Mil 1499: O Brasil Antes de Cabral – LOPES (RA)

LOPES, Reinaldo José. 1499: O Brasil Antes de Cabral. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017. 248p. Resenha de SOUZA, João Carlos Moreno de. Resenha de: SOUZA, João Carlos Moreno. Revista de Arqueologia, v.31, n.1, 2018.

Reinaldo José Lopes é jornalista científico, escreve para a Folha de São Paulo e é autor do blog ‘Darwin e Deus’. A publicação de matérias de temas arqueológicos é muito frequente, e tornam o autor um dos maiores divulgadores do conhecimento arqueológico para o grande público a nível nacional, e ‘1499: O Brasil Antes de Cabral’ é uma prova disso.

O livro se propõe a realizar um apanhado geral da história pré-colonial do território atualmente conhecido como Brasil. O autor, no entanto, pouco escreve sobre as ocupações mais antigas que 14 mil anos atrás ou sobre o povoamento inicial da Américas, provavelmente para evitar ir de frente ao consenso da arqueologia norte-americana, começando a retratar a (pré-) história do Brasil a partir de 13.500 anos antes do presente. É importante notar que as idades mencionadas no livro são idades calibradas e podem dar a impressão de serem equivocadamente mais antigas do que costumamos ver em outras obras não acadêmicas, quando na verdade foram representadas de uma forma mais acurada.

A introdução do da obra realça o fato de que o entendimento que possuímos atualmente sobre o passado da humanidade é nitidamente diferente e muito mais detalhado do que tínhamos há poucos anos atrás e explicita a importância que os estudos sobre o passado humano têm nas sociedades atuais. Os próximos seis capítulos do livro são focados em realizar um apanhado cronológico dos grupos de primeiros habitantes do território brasileiro.

O primeiro capítulo trata sobre os grupos caçadores-coletores da transição Pleistoceno-Holoceno e Holoceno Inicial. Por um lado, o Lopes retrata muito bem aspectos biológicos destas antigas populações. Por outro lado, ignora os aspectos culturais. As únicas (e raras) menções às mais antigas indústrias líticas e representações rupestres brasileiras são todas relacionadas à microrregião de Lagoa Santa, em Minas Gerais, deixando de lado a associações de diferentes conjuntos de cultura material a diferentes grupos humanos.

Já o segundo capítulo é totalmente voltado aos grupos litorâneos, especialmente os Sambaquis. Mais uma vez, o autor se preocupa em retratar a biologia e a idade destes grupos humanos, mas ignora quase que totalmente os aspectos culturais e materiais destas sociedades. Não são retratadas as indústrias de artefatos de pedra e osso, é mencionada apenas brevemente a construção dos sambaquis, os zoólitos e os aspectos simbólicos dos sepultamentos.

Posteriormente, o terceiro capítulo retrata o início do manejo e domesticação das plantas, com foco na Amazônia. O autor descreve bem as principais hipóteses sobre os processos que iniciaram a domesticação das plantas, mas volta a ignorar a cultura material que acompanha esse novo modo de vida nas populações pré-cabralinas.

O quarto e o quinto capítulo também são voltados à “queridinha” da pré-história brasileira: a Amazônia. Ambos os capítulos, mais uma vez, retratam muito bem as discussões teóricas de complexidade social, política e econômica sobre as populações que ali viviam durante o Holoceno Tardio, e desta vez menciona alguns importantes aspectos de cultura material, como as estruturas de montículos e geoglifos, e a cerâmica tupi-guarani e marajoara.

Ainda, Reinaldo José Lopes, no sexto capítulo, trata de descrever a dispersão dos grupos ameríndios em território brasileiro, baseando-se nas famílias linguísticas destes mesmos grupos. Mais uma vez, o autor se prende na Amazônia, tendo como exceção uma menção aos estudos de grupos Jê em Santa Catarina.

Por fim, Lopes encerra o livro com um epílogo, em que discute como a chegada dos colonizadores (invasores) europeus causou diversos problemas para a sobrevivência das populações que vieram a ser referidas como indígenas, e como a relação entre as sociedades indígenas e a sociedade “moderna” poderia ter sido diferente desde o começo.

A obra não é voltada ao público acadêmico, mas a um público muito mais abrangente. O autor escreve de forma pela qual a leitura flui facilmente, evitando o uso de termos técnicos os quais apenas arqueólogos e outros cientistas entendem. No entanto quando o faz, o autor busca explicá-los de uma forma simples, porém acurada, para que o leitor os compreenda. Quando o autor entende que o assunto tratado no livro é muito complexo para a maioria dos leitores, ele se dá ao direito de realizar pausas para “explicações técnicas” e elucida estes mesmos assuntos, tais como datação radiocarbônica, análise genética, análise isotópica e estudos de complexidade social. Apesar de não ser um arqueólogo, Lopes, enquanto jornalista científico, toma o cuidado para respeitar e utilizar termos que evitam a propagação de estereótipos pré-históricos. Um exemplo disso é a aplicação correta do termo “humanos anatomicamente modernos”, ao invés de Homo sapiens, para se referir aos seres humanos atuais em certos momentos.

As principais falhas do autor estão em retratar a pré-história brasileira com um foco quase que limitado aos aspectos biológicos dos primeiros grupos humanos do atual território brasileiro, e no foco quase que limitado à Amazônia ao tratar de grupos menos antigos. Lopes é muito preciso no apanhado que realiza sobre a pré-história, mas esta poderia ser muito mais acurada se ele tivesse descrito os principais conjuntos de materiais (representações rupestres e indústrias de artefatos líticos e cerâmicos) que levaram arqueólogas e arqueólogos a identificar diferenças culturais em todo o território brasileiro. Talvez em uma segunda edição da obra algumas páginas que descrevam resumidamente a diversidade de cultura material pré-histórica brasileira seja possível.

Apesar das falhas em sua obra, Reinaldo José Lopes claramente tem uma noção excelente da importância da arqueologia para as sociedades atuais e é muito feliz em transmitir esta mensagem. O último trecho da obra é a prova disso, sendo uma perfeita resposta à questão da importância dos estudos de arqueologia pré-histórica brasileira: “A pré-história é a chave para entender estas condições iniciais [de contato de indígenas e europeus] e para demonstrar que o passado profundo do Brasil é tão rico e complexo quanto o do Velho Mundo. Em nome dos herdeiros dele, convém não esquecê-lo” (p. 232). Enfim, ‘1499’ é uma obra que definitivamente despertará o interesse de muitas pessoas à pré-história brasileira e convém ser lida por acadêmicos não arqueólogos que buscam ter uma mínima noção no tema.

João Carlos Moreno de Sousa – PPGArq, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Historica racialized toys in the United States – BARTON; SOMERRVILLE (RA)

BARTON, C. P.; SOMERVILLE K.. Historica racialized toys in the United States. Walnut Creek, Califórnia: Left Coast Press, 2016. 102p. Resenha de ALVES, Daniela Maria. Revista de Arqueologia, v.31, n.2, 2018. Especial: Arqueologia da Infância.

O livro Historical Racialized Toys in the United States, de Barton e Somerville, recentemente publicado, apresenta uma abordagem multidisciplinar, contemplando um estudo arqueológico, sociológico e antropológico da cultura Vitoriana nos Estados Unidos, a partir do estudo da cultura material. Os autores compilaram 172 brinquedos advindos de dados de colecionadores e antiquários, de catálogos e coleções de museus. Esses brinquedos foram datados entre os anos de 1865 a 1930.

A obra contempla seis capítulos, distribuídos ao longo de 102 páginas. Primeiramente, Barton e Somerville conceituam a ideologia de raça e argumentam sobre a teoria de habitus de Pierre Bourdieu (1997, 1984). O trabalho é um exame de como os brinquedos produzidos em massa geraram visões preconceituosas a respeito de populações asiáticas, irlandesas, negras e nativas americanas. Tais estereótipos funcionaram como método de socialização das crianças entre a última metade do século XIX e início do século XX, em uma visão de mundo racializada e racista. A priori, atenta-se à ideologia de raça, que sugere haver diferenças inatas na espécie humana. Essa categorização é hierárquica e possivelmente conduz à práticas de racismos, isto é, um ou mais grupos raciais recebem privilégios em detrimento da desumanização dos “outros”. Similarmente a qualquer construção social, raça é uma ideologia que tem sua origem fabricada, assim como sua manutenção e reprodução realizadas por meio da socialização da criança.

