Anarquistas de ultramar: Anarquismo/indigenismo/descolonización | C. Taibo

Hay una serie de estudios, muy específicos, destinados a entender y difundir cómo es que los anarquistas extendieron su filosofía por el mundo, en nivel intelectual y en dimensión práctica. Porque si algo caracterizó a los emisarios libertarios decimonónicos fue el no desligar la praxis de la idea. Esto lo entendieron, casi en un consenso general, los investigadores en las primeras décadas del siglo XX. Su producción historiográfica así lo constata. Pasar lista, por todos los autores sería una labor inconmensurable. Pero podemos identificar, al menos para los casos que son más contiguos a los contextos latinoamericanos, los trabajos puntuales de José C. Valadés y John M. Hart en México; Iaacov Oved en Argentina; Luis Heredia M. para el caso chileno; y el de Ricardo Melgar Bao en su compilado del movimiento obrero en Hispanoamérica. Leia Mais

Contra o vento. Portugal, o império e a maré anticolonial (1945-1960) – VALENTIM (LH)

VALENTIM, Alexandre. Contra o vento. Portugal, o império e a maré anticolonial (1945-1960). Lisboa: Círculo de Leitores, 2017, 840 pp. Resenha de: NASCIMENTO, Augusto. Ler História, v.73, p. 257-261, 2018.

1 Contra o vento, um de três livros sobre “um tempo mais longo” do império português, foca a resistência do governo de Salazar à descolonização entre 1945 e 1960. De uma perspectiva comparativa e global, esta excelente narrativa histórica do mundo em tempos de descolonização equaciona os condicionalismos dos múltiplos actores, desde as entidades internacionais aos colonizados, passando por Salazar, cujos processos decisórios escrutina minuciosamente, conquanto o livro não se debruce sobre Salazar e a sua política. Um dos condicionalismos é o contexto internacional – diga-se, uma variável crucial para o império português desde a sua constituição em oitocentos –, do qual, a par da emergência do bloco afro-asiático, da abdicação das potências coloniais e das disputas na ONU, avulta a política americana, pautada pela inclinação para a autodeterminação dos povos, com maior ou menor convicção consoante as conveniências do combate ao comunismo, que por vezes favoreceram as aspirações nacionalistas.

2 Contra essa determinante, o vento, Salazar, chefe quase incontestado, tentou ganhar tempo para manter a arquitectura política interna. Dos estéreis areópagos institucionais, atentos sobretudo ao lado de onde soprava o vento, brotava a corroboração da palavra do chefe. À luz da rígida subordinação prevalecente nos meandros do regime, percebe-se que, aquando da adopção da ideia de “nação una” contra a mística imperial, começava um debate de ilusões. As personalidades acreditavam ou forçavam-se a acreditar por força do corriqueiro acatamento das intenções do chefe, que passavam pela instrumentalização da ideia de integração nacional que, diz-nos o autor, teve uma função retórica, de justificação de soberania colonial – sobretudo quando esta se encontrava ameaçada do exterior. A mutação terminológica de “colónias” para “províncias ultramarinas” indiciava o intuito de recusar qualquer solução gradualista e prenunciava a resistência à descolonização, aparentemente em consonância com o consenso nacional acerca do património colonial.

3 Ao tempo, avultava a questão de Goa, que levou a que no PCP – cujos militantes não escapavam à crença generalizada na bondade da colonização – se advogasse o direito à autodeterminação já em 1955. Porém, tal posição do PCP era irrelevante para o regime, que a usava como prova de que o anticolonialismo era um manejo comunista contra o ultramar português. Com uma visão anacrónica do mundo, Salazar não se apercebeu da amplitude da retirada do poder colonial na Ásia, forçada pelos movimentos nacionalistas e pela crise das potências europeias. Desprezando os sinais do tempo – a propósito do Padroado, a Santa Sé sapou os fundamentos ideológicos da presença colonial –, Salazar acreditou em vão na fragmentação da Índia e não quis ver a aposta inglesa na interlocução com o Congresso Nacional Indiano. Se o recurso ao Tribunal de Haia constituiu um engulho para União Indiana, já da descrição das conversações secretas se infere uma obstinada cegueira perante as várias possibilidades oferecidas a Goa. Este livro não se queda nos meandros das dilações e mais expedientes diplomáticos na defesa do indefensável, evidentes no caso de Goa. Proporciona-nos uma viagem pelas várias situações coloniais – entre elas, o modus vivendi em Macau e o indirect rule em Timor – de que, ao arrepio do palavreado, se compunha a recém-baptizada “nação una”.

4 Portugal acordaria para o enorme hiato entre a imagem que a “nação construía de si e do seu Império” e as opressões vividas nas colónias por força da ameaça resultante da vaga descolonizadora que, além de rápida, era perturbante por fazer implodir os planos das potências coloniais de controlar o processo de descolonização. Contagiado por esta evolução política, subitamente o ambiente nas colónias de África tornou-se volátil, também devido às debilidades da administração e às sujeições impostas aos colonizados. Os massacres de finais dos anos 50 desmentiriam a vangloriada pax lusitana, aparente porque assente na repressão. A realidade era pouco conforme à harmonia racial ou, de outro modo, à presunção da subordinação natural do negro à tutela portuguesa. Todavia, mesmo se em perda, a sobranceria racista, incomparavelmente mais operante do que as lucubrações em torno do luso-tropicalismo à la carte e do benfazejo paternalismo dos portugueses, induzia ilusões quanto à capacidade de prevenir e conter a insurgência. Por exemplo, advogava-se a repressão dura, “dentro das leis que eles entendem”, de qualquer acto violento ou desrespeitoso para evitar o surgimento de uma “Argéliazinha” corrosiva de recursos e de energias, tal a expressão do optimismo baseado nos presumidos resultados da repressão infrene e selvagem, cinicamente justificada com a selvajaria imputada aos africanos.

