Os teóricos da História têm uma teoria da história? Reflexões sobre uma não-disciplina | Zoltán Boldizsár Simon

Zoltan Boldizsar Simon Imagem UCL
Zoltán Boldizsár Simon | Imagem: UCL

“Os teóricos da História têm uma Teoria da História?” Esse título é intrigante, paradoxal e, ao mesmo tempo, autoexplicável. Sua resposta é fornecida ensaisticamente por Zoltán Boldizsár Simon, historiador nascido na Hungria e atuante na Universidade de Bielefeld (Alemanha). O texto foi publicado, inicialmente, na revista História da Historiografia, no mesmo ano, tornado livro pela Editora Milfontes. Com as apresentações de Bruno César Nascimento, editor, e de Luisa Rauter Pereira, coordenadora da “Coleção Fronteiras da Teoria”, percebemos que as dimensões, o caráter sintético da escritura e o contexto de lançamento estão plenamente adequados. Nascimento e Pereira querem textos inéditos em língua portuguesa, manuseáveis em salas universitárias. Textos que mobilizem a reflexão acerca do valor de determinados domínios acadêmicos sobre si mesmos e como instrumentos de interpretação de desafios globais impostos ao tempo presente – a exemplo dos conflitos por identidade étnica e de gênero e as ameaças do aquecimento global.

Considerando a interrogação quase kamikaze, o ensaio foi excelente escolha para a abertura e lançamento da referida coleção. Entretanto, considerando a repercussão por escrito em mais de 200 revistas brasileiras de História e, até no Google Acadêmico, a resposta dos nacionais à provocação do professor húngaro praticamente inexiste, apesar dos 300 downloads do artigo na História da Historiografia. Ainda assim, o autor conseguiu a atenção de Arthur Ávila, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que mostrou desconforto com a definição simoniana de Teoria da história como aquilo “que hoje fazemos dela”: se Teoria da História é “o que dela fazemos’, continua Ávila, “qual seria o sentido em se chegar a uma definição universalmente válida dela? […] Finalmente, para nós, que estamos no Sul global, este gesto mesmo que importante e defensável, não repetiria aquela velha divisão do trabalho intelectual que coloca o Norte como produtor de teorias, seja sobre o que for, e o meridião do mundo como mero aplicador ou reprodutor de teorias […] ?” (p.9). Tradutor e apresentador do ensaio, Ávila, porém, faz uma ponderação. Afirma que a maior contribuição da obra estaria no próprio questionamento e não, necessariamente, nas respostas ao problema. Penso que o contrário pode também ser verdadeiro, se levarmos em conta o contexto de produção da obra e o que ela oferece, implicitamente, à formação dos graduandos em História no Brasil. Leia Mais

Uma latente filosofia do tempo | Reinhart Koselleck

Com relativo atraso, as principais obras de Koselleck encontram-se traduzidas no Brasil. Crítica e crise (2009 [1959]), O futuro passado (2006a [1979]), Estratos do tempo (2014 [2000]) e Histórias de conceitos (2020 [2006]), publicados pela Editora Contraponto, reúnem os textos principais do autor, na diversidade de direções em que ele desenvolve suas ideias. O trabalho de tradução é quase sempre excelente, com uma linguagem clara, notas explicativas e didáticas, que esclarecem as dificuldades inerentes à tradução de textos que envolvem discussões históricas e etimológicas complexas, como é o caso em Koselleck. Crítica e crise, o primeiro livro da série, faria uma exceção ao grupo, pois consta com frases alteradas, abreviadas e fundidas com outras, o que exigiria uma revisão completa para deixar o texto mais fiel ao original. A parte boa é que se trata de uma exceção no conjunto.

Dado esse passo importante, é natural que agora se abra o caminho para textos menos conhecidos, avulsos ou presentes em coletâneas fora do campo dos livros principais do autor. Essa é a via seguida por Uma latente filosofia do tempo, publicado pela Editora Unesp, com organização de Hans Ulrich Gumbrecht e Thamara de Oliveira Rodrigues (que também assina um excelente prefácio) e tradução de Luiz Costa Lima. O livro é composto por quatro textos: “Estruturas de repetição na linguagem e na história”, “Sobre o sentido e o não sentido da história”, “Ficção e realidade histórica” e “Para que ainda investigação histórica?”, retirados de uma obra publicada postumamente, em 2010, pela Suhrkamp, com titulo Sobre o sentido e o não sentido da história, na qual estão reunidos trabalhos que abarcam 40 anos da produção de Koselleck, alguns deles inéditos. A seleção de Gumbrecht e Thamara Rodrigues é inteligente e apresenta-nos um Koselleck heterogêneo e heterodoxo, defensor de uma variedade de teses, esquemas, sugestões e observações com os quais sempre aprendemos muito. Leia Mais

517: Weltgeschichte eines Jahres [Historia mundial de un año] | Heinz Schilling

La transformación de la producción de contenidos históricos, enfocados principalmente en el placer y la experiencia del público, ha significado un cambio también en los géneros narrativos de los libros que manejan estos contenidos, por lo que el género de difusión sigue siendo cada vez más atractivo y variado en el mercado editorial contemporáneo1 . Libros como A people’s History of America —con la variación francesa de Gérard Noiriel—, The Square and the Tower, la serie de historias mínimas que se publican en el Colegio de México, la apasionante biografía Chocolat de Gérard Noiriel o el último éxito en ventas de Francia Histoire mondiale de la France2 son ejemplo de tal transformación pues no solo siguen la regla de oro de usar un lenguaje claro y sencillo para un público amplio sino que también exploran formas diferentes de exposición; de ahí que la linealidad temporal, la unidad de tema y otras limitaciones —a veces propias del rigor académico— se desvanezcan y se traslapen como en una obra de Shakespeare.

En lengua alemana también han aparecido textos similares en esta década3 .El libro de Heinz Schilling 1517 —homónimo en su título con el de Peter Marshall4 —, que apareció en la lista de los best sellers de la revista Spiegel del año 20175 , se inscribe en la categoría comentada aunque hunde sus raíces en la tradicional escritura sinóptica —synoptische Geschichtsschreibung— de la historia universal6 . Se trata de un libro de no ficción —o, como se conoce en Alemania, Sachbuch— que versa sobre un radio geográfico global y una temporalidad que trata de reducirse a una vuelta alrededor del sol: un espacio desbordado y un tiempo restringido, la astronomía por encima de la geología —en términos de John Sterling7 —, la invitación de Mefistófeles a Fausto a ver el mundo en una noche. La labor, a pesar de lo tentadora, resulta más arriesgada que la de Geoffrey Parker en su monumental Global Crisis; que la genial propuesta de Timothy Brooks en Vermeer’s Hat; o que la de Tony Judt en su ya clásico Postwar. Leia Mais

Teoria e Filosofia da História. Contribuições para o Ensino de História | Estevão C. de Rezende Martins

O filósofo, historiador, pesquisador e professor Estevão Chaves de Rezende Martins é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras N. S. Medianeira (1971) e doutorou-se em História e Filosofia em 1976 na Universitaet Muenchen Ludwig-Maximilian – Alemanha. Foi professor da Universidade de Brasília entre 1977 e 2017, tendo se tornado professor titular em 2008, realizou pós-doutorados nas áreas de Teoria e Filosofia da História, e em História das Ideias em Universidades da Alemanha, Áustria e França.