Os brinquedos não foram os únicos objetos a mostrar representações do “outro”, no entanto talvez sejam os mais chocantes para a sensibilidade moderna, pois são objetos especificamente feitos para crianças. Como explica Bourdieu, os indivíduos não aderem cegamente às estruturas sociais, mas operam dentro de uma “área cinza” que aplica, rejeita e modifica tradições pré-existentes. A habilidade de mediar a estrutura social é baseada sobre a socialização de um indivíduo que cultiva um habitus. O habitus permite e restringe as práticas individuais dentro das situações de mudança social. As práticas individuais diárias causam reações nas relações sociais, um habitus individual é alterado para conformar as situações de mudança e depois transformar a estrutura social. O resultado é uma relação dinâmica na qual as estruturas sociais coletivas influenciam as práticas individuais, e as práticas individuais podem afetar a estrutura social, o que possibilita a continuação e modificação da sociedade através do tempo e do espaço. Desse modo, as relações sociais não são estáticas, mas são constantemente sujeitas à renegociação. Assim, a teoria de Bourdieu possibilita entender as relações entre estrutura, habitus e prática, facilitando o modelo teórico no qual pode-se interpretar a disposição reflexiva e constitutiva da cultura material analisada.

Em seguida, as discussões giram em torno de conceitos como raça, classe e capitalismo na América. Barton e Somerville retomam o conceito de raça, afirmando tratar-se de construção ideológica para promover a hegemonia de classes dominantes por meio da criação falsa de uma percepção entre e dentro dos grupos marginalizados. No século XIX até o início do século XX da era capitalista, a possibilidade de qualquer união solidária entre esses grupos marginalizados era negada. Assim, essas ideologias posicionavam as “raças” como competidoras umas com as outras, ao contrário de desafiar o poder das classes dominantes. Tal poder ideológico da raça sugere que as classes trabalhadoras brancas tinham mais em comum com as elites brancas. Durante o período de institucionalização da escravidão nos Estados Unidos, houve uma associação semiótica direta entre pele negra e percepção biológica e social de inferioridade. A combinação entre escravidão e ideologia racial expandiu-se nas sociedades escravocratas do Sul e depois invadiu todo o país. No nordeste dos Estados Unidos, o medo do crescimento da população negra, entre os séculos XVIII e XIX, resultou em estratégias institucionais e práticas diárias usadas para minar a influência negra na política, na economia e na sociedade. Com o fim da escravidão, o país experienciou uma grande expansão do racismo. Um aspecto marcante da influência suscitada pela ideologia racista, popularizada por volta da década de 1830, era os espetáculos de interpretação, performance e música, denominados de blackface minstrel show. Nessas performances figuravam homens brancos como atores interpretando atitudes e comportamentos tidos como característicos dos negros. Muitos desses atos apresentavam comportamentos infantis ou pessoas negras felizes com a escravidão. Homens afro-americanos eram representados como jovens trapaceiros ou como empregados bem preguiçosos. Tais estereótipos racistas foram cultivados não somente por meio de interações com pessoas negras, mas também pela socialização em uma visão de mundo racista.

O texto também perpassa pela temática da criança e da infância. A infância é descrita como um período prolongado de dependência, durante o qual as crianças tornam-se socializadas e aceitas na sociedade em que nasceram e isso varia de acordo com a cultura, assim como as atividades e comportamentos considerados permitidos. Essas atividades e comportamentos estão relacionados à construção de gênero e encontram-se centradas nas categorias de biologia, sexo e idade. Os adultos costumam usar diferentes estratégias, como leituras, premiação/punição, exposição/restrição a certas experiências, para incutir nas crianças valores e comportamentos considerados culturalmente aceitos.

Em seguida, são expostas definições e reflexões sobre o brinquedo e a brincadeira, além da análise sobre a influência da Era Vitoriana britânica na sociedade americana. Os autores salientam a perspectiva comportamental do brincar como um comportamento orientado e ativo, cuja estrutura é altamente variável, na qual aparentemente não há intenção imediata e há acompanhamento específico de sinais que incluem odores, sons, ausência de submissão, inversão das relações de dominação, mudanças nas atitudes motoras individuais, etc. Na época Vitoriana, os brinquedos tinham uma função utilitária e serviam como instrumento para desenvolver habilidades físicas e mentais, além de incutir valores culturais nas crianças. Enfatizavam diferenças de gênero e refletiam a crença da época de que a infância é um período fundamental para o desenvolvimento da moral e da ordem no ser que futuramente será adulto. O período vitoriano foi sinônimo de capitalismo industrial, rápida industrialização e sistema socioeconômico baseado em classes. Com isso, os brinquedos manufaturados rapidamente se tornaram um grande negócio nos Estados Unidos e na Europa. O desenvolvimento tecnológico facilitou a produção em massa de brinquedos de ferro, lata, de bonecas, livros, jogos de tabuleiro e tornou possível aos pais de todas as classes sociais a compra de brinquedos para seus filhos em diferentes graus de qualidade.

Posteriormente, é apresentada a metodologia, bem como os resultados da análise da cultura material. Os 172 brinquedos foram classificados do seguinte modo: 53 cofres mecânicos (possuíam mecanismos que eram acionados quando ali se colocava uma moeda), 18 cofres não mecânicos, 63 brinquedos de corda, 9 brinquedos de puxar e empurrar, 6 jogos de alvo, 6 pistolas, 12 bonecas/conjunto de bonecas, 3 fantasias e 2 jogos de tabuleiro. Muitos desses brinquedos em sua aparência e nas descrições dos rótulos das embalagens sugerem inferioridade e falta de autocontrole do “outro”, particularmente considerando as representações dos brinquedos afro-americanos. Observa-se a fascinação das pessoas com a novidade, com a inovação e com o desejo de estimular a vida pelo significado mecânico. Os brinquedos automatizados da época representam intrincada convergência da concepção vitoriana do corpo do outro e da performatividade do corpo, que servia para criar e recriar estruturas racializadas e de racismo, além de socializar as crianças nessas estruturas.

Quatro raças não brancas foram representadas nos brinquedos, quais sejam: os nativo-americanos, os asiáticos (japoneses e chineses), os irlandeses e os negros.

Os nativo-americanos foram representados em 10 brinquedos examinados. Dois tipos de estereótipos foram destacados pelos autores: o guerreiro violento e o “nobre selvagem”. O guerreiro violento foi notado nos jogos de tiro ao alvo, cujo objetivo era acertar com espingarda figuras de homens nativo-americanos, juntamente com leões, bisões e tigres. Como exemplificação para o estereótipo do “nobre selvagem”, os autores relatam um cofre mecânico, no qual encontrava-se a figura de Cristóvão Colombo fumando um cachimbo. Além da mensagem de paz, o brinquedo apresenta a posição de subjugados dos indígenas em relação aos europeus.

Os chineses foram representados em 14 brinquedos, enquanto os japoneses foram representados em apenas 4 deles. A partir de 1849 a imigração chinesa nos Estados Unidos cresceu vertiginosamente. Os chineses foram os primeiros a serem empregados no trabalho manual nos campos minados e nas ferrovias do Oeste. Nos brinquedos, os homens chineses eram especialmente associados a uma longa trança. Outra associação perigosa era baseada na religião. No século XIX, qualquer prática religiosa fora da visão protestante era considerada ameaçadora para a sociedade. Os chineses foram vistos como incapazes de boa moral, por causa das práticas religiosas e sociais, e, por fim, acreditava-se que eles poderiam arruinar a seguridade econômica da classe trabalhadora.