5 Por convicção ou cedência aos interesses instalados, o poder colonial manteve até aos anos 50 formas arcaicas de exploração – trabalho forçado e culturas obrigatórias –, evidenciando relutância em subscrever a convenção de 1930 sobre trabalho forçado. Portanto, não estava em causa o “fracasso de uma política de integração”, mas, sim, a “aplicação de uma política que de integradora nada tinha”. Afinal, até nos relatórios de matiz reformista se obliterava a instituição marcante do colonialismo, o indigenato (conquanto possamos supor que a abstenção da menção ao indigenato, revelando muito da rigidez hierárquica do regime, não significasse que a sua abolição não estivesse pensada enquanto consequência das propostas reformistas). Não se aboliu o indigenato nos anos 50, retocando-se apenas os aspectos mais chocantes que poderiam chamar a atenção da opinião pública mundial.

6 Nestes anos, o rumo do colonialismo compôs-se do atrito entre o monolitismo da política colonial e as tentativas reformistas, para Valentim Alexandre, genuínas, mesmo se falhadas. Dada a rigidez do controlo das instituições e a consequente expressão apenas das ideias com cunho oficial, os alvitres reformistas tinham de ser ambíguos e contidos para poderem ser apresentados conquanto depois inexoravelmente rejeitados por afrontarem, minimamente que fosse, interesses instalados. Nada pareceria menos certo do que o idealismo de reformistas, para quem o pressentimento dos perigos levaria os colonos a mudar a posição relativamente aos negros. Como já há décadas Valentim Alexandre chamou a atenção, aos colonos que lidavam com as “realidades” no terreno, os idealismos afiguravam-se risíveis… Como convencer os colonos e os potentados de que, afinal, o interesse nacional era diverso do que vigorara durante décadas a seu benefício? Aventar que só com uma política indígena sã e verdadeira se asseguraria a confiança e a lealdade dos indígenas, base de uma ordem interna estável e sólida, afigurava-se um idealismo sem sentido. Nas colónias, e não só, sabia-se que tal não era verdadeiro. Por exemplo, cria-se que não seria por se pagar melhores salários que se obteria mão-de-obra (a que acrescia o desinteresse na redução do sobrelucro esperado nos empreendimentos coloniais).

7 Maior certeza subjazia à predição de que era mais do que duvidosa a sobrevivência de qualquer governo ao abalo da eventual perda das colónias. Justamente, dada a subordinação de tudo à preservação do seu poder, Salazar pendia para a PIDE e para os que, contrariamente às sugestões reformistas – que, diga-se, não salvariam as colónias –, achavam que a repressão era a chave da resolução de qualquer crise. No equivocado debate sobre a política colonial, truncado no tocante a conteúdos e condicionado porque operando desigualmente entre indivíduos e Salazar, a opção pela repressão foi levando a melhor sobre as reformas, para Valentim Alexandre, duas faces da política tendente a preservar a soberania sobre o império. Ao mesmo tempo que os luso-tropicalistas e reformistas produziam relatórios com sugestões para correcção das injustiças, já operava a disposição de conduzir o país para a guerra.

8 Em suma, contra o vento… ganhar tempo? A tal se resumiu a estratégia do governo de Portugal, cujos interesses foram subordinados aos de Salazar. Contra a aura de “estadista”, a história aqui narrada sugere, para não dizer que confirma, a senda de um ditador norteado pelo desejo de não querer assistir ao fim do seu poder, instrumentalizando tudo e todos, pouco lhe importando os portugueses. Para isso, construiu uma narrativa – composta de denúncias das frágeis verdades da conjuntura e, até, da duplicidade dos aliados de momento, assim como de antevisões etnocêntricas e racistas conquanto parcialmente confirmadas pelas convulsões supervenientes às independências – aparentemente irrebatível, sobretudo, por a ditadura vedar qualquer discurso dissonante. A este respeito, afigura-se sugestivo o facto de Salazar, cônscio da precariedade da soberania em Goa, auscultar o Conselho de Estado sobre (remotíssimas, se não falaciosas) hipóteses de um plebiscito ou de uma entrega institucional – soluções inconstitucionais –, qual forma de “apalpar o terreno” no topo do estado, de onde, presume-se, recolheria opiniões condicionadas não só pelos bordões do regime, mas até pela eventual intuição dos conselheiros de estar à prova a sua fidelidade.