Atualmente é pesquisador colaborador sênior na UnB. Reconhecido intelectual brasileiro em todas as suas áreas de atuação: teoria e metodologia da história, história política e institucional do Brasil, história contemporânea (Europa, União europeia e relações internacionais) e história política (Brasil, Europa Ocidental e relações internacionais). Exemplo desse reconhecimento materializa-se no livro-homenagem “ENTRE FILOSOFIA, HISTÓRIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS – Escritos em homenagem a Estevão de Rezende Martins” (2017) organizado por ex-alunos e com contribuições de intelectuais brasileiros e internacionais com quem o professor Estevão mantém laços afetivos e interlocução intelectual. Em tempos conturbados na política brasileira merece destaque também sua atuação como principal assessor na constituinte de 1987-1988 37. Leia Mais

History in Times of Unprecedented Change: A Theory for the 21st Century | Zoltán Boldizsár Simon

Não são poucos os intérpretes que tendem a enxergar a assim chamada filosofia da história a partir de uma divisão entre aqueles que seriam, por um lado, os interesses dedutivo-especulativos desse campo e por outro, as suas preocupações analíticas. Se a primeira dessas linhas de interesse se debruça sobre os sentidos e propostas da história vista como um processo, a segunda trata dos fundamentos da história entendida enquanto um saber (Tucker 2009, 3-4; Doran 2013, 6-7; Paul 2015, 3-5). É mais ou menos consensual, de igual modo, que essa divisão entre especulação e análise acentuou-se a partir da segunda metade do século XX, com o esgotamento dos grandes modelos filosóficos que visavam dotar de sentido o processo histórico, analisando-o sob a otimista ótica moderna do decurso do tempo. Incapaz de especular sobre “a história em si” (fragmentada pelos traumas da primeira metade do século passado), a filosofia da história passou a se preocupar cada vez mais com os contornos do próprio conhecimento histórico1. Nas últimas cinco décadas, essa divisão não apenas se intensificou como a filosofia da história viu o seu escopo ser reduzido drasticamente em duas linhas gerais de interesse: a análise das experiências temporais e o estudo das narrativas. Se no primeiro caso predominaram teses sobre as limitações das formas modernas de trato com o tempo (como a famosa discussão a respeito do “presentismo”), no segundo, prevaleceram estudos preocupados em desnudar o caráter incontornável da linguagem na produção de conhecimento e nas formas de relação com o passado. Por maiores que sejam os esforços em apartar essas duas tendências, elas apontam para uma característica comum tanto à experiência quanto ao conhecimento histórico nesse início de século XXI: para o imobilismo engendrado pelas consequências presentistas e narrativistas derivadas da filosofia da história contemporânea. Leia Mais

O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica | José Carlos Reis

O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica, de José Carlos Reis, é uma reunião de artigos, resenhas, prefácios, aulas, conferências e entrevistas publicados por Reis em coletâneas e periódicos brasileiros ao longo de seu compromisso como professor e pesquisador no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Lançada pela Editora Autêntica, na seção História & Historiografia, em maio de 2019, justamente por ocasião de sua aposentadoria, a última obra de Reis pode ser definida como uma obra-memória de sua notável atuação acadêmica.

O sentido da obra-memória de Reis está na passagem entre dois modos de praticar história: partindo de um dado reflexivo e existencial, chega a fazer com que entendamos a história como conhecimento e necessidade quase vital. Um modo de pensar e de viver, podemos dizer assim. Como modo de pensar, isso significa que a história é teoria, é trabalho com os conceitos, é escolha de métodos e emprego de linguagens, para conseguir elaborar, mediante o exame das fontes, imagens que sejam representações do passado, representações do passado em vários níveis. Como modo de viver, isso implica buscar entre essas imagens da história, de representações do passado, de formas como esses passados se apresentam para nós, algo que nos ensine a viver. Em síntese: uma experiência. Experiência não diz respeito só a uma história prática, mas também teórica, como uma forma anterior de escolha das coordenadas fundamentais para nos ajudar na relação com o mundo. Mesclar esses dois modos de praticar história foi a tarefa a que José Carlos Reis se propôs em toda a sua vida profissional, como vemos nessa e em outras de suas obras, como História & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade, verdade (FGV, 2003), História: a ciência dos homens no tempo (EDUEL, 2009), A história entre a filosofia e a ciência (Ática, 2006), História da consciência histórica ocidental contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur (Autêntica, 2011), pois comum a todas elas é a reflexão, o pensamento, enfim, o aprofundamento de questões sobre o passado. Leia Mais

Francesco de Sanctis: la scienza e la vita | Fulvio Tessitore

“Sono sempre stato colpito dalla singolare ripresa, a ben poca distanza, del gran tema della ‘utilità’ della storia da parte di due grandi e diverse personalità quali quelle di De Sanctis e di Nietzsche”.

É assim que Fulvio Tessitore conduz a publicação de suas páginas sobre Francesco De Sanctis: la scienza e la vita (il Mulino, 2019, pp. 107), nas quais, de acordo com as intenções programáticas da série que a acolhe, estão reunidos a preleção inaugural realizada por ele para o ano acadêmico de 2017-2018 do Istituto Italiano per gli Studi Storici e alguns de seus desenvolvimentos nos cursos do mesmo ano, seguidos ao fim, oportunamente, de um apêndice que reproduz o ensaio sobre de De Sanctis de 1972 e o comentário que Croce lhe dedicou na “Crítica” de 1924. Leia Mais

Teoria da História (v.1) Razão Histórica: os fundamentos da ciência histórica | Jörn Rüsen

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UnB, 1ª reimpressão, 2010. Resenha de: SOUZA, Fernanda Almeida de; URBAN, Ana Claudia. Revista de Educação Histórica, Curitiba, n.18, p.94-98, jan./jun., 2019.

Jörn Rüsen, professor emérito da Universidade de Witten/Herdecke (Alemanha), foi professor nas Universidades de Braunschweig, Berlin, Bochum e Bielefeld. Presidiu o Instituto de Estudos avançados (KWI), de Essen, de 1997 a 2007. É autor de obras fundamentais nos campos da teoria, da metodologia e da didática da História, assim como da história dos direitos humanos e das ciências da cultura. Sua obra encontra grande eco internacional no Brasil, em Portugal, na Espanha, no Canadá, nos Estados Unidos, na Inglaterra e na África do Sul. É professor e conferencista visitante em diversas universidades alemãs e internacionais, notadamente no Brasil: Brasília, Curitiba, Goiânia, Rio de Janeiro, São Paulo.30 Sua obra mais conhecida e estudada nos últimos anos nas Universidades e Pós-Graduação no Brasil é Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica publicado em três volumes: Razão Histórica (Volume 1); Reconstrução do passado (Volume 2); História Viva (Volume 3). A análise que apresento é sobre o Volume 1: Razão Histórica, na qual aponto os parâmetros relevantes da obra por eixos temáticos, e não seguindo a ordem da narrativa do livro.31

Jörn Rüsen é um filósofo da história, assim como outros autores desse campo de estudo, se propôs a fundamentar uma Teoria da História, sendo assim, conceituar a história como ciência está presente nas suas análises. O conceito de História como Ciência é apresentado a partir do questionamento, o que é ciência? O autor apresenta que cada área científica tem suas particularidades, logo, a história também tem sua especificidade. Mas é preciso uma reflexão além do fator das especificidades, para afirmar a História como Ciência se faz necessário também, refletir sobre o caráter comum que valida as diversas áreas das ciências, que é o procedimento metódico, de acordo com Rüsen (2010, p. 99) “o pensamento histórico é científico, portanto, à medida que procede metodicamente”. O parâmetro de História Ciência ocorre então, quando o processo histórico de regulação metódica da pesquisa, leva o conhecimento genérico à plausibilidade racional e controlável da ciência.

Observamos o gráfico de ideias que norteiam as explanações do livro Razão Histórica:

Figura Matriz disciplinar de Rusen1

O gráfico é apresentado no livro sob perspectiva de explanar o conceito de matriz disciplinar. Para Rüsen a Teoria da História é vista com extrema importância, evidenciando que os historiadores necessitam primeiramente estar muito bem inseridos neste universo da História Ciência, faz uma análise firme e crítica dos propósitos que devem ter a Teoria na construção da Ciência da História, no sentido da história como produto da operação científica da história acadêmica ou investigativa, ou seja, faz parte da História Ciência reflexões profundas sobre o caráter específico do historiador, que para o autor é a especificidade do trabalho de dar sentido à experiência da mudança temporal do passado.