Os irlandeses foram representados em 2 brinquedos. Um deles trata-se de um cofre mecânico, no qual um homem irlandês é retratado com testa proeminente, queixo símio, prognatismo facial, pele e cabelos claros. O homem segura um porco entre as pernas. Isso porque a maioria dos imigrantes irlandeses vivia na zona rural e com limitado capital social e econômico. Exerciam trabalhos manuais, eram relegados ao empobrecimento, à vida nos guetos, convivendo com altas taxas de criminalidade e poluição. A aparência e os movimentos do homem que parece lutar com o porco por dinheiro mostra o elemento de classe associado aos irlandeses no século XIX e XX, imigrantes malvestidos realizando qualquer trabalho degradante para conseguir poucos ganhos.

Os afro-americanos foram representados em 142 brinquedos. Um dos mais impressionantes são as bonecas topsy-turvy, uma boneca com cabeça e torso de menina branca atada na cintura à cabeça de uma menina negra, com uma longa e ampla saia separando as duas. Alguns pesquisadores afirmam que as bonecas foram feitas por mulheres escravas como significado de contestação à repressão sexual pelo homem branco; outros sugerem que as bonecas foram utilizadas para socializar garotas negras a fim de entender a dualidade da maternidade e assim ensiná-las a importância do cuidado com suas próprias crianças e com as crianças de seus donos brancos.

Para concluir, Barton e Somerville ressaltam que não havia sistema social à parte das práticas sociais padronizadas. Essas práticas eram criadas e reproduzidas conforme eram postas em ação, como afirma Bourdieu. Os brinquedos do período Vitoriano se preocupavam em ensinar valores e moralidade. Esses valores formavam as bases para o capital social e cultural da classe média e os brinquedos racializados foram os meios pelos quais a classe média gerou capital simbólico. Nesse sentido, esses objetos foram analisados não apenas como produtos para o divertimento, mas também como diálogo e locus frequente de conflito entre adultos e crianças e entre crianças e seus pares. Os brinquedos da era Vitoriana tentavam impor ordem entre garotos e garotas para que eles se tornassem modelos, indivíduos que conhecessem seus papéis tão bem quanto conhecessem o papel e o lugar do outro na sociedade. Os brinquedos racializados de todos os tipos e de todos os períodos de tempo revelam muito mais sobre os adultos que ofereceram os brinquedos às crianças do que sobre as crianças que os receberam.

É certo que o trabalho dos autores é de suma relevância para a temática da criança e da infância. Apesar de se tratarem de objetos desassociados de seu contexto arqueológico, o livro explora as interconexões entre a cultura material e a identidade social da época Vitoriana nos Estados Unidos, tão marcada pelas desigualdades sociais. Os brinquedos reunidos pelos autores contribuem ainda para aclarar sobre tipos de artefatos do período histórico mais recente, além de revelar as crianças como componentes do registro arqueológico e histórico, e como agentes nas relações sociais da época abordada.

Daniela Maria Alves – Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia MAE/USP. E-mail: [email protected].

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Território primitivo: A institucionalização da Arqueologia no Brasil (1870-1917) – FERREIRA (RA)

FERREIRA, Lúcio. Território primitivo: A institucionalização da Arqueologia no Brasil (1870-1917). Resenha de: BARRETO, Cristina. Em nome da descolonização da Arqueologia brasileira. Revista de Arqueologia, v.24, n.2, p.124-131, 2011.

Território Primitivo é um livro que trata da arqueologia feita no Brasil há mais de um século, mas nem por isso fica apenas no passado. Ao contrário, é uma contribuição extremamente atual, na medida em que se alinha com as preocupações contemporâneas em descolonizar a arqueologia (Haber e Gnecco, 2007). Não me refiro aos estudos e teorias pós-colonialistas que se multiplicaram nos anos 1980 e 1990, na esteira da teoria crítica e do pós-modernismo em geral e que, na arqueologia anglo-saxônica, resultaram em análises críticas de representações e discursos colonialistas, apontando o papel da arqueologia na desconstrução do colonialismo europeu e do imperialismo americano. Refiro-me às reflexões, também decorrentes deste pós-colonialismo, mas que se empenham em descolonizar a disciplina em terras latino-americanas e em outras ex-colônias, apontando e se contrapondo aos males do chamado “colonialismo interno”.

Segundo Ferreira, “o colonialismo interno é uma força acionada a partir do interior de uma fronteira nacional; ele ocorre quando uma elite se vale da ciência (e não apenas do exército) para imaginar geografias, classificar, governar e expropriar populações.” Isto é quase sempre feito de forma a caracterizar o colonizado, o “outro”, não só como diferente, mas essencialmente primitivo. Daí o título do livro escolhido por Ferreira: Território Primitivo.

A introdução parte deste conceito de “colonialismo interno” cunhado pelo antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira nos anos 1960, e também da ideia de “reconfiguração do colonialismo” proposta por Stuart Hall para descrever como os Estados-Nação pós- -coloniais da América Latina construíram suas ideologias de independência.

Na constituição destas novas nações, pesquisadores, diretores de museus, chefes de expedições científicas e encarregados de missões oficiais para o reconhecimento de território, muitas vezes europeus radicados nesses novos países, ocuparam posições estratégicas para organizar a arqueologia em nações ainda em construção, criando diversas e complexas narrativas sobre o passado pré-colonial indígena.

Vítimas das contradições inerentes às elites científicas locais, estes personagens construíram uma arqueologia dentro dos moldes acadêmicos europeus, mas muitas vezes comprometida com programas colonialistas ou imperialistas aos quais convinha pintar o passado nativo com grandes doses de barbárie primitiva; mas às elites republicanas interessava também construir uma arqueologia que respondesse a uma nova identidade nacional, muitas vezes recriada à base do enaltecimento do passado local.

É no contexto de construção destas novas nações que muitas políticas públicas relativas às populações indígenas e ao patrimônio arqueológico foram diretamente influenciadas, quando não formuladas por esta elite científica.

No Brasil, este processo tem suas especificidades, personagens e dilemas particulares. Aqui, assim como o advento da República não trouxe grandes mudanças nas formas oligárquicas de poder , também a arqueologia que Ferreira denomina de “nobiliárquica”, incentivada pelo Imperador D. Pedro II e o grupo de cientistas por ele apoiado, continua em parte a ser praticada sob a roupagem dos novos ideais nacionalistas.

Território Primitivo trata desse processo de reconfiguração da arqueologia a partir da sua institucionalização oficial em três museus: o Museu Botânico do Amazonas em Manaus, o Museu Paraense em Belém, e o Museu Paulista em São Paulo. Suas fontes históricas são a produção científica dos homens que estiveram à frente destas instituições, respectivamente o brasileiro João Barbosa Rodrigues, o suíço Emílio Goeldi e o alemão Herman von Ihering. Estes três estudos de caso definem assim a estrutura tripartite do livro, com um capítulo dedicado a cada caso. Ferreira apresenta assim uma versão mais enxuta da sua tese de doutoramento defendida em 2007 sob o mesmo título.

O recorte no período específico de apenas 47 anos, entre 1870 (ano em que Barbosa Rodrigues inicia suas pesquisas) e 1917 (ano em que Ihering deixa o Museu Paulista) tem vantagens evidentes. Primeiro, permite uma análise minuciosa da produção e dos debates da época, o que em geral não foi possível fazer nos estudos mais abrangentes que incluem a trajetória da arqueologia no Brasil como um todo. Outra vantagem na escolha do período enfocado é que este não poderia ser mais instigante. Nesses poucos 47 anos, o Brasil passa por enormes mudanças políticas e sociais, com o fim do Império e da escravidão, e a modernização trazida pela nova economia cafeeira.

É sob esta enorme lente de aumento e viés teórico descolonizador que Ferreira faz um balanço bastante detalhado da medida em que os projetos científicos e políticas propostas por estes três pesquisadores viriam a perpetuar a velha arqueologia nobiliárquica colonialista ou se distanciariam dela, rompendo com os antigos ideais de dominação etnocêntrica.

