Cultura, política e poder / Fato & Versões / 2015

O presente número da Fato &Versões acompanha o perfil proposto pelo Corpo Editorial e já delineado nas publicações anteriores, de privilegiar a pluralidade de pesquisas e produções do cenário historiográfico. Composto por seis artigos, é articulado em um Dossiê temático Cultura, política e poder, que reúne trabalhos com o objetivo de um diálogo entre os múltiplos olhares e fontes do político na atualidade.

A História Política tem apresentado um novo impulso a partir de um processo de inovação; ao incorporar novos objetos e novas abordagens, visou compreender a política e as relações de poder de forma mais ampliada, relacionando-as com questões culturais, econômicas e sociais e promovendo um diálogo com outras áreas do conhecimento.

As relações entre a história cultural e política propiciaram o surgimento de uma nova safra de pesquisas, que retomaram, por novos prismas, temas clássicos tais como a República Velha, o “nacionalismo”, o “populismo” e a ditadura militar, além de terem contribuído na construção de novos recortes e abordagens, os quais ampliaram as perspectivas de análise sobre as relações de poder e a política na sociedade brasileira.

Nesse sentido, este número reúne artigos escritos por pesquisadores vinculados a diferentes centros de pesquisas e universidades brasileiras, e propõe reflexões sobre o político a partir da reunião de diferentes abordagens teóricas e metodológicas.

O artigo de Renato Jales Silva Junior, Cultura, Política e Espaço Urbano: algumas considerações sobre as transformações nos lugares da cidade (Uberlândia 1960-2000), apresenta uma discussão sobre as mudanças vividas pela população de Uberlândia no processo de reestruturação urbana do período; o autor demonstra como as intervenções foram questionadas e reelaboradas por muitos trabalhadores que viviam naqueles lugares, no seu fazer-se diário como sujeitos, e com outras estratégias lutaram pelos seus interesses colocando outros valores em disputa.

O texto de Rodrigo Francisco Dias, O líder político e o povo no filme Céu Aberto (1985), de João Batista de Andrade, analisa as imagens do líder político e do povo no documentário Céu Aberto (1985), do cineasta brasileiro João Batista de Andrade, por meio de um diálogo com o “lugar” do documentarista. Demonstra a importância de se levar em conta a trajetória artística, política e intelectual do cineasta, para interpretar o modo como representou a realidade política do país no filme; o “lugar” de onde ele não simplesmente filma, mas escreve à sua maneira uma parte da recente história do Brasil.

Talitta Tatiane Martins Freitas, em seu texto A visibilidade do que não se quer ver: identidades homoafetivas sob as lentes das telenovelas do Brasil contemporâneo, discute o impacto da visibilidade homoafetiva, dialogando com a pesquisadora Joan W. Scott. Analisando personagens homossexuais apresentados em telenovelas, a autora busca problematizar a naturalização do dualismo homossexualidade / heterossexualidade na atualidade, demonstrando como tais conceitos são historicamente variáveis.

O texto de João Marcos Leitão, A serviço do Povo para a grandeza da pátria: o Partido Republicano Democrático – um partido protestante, apresenta uma discussão sobre a presença sócio-política do Protestantismo Brasileiro, em meados dos anos 40, e mais especificamente sobre os esforços de organização de um Partido Político de matriz protestante: o PRD. O autor procurou demonstrar a identidade protestante do partido, refletindo acerca do processo de inserção sócio-política daquele grupo na sociedade brasileira.

Em O processo de Restauração Católica no Brasil na Primeira República, José Pereira de Sousa Junior discute o movimento de redefinição do catolicismo brasileiro frente ao Estado republicano sob princípios laicistas; o autor demonstra como, instituída a nova ordem jurídica, o catolicismo brasileiro empreendeu estratégias que minimizassem o ônus do seu alijamento político.

O artigo de Márcio Ananias Ferreira Vilela, A Justiça do Trabalho durante o regime civil e militar: a Igreja Presbiteriana e a invenção do comunismo, analisa o processo de vigilância que permeou as instituições da sociedade durante o regime militar, em especial a Igreja Presbiteriana do Brasil; tendo como base ações trabalhistas, o autor demonstra como, ao longo daquele período, a instituição perseguiu e expulsou pastores e professores de seminários que divergiam de sua posição teológica oficial, acusando-os de comunistas.