A Teoria da História tem de apreender, pois, os fatores determinantes do conhecimento histórico que delimitam o campo inteiro da pesquisa histórica e da historiografia, identificá-los um a um e demostrar sua interdependência sistemática. E como a pesquisa e a historiografia nada tem de estático, cabe à teoria mostrar como esse processo é dinâmico. Seu objeto são os fundamentos e princípios da Ciência da História. O termo técnico para descrevê-lo é matriz disciplinar: o conjunto sistemático de fatores ou princípios do pensamento histórico determinantes da Ciência da História como disciplina especializada. (RÜSEN, 2010, p. 29).

A matriz disciplinar apresentada no gráfico está propondo um processo lógico-dedutivo para fundamentar a Ciência da História. O ponto de partida é o vínculo entre História enquanto ciência (História Ciência) e o trabalho do historiador (Ciência da História) que ocorre, na medida em que o historiador para dar sentido à experiência do passado com o propósito de torná-lo presente, segue regras e métodos construídos pela História Ciência. O ‘sentido’ referido na obra, tem um caráter norteador, deve ser buscado pelas carências do presente, e esse processo racional pela busca de ‘sentido’ através das carências do presente, passa pelo campo das ideias, que seriam as perspectivas orientadoras da experiência do passado. A partir dessa estrutura racional do pensar, ocorre o uso do método, para concretizar os encaminhamentos da pesquisa. Esses fatores aparecem, em princípio, em todo pensamento histórico, “no entanto, articulados na matriz disciplinar da Ciência da História, eles adquirem a especificidade que permite distinguir o pensamento histórico constituído cientificamente do pensamento histórico comum.” (RÜSEN, 2010, p. 35).

O texto expressa que para Rüsen é primordial que a pesquisa histórica ou historiográfica se inicie não como forma de se encaixar ou adaptar-se a regras teóricas somente, ou que uma pesquisa se constitua a partir de interesses puramente pessoais ou quaisquer, dessa forma se produziriam histórias ‘não válidas’, ou seja, sem conexão com as demandas de interesse da sociedade presente, sem que o conhecimento produzido tivesse significado aos seus interlocutores. A história ‘válida’ então, seria aquela na qual o historiador estabelece seu objeto cognoscível através de um olhar cuidadoso a partir do seu presente, buscando observar quais são as carências da vida prática da sociedade, e a partir das carências sinalizadas, buscar um ‘sentido’ de conexão entre o passado e o presente, esse processo fundamenta o conceito de consciência histórica, explorado por Rüsen (2010, p. 57) “como a suma das operações mentais com quais os homens interpretam sua experiência na evolução temporal do seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo.”

Rüsen evidencia com clareza que a Ciência da História deve se movimentar pela consciência histórica, e que essa através de uma narrativa inteligível, consegue chegar ao âmbito de perspectivar o futuro.

“História” é exatamente o passado sobre o qual os homens têm de voltar o olhar, a fim de poderem ir à frente em seu agir, de poderem conquistar seu futuro. Ela precisa ser concebida como um conjunto, ordenado temporalmente, de ações humanas, no qual a experiência do tempo passado e a interação com respeito ao tempo futuro são unificadas na orientação do tempo presente. (RÜSEN, 2010, p. 74).

A valorização da consciência histórica é central na obra, bem construída e articulada por Rüsen, por exemplo, quando parte do princípio do questionamento, como surgem dos feitos a História? O autor para construir sua argumentação em favor da consciência histórica como resposta, fundamenta-se em bibliografias alemãs que responderam à pergunta em questão, ou de forma muito subjetiva ou de forma muito objetiva, os fatores de subjetividade (de Max Weber) e objetividade (do materialismo histórico) passam pela criticidade do autor, como forma de validar sua defesa por respostas históricas estruturadas a partir da matriz disciplinar.

Para Rüsen a matriz disciplinar e as conexões de orientações apresentadas nela: carências de orientação, diretrizes de interpretação, métodos; formas de apresentação, funções de orientação, é uma explicação teórica do tipo de racionalidade da constituição histórica de sentido, mas essas diretrizes não devem ser interpretadas como uma série de etapas sucessivas e estanques, ao contrário, esses fatores devem ser condicionados mutualmente representando uma forma de ‘pensar a história’ dentro de um conjunto sistemático e complexo.

Fazer uso da matriz disciplinar implica no uso de valoração da narrativa, para que todos os fatores apresentados na matriz possam ser articulados. Essa reflexão está no apêndice à edição brasileira e seu objetivo maior é articular a defesa da matriz disciplinar ao referencial teórico.

O apêndice mencionado, recebeu como título: a constituição narrativa do sentido histórico, no qual Rüsen explora o tema de forma bem argumentativa, mostrando por referenciais teóricos, como a questão da história narrativa foi tratada e refletida historicamente; o tema é explorado sob perspectiva do paradigma narrativista, onde para Rüsen como não existe uma racionalidade única, mas sim diversos tipos de racionalidade, trata-se agora de desenvolver “um tipo de racionalidade da constituição histórica de sentido na forma de um paradigma que resista à crítica feita à racionalidade até agora dominante no pensamento histórico moderno e que exprima em pretensões convincentes de racionalidade.” (RÜSEN, 2010, p. 169).

Para a narrativa histórica “é decisivo, por conseguinte, que sua constituição de sentido se vincule à experiência do tempo de maneira que o passado possa tornar-se presente no quadro cultural de orientação da vida prática contemporânea.” (RÜSEN, 2010, p. 155).

Rüsen argumenta com propriedade sobre as questões paradoxais da Ciência História, percebe isso como extremamente necessário, e expressa que o campo teórico da história não pode ser dado como finalizado, é necessário continuar explorando e ressignificando os teóricos e bibliografias. O livro também aborda outras temáticas próprias da Teoria da História, como, conceito de verdade, partidarismo, uso das fontes, humanismo, que não foram abordados, pois optei em encaminhar a resenha dentro do conceito que julguei ser a verdadeira alma do livro: a importância da consciência histórica estabelecida e guiada a partir da matriz disciplinar na produção da ciência da história. Como se trata de uma trilogia, os temas abordados em Razão Histórica continuam sendo explorados em perspectiva teórica em Reconstrução do Passado e História Viva.

Notas

30. www.joern-ruesen.de

31. Esta resenha foi produzida para a disciplina de Teoria da História (disciplina do Mestrado Profissional em Ensino de História da UFPR/ 2019), o objetivo estabelecido era buscar na leitura contribuições que pudessem dialogar com o projeto de pesquisa.

Fernanda Almeida de Souza – Professora da Rede Estadual de Ensino do Paraná, graduada em História, mestranda no Mestrado Profissional em Ensino de História da UFPR. E-mail: [email protected]

Ana Claudia Urban – Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do Paraná – Setor de Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Mestrado Profissional em Ensino de História e Professora de Metodologia e Prática de Docência de História. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica (LAPEDUH – UFPR). ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001- 9957-8838. E-mail: [email protected]

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Historisierung der Historik. Jörn Rüsen zum 80 – SANDKÜHLER; BLANKE (ZG)

SANDKÜHLER, Thomas; BLANKE, Horst Walter (eds.). Historisierung der Historik. Jörn Rüsen zum 80. Geburtstag, Wien ; Köln ; Weimar : Böhlau , 2018. WAGNER, Helen. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 214-218, 2019.

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Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida – NIETZSCHE (CN)

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Tradução de André Luís Mota Itaparica, São Paulo: Hedra, 2017. Resenha de: JULIÃO, José Nicolao. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.38 n.2 maio/ago. 2017.