9 Este livro insere breves diálogos com outros autores. Reconhece a António José Telo o mérito de aludir às mudanças nos apoios internacionais em finais da década de 1950, contestando, todavia, a ideia de inversão de alianças, até pela pouca firmeza dos apoios, pontuais e não comprometidos para o futuro. O autor discorda da qualificação, de Bruno Cardoso Reis, de Portugal como um estado pária, incluso na categoria dos estados que se colocavam contra as normas globais. Ora, apesar de isolado, Portugal pertencia à ONU, à NATO, à EFTA e tinha apoio da França e da Alemanha. Mais, as “relações com muitos dos novos países africanos” viriam a ser “mais complexas do que à primeira vista parecem”, uma perspectiva particularmente relevante para quem queira entender os posteriores desenvolvimentos em África.

10 A par destes diálogos, sopesam-se problemáticas, por exemplo, a da equiparação entre nazismo e colonialismo. Para o autor, a equiparação das práticas coloniais às nazis não deve ser levada longe por subsistirem diferenças, desde logo, por o poder colonial ser, não necessariamente mais humano, mas mais cônscio dos limites. Apesar de nem todos terem resultado de desmandos, os massacres coloniais tinham um carácter instrumental, não sendo, por regra, uma solução final ou uma política em si mesma. Ditatorial, o colonialismo português desdobrava-se facilmente na prevalência da arbitrariedade administrativa sobre a lei, factor propício a processos similares aos dos sistemas totalitários. Ainda assim, e mesmo que se desvalorize a ideologia que buscava a legitimação do colonialismo na missão evangelizadora e na integração, atente-se, por exemplo, na debilidade da ocupação administrativa, que limitava os efeitos das práticas discriminatórias e opressivas.

11 Nesta obra assente num vastíssimo leque de fontes, é notável a profundidade com que são retratados actores, situações conjunturais, possibilidades, estratagemas, decisões políticas, episódios e cenários de uma história global. O conhecimento não reproduz a vida, mas este livro quase nos torna testemunhas presenciais dos processos e das vicissitudes dos desempenhos na luta “contra o vento”. Esta narrativa, a que não falta, aqui e além, uma coloquialidade bem-humorada, não é uma história exaltante nem ideologicamente orientada. Pauta-a a atenção à multiplicidade de posições, incluindo a ambiguidade das enunciações para serem interpretadas pelo chefe providencial e tendencialmente absoluto. Traçados os caminhos da concretização dos supostos e reais objectivos da acção colonizadora, o autor arrola, sempre que pertinente, as várias interpretações possíveis. Pela criteriosa selecção das questões e perspectivas, valorizada pela exímia escolha de trechos citados, mormente dos papéis de Salazar, Valentim Alexandre foge ao maniqueísmo, que comummente não inspira senão a mera enunciação do consabido rol de malfeitorias insanáveis do colonialismo.

12 Obviamente, emergirão questões para responder, entre elas, a (eventualmente calada) percepção da parca valia do que se dizia (o que, aduza-se, tanto vale para os colonialistas, como, noutras circunstâncias, para os anti-colonialistas), a que se segue a questão de saber da convicção com que se lutava… “contra o vento”. Escasseiam as dúvidas: uma refere-se ao “regime colonial português tardio”, noção a aclarar pelos historiadores quanto ao período a que respeita e ao que caracteriza. Outra atém-se à grande influência do massacre de Pindjiguiti na evolução do nacionalismo guineense, do que se poderá duvidar, menos por se poder infirmar a asserção do que pela intuitiva relutância ao que poderá compor mais uma “biografia perfeita” do que uma relação intrínseca na génese do nacionalismo guineense, decerto avivado pelas influências advindas dos países limítrofes.

13 Esta obra interpela quanto às consequências de uma política que, independentemente das duras provas e de pequenas vitórias diplomáticas, não tinha saída: não se tratava de não se poder deixar de sacrificar os filhos à pátria, tratava-se de os instrumentalizar quando provavelmente já prevaleceria a consciência de que tal era inútil. Se esta hipótese estivesse certa, então, tudo não teria servido senão para Salazar preservar o poder até à morte, fito a que imolou o país. Fascinante viagem no tempo, esta é uma obra que, à margem dos nebulosos “factores de impacto”, nos enriquece. Resulta do exercício livre e competente do ofício de historiador, para que a sociedade e, infelizmente também, as universidades parecem ter deixado de ter tempo… Seja lá como for, após este, ficamos à espera dos próximos livros.

Augusto Nascimento – Centro de História da Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]

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Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée – MBEMBE (AN)

MBEMBE, Achille. Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée. Paris: Éditions La Découvert, 2010, 246p. Resenha de: MIGLIAVACCA, Adriano Moraes. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 559-562, dez. 2014.

Desde as descolonizações e retiradas de seus países dos antigos poderes coloniais europeus, a situação do continente africano vem sendo assunto frequente e polêmico entre intelectuais, políticos e formadores de opinião no próprio continente e fora dele. Os diversos problemas econômicos e sociais, a instabilidade política e os conflitos internos fazem com que a metáfora da “caixa sem chave”, usada como epígrafe de um dos capítulos do livro Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée, do cientista político camaronês Achille Mbembe, pareça se justificar. O hermetismo presente nessa metáfora amplifica-se com a imagem que o leitor encontra logo no título do livro: a da “grande noite”.