Henry Marcelo Martins da Silva

Dolores Puga Alves de Sousa

Editores


SILVA, Henry Marcelo Martins da; SOUSA, Dolores Puga Alves de. Apresentação. Fatos e Versões. Campo Grande, v.7, n.14, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Cultura política na América Latina / História.com / 2014

A edição conta com o dossiê temático Cultura política na América Latina, que se enquadra dentro dos estudos e renovações teórico-metodológicas da chamada Nova História Política consolidada nas reflexões de René Rémond [2], e onde as relações políticas passam a ser observadas a partir das diversas instâncias das realidades sociais. No viés interpretativo de Rémond, o político está intimamente entrelaçado aos vários âmbitos da vida em sociedade, e para entendê-lo é necessário atentar para as estruturas sociais.

Para além do aspecto individual, a História Política estava solidificando suas bases na ideia de que não são as ações individuais que mudam ou condicionam o rumo de um evento, mas os interesses de grupos que se confrontam e dão sentido à conjuntura [3]. Conforme explicitou Francisco Falcon [4], essa nova perspectiva de entender a política descentraliza os estudos políticos das imagens dos grandes homens, como os monarcas.

Nesse sentido, a terminologia conceitual cultura política nascida no seio do movimento de renovação da História Política, inspirado por Rémond [5], se propõe a entender “‘uma espécie de códigos e de um conjunto de referentes, formalizados no seio de um partido ou, mais largamente, difundidos no seio de uma família ou de uma tradição política’”6. Entretanto, o conceito não é uma exceção do campo da História, outras áreas como as Ciências Sociais o tem usado como a Antropologia Política. Trabalhos interessantes ganham relevância nesse debate como os dos pesquisadores Karina Kuschnir e Leandro Piquet Carneiro, que publicaram o título As dimensões subjetivas da política: cultura política e Antropologia Política pela revista Estudos Históricos, em 1999.

Para dar sentido a nossa proposta de dossiê temático, o artigo de Daniela de Jesus Ferreira, reúne um excelente esforço para compreender a atuação da imprensa comunista, no Brasil, especialmente nos anos de 1920 a 1930. A relevância da pesquisa está na preocupação com a expansão do pensamento comunista em território brasileiro, e os veículos utilizados para alcançar os objetivos político-partidários.

Leide Rodrigues dos Santos, em seu artigo, traz uma perspectiva muito parecida. A autora explicita que foca na “análise das músicas utilizadas como instrumento propagador das ideologias militares na ditadura brasileira (1964-1985)”. Sem dúvida, este texto representa uma preocupação acadêmica pertinente para o momento em que vivemos, especialmente depois dos relatórios divulgados pela Comissão Nacional da Verdade, em 10 de dezembro de 2014. Com foco voltado para a música enquanto instrumento de divulgação, a autora reafirma mais adiante que “o propósito primordial é perceber o quanto as músicas tidas como “ufanistas” também faziam parte do contexto em questão e assim perceber as influências exercidas que viriam marcar profundamente a história do país”.

Patrícia Maria Santos faz uma análise importante do movimento modernista em São Paulo, tendo como foco central a obra da artista Tarsila do Amaral produzida nos anos 1920, que tinha suas particularidades na representação do Brasil e dos brasileiros em sua obra. Mas, a preocupação central está em “compreender a sociedade e o cotidiano da década de 1920 em São Paulo, bem como identificar nas obras da artista evidências que permitam perceber as transformações processadas, seus acontecimentos e desfechos”. O artigo tem forte contribuição no entendimento do movimento modernista em São Paulo, sem cometer o famoso erro da generalização que comumente notamos nos trabalhos sobre essa temática.

Fechando a seção, o artigo de Luan Mendes de Medeiros Serqueira, traça uma excelente análise historiográfica sobre o itinerário do movimento político dos maçons, no Brasil, sem deixar de trazer as experiências de outros países. Segundo Serqueira sua proposta tem “como finalidade principal abordar um breve panorama da historiografia maçônica, isto é, a contribuição dos principais trabalhos não apenas pelos historiadores do meio acadêmica mas também pelos pesquisadores e historiadores maçons acerca dessa importante sociedade secreta”.