O ensaio de Nietzsche Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben apareceu ao grande público, em fevereiro de 1874, como a segunda parte de uma ambiciosa obra intitulada Unzeitgemässe Betrachtungen, cuja primeira parte, David Strauss der Bekenner und der Schriftsteller, publicada no ano anterior, havia feito grande sucesso de vendagem, exigindo uma segunda edição, no mesmo ano de sua publicação, sobretudo devido à polêmica matéria enfurecida que o periódico Grenzboten, em sua edição de outubro de 1873 (ano 32, 2º semestre, 2º volume, p. 104-110), com o título “Herr Nietzsche und die deutsche Cultur”, havia lançado contra ela. A mesma audiência, contudo, não alcançou de imediato a segunda das Extemporâneas, retumbando sobre ela um sonoro silêncio1, para depois tornar-se uma das mais conhecidas obras de seu autor e talvez umas das mais influentes no âmbito das Ciências Humanas. Herbert Schnädelbach considera esse ensaio de Nietzsche como o primeiro documento crítico ao Historicismo alemão2; Karl Schlechta diz o seguinte sobre o tratado: “Nele, o ‘Historicismo’ toma consciência dele mesmo de forma assustadora: o diagnóstico do autor foi tão sombrio que foi necessário familiarizar-se com esse estado de risco doentio”3. O filólogo Karl Reinhardt considerou que o Historicismo foi tão depreciado que fica difícil que se possa achar ainda algo a dizer contra ele4. Fora o impacto crítico ou devido a ele, como chama atenção o tradutor André Itaparica, na sua aguda introdução à sua cautelosa tradução, há também o destaque que o ensaio ganhou em obras já consagradas sobre a filosofia de Nietzsche, como nos livros de Karl Jaspers (Nietzsche, Einführung in das Verständnis seines Philosophierens – 1946) e Walter Kaufmann (Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist – 1956), podemos adicionar a essa lista, entre aqueles que reconhecem o valor da Segunda Extemporânea e já se tornaram consagrados, Müller-Lauter (Nietzsche, Seine Philosophie der Gegensätze und die Gegensätze seiner Philosophie – 1971) e Michel Foucault (“Nietzsche, Freud, Marx” – 1967 – e “Nietzsche, la genealogie, l’histoire” – 1971). Itaparica menciona ainda o seminário ministrado por Heidegger, no semestre de inverno de 1938-39, dedicado à Extemporânea II (publicado no volume 46, da edição crítica: Zur Auslegung von Nietzsches II. Unzeitgemässer Betrachtung. In: Martin Heidegger Gesamtausgabe (HG. 46), Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2005) para dar visibilidade à dimensão da projeção e fecundidade do texto nietzschiano. Neste assunto, nós nos deteremos um pouco mais para estabelecermos um contraponto à nossa compreensão do texto traduzido impecavelmente por André Itaparica.

No seminário, Heidegger retoma e desenvolve teses já apresentadas, incipientemente, em 1927, no parágrafo 76 de Ser e Tempo, intitulado Der existenziale Ursprung der Historie aus der Geschichtlichkeit des Dasein, nas quais ele mostra a partir de Nietzsche que o homem é essencialmente histórico, entretanto, cabe saber até que ponto a história é útil ou prejudicial à vida, tema central, que deve ser compreendido, como a experiência da vida humana, que só pode ser pensada no interior de uma cultura. No que concerne ao seminário, Heidegger, já na introdução, previne que a concepção ampla e ambígua do projeto lhe garante certa liberdade interpretativa, propondo, em seguida, uma divisão do estudo em três partes: “Grosso modo, o trabalho que nos propomos contém três partes: 1. Introdução à formação conceitual filosófica, 2. mas isto, como leitura e interpretação para um tratado definitivo e, consequentemente, 3. na abordagem da filosofia de Nietzsche.”5 Ele também deixa claro de imediato que não escolheu Nietzsche por moda, mas porque ele foi “o último pensador da história da filosofia ocidental, isto é, da metafísica: pensar o seu pensamento é, ao mesmo tempo, levar a filosofia ocidental em suas linhas básicas ao primeiro patamar do saber”6. Heidegger, embora não se expresse de forma tão clara na escolha da Segunda Extemporânea como tema para o seminário, no entanto, ele sugere que o trabalho lhe apresenta uma oportunidade especial para ilustrar a posição de Nietzsche na história da metafísica. A análise do tratado, para ele, tampouco se limita a uma mera interpretação, mas fornece uma justificação permanente para compreensão da posição de Nietzsche dentro da totalidade da tradição filosófica. O Filósofo da Floresta Negra procede, todavia, em conformidade, no decorrer do seminário, estabelecendo uma diferença entre a consideração científica e pensamento filosófico, ou seja, entre a conceituação científica e filosófica na orientação da análise do conceito de “vida” em Nietzsche. Desse modo, a interpretação é guiada pela hipótese de que “vida” é a leitwort da Segunda Extemporânea, assim como de toda a filosofia de Nietzsche7. Mas, segundo o autor de Ser e Tempo, o conceito de “vida” é ambíguo em Nietzsche, pois significa o ser em sua totalidade e o modo de ser do ser particular, cuja vida é a humana. O ser compreendido como o ser humano, como em toda a tradição filosófica, a metafísica não é superada, porém ratificada. Para Heidegger, o homem continua sendo um animal racional: a única novidade é a ênfase dada à corporalidade, mas que, para ele, não é suficiente para se ir além de Descartes. A concepção do sujeito como ego vivo8 é a justificação como o mais alto representante da vida e da verdade como um erro necessário da vida, que Heidegger atribui a Nietzsche, contudo é válido apenas como conclusão da metafísica moderna, ou como uma (possível) transição para outro começo, mas não como um (real) outro começo9, e é por isso que ele afirma: “A principal questão sobre a Segunda Consideração Extemporânea de Nietzsche não é a desvantagem ou a utilidade da história, mas a compreensão da vida como a realidade básica no sentido de uma biologia cultural ”10. Para ele, Nietzsche não consegue a superação da metafísica nem uma investigação detalhada da história, porque ele não pensou a história da História, isto é, a essência do homem, e a sua relação com a verdade do ser.

Na nossa compreensão, a interpretação esquemática de Heidegger, tão entusiasmadamente defendida pelos heideggerianos, para analisar a história da filosofia a partir da sua Seinsgeschichte, reduzindo-a à história da metafísica, não é satisfatória para a análise da Segunda Extemporânea. Atualmente, na Nietzscheforschung, a interpretação dominante desse ensaio tende a arrefecer justamente a carga metafísica do texto nietzschiano, tão enfatizada por Heidegger, mesmo que ainda sobre ele reverbere teses metafísicas da obra inaugural. Em o Nascimento da Tragédia, Nietzsche havia se posicionado radicalmente crítico em relação à infecundidade criativa do que então chamou de metafísica racional, caracterizada pela crença otimista na capacidade da razão em alcançar um conhecimento objetivo que consolaria o ser humano da sua condição de finitude e fraqueza, e, como alternativa, defendeu também uma “metafísica de artista” em que valoriza os efeitos ilusórios e criativos da arte como forma superior de compreensão do mundo. A repercussão da crítica à metafísica racional na Segunda Extemporânea recai sobre o tratamento caudal científico da historiografia como um rebento moderno da racionalização humana. Portanto, o diagnóstico de que os males da cultura se devem à hipertrofia do sentido histórico apresentado nesse tratado depende da tese peculiar do Nascimento da Tragédia, segundo a qual há na modernidade uma hipertrofia dos impulsos cognitivos que impossibilita uma cultura realmente autêntica e elevada. Por isso, para Nietzsche, os interesses teóricos predominaram sobre quaisquer outros interesses, produzindo, consequentemente, um desequilíbrio vital que ele, em oposição, apresentou como superior o caráter criativo e ilusório da arte. É nesse sentido que ele propõe, na segunda de suas Extemporâneas, uma escrita da história como recriação artística do passado, que pode ser compreendida como a “força plástica”, como alternativa à tendência racionalista, predominante na historiografia alemã de sua época, sem, contudo, recorrer à própria metafísica, como fez na obra inaugural. Argumentando a respeito de como seria possível medir até que ponto é salutar lembrar e em que momento é vital esquecer, Nietzsche descreve o conceito de força plástica, diz ele:

A fim de determinar esse grau e, por meio dele, o limite do que deve ser esquecido, para que o passado não se torne o coveiro do presente, se deveria saber exatamente quão grande é a força plástica de um homem, de um povo, de uma cultura, quero dizer, aquela força que cresce a partir de si mesma, transformando e incorporando o passado e o estranho, curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesma formas arruinadas (HL/Co. Ext. II, KSA 1.251).