No primeiro capítulo, Ferreira revisita a produção de Barbosa Rodrigues e enquadra suas hipóteses sobre as origens normandas e asiáticas dos povos indígenas da Amazônia no campo da arqueologia nobiliárquica. Mas também aprendemos que Rodrigues era crítico da colonização portuguesa, responsabilizando- a pela degeneração indígena, propondo como política de pacificação e integração indígena um programa de educação para “civilizá-los” novamente. A proposta, que mais parece um programa de “desindianização”, se lê nas entrelinhas da citação de Barbosa Rodrigues escolhida por Ferreira: “Lançar, pois as bases para começar a civilização, isto é, o ensino que os torna cidadãos onde se firmam os deveres de honra, brio, do justo e do honesto, para que sejam úteis à pátria, será daqui por diante todo o meu trabalho”.

Ferreira, com razão, identifica nesta ideia de degeneração um traço típico da Arqueologia colonialista, argumento já desenvolvido em outro artigo referente à produção de von Martius, Varnhagen e Meggers que o autor co-assina com Francisco Noelli (Noelli e Ferreira, 2007).

Ao longo de Território Primitivo ele perseguirá o uso deste conceito de degeneração indígena nas propostas de políticas públicas dos três personagens analisados. Contudo, a ênfase neste conceito acaba por deixar de lado o mapeamento de outro importante ingrediente do colonialismo, e que está na base do argumento da degeneração, que é o estabelecimento de uma escala hierárquica de valores das populações de acordo com suas características raciais. A investigação das origens dos diferentes povos através de categorias raciais replicava os debates de uma Europa cujos contornos territoriais estavam sendo postos à prova por inúmeros conflitos políticos regionais. No Brasil, o desenvolvimento de uma arqueologia baseada na antropologia biológica, no estabelecimento das origens e raças dos antigos ameríndios foi marcante neste período, e talvez tenha sido o fato mais determinante para que a disciplina se desenvolvesse no país à parte das ciências humanas e sociais (Barreto, 1999/2000: 38-39).

Boa parte do segundo capítulo dedicado ao Museu Paraense é na verdade sobre Domingos Soares Ferreira Pena, precursor de Goeldi na direção do Museu. Ferreira se empenha em desconstruir o que Sanjad (2005) denomina tradição memorialista na história do Museu Paraense, tradição esta que apresenta Ferreira Pena como um precursor iluminado do projeto científico do Museu e da arqueologia amazônica. Ao contrário desta versão oficial, o texto de Meneses Ferreira desbanca Ferreira Pena desta posição e deixa claro que o forjado enaltecimento da sua figura acabou por camuflar seu papel como arqueólogo nobiliárquico que, entre outras posições colonialistas, teria reativado o conceito de degeneração, tornando-o mais “palpável”, transformando a “civilização retrocedente” em uma evidência de estratos arqueológicos.

O autor reconhece a importância das pesquisas de Ferreira Penna, mas não indica o pioneirismo de suas hipóteses americanistas. Ferreira Pena acreditava que os antigos povos da Amazônia teriam se desenvolvido neste continente e que diferentes movimentos populacionais, como os povos que teriam sido empurrados pelo império Inca, ou uma grande dispersão de povos falantes da língua Tupi, seriam responsáveis pelas mudanças observadas nos extratos arqueológicos escavados, hipótese que soa surpreendentemente atual para qualquer arqueólogo trabalhando hoje na Amazônia.

Para a além desta “tupimania”, criticada posteriormente por Goeldi e Ihering, Pena tentou correlacionar a iconografia das cerâmicas que escavou em Marajó, em Miracanguera e em Maracá a diferentes grupos linguísticos. Suas pesquisas arqueológicas foram entremeadas de longas estadias entre diferentes grupos indígenas, compilando dados linguísticos e outros traços etnográficos. Esta perspectiva antropológica mais holística, não tão centrada na questão biológica e racial, certamente representou algum avanço no desenvolvimento da Arqueologia amazônica, mesmo que no Museu Paraense, isto tivesse sido feito de maneira relativamente caótica aos olhos de seu sucessor, o zoólogo suíço Emílio Goeldi.

“Ordenar o caos” é o subtítulo escolhido por Ferreira para tratar então da obra de Emílio Goeldi. O texto é semelhante ao do artigo já publicado pelo autor sob o mesmo título (Ferreira, 2009). Apesar dos avanços na reestruturação que Goeldi fez no museu, inclusive instituindo uma seção especificamente dedicada à arqueologia e etnografia juntas, Ferreira aqui também identifica várias proposições que intentaram fortalecer um colonialismo interno. A mais grave delas era conceber as pesquisas científicas como uma prática de governo dos índios, e tomar como modelo institucional o Bureau of Ethnological Research, da Smithsonian Institution, para recriar a instituição imperial do Diretório dos Índios do Estado do Pará.

Segundo Ferreira, a escolha do modelo americano não foi aleatória; era o modelo de uma instituição que “obedecia a projetos manifestamente colonialistas”, onde “as pesquisas arqueológicas e antropológicas, imbricadas ao aparelho de estado, asseguravam a legislação das reservas indígenas, o esfacelamento das terras para sua posterior apropriação e colonização”. Ferreira reconhece que Goeldi não seguiu à risca o modelo, e nem poderia, vistas as diferentes estruturas político-administrativas. Neste ponto, Ferreira poderia ter perguntado como, diante do enorme e desconhecido território amazônico, o zoólogo suíço não olhasse para um projeto que, de uma maneira ou de outra, e talvez o único, se aplicava a uma realidade etnográfica semelhante na extensão do território e na diversidade de suas populações. Além disso, vista a proposição de Goeldi de colocar um bom etnógrafo à frente do Diretório, parece- -nos que o que mais o atraía no modelo americano era a possibilidade de estruturar a pesquisa de boa qualidade, como a que era feita na Smithsonian.

Mas é também neste ponto que a originalidade da contribuição de Ferreira se destaca de outras interpretações históricas sobre o papel dos museus deste período. Ferreira discorda das visões Simon Schwartzman (1979) e de Lilia Schwarcz (1993) de que estes museus eram instituições frágeis, isoladas, cuja produção era uma ciência de caráter pouco pragmático e aplicado. De acordo com Ferreira, a história é outra. Goeldi teria implantado um plano metódico de aumentar e reorganizar as coleções do Museu e diversificar as áreas de pesquisa, o que o fez através de sua expedição à Guiana, mas sempre de forma a “atrelar” as pesquisas e coleções a projetos políticos e geoestratégicos. Isto incluía a negociação de fronteiras entre o Brasil e a França.

Também, ao longo do livro fica claro como, ao contrário do cenário pintado por Lilia Schwarcz , os diretores de museus brasileiros, Goeldi, Ladislau Neto, Ihering e muitos dos outros pesquisadores, estavam perfeitamente integrados ao debate científico internacional. Não só as publicações e as peças de coleções eram permutadas entre os museus para as exposições, como também os congressos científicos, em particular o Congresso Internacional dos Americanistas era um fórum onde a contribuição brasileira era considerável. Ferreira identifica este processo de “transculturação” entre o local e o global como mais um elemento típico da estratégia colonialista.

O capítulo sobre Herman von Ihering e o Museu Paulista, apesar de ser o mais longo, é também o que menos surpreenderá o leitor, uma vez que já se entrevê sua argumentação de como este também ajudou a estabelecer os contornos territoriais de uma política indigenista. Entre outras propostas extremas, Ihering chegou a defender o extermínio de índios que eram um “empecilho para a colonização do sertão que habitam” (Ihering: 1907:215).