Na seção Artigo Livre contamos com a contribuição da pesquisadora Josilene Silva. Neste artigo nos deparamos com uma abordagem interessante sobre a guerra civil ocorrida em Moçambique, e que gerou um processo de silenciamento nacional sobre o conflito armado. Pensando nesse aspecto, Campos ressalta que “tem como objetivo refletir sobre o silenciamento nacional a respeito da guerra civil e de que forma as narrativas literárias se apresentam e são pensadas como espaços de memória, na tentativa de preencher a lacuna dessa experiência”. Ainda discutindo questões relacionadas à África, Leandro Rosa da Silva aborda “algumas mudanças que os contatos dos povos da África Índica com os europeus e os orientais trouxeram ao passado e identidades dos suaílis no século XVI”. A lógica narrativa, segundo Silva, será usada no sentido de descrever como o outro aparece a partir das perspectivas dos documentos de origem oriental e europeu.

Em História da Sala de aula dois artigos foram selecionados para compor a seção. A apropriação do livro didático como fonte de pesquisa representa sempre uma iniciativa louvável, levando-se em consideração a forte influência político-ideológica que ele pode exercer sobre a comunidade escolar. O primeiro artigo trata de uma contribuição de Everton Marques de Carvalho, onde o autor tenta entender como os livros didáticos abordam as questões políticas e econômicas. Na segunda contribuição, contamos com o artigo de Lívia Côrtes, que foca na experiência de estágio e o ensino de História.

Na seção Resenha contamos com a contribuição de Fernando Altoé, Kauan Willian dos Santos e André Augusto Bousfield. Que são análises críticas feitas sobre livros recentemente publicados.

Caberia neste momento reforçar nossos agradecimentos a todos os autores pelas contribuições. Esta revista representa uma luta dentro do processo de criação de revistas discentes. Algumas revistas no país tenderam a um segregacionismo absoluto. As seções desses periódicos estão reservadas para os doutores e mestres, o que impossibilita a publicação dos resultados de pesquisa discente. A produção dos estudantes de graduação e pós-graduação também faz parte do processo de construção do conhecimento histórico, e esta revista é um manifesto a todo tipo separatismo, inclusive o acadêmico.

Boa leitura.

Notas

2. RÉMOND, René. Uma história presente. In: Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p.15.

3. Para Rémond, a política não tem fronteiras naturais e sua definição abrange o campo do abstrato, sendo o poder o seu objetivo direto. Pelo seu caráter abstrato, conclui que “ele (o político – grifo nosso) não tem margens e comunica-se com a maioria dos outros domínios”. Ao mesmo tempo em que temos certeza de seu caráter etéreo, sentimos sua concretude no cotidiano, confirmando a ideia de que no mínimo a ideia de poder compreende uma dualidade. RÉMOND, René. Do político. In: Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p.443-44.

4. FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.98-138.

5. BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RÏOUX e SIRINELLI (org.). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998.

6. Ibidem, p.350.

Geferson Santana – Mestrando em Historia e Historiografia pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), e sob o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Correio eletrônico: [email protected]


SANTANA, Geferson. Apresentação. História.com. Cachoeira, v.2, n.3, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História e cultura política  / Escritas / 2014