Portanto, como capacidade de assimilação e resignação em relação ao passado como perda e alteridade, a força plástica habilita a memória a lembrar e esquecer, na exata medida, sem sobrecarregar-se de lembranças.

Nietzsche está, portanto, na busca de um saber filosófico que não seja nem filosofia da história nem história universal tal como já havia rejeitado Burckhardt nas primeiras linhas de suas Considerações sobre história universal:

Nós nos abstraímos de toda sistemática; não revindicamos nenhuma “ideia de história universal”, contentaremos em registrar nossas percepções e realizar uma série de cortes transversais ao longo da história na maior quantidade possível de direções; nós não oferecemos aqui nenhuma filosofia da história. Esta é um centauro, uma contradictio in adjecto, pois a história que coordena é a negação da filosofia, enquanto a filosofia que subordina é a negação da história.11

Ele busca uma base a partir da qual seja possível um saber que vincule a orientação à ação, pois nem a metafísica e nem a ciência – compreendida como ciência histórica -, podem mais oferecer tal nexo.

A tradução que André Itaparica apresenta de Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida, recém-publicada pela editora paulista Hedra, ao público de língua portuguesa, sem querer desmerecer as outras, que são meritórias em diversos aspectos, é a mais completa e bem sucedida tradução desse tratado de Nietzsche que nos permitirá um grande avanço, renovando as pesquisas, possibilitando outras compreensões que nos desamarrem das antigas e viciadas interpretações. Elaborada com acribia, a tradução soluciona alguns problemas sintáticos que dificultavam a compreensão semântica de diversas passagens, consolida também o estabelecimento de alguns termos chaves, como, por exemplo, o mais emblemático, Unzeitgemässe, como extemporâneas que era frequentemente traduzido, nas traduções anteriores, como intempestivas e, ainda, nos oferece um grande número de notas esclarecedoras. Sabemos que toda tradução é uma atividade árdua e desgastante, nem sempre reconhecida quando acertada e bastante criticada toda vez que mal executada. A princípio, para traduzir um texto não basta simplesmente transferir as palavras de uma língua para outra, tem de ter a capacidade de interpretar o significado de um texto em uma língua e a produção de outro texto em outra língua, mas que exprima o texto original da forma mais exata possível na língua de destino, mesmo que recaia sobre o tradutor a já repetida, ad nauseam, máxima italiana, em forma de jogo de palavras, que diz “traduttore, traditore” (“tradutor, traidor”), pois todo tradutor teria de trair o texto original para conseguir reescrevê-lo na língua desejada. Entretanto, pode-se garantir que, em se tratando de texto filosófico, a traição ocorrerá a partir do instante em que as ideias do autor do texto original forem distorcidas ou contrariadas no texto traduzido, ou seja, se ao comparar o nível e compreensão dos leitores das duas línguas for observado que há divergência quanto à compreensão das ideias. Nesse sentido, Itaparica não é traditore – como muito em voga, em todos os âmbitos da nossa cultura -, mas um traduttore e isto ocorre devido ser ele um conhecedor das duas línguas em jogo na tradução, o alemão e o português, além de ser um estudioso da filosofia de Nietzsche e, no caso específico do texto traduzido, eu diria, um perito, bastante familiarizado com os termos e temas nietzschianos ali expostos.

1Karl Hillebrand, ex-secretário de Heine, quem Nietzsche cita em EH (Cf. EH/EH. As Extemporâneas, 1, KSA 6. 318), devido a sua resenha favorável à Extemporânea I, publicada no Allegemeine Zeitung Augsburg, número 256-266, setembro de 1873, p. 256-266, publicou, depois, comentários às três primeiras Extemporâneas, na coletânea Zeiten, Völker und Mennschen. Strassburg, 1892, mas escrito em 1874-5. Nada indica que Nietzsche tenha conhecido o teor dos comentários à segunda e à terceira das suas Extemporâneas.

2Cf. Filosofía en Alemania (1831-1933). Trad. Española. Madrid: Ediciones Cátedras, 1991, p. 81.

3Cf. Der Fall Nietzsche: Aufsätze und Vorträge. 2. Auflage. München : Hanser, 1959, p. 44. (“Nietzsches verhältnis zur Historie”).

4Cf. Von Werken und Formen. Godesberg, 1948, p.432,

5HGA 46, 3.

6Cf. HGA 46, 6.

7Cf. HGA 46, 108

8Cf. HGA 46, 142 ss.

9Este seminário é contemporâneo à elaboração da obra Beiträgen zur Philosophie (Vom Ereignis), entre 1936 e 1938, e que só foi publicada postumamente, na qual Heidegger propõe a transição de Ser e Tempo para um “outro começo”, expressão muito utilizada por ele na época.

10HGA 46, 255.

11Cf. Weltgeschichtliche Betrachtungen. 2. Ausgabe. Berlin/Stuttgart: Verlag W. Spmann, 1910, p. 2. Embora, a primeira edição dessa obra seja 1905, trata-se das Vorlesungen de 1870-1871, ministradas em Basel e que Nietzsche havia assistido.

José Nicolao Julião – Professor titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, Brasil. Pesquisador 2 do CNPq. E-mail: [email protected]

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Manifiesto por la Historia – GULDI; ARMITAGE (PR-RDCDH)

GULDI, J.; ARMITAGE, D. Manifiesto por la Historia. (traducción de Galmarini, M. A. The History Manifesto, 2014). Madrid: Editorial Alianza, 2016. 292p. Resenha de: HERNÁNDEZ, Juan Jesús Botí; GIMÉNEZ, David Omar Sáez. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, Murcia, p.141-143, 2017.

La edición de Manifiesto por la Historia que aquí reseñamos es una traducción al castellano de Marco Aurelio Galmarini del original publicado en inglés por la Universidad de Cambridge en 2014. Sus autores son Jo Guldi y David Armitage: Jo Guldi es profesora en la Universidad de Brown, en Providence (Estados Unidos), y ha dedicado buena parte de su obra a estudios sobre la historia de Gran Bretaña y, sobre todo, a la política económica. Por su parte, David Armitage es profesor en la Universidad de Harvard, especialista en historia intelectual e historia del mundo.

Aunque hay quien ha señalado la originalidad del título de la obra, subrayando especialmente el término manifiesto como algo provocador y poco usual, lo cierto es que no se trata de algo novedoso, pues viene a unirse a una serie de títulos que se han publicado en la última década, sirviendo de ejemplo el conocidísimo La utilidad de lo inútil de Nuccio Ordine (2013), que también se publicó con el subtítulo Manifiesto, y que coincidía en algunos aspectos con el contenido de esta obra.

El conjunto del libro consiste en una dura crítica a la hiperespecialización y el cortoplacismo, planteando la Historia como una ciencia que, ante el avance de las nuevas tecnologías y la pérdida de perspectivas a largo plazo para enfrentar problemas como pueda ser el cambio climático, ofrezca respuestas globales y aporte una visión crítica. Manifiesto por la Historia es, por tanto, una dura pero necesaria autocrítica que plantea que los propios especialistas han debilitado la ciencia histórica, haciéndole perder peso e influencia, creando la idea de que ante grandes problemas como crisis económicas, climáticas, bélicas, etc., la Historia no puede aportar nada.

Esta idea, que a muchos les puede parecer absurda, está cada vez más asentada en el imaginario colectivo, y día a día vemos cómo la ciencia histórica, junto a otras disciplinas sociales y humanísticas, va desapareciendo de los planes de estudios, de los presupuestos nacionales, etc. Según los autores, esta pérdida de utilidad pública es culpa de los propios historiadores, que desde mediados del siglo XX han venido constriñendo sus estudios a aspectos cada vez más especializados, contrayendo sus escalas temporales y generando una obra tremendamente compleja y alejada de las necesidades reales de la sociedad, e incluso del entendimiento del gran público.