Ferreira descreve com grande detalhe as hipóteses e cenários propostos por Ihering para explicar o passado das populações indígenas e de certa forma nos esclarecer como a questão do extermínio se contextua lizava em seu pensamento mais amplo. O esforço do autor é certamente eficaz e acaba por descrever um perfil bastante complexo, onde a tônica parece residir em demarcar opiniões próprias. Ihering acreditava em uma unidade geológica, ambiental e cultural entre a Argentina, o Uruguai e o Sul do Brasil. Considerava os Andes um centro difusor de civilização, cujos “círculos ondulatórios” de difusão teriam beneficiado apenas os Guaranis. Os outros povos indígenas eras bem mais primitivos, e retomava assim a divisão estabelecida ainda no Império por uma arqueologia de raças, que separava hierarquicamente os dolicocéfalos e dos braquicéfalos. A ilha de Marajó constituía uma exceção, um enclave de alguma influência andina ilhada na selvageria Amazônica.

Ferreira mostra o desempenho político de Ihering em diversas vertentes, mas sobretudo nas exposições que organizava e nas Sociedades cientificas das quais era membro. O caráter por vezes perverso de seu discurso é bem documentada por Ferreira nas citações escolhidas e detalhes levantados, como o seu colecionamento de artigos de jornais que narravam as barbaridades cometidas pelos índios aos sertanejos. Em uma posição algo extrema, Ferreira revê a contraposição frequente na literatura entre as posições de Ihering e as propostas humanistas de Candido Rondon na formação do SPI. Na sua visão, os objetivos finais eram os mesmos: abrigar a civilização e garantir o povoamento das fronteiras. O crítico escrutínio dos três casos escolhidos por Ferreira certamente demonstram as ligações nem sempre evidentes entre a arqueologia institucional e as agendas de políticas públicas que quase sempre puseram outros interesses à frente da defesa das populações indígenas. Neste julgamento da história, a narrativa de Ferreira por vezes se aproxima de um estilo que Bruno Latour comparou às teorias conspiratoriais na crítica social, onde o intelectual, em nome da descontrução de um discurso positivo, acaba não colocando nada no lugar, a não ser sua superioridade em decodificar e desvendar agendas camufladas de poder. Mas, Latour também nos lembra que a crítica é inútil contra objetos de alguma solidez.

“The mistake would be to believe that we too have given a social explanation of scientific facts. No, even though it is true that at first we tried, like good critics trained in the good schools, to use the armaments handed to us by our betters and elders to crack open—one of their favorite expressions, meaning to destroy—religion, power, discourse, hegemony. But, fortunately (yes, fortunately!), one after the other, we witnessed that the black boxes of science remained closed and that it was rather the tools that lay in the dust of our workshop, disjointed and broken. Put simply, critique was useless against objects of some solidity.” (Latour, 2004:242).

No final, resta ao leitor a pergunta sobre o que realmente vingou das teorias científicas e das propostas colonizadoras identificadas por Ferreira e até que ponto esta história poderia ter sido diferente. Como as influências destes personagens marcaram a trajetória subsequente da arqueologia no Brasil? A arqueologia brasileira atual, dominada pela arqueologia de contrato e regulamentada pelo Estado não continuaria sendo, de certa forma, não só uma “ciência de governo” – no caso, de gestão do patrimônio arqueológico -, mas também uma ciência do capital?

Em seus comentários finais, Ferreira faz referência às críticas de Câmara Cascudo e Mário de Andrade à arqueologia nobiliárquica, reconhecendo contudo que “o espírito que animou Mario de Andrade esteve longe da Arqueologia Brasileira”. Deixa assim uma crítica velada no ar a um movimento que, nas artes e nas letras, representou uma grande ruptura com os valores colonialistas. A antropofagia modernista que, já em 1928, bradava “Contra todas as catequeses. …Queremos a revolução Caraíba” (Oswald de Andrade, 1928), é considerada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro a única contribuição realmente anticolonialista.

“Ela jogava os índios para o futuro e para o ecúmeno; não era uma teoria do nacionalismo, da volta às raízes, do indianismo. Era e é uma teoria realmente revolucionária […]” (Viveiros de Castro, 2007).

Se a busca de novas identidades nacionais no modernismo incorporou estereótipos fazendo referências a muiraquitãs e lendas amazônicas, a antropofagia e revoluções caraíbas, sem contar o tupi (or not tupi), não seria porque apenas conheciam o que havia sido divulgado nas exposições concebidas por Barbosa Rodrigues, Ladislau Neto e von Ihering? Nas poucas imagens registradas nos catálogos e publicações dos museus, como as belas pranchas de Goeldi que ilustram também o livro de Ferreira? É graças a estes conteúdos icônicos que as “jazidas” pré-históricas e as coleções arqueológicas acabaram entrando no primeiro ante-projeto de proteção do patrimônio cultural do país, não por acaso proposto por Mario de Andrade.

Chegando ao final, o leitor certamente terminará o livro tendo desejado que o autor, tão eficiente nas análises históricas, tivesse elaborado algo mais a relação entre o passado analisado e o presente da arqueologia no Brasil. Isto posto, Território Primitivo é um sólido alicerce para a construção desta tarefa.

Referências

ANDRADE, Oswald de 1928 Manifesto Antropofágico. Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.(Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.).

BARRETO, Cristiana 1999-2000 A construção de um passado pré-colonial. Uma breve história da arqueologia no Brasil. Revista Usp 44, pp. 32-50.

FERREIRA, Lúcio 2009 “Ordenar o Caos”: Emílio Goeldi e a arqueologia amazônica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 4, n. 1, p. 71-91, jan.- abr.

HABER, Alejandro e Cristobal GNECCO 2007 Virtual Forum: Archaeology and Decolonization , Archaeologies, Journal of World Archaeology Congress, Volume 3, Número 3, 390-412.

LATOUR, Bruno Why Has Critique Run out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern. Critical Inquiry 30, The University of Chicago, pp. 225-248.

NOELLI, Francisco Silva; FERREIRA, Lúcio Menezes. 2007 A persistência da teoria da degeneração indígena e do colonialismo nos fundamentos da arqueologia brasileira. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.4, p.1239-1264.

SANJAD, Nelson Rodrigues 2005 A Coruja de Minerva: O Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907). Tese de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.

SCHWARCZ, Lilia Moritz 1993 O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e a Questão Racial no Brasil (1870-1930). Companhia das Letras, São Paulo.

SCHARTZMAN, Simon 1979 Formação da Comunidade Científica no Brasil. Editora Nacional, São Paulo.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo 2007 Entrevista a Pedro Cesarino e Sérgio Cohn. Revista Azouge, Programa Cultura e Pensamento, MinC, Rio de Janeiro, n. 11, pp. 11-12.

Cristina Barreto

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Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul | Rafael Corteletti

Qual o destino dos sítios arqueológicos quando uma pesquisa e concluída no Brasil? Poucos entre milhares passaram efetivamente a ser preservados e transformados em tema de amplo (re)conhecimento público e pesquisa continuada. O esquecimento e o abandono foi o destino da maioria. A destruição, total ou parcial, pelos mais diversos meios, também foi o que aconteceu com uma quantidade desconhecida de sítios arqueológicos pais afora. Todavia, existe uma parcela da comunidade de arqueólogos brasileiros – acadêmicos, funcionários do IPHAN e de outros órgãos públicos, de ONGs e do setor privado –, buscando alternativas para solucionar a destruição do Patrimônio arqueológico no Brasil, uma tarefa gigantesca.

O consenso internacional indica que a principal solução e a publicação dos dados de pesquisa e do sítio arqueológico e a programação de ações que ativem a atuação da sociedade civil organizada em programas como a AGENDA 21. E o meio mais próximo da transparência e da ética aliadas com a ciência, como ferramenta de trabalho da gestão do Patrimônio arqueológico. Junto com elas, a construção de relações simétricas em nível local, envolvendo as comunidades, os pesquisadores, o IPHAN, o Ministério Público e os três níveis de Poder Executivo, para tomar decisões sobre o destino dos sítios arqueológicos

O livro de Rafael Corteletti e um exemplo relevante, que merece ser seguido quando se trata de sítios arqueológicos. Especialmente quando apresenta a localização e o estado de conservação, relatando temas científicos com linguagem despida de jargões, cumprindo o objetivo de atrair e informar o público não acadêmico. Sua abordagem mostra o que aconteceu com os sítios ao longo de 40 anos, desde os primeiros trabalhos de Fernando La Salvia e Pedro Inacio Schmitz em 1966, até Corteletti e seus colegas retornarem em 1999, 2000 e 2006. Os sítios são apresentados individualmente, através de um memorial descritivo das evidências arqueológicas, principalmente das estruturas subterrâneas, dos abrigos sob rocha e dos montículos, da sua quantidade e dimensões, do seu estado de conservação e da distancia de outros sítios.