Nesta Edição a Revista Escritas está disponibilizando ao público leitor o Dossiê História e Cultura Política, que reúne oito artigos tratando dos diversos aspectos dessa instigante temática que, especialmente após a década de 1980, tem chamado atenção dos pesquisadores que investigam o campo político. No texto A Cultura Política do Associativismo: o Club Rio Contense, Simone Ramos Marinho analisa a sociabilidade de uma sociedade literária e recreativa localizada na cidade de Rio de Contas (BA), destacando a importância dessa associação para a difusão da cultura política nacional no início do século XX. O artigo Da História Política à História Filosófica do Político: uma maneira de pensar a história mediante a proposta de Pierre Rosanvallon, Pedro Paulo Lima Barbosa estuda o fazer histórico, enfocando a proposta de Rosanvallon de entender o social por meio da política. Em Cenas de um Anticomunista: as representações das esquerdas brasileiras em Nelson Rodrigues (1967-1974), Carolina Bezerra Machado, tendo como recorte temporal os anos de 1967 a 1974, usa o conceito de cultura política para compreender as apropriações e representações das crônicas de Nelson Rodrigues escritas para o Jornal O Globo no período militar. No texto Música popular e engajamento nos anos 60: cultura política nas trajetórias artísticas de Violeta Parra, Mercedes Sosa e Elis Regina, Andrea Beatriz Wozniak-Giménez analisa as trajetórias e as respectivas culturas políticas dessas três cantoras, buscando apontar a relação entre arte musical e utopia de transformação social. No artigo Cultura Política no Paraguai: a herança do governo de Francia e dos López, Graziano Uchôa traça considerações sobre a forma como os governos de José Gaspar Rodriguez de Francia (1811-1840), Carlos Antonio López (1844-1862) e Francisco Solano López (1862-1870) contribuíram para a formação de certa cultura política no Paraguai, que valoriza a constituição de um Estado forte, centralizado e militarizado. Com o tema Partidos, eleições e poder local: análise das trajetórias eleitorais do PTB e do MDB em Canoas / RS (1947-1976), Douglas Souza Angeli aborda as eleições realizadas entre 1947 e 1976 em Canoas / RS, apontando a relação entre aumento demográfico, formação do eleitorado e trabalhismo. Em Palimpsesto Antissemita: desconstruindo o Plano Cohen, Elynaldo Gonçalves Dantas, tomando como parâmetro o arcabouço teórico derridiano, investiga a produção do Plano Cohen e demonstra a forma como esse texto está relacionado ao pensamento antissemita moderno. Em Partido Comunista Brasileiro e Partido Comunista do Brasil: meio século de disputa pela memória comunista, Patricia Sposito Mechi aborda a cisão do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ocorrida em 1962, devido a disputa ideológica que se instalou em suas fileiras desde a divulgação da Declaração de Março de 1958, que trouxe uma nova orientação política resultante do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, realizado em 1956.

Além dos artigos do Dossiê, supracitados, estamos publicando também mais seis artigos de temas livres. No artigo A igreja católica e os mecanismos de atuação no meio rural brasileiro (1955-1964), Bruna Marques Cabral investiga as estratégias políticas elaboradas pela Igreja Católica, para manter a sua hegemonia no meio rural brasileiro, entre 1955-1964, tendo como base os discursos dos intelectuais católicos brasileiros. O texto intitulado Do Espírito do Cristianismo: uma abordagem sobre o movimento que nasceu revolucionário e questões de relações cotidianas, os autores Diná da Silva Branchini e João Batista Ribeiro Santos discutem a historicidade e os rumos do cristianismo no Ocidente, bem como o movimento do Jesus Histórico. Em Apostolado da Boa Imprensa: contribuições das Filhas de Maria na imprensa católica (Pernambuco, 1902-1922), Walter Valdevino do Amaral, respaldando-se nas teorias de Michel Foucault, aborda a importância da imprensa e a contribuição das Filhas de Maria como propagadoras de algumas normas da Igreja Católica para a sociedade pernambucana, especialmente para o público feminino. Versando viagens e Sertões: sensibilidade romântica nas primeiras impressões de Euclides da Cunha, Nathália Sanglard de Almeida Nogueira aborda a trajetória intelectual de Euclides da Cunha e analisa a sensibilidade romântica presente na produção poética desse escritor. Com o sugestivo título Vamos comer Nietzsche: a recepção do pensamento nietzschiano na literatura brasileira até 1940, Antonio Vinicius Lomeu T. Barroso discute a forma como diversos grupos de intelectuais brasileiros (simbolistas, pré-modernistas e modernistas) se apropriaram do pensamento nietzschiano para pensar a questão do moderno no Brasil no início do século XX. O artigo Disputa Literária e Circulação de Ideias em Portugal a partir da obra O Filósofo Solitário (1786-1787), Rossana Agostinho Nunes pesquisa as várias apropriações e repercussão livro anônimo O filósofo solitário no mundo ibérico, especialmente em Portugal, fazendo uma discussão sobre a forma de circulação das ideias na Europa setecentista.

Para finalizar, publicamos a resenha de Luiz Felipe Batista Genú da obra de Erinaldo Cavalcanti, intitulado Relatos do Medo: A ameaça comunista em Pernambuco (Garanhuns – 1958-1964). Embora tenha um recorte local, a presente produção contribui para compreendermos a conjuntura política que antecedeu e favoreceu o golpe civil-militar de 1964 no Brasil. Esperamos que o público leitor faça um excelente proveito dessas importantes contribuições históricas que a Revista Escritas apresenta nessa Edição. Boa leitura.

