Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador

O “Retrato do Colonizado precedido pelo Retrato do Colonizador” é um livro de não ficção escrito por Albert Memmi, publicado em francês, em 1957. No Brasil, foi traduzido pelo filósofo e político brasileiro Roland Corbisier e pela psicóloga Marisa Pinto Coelho, sendo publicado em 1977, no Rio de Janeiro. A obra explora e descreve os efeitos psicológicos do colonialismo sob colonizados e colonizadores. Essa obra, que chegou a ser banida por governos e pela polícia, é considerada um dos estudos mais poderosos e psicologicamente penetrantes, já escritos sobre a opressão colonial. Nela, o autor pormenoriza as mentes do opressor e do oprimido, revelando verdades sobre a situação colonial e suas consequências que surpreendem por serem tão relevantes em um mundo explicitamente devastado por conflitos quanto o eram na década de 1950. Mais de cinquenta anos depois, o texto permanece com uma atualidade assustadora.

Quanto ao autor, Albert Memmi nasceu em 15 de dezembro de 1920, em Túnis, Tunísia. Faleceu em 22 de maio de 2020, Paris, França. Romancista tunisiano de língua francesa e autor de vários estudos sociológicos que tratam de assuntos acerca da opressão humana, Memmi foi criado na intersecção entre diversas culturas por ter nascido na Tunísia, e ser filho de mãe judia tunisiana, de pai italiano, e ter estudado em escolas francesas. Assim, ele se encontrou, cedo em sua vida, na posição anômala de um judeu entre os muçulmanos, de um árabe entre os europeus, de um morador do gueto entre a burguesia e de um évolué (alguém “evoluído” na cultura francesa) em meio à família e amigos ligados à tradição. Foi essa tensão de viver em vários mundos ao mesmo tempo que se tornou o tema do primeiro romance autobiográfico de Memmi, “La Statue de sel” (1953; “O Pilar de Sal”, obra pela qual recebeu o Prix de Carthage e o Prix Fénéon. Romances subsequentes incluídos Agar (1955), que trata do problema do casamento misto; “Le Scorpion” (1969), um conto intrinsecamente estruturado de introspecção psicológica; e “Le Désert” (1977), em que a violência e a injustiça são vistas como respostas antigas à dor e à incerteza da condição humana. Porém, sem dúvidas, sua obra sociológica mais influente foi “Portrait du colonisé” (1957; “Retrato do Colonizado”), uma análise das situações tanto do colonizador quanto do colonizado, que contribuem para seu próprio aprisionamento em seus respectivos papéis (SIMON, 2020). Leia Mais

Um estudo crítico da História | Hélio Jaguaribe

Os recentes eventos – espetaculares impactos de aviões comerciais cheios de desprevenidos passageiros, chocando-se com o maior edifício de Nova York e um dos maiores do mundo, ademais de outro tanto contra o Pentágono, Ministério da Defesa em Washington – levaram o próprio presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, a declarar, a telespectadores estupefactos em escala mundial pela comunicação instantânea via satélite, que se tratava da primeira guerra mundial do século XXI.

Naturalmente logo vieram recordações do otimismo de Francis Fukuyama em muito discutido artigo publicado na revista Foreign Affairs sobre o fim (pacífico…) da história, e pessimismo de Samuel P. Huntington em artigo, também ali, transformado em livro sobre o choque das civilizações. Leia Mais

Os sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1912-1964 | Fernando P. de Mello Barreto

O livro de Fernando de Mello Barreto cumpre de maneira satisfatória o papel de informação geral sobre os eventos e processos que marcam as relações exteriores do Brasil desde a morte do Barão do Rio Branco até o advento da república dos generais. Mello Barreto adota um esquema cronológico, organizando seu racconto storico de meio século de vida diplomática republicana de acordo com as gestões dos chanceleres que, desde Lauro Muller até Araújo Castro, sucederam-se na cadeira do Barão. Os principais lances da política externa brasileira de 1912 a 1964 são seguidos ano a ano, em re-compilação exaustiva dos eventos, apresentados em cinco partes: a República velha, a era Vargas, a Guerra Fria, JK e a Operação Pan-Americana e a Política Externa Independente.

O livro confirma as qualidades da história factual e seu caráter indispensável ao pesquisador que pretenda realizar a inserção desses fatos na trama mais ampla das relações internacionais do Brasil, sobretudo em sua vertente econômica externa. Cabe, com efeito, destacar que, ao início de cada seção, Fernando de Mello Barreto apresenta informações objetivas, tabelas estatísticas, gráficos seriais ou quadros analíticos apresentando a situação econômica do país naquela conjuntura (comércio exterior, dívida, reservas, investimentos estrangeiros etc.). Leia Mais

Do cabaré ao lar – A utopia da cidade disciplinar- Brasil: 1890-1930 – RAGO (VH)

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar – A utopia da cidade disciplinar- Brasil: 1890-1930. Editora Paz e Terra, 1985. Resenha de: FARIA Maria Auxiliadora. Varia História, Belo Horizonte, v.2, n.2, p.147-148, jun., 1986.

A convite, do prefaciador Edgar de Decca e da própria Autora. participei da viagem. E o fiz com gosto por estar, como outros, preocupada em resgatar na tecitura histórica da República Velha práticas cotidianas do operariado brasileiro.