A maioria dos cadastros de 1966 finalmente recebeu sua coordenada geográfica. Todos os dados quantitativos aparecem em diversas tabelas e gráficos. várias fotos mostram aspectos dos sítios e das pesquisas em 1966 e 1999-2000, 2006. Diversos mapas contextualizam a área piloto da pesquisa, muitos deles vem acompanhados de tabelas e gráficos de diversas informações, desde a relação entre sítio e proprietário atual do terreno, até a relação entre índices de preservação e destruição. Croquis dos sítios também ilustram o livro e mostram aspectos espaciais das estruturas. Desenhos em perspectiva e fotos panorâmicas mostram a inserção dos sítios. Algumas fotos mostram o estado atual dos sítios, inclusive de um aproveitado como lixeira (foto 27). Tabelas com as datações informam sobre a cronologia da ocupação regional. Também foram realizadas diversas análises comparadas sobre as estruturas subterrâneas.

Corteletti complementa a descrição da inserção dos sítios com várias informações sobre o contexto ambiental da área piloto. Com o objetivo de relatar os processos de transformação da paisagem e dos seus impactos sobre os sítios, sobretudo o desmatamento, apresenta um capítulo sobre o processo de ocupação europeia da região da pesquisa, a partir do século 18, com a distribuição de sesmarias pelo governo colonial aos “lusitanos” e seus escravos. Depois trata da instalação de imigrantes, principalmente, italianos. E uma parte importante, pois mostra com clareza como as serrarias, lavouras e a implantação da malha urbana e das vias públicas, afetaram os sítios arqueológicos. O autor mostra qual foi a relação dos italianos, dos lusos e descendentes com a preservação/destruição dos sítios, em função dos tipos de exploração econômica. Nas terras dos italianos 19% estão preservados e 35% alterados, enquanto que os lusos preservaram 36% e alteraram 46%, e Corteletti ressalta que seu objetivo não é “condenar ou isentar quem quer que seja”, mas verificar os efeitos dos modelos de colonização sobre a degradação dos sítios arqueológicos.

Com efeito, o balanço geral e alarmante: 39,5% dos sítios foram destruídos e 37,5% estão seriamente ameaçados. O Patrimônio arqueológico registrado da região de Caxias do Sul está por um fio e o livro e um diagnostico que precisa ser debatido, para decidir qual o destino dos sítios restantes.

Outro aspecto que o livro revela, que de certa forma ocorre desde a pesquisa de 1966, e a relação positiva dos pesquisadores com a comunidade. Por todo o livro, especialmente quando os sítios são descritos, a comunidade aparece representada por diversos personagens, a maioria interessada em colaborar com a pesquisa. O autor faz um balanço sobre o problema da destruição e reflete sobre a necessidade de “vestir a camiseta” da preservação e da busca de alternativas.

Por fim, algumas palavras a respeito da interpretação dos dados de Caxias do Sul como tradição arqueológica. Trata-se do calcanhar de Aquiles da arqueologia brasileira, que não è exclusivo de Corteletti, que se posicionou assim nas conclusões sobre os sítios arqueológicos: “O que se sabe, de concreto, e a ligação com o Tronco Je. Daí em diante, surge uma serie de especulações e hipóteses que tentam atrelar os construtores do planalto com as populações Kaingang”. Corteletti sugere de forma acertada, que o estabelecimento de uma relação de continuidade entre os contextos arqueológicos e históricos “deve ser uma obsessão”. Porém, como autor de trabalhos dedicados a revisar as interpretações dos arqueólogos sobre o caso dos Je do sul, publicados antes de 2008, não posso concordar com a afirmação de que o estado da arte esteja apenas em nível de “especulação e hipóteses”. Primeiro, Corteletti ignora solenemente análises dedicadas “obsessivamente” a examinar os problemas de pesquisa das Tradições Taquara e Itararé, especialmente da minha avaliação detalhada sobre todas as interpretações arqueológicas que trataram da continuidade entre essas tradições e os Je do sul. Segundo, ele preferiu seguir a linha do PRONAPA, que não teve por objetivo examinar o tema da continuidade e passou os últimos 40 anos sem refletir sobre os processos da longa duração dos Je do sul, problemática que eu também analisei com cuidado e de modo muito circunstanciado. Terceiro, ao seguir essa linha também deixou de lado uma serie de historiadores, antropólogos e linguistas que publicaram estudos que contextualizam de forma cabal a presença dos Je do sul, especialmente dos Kaingang, em todos os territórios onde são encontradas estruturas subterrâneas. Quarto, quando trata da ocupação do sul do Brasil pelos Je, Corteletti escreveu que “acredita-se numa possível ligação com povos da chamada Tradição Una”. Novamente desconheceu a detalhada análise que publiquei sobre o processo de ocupação do sul do Brasil, comparando estudos de linguistas e arqueólogos. Também não citou a tese de Jose Brochado, autor da mais ampla e detalhada pesquisa sobre as relações entre as cerâmicas da Tradição Una e das Tradições Itararé e Taquara.

Corteletti não é obrigado a citar as minhas publicações ou a tese de Brochado. Todavia, como ele se apresentou a um campo cientifico composto de várias perspectivas e linhas de pesquisa, deveria no mínimo ter justificado uma razão para não concordar ou não considerar nossas abordagens e conclusões. Especialmente a famosa tese de Brochado, um divisor de aguas da arqueologia brasileira. Talvez seja por causa da linha de pesquisa da instituição onde Corteletti fez seu mestrado, origem do livro, o Instituto Anchietano de Pesquisas da UNISINOS, que mantem basicamente a mesma posição desde o final da década de 1960, centrada na catalogação e descrição. A análise e a interpretação movida por problemas da teoria arqueológica e antropológica nãoesta presente, na espinha dorsal dos inúmeros e importantes projetos conduzidos pelo Anchietano. O fato e que a interpretação de dados tão bem coletados perdeu espaço neste relevante livro, cujo maior mérito e oferecer informações uteis e decisivas para a gestao do Patrimônio arqueológico.

Finalmente, o titulo do livro destoa dos debates contemporaneos sobre Patrimônio Finalmente, o titulo do livro destoa dos debates contemporâneos sobre Patrimônio cultural. Tem sido cada vez mais frequente que arqueólogos, no Brasil, intitulem seus livros, pomposamente, como Patrimônio arqueológico de tal ou qual região. Contudo, o que notabiliza o debate contemporâneo internacional e a definição de Patrimônio como categoria de pensamento e ação politica, e não como um dado em si, a depender exclusivamente de um cientista – ou de um arqueólogo e sua equipe – para conceitua-lo e protege-lo. Patrimônio cultural, na acepção contemporânea, e uma categoria que envolve, por um lado, o conjunto de representações culturais dos diversos grupos sociais de um contexto dado, considerando-se, inclusive, os próprios arqueólogos, cujas noções e definições nunca estão isentas de politicas e critérios culturais sobre a paisagem; de outro, instituições variadas, como as comunidades cientificas, ONGs, universidades, comunidades locais e os dispositivos da legislação. Os arqueólogos brasileiros, no geral, passam, lamentavelmente, ao largo dessa definição mais ampla e informada sobre Patrimônio arqueológico. O livro de Corteletti não é exceção. Uma coisa e estudar para delinear politicas de proteção aos sítios arqueológicos, função muito bem realizada por Corteletti; outra, muito distinta, e, de saída, definir o conjunto de sítios de uma região como Patrimônio, desconsiderando- se a riqueza e sofisticação contemporâneas dos debates sobre Patrimônio cultural. Ainda assim, os agentes dos órgãos públicos, os arqueólogos e a sociedade civil organizada, dispõem no livro de Corteletti, de um diagnostico efetivo para definir suas pautas de trabalho em defesa dos sítios arqueológicos da região de Caxias do Sul.