Os Editores.

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[DR]

Lutas Sociais e Cultura Política / Projeto História / 2009

Os esforços de divulgação da Projeto Historia pelo corpo docente que compõem o seu conselho, particularmente na região latino americana, vêm ampliando o universo de colaboradores da revista que assume assim, cada vez mais, um caráter internacional.

A temática sobre lutas sociais e cultura política surge como a síntese das colaborações de especialistas que propiciam ao leitor adentrar a uma historiografia que adentram a aspectos antes pouco enfatizados anteriormente.

Deve-se em grande parte esta renovação aos esforços de aprofundar as reflexões sobre a diversidade e as identidades latino-americanas na contemporaneidade particularmente decorrente, por um lado, da posição que os países da região adquirem ante a mundialização do capital e dos esforços de integração regionais e, de outro, pela ampliação do acesso às fontes documentais, propiciado pela informatização de incontáveis acervos públicos e privados os quais trazem à tona novas evidências históricas ou simplesmente permitem reforçar ou redimensionar evidências já analisadas. “

Nadie ne manda a mi, yo soy el mandón de otros”,[1] assim resume o autor que discute a utopia de um direito que se torna inalienável desde os primórdios da colonização européia na America – o do direito individual que se sobrepõe ao direito coletivo, advindo de um direito de procedência arrogada pelos representantes da ordem nas Índias – que incluem as Américas. Um direito que funda a aura autocrática dos governos patriarcais que passaram a regular o metabolismo sócio-econômico e cultural geradora de uma sociedade de servos, escravos, concubinatos e clientes de toda ordem e que confere à formação dos estados nacionais latino-americanos, no pós-independência, singularidades no interior do liberalismo que grassava no mundo ocidental desde os idos do século XIX.

Após as independências, distantes de suas duas fontes de legitimidade – Deus e o Rei -, os governantes radicados nas Américas interpretam os códices ao seu livre arbítrio e definem os termos da coexistência, das colaborações e das soluções às contradições. É como uma lógica fundamental e inerente à constituição destas sociedades: a política é o direito da autoridade, do governante decidir sobre as políticas de contenção social, sobre as soluções jurisdicionais.

A cultura política que se instaura radicaliza a constatação de Marx, de que

o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura, a ocupação ‘atuem a seu modo’, ou seja, como propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer sua natureza ‘especial’. Longe de acabar com estas diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas (…). Onde o Estado político já tiver alcançado seu pleno desenvolvimento, o homem leva,- não só no plano do pensamento, da consciência, mas também no plano da realidade, da vida,- uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a vida na ‘comunidade política’, na qual ele se considera um ‘ser coletivo’, e no da ‘sociedade civil’, na qual ele atua como ‘particular’; considera os outros homens como meios, se degrada a si mesmo como meio e se converte em joguete de poderes estranhos.[2]

As características dessa cultura política, inicialmente entendida como uma via de mão única, pela qual os mandatários locais reinóis ou criollos lideravam a condução do processo colonial, vêm sendo aprofundadas pela historiografia recente, ante as evidências de que forças sociais múltiplas, de magnitudes distintas e procedências diversas contribuíram para as resultantes constitutivas das latinidades que compõem o continente. É o que se observa, por exemplo, sobre as reações contra as independências as quais advieram, não apenas de monarquistas, mas também dos segmentos que, embora possuidores de bens materiais e de patrimônios se vêm excluídos do acesso aos benefícios conforme propostos nas Constituições ou normas legais que passam a gerir Estados em formação.

Inicialmente denominadas simplesmente de conservadoras, a evidência de que muitos eram integrantes de nações indígenas que, além de serem grandes comerciantes e produtores possuíam força militar, possibilita novas reflexões dos historiadores. A partir daí, a participação de tais povos nos processos independentistas passa a ser analisada a partir da perspectiva de sua força social e não mais como simplesmente subordinada ao mandonismo criollo, além de verem sob nova ótica suas reações ante a iminência de perder direitos conquistados ainda sob o jugo colonial.