A obra de Mbembe apresenta um exame complexo da natureza desse fechamento em que se encontram o continente e os fenômenos que o compõem. Obra de teor político, Sortir de la grande nuit, além de se valer de imagens poéticas, parte de um relato pessoal de memórias do próprio autor, camaronês com formação acadêmica na França e longa passagem pelos Estados Unidos, que vive atualmente na África do Sul, onde leciona na Universidade de Witwatersrand. O percurso intelectual da obra reflete, portanto, a trajetória do próprio autor: tendo importante foco na África francófona e seu relacionamento ambíguo e tenso com os poderes coloniais franceses, não deixa de considerar as possibilidades e visões que advêm desses diversos países que perfaz a experiência do autor.

Em seu ecletismo literário, o ensaio inicia-se com uma narrativa dos anos de infância, no Camarões, estabelecendo a África, incontroversamente, como núcleo de onde o pensamento do autor se organiza e a partir do qual se articulam as influências de fora. De sua infância em Camarões, Mbembe destaca e elabora seu convívio inicial com os dois elementos que, articulados, dão o teor do livro: a noite e a morte. O autor recorda como o impressionaram, quando criança, os cadáveres ao relento, revolvidos por escavadeiras; relembra também os revolucionários tornados terroristas pelo discurso do poder colonial, mortos aos quais foi negado o reconhecimento de uma sepultura. Acima de tudo, o autor lembra como buscava simbolizar e entender essa realidade que o cercava, e é aí que a metáfora central do livro aparece em sentido denotativo e conotativo: era à noite que o jovem Achille Mbembe buscava construir um discurso sobre a morte. Não é negado o papel que teve o encontro com o cristianismo nessa busca por entendimento: a religião que veio de fora aparecia tanto como discurso de insubmissão quanto como possibilidade de haver, após o escuro da morte e da noite, algo de vida.

Mbembe deixa evidente, no decorrer da obra, o ceticismo com que encara a cultura do colonizador em seus anos de estudante na França. Lá, ele se depara com um povo orgulhoso de sua tradição republicana humanista e universalista, de sua língua como uma “língua humana, universal”. Mbembe não deixa de apontar e elaborar uma contradição entre esse humanismo universalista e o racismo que vê no bojo da própria sociedade francesa e na forma como esta se impusera em seu país natal. A obra do autor antilhano Frantz Fanon abre para ele novas perspectivas sobre o tema da raça, o faz ver o confinamento em uma raça como algo que pode ser superado, bem distante da rigidez dos postulados raciais com que as tradições francesas formaram narrativas de cidadania e pertença a uma humanidade; postulados nos quais o estatuto de “cidadão” é barrado àqueles que, embora admitidos na grande esfera da “humanidade”, o são com certas limitações: são seres humanos “primitivos”, limitados em sua humanidade última. O pensamento de Fanon o coloca à frente com o desafio de romper tal clausura identitária e fazer ver que o homem negro, longe de ser um “primitivo”, é um “homem”, ao qual não faltam quaisquer predicados que definem essa categoria.

Para além da França, Mbembe articula as oportunidades de entendimento que se lhe apresentaram suas experiências nos Estados Unidos e na África do Sul. Uma história de luta por direitos civis, a presença de personalidades negras altamente influentes e a capacidade, mais pronunciada que a da França, de captar para suas universidades as elites africanas, fazendo dos Estados Unidos um destino mais atraente do que a França, cuja influência Mbembe vê declinar. A África do Sul não consegue esconder os vestígios de seu passado discriminatório, que faz o autor ver nela “o signo da besta”; no entanto, o trânsito étnico, nacional e cultural do país dá a ele um cosmopolitismo que é incorporado pelo autor em seu pensamento.

Acima de tudo, é enfatizada a necessidade de uma descolonização, mais que política ou econômica, subjetiva, interior; ou, para usar as palavras do autor, é necessária uma “reconstituição do sujeito”, no qual se desmontem as estruturas coloniais e o possível seja reabilitado. Mbembe é inequívoco em afirmar que esta não é uma tarefa meramente prática-política: um trabalho epistemológico e estético deve ser efetuado, por meio do qual um novo conhecer-se a si mesmo pode emergir. Em particular, a importância da literatura e da crítica literária é enfatizada nesse movimento de descolonização.

A exclusão da África enquanto realidade surge no discurso ocidental primeiramente como uma operação da linguagem. A literatura africana surge como uma reação contra a falta de realidade que reveste o signo africano, enquanto a crítica literária busca operar a desconstrução da prosa colonial, sua montagem mental, suas representações e formas simbólicas que serviram de infraestrutura ao projeto imperial.

Em quaisquer áreas disciplinares, Mbembe identifica no discurso africano três paradigmas político intelectuais, não necessariamente autoexcludentes: o nacionalismo anticolonial, o marxismo e o pan- -africanismo. O primeiro teve uma influência importante na esfera da cultura, da política e economia; o segundo foi fundamental na formação do que veio a ser conhecido como “socialismo africano”; e o terceiro enfatizou a solidariedade racial e transnacional. Para Mbembe, parece, tais paradigmas tendem a ser excessivamente fixos, não dando conta da complexidade e do dinamismo que caracterizam o continente africano. O autor lembra como a África não compreende apenas os negros, mas também as diversas etnias que vieram lançar raízes em seu solo; não compreende apenas os que lá ficam, mas os que de lá saíram, mas continuam sendo, não obstante, africanos.