Francisco Silva Noelli – Prof. Aposentado da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

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CORTELETTI, Rafael. Diálogo com Francisco Noelli a respeito da resenha para o livro “Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul”. Revista de Arqueologia, v.23, n.2, p.164-167, 2010.

Não posso negar que Noelli foi bastante crítico em sua resenha. Lembro muito bem do momento em que estava redigindo as passagens que foram comentadas por ele com tanto vigor. Eu estava processava uma grande quantidade de dados numéricos que compõe o capítulo de distribuição e implantação dos sítios e quica posso ter construído uma interpretação arqueológica discutível. Diria que em momentos de grande produção, por vezes, ficamos meio cegos. Enfim, hoje sei que, infelizmente, esqueci muitos autores e não tratei determinadas abordagens. Mas, exatamente por saber disso, atualmente oriento meu trabalho no sentido de contemplar uma serie de questões que deem conta da multiplicidade de estórias-até-agora dos Je Meridionais.

Mas o objetivo principal dessa publicação não foi abordar as origens desse povo, mas sim falar da conservação de sítios arqueológicos. O estudo de caso e Caxias do Sul, mas falo do Brasil e dos desafios da Arqueologia Brasileira. E bom citar que a obra nasceu, ainda em 2006, de uma dissertação de mestrado intitulada “Casas Subterrâneas em Caxias do Sul: Conservação, Distribuição e Implantação”. Em 2007 o texto foi premiado num concurso municipal chamado Fundo pró-cultura. Segundo a comissão de avaliação e seleção ele seria publicado com a condição de que o tom acadêmico fosse esmaecido. Dessa forma adaptei o texto para deixa-lo mais leve e dinâmico e redigi de tal maneira que fosse possível a um leigo a compreensão absoluta da temática arqueológica e, principalmente, da temática conservacionista. Assim, com novo título e remodelado, em 2008, lancei a obra com um objetivo acima de tudo educativo. Com financiamento da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, através do Fundo pró-cultura, foi feito um “convite a arqueologia”.

Portanto, o uso da palavra Patrimônio no título não teve objetivos pomposos, muito pelo contrário, foi pragmatismo puro. Independente do que se debate na esfera internacional eu precisava convencer a opinião pública e o pequeno produtor rural de Caxias do Sul de que os “buracos de bugre” ou as grutas com sepultamento tinham um valor imensurável para toda a sociedade caxiense e, por extensão, a brasileira. Precisava despertá-los para a necessidade de manter a mata no entorno dos sítios em pe, precisava alerta-los de que o melhor lugar para a produção de tomates não era exatamente onde os sítios estavam… Por isso o nome do livro tornou-se “Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul” diferente da dissertação de mestrado que, convenhamos, tem um título que não chama a atenção de mais do que 20 ou 30 arqueólogos, que dirá de uma comunidade que, como Noelli muito bem apontou, criou um cenário alarmante no que se refere a conservação dos sítios. Com esse título eu disse a comunidade que os sítios têm valor e que e ela, em última instancia, que detém a responsabilidade por sua conservação ou não. Em momento algum o trabalho foi direcionado no sentido de policiar as atitudes e elencar boas ou más ações dos indivíduos ou estabelecer o que deve ou não ser valorizado enquanto bem cultural. Orientei o trabalho no sentido de incorporar os sítios arqueológicos a vida das comunidades (rural e/ou urbana) e dessa forma produzir uma reflexão sobre as facetas da história daqueles locais. Desde o tempo-espaço em que os sítios eram habitados pelos Je, passando pela chegada das famílias de colonizadores europeus, pelas memorias das pesquisas e das pessoas dos anos 60 e chegando até hoje quando alguns sítios já estão fisicamente apagados e outros ainda não.

O livro e na verdade um catálogo atualizado das condições em que se encontra a maior parte dos sítios arqueológicos no município – já que após a publicação outros sítios ja foram detectados. Em determinados momentos o tom e de denúncia pelo Patrimônio destruído e o estado em que se encontra o conservacionismo arqueológico no Brasil, em outros o tom e de paixão pelo Patrimônio e a paisagem em que esses assentamentos se inserem. E permeia em todo o texto a ideia de que e o indivíduo que vai preservar ou destruir esse Patrimônio, e por isso, e o indivíduo, em última instancia, que precisa ser informado para que “a marcha destrutiva e silenciosa que ocorre dia-a-dia sobre este Patrimônio cultural e instrumento de trabalho” de inúmeros profissionais deixe de ocorrer. Assim sendo, como contrapartida a publicação da obra, uma série de atividades de educação patrimonial e arqueologia publica foram realizadas. Durante 30 dias a mostra “Fragmentos da História”, com as peças arqueológicas que estavam há mais de 30 anos na reserva técnica do Museu Municipal, recebeu mais de 1.500 visitantes. Antes disso, a exposição permanente começava sua narrativa com a fundação da colônia italiana, mas agora o passado indígena também faz parte do contexto musealizado.

Cada escola do Município (das redes municipal, estadual e privada) recebeu um exemplar (num total de 300 livros doados) e professores assistiram palestras sobre o tema. Junto disso, no primeiro trimestre de 2009, num novo desdobramento provocado pelas vontades locais, foi dada a largada experimental para aquilo que hoje ja e mais uma atividade de desenvolvimento sustentável: o turismo arqueológico.

Imbuído da ideia de que o Patrimônio Arqueológico e integrado tanto por bens materiais como pelas informações que dele podemos aferir como, por exemplo, a implantação geográfica, a ocupação do espaço e as configurações ecológicas escolhidas pelas populações pretéritas, foi selecionado um sitio de beleza cênica impar localizado na comunidade da Criúva. Para la durante os anos de 2009 e 2010 foram levadas mais de 500 pessoas em grupos que variam em número: desde famílias com 4 ou 5 pessoas ate grupos de 30 ou mais em ônibus escolares. Muitos não sabiam da existência de tal Patrimônio e ficaram impressionados com o que viram. Alguns professores das escolas da região relataram total desconhecimento deste Patrimônio. De certa forma, 500 pessoas não parece um grande número, principalmente, se comparado aos visitantes de sítios como a Missão de São Miguel Arcanjo, por exemplo. Mas o fato e que esta atitude e um embrião que explora as potencialidades locais e gera sustentabilidade – apesar de não existir qualquer tipo de infraestrutura criada para visitação ou divulgação em mídia. Enfim, depois de 40 anos de esquecimento, cooptamos multiplicadores do conhecimento dessa riqueza cultural para que a arqueologia e o passado indígena desabrochassem novamente. O resultado e o trabalho de guias de turismo da própria comunidade instruídos arqueologicamente e dispostos a informar que eles são os agentes diretamente responsáveis pela conservação dessa memoria e promoção desse Patrimônio.

Por tudo isso, creio que Noelli se engana ao comentar que o livro não trata o Patrimônio como “uma categoria de pensamento e ação política”. Como Noelli se notabiliza por ser um grande debatedor teórico-conceitual, e compreensível que sua leitura observe o quanto o livro contempla a base epistemológica das agendas internacionais. Entretanto, apesar de Noelli discordar, o livro cumpre sim – mesmo que incipientemente – a função de articular elementos para a compreensão do “conjunto de representações culturais dos diversos grupos sociais de um contexto dado”, na medida em que seu objetivo central e o exercício do dialogo, em primeira instancia, com os grupos sociais da comunidade de Caxias do Sul – e quica da brasileira – para alavancar o despertar de uma pratica conservacionista. E realmente, minhas “noções e definições” não “estão isentas de políticas e critérios culturais sobre a paisagem”, pelo simples fato de que além de ser arqueólogo sou um membro da comunidade. Sou mais um daqueles que tanto entrevistei em Caxias – e continuo entrevistando em outros locais – que lembram com nostalgia das brincadeiras de infância dentro das enormes crateras que ninguém sabia o que eram… No meu caso a nostalgia e maior ainda, já que o sítio que tanto brinquei, anos depois cedeu lugar as ruas de um novo bairro, talvez ao mesmo tempo em que, numa universidade a 300km dali, eu descobria o que as tais crateras significavam. Nesse sentido, a paisagem e um elemento ativo nas ações humanas, ela nutre e e nutrida pelas interações sociais como um conjunto de formas que em dado momento exprimem memorias socialmente construídas – como as minhas.