El libro está estructurado en introducción, cuatro capítulos y una conclusión. Además, viene acompañado de un índice de figuras y un índice analítico que remite a conceptos, autores, acontecimientos históricos, etc.

La introducción, bajo el título ¿La hoguera de las humanidades?, realiza un recorrido exhaustivo por la problemática que ya hemos planteado, describiendo cuáles son esas dificultades que plantea el mundo actual, inmerso en una crisis acelerada. Desde la primera línea la autocrítica está presente y, sirviéndose de la fórmula con que Karl Marx y Friederich Engels introducían su Manifiesto del Partido Comunista, Guldi y Armitage afirman: “Un fantasma recorre nuestra época: el fantasma del corto plazo”. Así, ya en la introducción, los autores hacen alusión a la importancia del papel de la Historia en la sociedad: “La Historia es una espada de dos filos, uno que abre nuevas posibilidades para el futuro y otro que deja atrás el ruido, las contradicciones y las mentiras del pasado”.

El primer capítulo se titula Avanzar mirando hacia atrás: el surgimiento de la ‘longue durée’. En él se deja claro que la historia a largo plazo no es algo novedoso, sino por el contrario algo que viene de mucho tiempo atrás y que fue progresivamente abandonado en las décadas finales del siglo XX. Para ello se exponen las obras y aportaciones de distintos autores, con especial mención a Fernand Braudel como creador del concepto de longue durée. En este capítulo se puede observar una cierta añoranza del pasado historiográfico, haciendo continuas alusiones a la influencia que los historiadores tuvieron en disciplinas como la economía o la política en tiempos pretéritos. Aunque también se exponen los peligros y los errores que supuso en aquellos tiempos, tales como el presentismo. Así, por poner un ejemplo, declaran los autores en relación a los tiempos de Braudel: “La Historia a largo plazo era una herramienta para dar sentido a las instituciones modernas, hacer comprensibles los programas utópicos y concebibles por la sociedad los programas revolucionarios”.

A lo largo de toda la obra son abundantes, excesivas en algún punto, las referencias a la problemática del cambio climático, y quizá en este ejemplo extraído del primer capítulo podamos comprender cuál es el planteamiento acerca de la utilidad pública de la Historia que plantean estos dos historiadores: “el papel de la Historia no debería consistir solamente en vigilar la información sobre la responsabilidad respecto del cambio climático, sino también en señalar las direcciones alternativas, los atajos utópicos, las agriculturas distintas y los modelos de consumo que se han desarrollado mientras tanto”. En este primer apartado se afirma que cada vez más personas miran a la Historia en busca de respuestas a problemáticas a largo plazo como esta, por lo que inmediatamente surge el interrogante: ¿están preparados los historiadores para ofrecer esas respuestas? Guldi y Armitage señalan que la Historia puede ofrecerlas, pero que la visión cortoplacista que ha marcado la investigación y la enseñanza de esta disciplina en los últimos tiempos no.

El segundo capítulo, titulado El pasado breve, o la retirada de la ‘longue durée’, expone cuáles han sido esos cambios que han llevado a abandonar la longue durée de Braudel en favor del cortoplacismo. En él se describe cómo en la segunda mitad del siglo XX la disciplina comenzó a promover una concentración y concreción de fuentes e interrogantes y, por tanto, también del período y materia investigados. De esta manera se propició una hiperespecialización que llevó a saber mucho sobre aspectos cada vez más reducidos, descuidando así los grandes interrogantes, que quedaban sin responder.

Este proceso conllevaba una elitización, quedando así el debate y la exposición de resultados reducidos a pequeños círculos de eruditos, y agravando a su vez la crisis de utilidad social que pudiera tener la Historia. Guldi y Armitage citan a autores que ya en los años ochenta habían puesto en duda la contribución de la excesiva especialización a campos fundamentales como la educación.

El tercer capítulo se titula Lo largo y lo corto. Cambio climático, gobernanza y desigualdad a partir de la década de 1970. En este apartado del libro se analizan las tres problemáticas que le dan título (cambio climático, gobernanza y desigualdad), para concretar todo lo dicho hasta el momento y demostrar cómo la falta de investigación histórica en estos temas en particular ha generado una serie de mitologías e ideas distorsionadas que, a menudo de forma consciente, han condicionado la forma en que hoy la sociedad entiende algunos de ellos. Señalan los autores que la ausencia de historiadores ha propiciado la presencia de especialistas menos cualificados procedentes de otras disciplinas que han asumido la responsabilidad de condensar el conocimiento de siglos y milenios. Así, se cita como ejemplo en el libro la forma en que los economistas han construido un discurso a largo plazo que ha idealizado la economía de libre mercado.

El cuarto capítulo nos trae de nuevo al presente y nos propone un tema de suma actualidad ya desde el título: Grandes cuestiones; big data. Aquí nos plantean los autores que la sobrecarga de información es en sí misma un síntoma de la crisis de pensamiento que venimos padeciendo, y que tanto para el estudio histórico como para otras ciencias y la vida cotidiana se han hecho indispensables las herramientas de búsqueda de información. De hecho, los expertos se han dado cuenta de que para mantener la capacidad de persuación necesitan condensar big data para crear un relato conciso y divulgativo. La utilización de palabras clave es un ejemplo de este fenómeno de recogida de datos, que obviamente se ha expandido a distintos tipos de software (Google Book Search, Paper Machines…). Según los autores, gracias a estas herramientas se facilita la comparación de informaciones cuantitativas, lo que ayuda a producir modelos comparativos de variables a lo largo del tiempo y, por tanto, hace de la Historia “un árbitro de los principales discursos del antropoceno”.

Al fin, llegamos a la conclusión titulada, donde los autores realizan un balance general de todo lo expuesto y concluyen tres líneas a seguir en la escritura de la Historia: la apertura al gran público, haciendo accesibles y comprensibles los relatos elaborados por los historiadores; la atención y empleo de nuevas herramientas de visualización, en especial digitales, por parte de los historiadores; y, por último, la fusión entre lo “micro” y lo “macro”. En relación a este último aspecto, hay que señalar que ya en los capítulos anteriores los autores habían dejado clara su posición favorable también a la microhistoria y, en general, a líneas de investigación más reducidas, tan solo criticaban su generalización, hegemonía y condicionamiento en las tendencias de investigación recientes. En la conclusión vuelven a aclarar esta cuestión defendiendo que lo “micro” representa lo mejor de la metodología del historiador, mientras que lo “macro” plantea los auténticos interrogantes de interés común, por lo que insisten en alcanzar un equilibrio entre ambas concepciones.

No obstante, lo más interesante de la conclusión es el tono optimista que emplea. Se incide en la idea de que desde hace algunos años se vienen publicando estudios que siguen estos criterios, que la ciencia histórica está cambiando y que comienza a corregir errores. Se defiende que no todo está perdido y que, según los autores, los historiadores pueden y deben volver a ocupar el papel de maestros públicos, de guías sociales, que ya ocuparan en tiempos pasados aunque sin renunciar a la rigurosidad. Esto queda especialmente claro en las líneas finales del manifiesto: “¡Historiadores del mundo, uníos! Hay un mundo por ganar, antes de que sea demasiado tarde”.

Nos gustaría terminar diciendo que el manifiesto-ensayo ofrece al historiador un punto de vista novedoso basado en teorías que podrían parecer desfasadas por su antigüedad. Desde nuestro punto de vista, los autores aciertan al buscar en el pensamiento de Braudel un enfoque adecuado para la investigación histórica, pero falla a la hora de plantearlo en su texto. Precisamente por tratarse de un manifiesto, sus ideas no son desarrolladas de manera adecuada, quedan en cierta medida expuestas pero no se profundiza en su entendimiento, con lo que en ocasiones no se termina de comprender el propósito de los autores, o la forma en la que se deberían desarrollar estas ideas. Esto contrasta bastante con otras secciones del manifiesto donde el planteamiento se vuelve farragoso y repite hasta la extenuación algunos conceptos, sobre todo los relacionados con big data y cambio climático. En esos dos apartados es donde los autores, en lugar de incidir en su teoría, se pierden en la explicación de ejemplos que, a veces, no resultan del todo útiles, y quedan como una mera enumeración de ejemplos y casos concretos que no llevan a ninguna parte.