A África de Mbembe constitui-se, então, não como fonte estática, mas como intervalo de modificações e passagens; seu é o discurso, não mais das origens, mas do movimento, de uma “circulação de mundos”, como conceitua o próprio autor. A esse novo paradigma, Mbembe dá o nome de “afropolitanismo” – movimento no qual a África relativiza suas raízes e busca se reconhecer no distante e o distante no próximo, o próprio no outro. Esse novo paradigma, Mbembe enfatiza, torna insustentável mesmo a “solidariedade negra” proposta pelo pan-africanismo; a raça, afinal, resulta do discurso colonial e externo, exatamente aquele que se busca superar.

Talvez não seja coincidência o fato de o livro se iniciar com as palavras “Il y a um demi-siécle” (há meio século) e terminar com “temps nouveaux” (novos tempos). No título mesmo, já se insinua a inclinação do pensamento do autor para o que há de vir, ao qual todo o trabalho histórico, biográfico e crítico, estendendo-se ao longo da obra. A saída da grande noite a que o autor insta seu leitor é uma busca de vida, uma vontade de comunidade; a noite e a morte englobam as heranças do passado colonial – o confinamento racial, a dependência política e econômica, a subordinação psíquica e intelectual. A vida que busca o empreendimento do autor passa pela negação mesma dessas heranças, mas se dirige a uma nova identidade, um novo centro, que não negue, mas celebre sua multiplicidade.

Notas

1 O livro acaba de ser publicado em língua portuguesa, com o título Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Mangualde; Luanda: Edições Pedagô; Edições Mulemba, 2014. 204p.

Adriano Moraes Migliavacca – Formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; doutorando em Literaturas Estrangeiras Modernas pela mesma universidade. E-mail: [email protected].

Território primitivo: A institucionalização da Arqueologia no Brasil (1870-1917) – FERREIRA (RA)

FERREIRA, Lúcio. Território primitivo: A institucionalização da Arqueologia no Brasil (1870-1917). Resenha de: BARRETO, Cristina. Em nome da descolonização da Arqueologia brasileira. Revista de Arqueologia, v.24, n.2, p.124-131, 2011.

Território Primitivo é um livro que trata da arqueologia feita no Brasil há mais de um século, mas nem por isso fica apenas no passado. Ao contrário, é uma contribuição extremamente atual, na medida em que se alinha com as preocupações contemporâneas em descolonizar a arqueologia (Haber e Gnecco, 2007). Não me refiro aos estudos e teorias pós-colonialistas que se multiplicaram nos anos 1980 e 1990, na esteira da teoria crítica e do pós-modernismo em geral e que, na arqueologia anglo-saxônica, resultaram em análises críticas de representações e discursos colonialistas, apontando o papel da arqueologia na desconstrução do colonialismo europeu e do imperialismo americano. Refiro-me às reflexões, também decorrentes deste pós-colonialismo, mas que se empenham em descolonizar a disciplina em terras latino-americanas e em outras ex-colônias, apontando e se contrapondo aos males do chamado “colonialismo interno”.

Segundo Ferreira, “o colonialismo interno é uma força acionada a partir do interior de uma fronteira nacional; ele ocorre quando uma elite se vale da ciência (e não apenas do exército) para imaginar geografias, classificar, governar e expropriar populações.” Isto é quase sempre feito de forma a caracterizar o colonizado, o “outro”, não só como diferente, mas essencialmente primitivo. Daí o título do livro escolhido por Ferreira: Território Primitivo.

A introdução parte deste conceito de “colonialismo interno” cunhado pelo antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira nos anos 1960, e também da ideia de “reconfiguração do colonialismo” proposta por Stuart Hall para descrever como os Estados-Nação pós- -coloniais da América Latina construíram suas ideologias de independência.

Na constituição destas novas nações, pesquisadores, diretores de museus, chefes de expedições científicas e encarregados de missões oficiais para o reconhecimento de território, muitas vezes europeus radicados nesses novos países, ocuparam posições estratégicas para organizar a arqueologia em nações ainda em construção, criando diversas e complexas narrativas sobre o passado pré-colonial indígena.

Vítimas das contradições inerentes às elites científicas locais, estes personagens construíram uma arqueologia dentro dos moldes acadêmicos europeus, mas muitas vezes comprometida com programas colonialistas ou imperialistas aos quais convinha pintar o passado nativo com grandes doses de barbárie primitiva; mas às elites republicanas interessava também construir uma arqueologia que respondesse a uma nova identidade nacional, muitas vezes recriada à base do enaltecimento do passado local.

É no contexto de construção destas novas nações que muitas políticas públicas relativas às populações indígenas e ao patrimônio arqueológico foram diretamente influenciadas, quando não formuladas por esta elite científica.

No Brasil, este processo tem suas especificidades, personagens e dilemas particulares. Aqui, assim como o advento da República não trouxe grandes mudanças nas formas oligárquicas de poder , também a arqueologia que Ferreira denomina de “nobiliárquica”, incentivada pelo Imperador D. Pedro II e o grupo de cientistas por ele apoiado, continua em parte a ser praticada sob a roupagem dos novos ideais nacionalistas.

