de l’histoire, et voilà l’Obstacle qui justifie qu’on la raconte. C’est le prologue du récit qui installe les circons- tances initiales de l’histoire (Agent, But, Cadre, Moyens). L’action se déroule ensuite en conduisant à l’Obstacle et c’est la rupture (la violation de ce à quoi l’on s’attendait comme légitime). A partir de là, on assiste soit à un retour de la légitimité, soit à un changement révolutionnaire installant une nouvelle légitimité. Enfin, l’histoire se ter- mine par une conclusion cherchant à évaluer ce qui s’est passé.

Le schéma du récit proposé par Bruner comme support à l’apprentissage de la pen- sée ne correspond-il pas, en fait, à l’accep- tion du concept grec de  : une rela- tion débouchant sur un rapport, le tout faisant une « enquête » ? Ainsi, toute repré- sentation du monde pourra faire sens dès lors qu’on l’insère dans une structure narra- tive. Vladimir Propp (Morphologie du songe, Paris, Seuil, 1970) affirme même qu’il n’y en a que quatre, souligne Bruner : la tragédie, la comédie, le roman et l’ironie. Ce sont ces structures d’une extrême abstraction, quasi algébrique, qui permettent à une infinité d’histoires d’exprimer le monde, donc d’en attester une compréhension sans qu’il soit « expliqué », livré, servi en vulgates apprêtées pour la consommation…: autant de mises en scène possibles d’un réel problématique, refoulé… sommé de se rendre à la raison de l’apprenant…

Il est étonnant de voir, selon Bruner, com- bien on devient rapidement habile à rendre clair un texte, armé de ces quelques données sur la structure formelle des récits, que l’on soit critique littéraire, psychologue, juriste, historien, professeur ou enfant !

« C’est une idée très contestable de penser que les enseignants et leurs élèves ne peuvent abor- der les problèmes narratifs avec la même com- pétence et la même ouverture d’esprit, et en tirer le même bénéfice en terme de conscience de soi. (…) L’analyse narrative réalisée en col- laboration ne se solde pas par un match nul. Il n’y a pas besoin d’hégémonie pour créer du sens, comme si la version de l’histoire du plus fort devait être imposée au plus faible, et cela reste vrai lorsqu’il s’agit de sujets politiques brûlants. (…) Le débat et la négociation menés ouvertement, sont les ennemis de l’hé- gémonisme. » (p. 122)

Bruner ne considère pas pour autant que la finalité d’un tel processus d’analyse collective doive être d’élaborer la liste des meilleurs « valeurs » (américaines…) comme des tables de la loi. L’idée même d’aboutir à de telles valeurs correspond à de la timidité intellec- tuelle et morale : il ne s’agit pas de parvenir à l’unanimité, mais à davantage de conscience, car « plus de conscience entraîne toujours plus de diversité ».

4. La culture. Bruner fait ici confiance aux anthropologues contemporains qui ont montré que « le mythe d’une « culture » soli- dement installée, irréversible, qui permet- trait à la fois de penser, de croire, d’agir et de juger, ce mythe est bien mort. » Il faut être confiant dans la possibilité d’améliorer les choses en commençant pas refuser de céder aux convenances qui imposent de laisser les sujets embarrassants devant la porte de la classe. Les élèves ne sont pas dupes: soit ils vivent ces scandales, soit ils les voient à la télévision. Le désenchantement qui résulte de programmes désincarnés est d’ailleurs une grande source de désordre dans l’école. Donnons plutôt aux élèves les moyens de comprendre les histoires qu’ils construisent sur leurs univers, en les initiant à la démarche de l’enquête précisément sur les questions qui font scandale: pour reprendre l’exemple déjà évoqué, comment en sommes-nous arrivés au « système aberrant » de distribution des richesses actuel alors que nous sommes partis d’une déclaration selon laquelle « Tous les hommes ont été créés libres et égaux » ? Si c’est l’Obstacle qui déclenche le récit, les élèves vont pouvoir transformer cet obstacle brut en un problème qui fait sens, dans le cadre d’une procédure (ce qu’on appelle une « problématique »). Là est la culture selon Bruner : non pas l’éternelle question du choix entre poésie et prose, mais une manière d’affronter les problèmes humains, de rendre des comptes par le biais de récits, moyens de synthétiser les connaissances accumulées sur la société et de dépasser l’étroitesse de vue. Faire en sorte que ce qui est trop familier redevienne étrange…

Pierre-Philippe BugnardUniversité de Fribourg – Sciences de l’éducation.

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