No obstante, debemos incidir en la idea de que el mensaje general que expone esta obra es absolutamente necesario en los tiempos actuales ante la aparente pérdida de utilidad social de la disciplina histórica, y de su progresiva destrucción y marginación por parte de instituciones y autoridades.

Juan Jesús Botí Hernández – Profesor de Secundaria – Ad Absurdum

David Omar Sáez GiménezProfesor de Secundaria – Ad Absurdum

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Historia. Las últimas cosas antes de las últimas – KRACAUER (CCS)

KRACAUER, Siegfried. Historia. Las últimas cosas antes de las últimas. Buenos Aires: Las Cuarenta. 2010. Resenha de: GURPEGUI VIDAL, F. Javier. Una epistemología del fragmento. El pensamiento histórico de S. Kracauer. Con-Ciencia Social – Anuario de Didáctica de la Geografía, la Historia y las Ciencias Sociales, Salamanca, n.20, p.165-170, 2016.

Con-Ciencia Social – Anuario de Didáctica de la Geografía/ la Historia y las Ciencias Sociales (CCS)

En esta publicación, con frecuencia hemos trabajado con los autores de la “Escuela de Fráncfort”, pero nunca nos detuvimos en Siegfried Kracauer (Fráncfort, 1889 – New York, 1966), mentor y amigo personal de Adorno, personaje marginal y compañero de viaje, recurrente interlocutor crítico de los planteamientos del grupo. Durante mucho tiempo, en el entorno español su figura estuvo casi exclusivamente vinculada al cine, a raíz de la publicación de dos estudios relativamente tardíos: el relativo al expresionismo alemán, De Caligari a Hitler (1947), así como su Teoría del Cine. La redención de la realidad física (1960). Sin embargo, su obra significativa arranca a comienzos de los veinte, cuando publica en el diario liberal Frankfurter Zeitung una serie de crónicas culturales y sociológicas (1921-30), de donde surgen libros como La novela policial. Un tratado filosófico (1925), Los empleados (1930) o la recopilación El ornamento de la masa (1963). Tras escribir en París su “biografía social” Jacques Offenbach o el secreto del Segundo Imperio (1937), se traslada a Estados Unidos. Todo ello aparte de dos novelas y otros trabajos académicos.

Estas obras han sido traducidas, con un cierto desorden, entre España y Latinoamérica, al castellano. A ellas habría que añadir la publicación argentina de un texto póstumo, Historia. Las últimas cosas antes de las últimas (Kracauer, 2010), a partir de la edición preparada por Paul Oskar Kristeller en 1969, que partía de unos apuntes fragmentarios, especialmente dispersos en tres de los ocho capítulos del libro. Y precisamente en la reflexión histórica de Kracauer se centra una publicación reciente, Historia y teoría crítica.

Lectura de Siegfried Kracauer (Díaz, 2015), que recoge los trabajos presentados en el seminario del mismo título, mantenido en 2013 en la sede valenciana de la Menéndez Pelayo. Se trata del segundo estudio editado en España sobre el escritor, después de la biografía de Enzo Traverso Siegfried Kracauer, itinerario de un intelectual nómada (1998). Como suele ocurrir en los libros de autoría colectiva, sus capítulos ostentan un desigual calado, produciéndose frecuentes solapamientos, y, sin embargo, constituye una llave valiosa para acercarse al universo histórico del autor.

En un autor como Kracauer, que concede gran importancia cognitiva al fragmento y al detalle, resumir sistemáticamente los planteamientos de Historia (2010) constituye una especie de traición, pero resulta inevitable para aprehender su enfoque general. El primer eje expositivo de Kracauer se corresponde con los ámbitos del conocimiento.

Sitúa en el siglo XIX el nacimiento de la historia moderna, en un movimiento de emancipación respecto a las especulaciones filosófico- teológicas sobre el pasado. El relato tradicional debía sustituirse por un discurso objetivamente científico, aun admitiendo las especificidades del conocimiento histórico.

Mientras las leyes científicas se basan en el establecimiento de predicciones, las ciencias de la conducta aspiran a la comprensión de los fenómenos humanos y sociales. Ahora bien, aun así, la historia moderna no deja de atribuir a los hechos históricos rasgos de los acontecimientos naturales. Incurren los historiadores así en dos errores: identificar “historia” y “naturaleza” y confiar en el tiempo como continuo homogéneo. Pero la historia se revela impermeable a las leyes longitudinales, de manera que el historiador se ve abocado a explorar las cualidades específicas de los hechos.

Al hilo de esta explicación, la obra resalta los paralelismos entre historia y fotografía (asimilando a esta última también otro medio, el cine). Para Kracauer, la realidad de la cámara posee los rasgos distintivos del “mundo de la vida”, ya que está destinada a retratar el flujo heterogéneo de la vida. Los planteamientos del autor, relativos tanto a la historia como a la teoría del cine comparten la misma perspectiva epistemológica.

Un segundo eje se corresponde con la dialéctica entre pasado y presente. Se considera al historiador un hijo exclusivo de su tiempo, de manera que la verdad histórica se convierte en una mera variable del interés del presente. Sin embargo, el contexto histórico y social del historiador no es un todo autosuficiente, sino un flujo frágil y heterogéneo.

Pensar que todas las evidencias históricas van a cuadrar en un sistema cerrado del presente se corresponde con el sueño imposible de una razón liberada. Ni el presente es la llave que abre las puertas del pasado, ni la perspectiva del historiador se agota en términos de influencias contemporáneas. El historiador está condenado, por consiguiente, a reconocer el carácter dinámico de su “yo”, alterando la disposición de su mente para llegar al núcleo de las cosas, sin por ello desprenderse de todas las categorías de origen. La realidad histórica se convierte así en un palimpsesto, que superpone las capas del pasado y del presente. Lo cual nos lleva a una concepción no homogénea del mundo y del tiempo histórico.

El mundo histórico tiene una estructura heterogénea porque lo macro y lo micro, lo general y lo particular, no son categorías mecánicamente reconciliables. Cuanta más generalidad se alcanza, se incrementa la inteligibilidad, pero disminuye la densidad de la realidad histórica. Moverse entre los dos niveles implica el reconocimiento de dos principios. Según la ley de perspectiva, el avance hacia lo macro conlleva la ocultación o priorización de circunstancias concretas.

Según la ley de los niveles, la heterogeneidad de universo histórico siempre impedirá la fusión completa entre la perspectiva del pájaro y de la mosca.

La fascinación de las fechas, propia del tiempo cronológico, ayuda a dar sentido a los acontecimientos, provocando además un hechizo de homogeneidad que desencadena la tentación de concebir el pasado histórico como un “todo”, vinculado muchas veces a la idea de progreso. Así se configura el pretencioso fantasma de esa historia universal, que cuestiona fuertemente la obra. Sin embargo, cada secuencia de acontecimientos tiene su propia agenda, según su pertenencia a diferentes “áreas” (arte, literatura, política, economía…), porque cada hecho es significativo en función de una magnitud. El concepto de periodo histórico tampoco será homogéneo, sino que será el punto de encuentro para cruces casuales, algo así como la sala de espera de una estación.

La historia, como la fotografía, ocupa un espacio provisional, situado entre la ciencia y la mera opinión. Si la ciencia no sirve como modelo para la historia, tampoco la filosofía, discurso que apunta al estudio de las “cosas últimas”, desde una perspectiva general y aspirando a una validez objetiva.