Território Primitivo trata desse processo de reconfiguração da arqueologia a partir da sua institucionalização oficial em três museus: o Museu Botânico do Amazonas em Manaus, o Museu Paraense em Belém, e o Museu Paulista em São Paulo. Suas fontes históricas são a produção científica dos homens que estiveram à frente destas instituições, respectivamente o brasileiro João Barbosa Rodrigues, o suíço Emílio Goeldi e o alemão Herman von Ihering. Estes três estudos de caso definem assim a estrutura tripartite do livro, com um capítulo dedicado a cada caso. Ferreira apresenta assim uma versão mais enxuta da sua tese de doutoramento defendida em 2007 sob o mesmo título.

O recorte no período específico de apenas 47 anos, entre 1870 (ano em que Barbosa Rodrigues inicia suas pesquisas) e 1917 (ano em que Ihering deixa o Museu Paulista) tem vantagens evidentes. Primeiro, permite uma análise minuciosa da produção e dos debates da época, o que em geral não foi possível fazer nos estudos mais abrangentes que incluem a trajetória da arqueologia no Brasil como um todo. Outra vantagem na escolha do período enfocado é que este não poderia ser mais instigante. Nesses poucos 47 anos, o Brasil passa por enormes mudanças políticas e sociais, com o fim do Império e da escravidão, e a modernização trazida pela nova economia cafeeira.

É sob esta enorme lente de aumento e viés teórico descolonizador que Ferreira faz um balanço bastante detalhado da medida em que os projetos científicos e políticas propostas por estes três pesquisadores viriam a perpetuar a velha arqueologia nobiliárquica colonialista ou se distanciariam dela, rompendo com os antigos ideais de dominação etnocêntrica.

No primeiro capítulo, Ferreira revisita a produção de Barbosa Rodrigues e enquadra suas hipóteses sobre as origens normandas e asiáticas dos povos indígenas da Amazônia no campo da arqueologia nobiliárquica. Mas também aprendemos que Rodrigues era crítico da colonização portuguesa, responsabilizando- a pela degeneração indígena, propondo como política de pacificação e integração indígena um programa de educação para “civilizá-los” novamente. A proposta, que mais parece um programa de “desindianização”, se lê nas entrelinhas da citação de Barbosa Rodrigues escolhida por Ferreira: “Lançar, pois as bases para começar a civilização, isto é, o ensino que os torna cidadãos onde se firmam os deveres de honra, brio, do justo e do honesto, para que sejam úteis à pátria, será daqui por diante todo o meu trabalho”.

Ferreira, com razão, identifica nesta ideia de degeneração um traço típico da Arqueologia colonialista, argumento já desenvolvido em outro artigo referente à produção de von Martius, Varnhagen e Meggers que o autor co-assina com Francisco Noelli (Noelli e Ferreira, 2007).

Ao longo de Território Primitivo ele perseguirá o uso deste conceito de degeneração indígena nas propostas de políticas públicas dos três personagens analisados. Contudo, a ênfase neste conceito acaba por deixar de lado o mapeamento de outro importante ingrediente do colonialismo, e que está na base do argumento da degeneração, que é o estabelecimento de uma escala hierárquica de valores das populações de acordo com suas características raciais. A investigação das origens dos diferentes povos através de categorias raciais replicava os debates de uma Europa cujos contornos territoriais estavam sendo postos à prova por inúmeros conflitos políticos regionais. No Brasil, o desenvolvimento de uma arqueologia baseada na antropologia biológica, no estabelecimento das origens e raças dos antigos ameríndios foi marcante neste período, e talvez tenha sido o fato mais determinante para que a disciplina se desenvolvesse no país à parte das ciências humanas e sociais (Barreto, 1999/2000: 38-39).

Boa parte do segundo capítulo dedicado ao Museu Paraense é na verdade sobre Domingos Soares Ferreira Pena, precursor de Goeldi na direção do Museu. Ferreira se empenha em desconstruir o que Sanjad (2005) denomina tradição memorialista na história do Museu Paraense, tradição esta que apresenta Ferreira Pena como um precursor iluminado do projeto científico do Museu e da arqueologia amazônica. Ao contrário desta versão oficial, o texto de Meneses Ferreira desbanca Ferreira Pena desta posição e deixa claro que o forjado enaltecimento da sua figura acabou por camuflar seu papel como arqueólogo nobiliárquico que, entre outras posições colonialistas, teria reativado o conceito de degeneração, tornando-o mais “palpável”, transformando a “civilização retrocedente” em uma evidência de estratos arqueológicos.

O autor reconhece a importância das pesquisas de Ferreira Penna, mas não indica o pioneirismo de suas hipóteses americanistas. Ferreira Pena acreditava que os antigos povos da Amazônia teriam se desenvolvido neste continente e que diferentes movimentos populacionais, como os povos que teriam sido empurrados pelo império Inca, ou uma grande dispersão de povos falantes da língua Tupi, seriam responsáveis pelas mudanças observadas nos extratos arqueológicos escavados, hipótese que soa surpreendentemente atual para qualquer arqueólogo trabalhando hoje na Amazônia.

Para a além desta “tupimania”, criticada posteriormente por Goeldi e Ihering, Pena tentou correlacionar a iconografia das cerâmicas que escavou em Marajó, em Miracanguera e em Maracá a diferentes grupos linguísticos. Suas pesquisas arqueológicas foram entremeadas de longas estadias entre diferentes grupos indígenas, compilando dados linguísticos e outros traços etnográficos. Esta perspectiva antropológica mais holística, não tão centrada na questão biológica e racial, certamente representou algum avanço no desenvolvimento da Arqueologia amazônica, mesmo que no Museu Paraense, isto tivesse sido feito de maneira relativamente caótica aos olhos de seu sucessor, o zoólogo suíço Emílio Goeldi.