As novas autoridades que surgem radicalizam o mandonismo que subordina tudo aos interesses da lógica do capitalismo subordinado e dependente da órbita do centro desenvolvido, cujo cérebro naqueles fins do século XIX estava na Inglaterra. A crise ibérica já há muito não fazia frente à lógica da industrialização e comercialização que demandava das burguesias emergentes nas Américas apenas uma complementação na cadeia produtiva, com matérias primas e alguns produtos manufaturados. Tornava-se imprescindível produzir em larga escala para exportação e, por outro lado, eliminar a capacidade de atendimento às demandas internas com produtos locais.

Para situar a los países de la América hispana en la nueva orbita de dominación inglesa se tuvieran que producir dos movimientos simultáneos, pero no paralelos sino contradictorios: por un lado –el político- constituir entidades políticamente soberanas- un avance-, y por otro –el económico- destruir en las más destacadas de ellos el grado de desarrollo manufacturero artesanal que habían alcanzado, para configurarse únicamente como proveedoras de productos primarios- un retroceso-. Los dos movimientos combinados produjeron, también, el mal de la fragmentación.[3]

Tal condição de dependência e subordinação tantas vezes denunciada, o autor venezuelano, presente nesta edição, traz pelas palavras de Che Guevara, que, como muitos, buscaram alternativas de cunho socialista como solução. Destaca-se que este último, já na década de 1960, considerava, diversamente ao especialista citado acima, que

la soberanía política y la independencia económica van unidas. Si no hay economía propia, si se está penetrado por un capital extranjero, no se puede estar libre de la tutela del país del cual se depende, ni mucho menos se puede hacer la voluntad de ese país si choca con los grandes intereses de aquel otro que la domina económicamente.[4]

Na cultura política gestada desde as independências, a apropriação privada do poder público transmuta bandeiras tradicionalmente defendidas pelos movimentos que lutam pelo acesso aos direitos fundamentais do homem, em benesses para os privilegiados. Assim, por exemplo, os novos donos do poder promovem reformas agrárias que transformam policulturas coletivas em monoculturas privadas. Enquanto no período colonial, particularmente após a época bourbônica, as reclamações das comunidades indígenas contra a expropriação de suas terras pelos reinóis podiam resultar na manutenção de suas herdades, particularmente quando comprovavam que eram os que realmente as cultivavam; no período pós-colonial os julgamentos passam a ser efetivados por novos juízes, agora subordinados não mais a uma coroa distante, mas vinculados aos novos donos dos estados em constituição. No período colonial, antes, portanto, da revolução industrial, as metrópoles expropriavam as matérias primas, mas as demandas internas de produtos manufaturados continuaram a ser supridas por quem detinha a condição de produtor, por quem dominava a tecnologia, conhecia as rotas, organizava as feiras de artesanato e as ofertas de produtos da terra. Aos reinóis e aos criollos burocratas interessava mais assumir postos na administração, nos comandos das milícias, no sistema judiciário, na hierarquia da Igreja católica. Embora não deixassem de lado qualquer oportunidade para se apossarem das terras mais produtivas, quando as comunidades conseguiam levar à coroa suas denúncias, muitas conseguiam fazer valer seus direitos ancestrais por decisão de suas majestades. Assim a metrópole não apenas punha rédea ao poder dos reinóis e criollos, como também garantia que o abastecimento das demandas internas se mantivesse num fluxo razoável e, portanto, evitava mais focos de rebeliões.

Com as independências, eliminado este poder exterior que funcionava como uma espécie de contendor dos conflitos internos, a construção das novas nações experimenta a radicalidade das contradições, não apenas entre as classes, mas também no interior de segmentos que compõem as burguesias locais, tanto agrárias, quanto comerciárias e produtoras. O não reconhecimento da capacidade produtora e comerciária das comunidades locais reduziu, por anos, a percepção historiográfica sobre das lutas sociais que se instauram no momento da construção das nações.

Ficaram assim, subsumidas à luta política contra a metrópole, tais intencionalidades que conferem um caráter particular às lutas sociais da região ao longo de quase um século e mais, ocultaram a qualidade de produtores e comerciantes das comunidades nativas, capazes de manter uma economia quase autônoma à região, ao longo de todo o período colonial. E isto apesar de todas as perseguições, destruição de sua cultura, genocídios e massacres.