No Brasil, esta tentativa é nova. E como tudo que é novo, inquietante. Ao se tentar por exemplo, reconstituir os processos de morar dos trabalhadores. suas formas de lazer e de educação, sua sexualidade e mesmo as sutilezas de suas resistências frente às diversas instâncias do Poder, revela-se o até então irrevelado. Redimensiona-se o papel histórico da classe operária, recuperando-a não em suas generalizações mas em suas particularidades, ou no seu cotidiano.

Para penetrar nesse mundo novo necessário se faz, tal como propõe a Autora, empreender uma viagem. Todavia, não se pode levar na bagagem preconceitos há muito arraigados: que a classe operária brasileira da Primeira República era social e politicamente atrasada; que os anarquistas não propuzeram nenhuma forma organizada de resistência; e além de outras ”verdades consagradas” a de que as classes dirigentes, ocupadas na manutenção do Estado Oligárquico cujo sustentáculo econômico era o setor agrário-exportador, não construiram, a nível do espaço urbano em geral e da fábrica em particular, dispositivos especiais de domesticação do operariado.

O cenário é quase sempre a cidade de São Paulo, apesar de o subtítulo referir a: Brasil 1890·1930. O objeto de estudo: o cotidiano do operariado e, em especial dos adeptos da doutrina anarquista. E assim que Margareteh Rago tenta, e com êxito, desvendar as inúmeras formas utilizadas no processo de adestramento dos operários para torná-los mais produtivos, mais dóceis e mais disciplinados. Aptos a desfrutar, portanto, de um espaço – a cidade- que longe de ser o local mesmo do conflito deveria tornar-se o da harmonia.

No sumário do lívro, mais que um índice, um apelo da Autora, um chamamento à leitura: “Fábrica satânica/fábrica higiênica- A colonização da mulher -A preservação da infância- A desodorização do espaço urbano”. Introduz em cada um desses capítulos não apenas emocionantes relatos fundados em dados empíricos, mas também e principalmente, ricas interpretações subsidiadas por pensadores como E.P. Thompson e Michel Foucault. Utiliza-se também de O. Montgornery e Mário Tronti. quando se preocupa em analisar práticas explícitas ou veladas de resistência operária. Assim, a Autora contribui decisivamente à construção de uma nova historiografia sobre a classe operária e o movimento anarquista na Primeira República.

Mas se a contribuição é decisiva, não se pode negar que o arrojo de M. Rago ao penetrar “no interior das fábricas, dos bairros e vilas operárias do inicio da industrialização do país” para atingir os objetivos propostos, resultou num certo comprometimento da análise no tocante a temas polêmicos. como sejam: o mito do amor materno, o aleitamento infantil, o problema do menor abandonado ou mesmo a questão da segregação social do espaço urbano, que ela preferiu chamar de “desodorização do espaço”. A ideologizaçâo que atribui ao saber médico, leva o leitor menos atento a repudiar a evolução da medicina e a introdução de técnicas sanitárias e higiências no espaço urbano. Assim também, a atribuir à medicina preventiva, e ao incentivo à amamentação um lugar de peças decisivas num plano diabólicamente tramado no sentido exclusivo de domesticar a mulher operária e preparar cidadãos saudáveis e aptos a se integrarem ao mercado de trabalho. Ainda sobre a mulher conclui, à pág. 206, que o projeto de domesticação da classe operária redefiniu papéis e que a ela (mulher) “foi designado o triste destino de vigilante do lar e de mãe de família. Todos os comportamentos que se produziram fora destes parâmetros recobriram-se do estigma da culpabilidade e da imoralidade. Entre as figuras da Santa Maria e da Eva, nenhum espaço foi permitido à mulher. a despeito de todas as solicitações que o mundo industrial lançava sobre ela”.

Da idéia de “triste destino” talvez lhe tenha ocorrido outra, que deu título ao livro: “Do cabaré ao lar”, ou aí estaria o duplo de que tanto fala o prefaciador? Como ele mesmo afirma. que a liberdade do literato não é a mesma do hitoriador, ocorreu-me o que se contava no meu tempo de estudante: Um aluno, não sei bem se de História ou de Sociologia, teria ido à biblioteca em busca do livro “Raizes do Brasil” do saudoso Sérgio Buarque de Holanda. Não o encontrando na prateleira apropriada, pediu auxilio a uma funcionária que lhe passou a seguinte advertência:- “Você está equivocado. Esse livro deve ser procurado na seção destinada às obras de botânica”.

Quem empreender com a Autora a viagem proposta certamente colocará o livro na prateleira adequada, e o destacará como obra inconfundível. A densídade com que desvenda a trama do cotidiano operário apesar de pequenos desvios de percurso, acaba por desmistificar algumas verdades. Entre outras, a de que, apesar de todas as tentativas de silenciamento, operários em geral e anarquistas em particular, foram capazes de apresentar formas: de resistência ao conjunto de normas disciplinares que lhes foram impostas nos primeiros anos de industrialização brasileira.

Maria Auxiliadora Faria – Professora Adjunta do Departamento de História da FAACH/UFMG.

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