“Ordenar o caos” é o subtítulo escolhido por Ferreira para tratar então da obra de Emílio Goeldi. O texto é semelhante ao do artigo já publicado pelo autor sob o mesmo título (Ferreira, 2009). Apesar dos avanços na reestruturação que Goeldi fez no museu, inclusive instituindo uma seção especificamente dedicada à arqueologia e etnografia juntas, Ferreira aqui também identifica várias proposições que intentaram fortalecer um colonialismo interno. A mais grave delas era conceber as pesquisas científicas como uma prática de governo dos índios, e tomar como modelo institucional o Bureau of Ethnological Research, da Smithsonian Institution, para recriar a instituição imperial do Diretório dos Índios do Estado do Pará.

Segundo Ferreira, a escolha do modelo americano não foi aleatória; era o modelo de uma instituição que “obedecia a projetos manifestamente colonialistas”, onde “as pesquisas arqueológicas e antropológicas, imbricadas ao aparelho de estado, asseguravam a legislação das reservas indígenas, o esfacelamento das terras para sua posterior apropriação e colonização”. Ferreira reconhece que Goeldi não seguiu à risca o modelo, e nem poderia, vistas as diferentes estruturas político-administrativas. Neste ponto, Ferreira poderia ter perguntado como, diante do enorme e desconhecido território amazônico, o zoólogo suíço não olhasse para um projeto que, de uma maneira ou de outra, e talvez o único, se aplicava a uma realidade etnográfica semelhante na extensão do território e na diversidade de suas populações. Além disso, vista a proposição de Goeldi de colocar um bom etnógrafo à frente do Diretório, parece- -nos que o que mais o atraía no modelo americano era a possibilidade de estruturar a pesquisa de boa qualidade, como a que era feita na Smithsonian.

Mas é também neste ponto que a originalidade da contribuição de Ferreira se destaca de outras interpretações históricas sobre o papel dos museus deste período. Ferreira discorda das visões Simon Schwartzman (1979) e de Lilia Schwarcz (1993) de que estes museus eram instituições frágeis, isoladas, cuja produção era uma ciência de caráter pouco pragmático e aplicado. De acordo com Ferreira, a história é outra. Goeldi teria implantado um plano metódico de aumentar e reorganizar as coleções do Museu e diversificar as áreas de pesquisa, o que o fez através de sua expedição à Guiana, mas sempre de forma a “atrelar” as pesquisas e coleções a projetos políticos e geoestratégicos. Isto incluía a negociação de fronteiras entre o Brasil e a França.

Também, ao longo do livro fica claro como, ao contrário do cenário pintado por Lilia Schwarcz , os diretores de museus brasileiros, Goeldi, Ladislau Neto, Ihering e muitos dos outros pesquisadores, estavam perfeitamente integrados ao debate científico internacional. Não só as publicações e as peças de coleções eram permutadas entre os museus para as exposições, como também os congressos científicos, em particular o Congresso Internacional dos Americanistas era um fórum onde a contribuição brasileira era considerável. Ferreira identifica este processo de “transculturação” entre o local e o global como mais um elemento típico da estratégia colonialista.

O capítulo sobre Herman von Ihering e o Museu Paulista, apesar de ser o mais longo, é também o que menos surpreenderá o leitor, uma vez que já se entrevê sua argumentação de como este também ajudou a estabelecer os contornos territoriais de uma política indigenista. Entre outras propostas extremas, Ihering chegou a defender o extermínio de índios que eram um “empecilho para a colonização do sertão que habitam” (Ihering: 1907:215).

Ferreira descreve com grande detalhe as hipóteses e cenários propostos por Ihering para explicar o passado das populações indígenas e de certa forma nos esclarecer como a questão do extermínio se contextua lizava em seu pensamento mais amplo. O esforço do autor é certamente eficaz e acaba por descrever um perfil bastante complexo, onde a tônica parece residir em demarcar opiniões próprias. Ihering acreditava em uma unidade geológica, ambiental e cultural entre a Argentina, o Uruguai e o Sul do Brasil. Considerava os Andes um centro difusor de civilização, cujos “círculos ondulatórios” de difusão teriam beneficiado apenas os Guaranis. Os outros povos indígenas eras bem mais primitivos, e retomava assim a divisão estabelecida ainda no Império por uma arqueologia de raças, que separava hierarquicamente os dolicocéfalos e dos braquicéfalos. A ilha de Marajó constituía uma exceção, um enclave de alguma influência andina ilhada na selvageria Amazônica.