Tais leituras estigmatizaram também as lutas advindas dos povos africanos radicados e escravizados nas Américas, de que é um exemplo a revolução haitiana, cujo autor, neste numero da revista, destaca a importância histórica da região na transformação do capitalismo em um sistema econômico mundial, de “explotación integrado por metrópolis europeas y colonias caribeñas. A partir de entonces, esta región contribuyó, al tránsito y desarrollo de las etapas evolutivas del capitalismo. Es decir, al paso de la fase mercantil- manufacturera a la industrial y de ésta a la imperialista”. Etapas durante las cuales, el territorio que hoy denominamos Gran Caribe, sistemáticamente ha sido objeto y sujeto de de interés para las potencias capitalistas, resultado de lo cual, las entidades que integran esa área han sido subordinadas y explotadas por dichos imperios”. Sob o signo da liberdade e da igualdade as Américas independentes promoveram reformas agrárias que eliminaram o direito à produção e apropriação coletivas que às duras penas os povos nativos de muitas regiões do continente haviam granjeado, ainda sob os auspícios dos reis e mesmo da Igreja católica.

A percepção destas relações entre a coroa e os povos nativos pela historiografia recente não se contradita com as evidências do trato violento dos monarcas na America, conforme aponta o autor presente nesta revista que nos fala sobre o Brasil colônia. Conforme ele, a “violência foi uma ferramenta fundamental das autoridades (e da própria Coroa) inclusive para estabelecer alianças e compelir os índios ao serviço dos moradores portugueses. É que, como se procura apresentar neste texto, apesar da legislação instituída pela própria Coroa, a política em relação aos índios adaptou-se às circunstâncias concretas, mais do que a princípios gerais”.

A diversidade de circunstâncias inerentes aos processos independentistas instaura, portanto, uma nova lógica de dominação que, embora gestada no interior do jugo colonial espanhol e português, a ele ficara subsumida.

Após as independências, quando os interesses de determinadas oligarquias regionais se unem aos das nações industrializadas nada se contrapõe a esta nova correlação de forças que esmaga qualquer veleidade de desenvolvimento autônomo ao longo do século XX. Conforme apontam os autores, o desenvolvimento econômico experimentado pelas recém formações nacionais resulta no aumento da miserabilidade de sua população, na proporção direta da industrialização e da introdução de novas relações produtivas.[5]

A cultura política que resulta desta nova configuração do poder confronta-se com os anseios das mais distintas populações na região, anseios estes liberados pela perspectiva que, em tese, se punham com as independências.

Por tal configuração a violência integra de forma inerente o metabolismo social resultando em uma sociedade que se arma, tanto para a defesa de seus interesses materiais, quanto para confrontar um estado também bélico, que se impõe ditatoriamente ao longo do século XX, na maior parte dos países que surgem da fragmentação independentista. Por isto as abstrações constantes em um dos artigos que compõe esta edição, explicitam bem, não apenas a particularidade analisada, mas poderia estar referida a muitas outras na região. Conforme diz o autor, a “história da região mato-grossense até meados do século XX foi literalmente a história de um povo armado. Desde a penetração dos sertanistas paulistas, as relações de violência ficaram estabelecidas no confronto com uma natureza hostil, com o nativo da região e pelas disputas fronteiriças. No século XX, a região foi tumultuada por um nativismo exacerbado e violento. Depois, a parte sul foi envolvida no grande conflito com Paraguai. Herdando essas fortes raízes, surgidas a partir da convivência com a violência, nas primeiras décadas do século XX a região ficou marcada pelo domínio de coronéis e de bandidos”.

Tal violência é de tal forma inerente à formação da nova ordem oligárquica que, mesmo quando politicamente se alteram estruturas ou se implantam novas instituições com a intencionalidade, pelo menos expressa, de minimizar tal configuração. É o que conclui, por exemplo, a análise de outro autor sobre a mesma região, mas já na década de 1930. Esta demonstra, a partir de textos de um jornalista deste período para o qual as novas instituições implantadas pelo “novo regime” getulista seriam incapazes de mudar o quadro histórico de violências vigente. Conforme ela, o jornalista

não vislumbrou, possivelmente, qualquer papel que o novo governo, por meio de uma política que mudasse as estruturas econômicas e culturais, desempenharia para a superação da situação de violência que, com tanta força e indignação, (ele) narrou. Por isso, resumiu-se à exposição aberta dos problemas fronteiriços, gerados pela violência dos poderosos, pelo banditismo e pelo abandono do Estado.