Em linhas gerais nas Ciências Humanas gostamos muito debater sobre a construção do conhecimento, as vezes falando da sociedade, mas, infelizmente, a parte dela. Alguns arqueólogos, nesse sentido, esquecem que vários sítios arqueológicos, nossa matéria-prima de discussão, estão sendo descartados cotidianamente. Há o descarte inconsciente, por indivíduos que desconhecem totalmente o que e um sitio arqueológico e o destroem por ignorância. Ha, também, o descarte levado a cabo conscientemente por indivíduos que precisam obter renda – como e o caso dos vendedores de terra preta dos cerritos da Praia do Laranjal, entre tantos outros exemplos. E não podemos esquecer, nesses tempos de desenvolvimentismo acelerado, que há o descarte legalizado de sítios através da pratica do “resgate” ou “salvamento”. A coleção arqueológica e salva ou resgatada, mas perde- se o sítio arqueológico, perde-se o lugar e todo o simbolismo que ele poderia expressar se fosse conservado. Não estou demonizando a arquelogia empresarial, não é isso. Afinal, sabemos que a Arqueologia Brasileira vem sendo impulsionada pelas grandes obras de infraestrutura dos últimos anos de tal forma que novas graduações estão ai para suprir a demanda de profissionais. O que questiono, com esse comentário, e a ação de órgãos governamentais e arqueólogos no processo de decisão  daquilo que e relevante e deve ser “salvo” e daquilo que não é relevante e, dessa forma, nem “salvo” precisa ser. Será que nossos profissionais trabalhando em ritmo industrial e, por vezes, com métodos de prospecção pouco sistemáticos realmente conseguem medir a relevância de um bem cultural? Além disso, questiono qual e o nosso papel como produtores e disseminadores de conhecimento? Questiono a validade da produção de conhecimento que não vai além dos debates do próprio grupo que o gerou? Afinal, temos em nossas mãos um objeto de pesquisa que seduz as pessoas, ou uma grande parcela delas. Temos de usar esse objeto a nosso favor e tornar a arqueologia mais popular, mais pública e assim disseminar o conservacionismo do Patrimônio arqueológico e, em última instancia, evitar o descarte dos lugares, o descarte dos sítios arqueológicos para que as pesquisas de hoje e do futuro possam ser desenvolvidas.

Em síntese, concordo com Noelli quando ele diz que devemos buscar arqueologicamente as diferenças que vemos etnologicamente entre os Kaingang e os Xokleng, por mais complicada que essa tarefa seja. E mais, devemos investigar as origens dos Je Meridionais para ilustrar a emergência da complexidade social desses grupos. Mas, não podemos nos furtar de lutar pela conservação dos sítios arqueológicos, já que são eles que nos darão as pistas para elucidar nossas problemáticas.

Rafael Corteletti – Doutorando em Arqueologia no museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), bolsista CNPq. E-mail: [email protected]. Endereço: Avenida Venâncio Aires 70/405, bairro Cidade baixa, Porto Alegre, RS, brasil, CEP 90040-190.


CORTELETTI, Rafael. Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul. Porto Alegre: Nova Prova Editora, 2008. 199p. Resenha de NOELLI, Francisco Silva. Revista de Arqueologia, v.23, n. 2, p.156-159, 2010. Acessar publicação original [IF]

Technologie de la pierre taillée – INIZAN et al (RA)

INIZAN, M. L.; REDURON, M.; ROCHE, H.; TIXIER, J. M. Technologie de la pierre taillee. Meudon: CREP, 1995. Resenha de: SCHLOBACH, Mônica Carsalad. Revista de Arqueologia, v.10, 1997.

O livro de referência pata estudantes franceses na área de tecnologia lítica tem, desde 1995, uma edição revista e ampliada, dessa vez organizado por M.L. Inizan; trata-se do Technologie de la pierre taillée, Meudon: CREP. O volume anterior, de 1980, organizado por J. Tixier, entitulava-se Préhistoire de la pierre taillée (vol. 1 ), terninologie et technologie.

O novo título resume bem o sentido da mudança que se pode observar nessa nova edição em relação à anterior: se na primeira edição os autores apresentavam uma nova abordagem para o estudo de coleções líticas, onde as preocupações principais residiam em distinguir os tipos de gestos e produtos do lascamento, bem como em estabelecef um vocabulário comum de base para ambos, na nova edição, o objetivo (certamente complementar aos anteriores) consiste sobretudo em apresentar novos conceitos e abordagens desenvolvidos nos últimos anos a partir de estudos recentes que utilizam a noção de cadeia operatória como ponto de partida. O capítulo introdutório resume bem tal intenção, mas ela está presente ao longo de todos os demais capítulos.

No que tange à organização dos capítulos, não há grandes modifìcações a assinalar : eles estão organizados de forma a permitir ao leitor seguir as etapas da produção das diferentes indústrias líticas, a partir do conceito de cadeia operatória – tal como ele é utilizado pelos tecnólogos.

Única modifìcação importante nessa organização; foi acrescentado um capítulo sobre a representação gráfica e, particularmente, sobre as técnicas, convenções e objetivos adjacentes ao desenho de peças líticas, onde são propostas formas de se responder a necessidades específicas a cada indústria a ser representada graficamente. O que é algo que concerne diretamente aos arqueólogos brasileiros, freqüentemente confrontados a matérias-primas e acidentes pouco comuns em outros contextos.

Outro ponto positivo dessa edição: o léxico comporta agora sete línguas (e não somente o inglês), incluindo o português (de Portugal). Mas é interessante notar que as diferenças entre os termos propostos e os utilizados mais freqüentemente no Brasil não são tantas quanto se poderia supor. Além do que, tal léxico nos sugere a adoção de alguns termos, como o de talhe para toda atividade de lascamento (tanto as que têm como fim a obtenção de lascas, quanto aquelas que visam a produção de um objeto sobre massa central). Solução que nos permitiria evitar que um mesmo termo seja usado em dois sentidos, como é o caso atualmente: lascamento nesse sentido genérico e lascamento como produção que visa a obtenção de lascas.

O que nos remete a questões de terminologia, a qual, afìnal, não deixa de ser contemplada nesse volume. Como não poderia deixar de ser. Afìnal, a necessidade de adoção de novos termos acompanha toda nova abordagem ou análise que venha contribuir para a compreensão das indústrias líticas.

Mônica Carsalad Schlobach – Setor de Arqueologia. Universidade Federal de Minas Gerais.

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Center for Archaeological Investigations, Ocasional Papers n.10 – PREUCEL (RA)

PREUCEL, Robert W. (Ed). Center for Archaeological Investigations, Ocasional Papers n.10, Southern Ilinois University at Carbondale, Carbondale. 1991. 324p. Resenha de: barrero, Cristiana. Revista de Arqueologia, v. 9, 1996.

Cristiana Barrero – Doutoranda da Universidade de Pittsburg, Estados Unidos.

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The Prehistory of the Mind: A search for the origins of art, religion and science – MITHEN (RA)

MITHEN, Steven. The Prehistory of the Mind: A search for the origins of art, religion and science. London: Thames and Hudson, 1996. 288p. JONES, S. The Archeology of Ethnicity: Constructing identities in the post and present. London: Routledge, 1997. 180p. Resenha de: NEVES, Eduardo Góes. Revista de Arqueologia, v.9, 1996.

Eduardo Goés Neves – Pesquisador do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.

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