Ferreira mostra o desempenho político de Ihering em diversas vertentes, mas sobretudo nas exposições que organizava e nas Sociedades cientificas das quais era membro. O caráter por vezes perverso de seu discurso é bem documentada por Ferreira nas citações escolhidas e detalhes levantados, como o seu colecionamento de artigos de jornais que narravam as barbaridades cometidas pelos índios aos sertanejos. Em uma posição algo extrema, Ferreira revê a contraposição frequente na literatura entre as posições de Ihering e as propostas humanistas de Candido Rondon na formação do SPI. Na sua visão, os objetivos finais eram os mesmos: abrigar a civilização e garantir o povoamento das fronteiras. O crítico escrutínio dos três casos escolhidos por Ferreira certamente demonstram as ligações nem sempre evidentes entre a arqueologia institucional e as agendas de políticas públicas que quase sempre puseram outros interesses à frente da defesa das populações indígenas. Neste julgamento da história, a narrativa de Ferreira por vezes se aproxima de um estilo que Bruno Latour comparou às teorias conspiratoriais na crítica social, onde o intelectual, em nome da descontrução de um discurso positivo, acaba não colocando nada no lugar, a não ser sua superioridade em decodificar e desvendar agendas camufladas de poder. Mas, Latour também nos lembra que a crítica é inútil contra objetos de alguma solidez.

“The mistake would be to believe that we too have given a social explanation of scientific facts. No, even though it is true that at first we tried, like good critics trained in the good schools, to use the armaments handed to us by our betters and elders to crack open—one of their favorite expressions, meaning to destroy—religion, power, discourse, hegemony. But, fortunately (yes, fortunately!), one after the other, we witnessed that the black boxes of science remained closed and that it was rather the tools that lay in the dust of our workshop, disjointed and broken. Put simply, critique was useless against objects of some solidity.” (Latour, 2004:242).

No final, resta ao leitor a pergunta sobre o que realmente vingou das teorias científicas e das propostas colonizadoras identificadas por Ferreira e até que ponto esta história poderia ter sido diferente. Como as influências destes personagens marcaram a trajetória subsequente da arqueologia no Brasil? A arqueologia brasileira atual, dominada pela arqueologia de contrato e regulamentada pelo Estado não continuaria sendo, de certa forma, não só uma “ciência de governo” – no caso, de gestão do patrimônio arqueológico -, mas também uma ciência do capital?

Em seus comentários finais, Ferreira faz referência às críticas de Câmara Cascudo e Mário de Andrade à arqueologia nobiliárquica, reconhecendo contudo que “o espírito que animou Mario de Andrade esteve longe da Arqueologia Brasileira”. Deixa assim uma crítica velada no ar a um movimento que, nas artes e nas letras, representou uma grande ruptura com os valores colonialistas. A antropofagia modernista que, já em 1928, bradava “Contra todas as catequeses. …Queremos a revolução Caraíba” (Oswald de Andrade, 1928), é considerada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro a única contribuição realmente anticolonialista.

“Ela jogava os índios para o futuro e para o ecúmeno; não era uma teoria do nacionalismo, da volta às raízes, do indianismo. Era e é uma teoria realmente revolucionária […]” (Viveiros de Castro, 2007).

Se a busca de novas identidades nacionais no modernismo incorporou estereótipos fazendo referências a muiraquitãs e lendas amazônicas, a antropofagia e revoluções caraíbas, sem contar o tupi (or not tupi), não seria porque apenas conheciam o que havia sido divulgado nas exposições concebidas por Barbosa Rodrigues, Ladislau Neto e von Ihering? Nas poucas imagens registradas nos catálogos e publicações dos museus, como as belas pranchas de Goeldi que ilustram também o livro de Ferreira? É graças a estes conteúdos icônicos que as “jazidas” pré-históricas e as coleções arqueológicas acabaram entrando no primeiro ante-projeto de proteção do patrimônio cultural do país, não por acaso proposto por Mario de Andrade.

Chegando ao final, o leitor certamente terminará o livro tendo desejado que o autor, tão eficiente nas análises históricas, tivesse elaborado algo mais a relação entre o passado analisado e o presente da arqueologia no Brasil. Isto posto, Território Primitivo é um sólido alicerce para a construção desta tarefa.

Referências

ANDRADE, Oswald de 1928 Manifesto Antropofágico. Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.(Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.).

BARRETO, Cristiana 1999-2000 A construção de um passado pré-colonial. Uma breve história da arqueologia no Brasil. Revista Usp 44, pp. 32-50.

FERREIRA, Lúcio 2009 “Ordenar o Caos”: Emílio Goeldi e a arqueologia amazônica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 4, n. 1, p. 71-91, jan.- abr.

HABER, Alejandro e Cristobal GNECCO 2007 Virtual Forum: Archaeology and Decolonization , Archaeologies, Journal of World Archaeology Congress, Volume 3, Número 3, 390-412.

LATOUR, Bruno Why Has Critique Run out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern. Critical Inquiry 30, The University of Chicago, pp. 225-248.

NOELLI, Francisco Silva; FERREIRA, Lúcio Menezes. 2007 A persistência da teoria da degeneração indígena e do colonialismo nos fundamentos da arqueologia brasileira. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.4, p.1239-1264.

SANJAD, Nelson Rodrigues 2005 A Coruja de Minerva: O Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907). Tese de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.

SCHWARCZ, Lilia Moritz 1993 O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e a Questão Racial no Brasil (1870-1930). Companhia das Letras, São Paulo.

SCHARTZMAN, Simon 1979 Formação da Comunidade Científica no Brasil. Editora Nacional, São Paulo.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo 2007 Entrevista a Pedro Cesarino e Sérgio Cohn. Revista Azouge, Programa Cultura e Pensamento, MinC, Rio de Janeiro, n. 11, pp. 11-12.

Cristina Barreto

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