Mesmo quando a intervenção do Estado faz valer o texto da lei, os resultados de sua aplicação demonstram a que interesses atende. O exemplo esta concretude observa-se nas reflexões deste numero, particularmente o artigo que demonstra como a legislação que dispunha sobre a tutela de menores, filhos de ex-escravas ou mulheres solteiras pobres, dificultava ou mesmo impedia que a luta das mulheres para obter a guarda de seus filhos junto à justiça atendesse às suas justas demandas. Embora tal legislação viesse no sentido de proteger o menor desvalido da exploração do trabalho por fazendeiros e membros da elite, conforme diz o autor, na realidade a tutela do estado corroborava com tal exploração.

Configura-se assim um tecido social cujas relações desumanizadas se expressam em todas as dimensões societárias, desde as relações públicas que, em princípio, se dedicam ao desenvolvimento humano, até as familiares. Para exemplificar a violência presente nestas dimensões, nada melhor do que o exercício da pedagogia, seja ela tomada como atributo escolar, seja como educacional, tanto na esfera publica, quanto na privada. Conforme diz o autor aqui presente,”desde el discurso pedagógico podemos introducirnos en las complejidades del entretejido social. Las críticas, censuras y reprensiones de conductas infantiles en las escuelas, así como de determinados comportamientos a escala social, dejan entrever realidades codificadas no como deseables, pero realidades al fin”. Analisando, como desde o século XVIII até meados do início do século XX, práticas pedagógicas violentas vigentes em escolas cubanas, recupera para o publico leitor uma bibliografia inédita que, pari passu a estes tempos, já as denunciava como estratégias de dominação, subordinação e de quebra da dignidade humana. Conforme ressalta um dos autores referidos em seu artigo, “el castigo físico estaba generalizado y aprobado en Cuba al igual que en el resto de las colonias españolas. El proverbio de Salomón: Qui bene amat bene castigar y que “golpeando con la vara a tu hijo no morirás” haría de la vara -más tarde instrumento de piedad- una de las herramientas predilectas para imponer severos castigos, junto con el bastón y el látigo”.

Por isto talvez não cause espécie ao leitor deste numero da revista, a demonstração da violência que se manifesta nas relações pessoais, privadas, afetas aos círculos das relações pessoais, que perpassam o quotidiano da vida, o dia a dia que, mesmo situado no campo dos afetos, traduz o esgarçamento social. Refere-se o autor à violência presente no interior da convivência amásia e matrimonial. Homens e mulheres, segundo ele, executavam diversas modalidades de agressões, sempre interligadas com a tentativa de manutenção das relações de poder e força, manifesta em diversas gradações e escalas.

Esperamos que a leitura do presente dossiê instigue a comunidade de autores voltados para os estudos sobre as relações entre os movimentos sociais e a cultura política na região e no mundo, a novas reflexões e aprofundamentos.

Notas

1. STERNS, Steve J. Paradgms of conquest, Journal of Latin American Studies, The colonial and post-colonial experience. Guest Editor: DONGHI, Halpherin, vol. 24, Cambridge University Press, 1992, p. 9.

2. MARX, Karl. A questão judaica. 2º ed. São Paulo, Morais, 1991. p. 37-41.

3. CÓRDEN, JOSÉ Luis Rubio. La rebeldía artesanal frente a la neocolonización de América del sur in SOLER, ROSÁRIO Sebilla (coord.) Consolidación republicana en América Latina. Sevilla, Consejo superior de Investigaciones científicas de Escuela de Estudios Hispano-americanos, 1999, p. 133.

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5. OUWENEEL y Arij & TORALES PACHECO, Cristina. Empresàrios, indios y estado. Perfil de la economía mexicana (siglo XVIII) in Latin America Studies (CEDLA), nº 45, USA, FORIS Publications, 1988. PEREZ BRIGNOLI, Hector. Breve historia de centroamérica. Madrid, Alianza Editorial, 1985.

Vera Lucia Vieira

Antonio Rago Filho


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 39, 2009. Acessar publicação original [DR]

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