El radicalismo y la rigidez de las ideas filosóficas no se adecuan bien al conocimiento histórico. La historia constituye un pensamiento de antesala, situado entre el “mundo de la vida” y la filosofía, alimentado de la heterogeneidad inherente al mundo intelectual, pues ni el histórico ni el intelectual son universos homogéneos.

Este resumen no hace justicia a la obra, porque es fragmentaria por inacabada, pero también por situar en el centro de su reflexión el fragmento que se resiste a pertenecer a una totalidad. No en vano en uno de los trabajos de Historia y teoría crítica (2015, pp. 101-21), Miguel Ángel Cabrera señala que la de Kracauer es una lectura convencional de teoría de la historia. Quizá por ello Cabrera lo instrumentaliza al servicio de su propio discurso, sin respetar su entidad.

Sin embargo, lo interesante del libro del escritor alemán reside en los intersticios que deja entrever la estructura, quizá excesivamente académica, de algunos capítulos. ¿De qué nos habla esta “tierra de nadie”?

Por lo pronto, aspectos de una corriente de pensamiento considerada “central” como la Escuela de Fráncfort pueden resultar más claros a la luz de un personaje marginal como Kracauer.

Es significativo en este sentido el vínculo teórico con otro marginal, como Walter Benjamin, cuestión estudiada por Carlos Marzán (ob. cit., pp. 167-87), especialmente en relación con la famosa introducción a El origen del Drama Barroco alemán (1925) y las Tesis de Filosofía de la Historia (1940). Ambos autores parten de un diálogo con Husserl, y ambos rechazan el historicismo, el cientifismo y la especulación filosófica en historia, que les conduce a un giro epistemológico donde lo concreto y fragmentario viene a representar el testimonio de las víctimas de la historia. Otro colaborador del libro, Sergio Sevilla (ob. cit., pp. 57-59), insiste en la importancia para Kracauer de la mencionada introducción al Drama Barroco, “Algunas cuestiones preliminares de crítica del conocimiento”, según la cual el conocimiento se relacionaría con las ciencias positivas, y la verdad se manifiesta otorgando un sentido a los conceptos, con los que operan las ciencias.

El conocimiento es la posesión conceptual de fenómenos, mientras que la verdad, interpretación y símbolo.

Prosigue su discurso Marzán, ahondando en las diferencias entre los dos autores: mientras el benjaminiano “ángel de la historia” reivindica un anhelo de justicia que desquicia el presente, inclinándolo hacia una acción revolucionaria, el judío errante de Kracauer es identificado con un melancólico “ángel de la duda” (en palabras del cuentista Andersen), más compasivo y sereno que realmente reivindicativo. Con todo, nosotros entendemos que no hay que sacar excesiva punta teórica a estas alegorías de carácter ensayístico, frecuentes en estos autores, y que el “aire de familia” entre los dos es evidente. Aunque Kracauer plantea su reflexión histórica en lo epistemológico, tiene consecuencias éticas y políticas evidentes.

Su llamada a que ningún hecho histórico se pierda por criterios macro es una forma de piedad por los muertos (2010, pp. 141-171).

Dos trabajos clarifican la relación de Kracauer con el grueso de la Escuela de Fráncfort.

Para Hernández i Dobon (Díaz, 2015, pp. 147-65), hacia 1931, el autor ejerce sobre el “Instituto de Investigación Social” una intensa influencia dialógica, que activa un juego de mutuas influencias, que se cruzan a menudo con el pie cambiado. Lleva algún tiempo trabajando sobre las manifestaciones culturales como exponentes de las tendencias inconscientes de la sociedad. La idea de ratio, acuñada en su estudio sobre el relato policial, constituye un importante antecedente de la razón instrumental, mientras que sus trabajos sobre los empleados contradicen las profecías de Marx sobre la progresiva dualización de las clases sociales, en una perspectiva dialéctica sobre lo social característica del grupo. Cuando llega a Estados Unidos, Kracauer ha profundizado en la necesidad de estudios empíricos, justamente cuando Adorno se encuentra de vuelta de ellos. En Historia Kracauer parece dirigirse hacia el horizonte de una “empiria sin teoría” (valga la expresión figurada, no literal, del mismo Hernández), en un intento de pensar a través de las cosas, no por encima de ellas (2010, p. 220).

En este contexto, añadimos nosotros, es imposible ignorar las consecuencias de la famosa “disputa del positivismo” en la sociología alemana, que a lo largo precisamente de los años sesenta estaba enfrentando a autores como Habermas o Adorno, representantes de la teoría crítica de la sociedad, con otros como Karl Popper o Hans Albert, identificables con el llamado “racionalismo crítico”. La desconfianza respecto a lo empírico (vinculado a la razón instrumental) que se derivó de estas posturas ha teñido medio siglo de pensamiento de la izquierda, de modo que lo teórico y abstracto se ha consolidado como la forma por excelencia del pensamiento crítico, capaz de desnaturalizar las prácticas sociales, mientras que la empiria es un instrumento naturalizador del poder. De alguna forma, seguimos con el “pie cambiado” respecto a Kracauer.

Pero sigamos. Para Jiménez Redondo (ob.cit., pp. 123-46) las discusiones con Adorno explicitan una cuestión medular para la Escuela.

En su artículo del Frankfurter “El ornamento de la masa” (1928), Kracauer explica cómo el pensamiento abstracto procede a desmitologizar la naturaleza, pero a su vez no puede sobrepasar los límites que él mismo se ha impuesto, al configurarse al servicio de un sistema económico que lo limita. Dicho de otra forma, al nacer bajo una lógica de dominio capitalista, el pensamiento abstracto paraliza el alcance de la razón, y se acaba convirtiendo a su vez en una mitología.

Años más tarde, en su discurso radiofónico de 1964, retratando a Kracauer, Adorno sería plenamente consciente de la deuda de la Dialéctica de la Ilustración (1944) con estas ideas.

En la paradójica relación que ambos mantenían, Kracauer siempre cuestionó en Adorno la falta de referencias positivas para el ejercicio de una razón crítica tanto en la mencionada Dialéctica de la Ilustración como en la Dialéctica Negativa (1966). Para Antonio Aguilera (ob. cit., pp. 78-79), se cuestiona la existencia de una “dialéctica sin suelo”, el libre vuelo de un pensamiento sin nada que se le resista, que acabe fagocitando lo fáctico.

En el otro extremo, el escritor defiende un proceder filosófico que se entregue a la cosa, para lo cual le será útil un concepto heredado de Husserl, el “mundo de la vida” (Lebenswelt), mediador entre lo abstractosistémico y lo concreto-vivido. El trabajo más importante del libro, a cargo de Sergio Sevilla (ob. cit., pp. 51-75), profundiza en esta construcción.

Para Sevilla, ante la necesidad de hacer inteligible la heterogeneidad de las evidencias empíricas, las ciencias idealizan las experiencias humanas. Para evitar esto, y satisfacer la necesidad de atender a lo particular por parte de la historia, Kracauer recurre al “mundo de la vida”, que para Husserl es un entorno de experiencias y vivencias prerreflexivas que da sentido al discurso, y que debe ser trascendido a través del pensamiento científico. Kracauer reelabora el concepto como una instancia que otorga sentido a un mundo de particulares, evitando que el historiador se diluya en la multiplicidad.

La historia limitaría de esta forma tanto con el “mundo de la vida” como con la “filosofía”.

El “mundo de la vida” articula así una pluralidad de ámbitos, proponiendo para el mundo histórico una lógica semejante al sentido común de la vida cotidiana. Desde el “mundo de la vida”, la historia mantiene una continuidad con el historiador, lo cual tiene dos consecuencias: la historia trasciende el status de “objeto”, para provocar la iluminación de un ámbito de la experiencia social y el historiador deja de ser mero sujeto de conocimiento, ya que el sujeto se distancia de la experiencia y excluye formas de acción ubicada. Por ello está llamado a ser respecto al mundo histórico un exiliado o un nómada.

En el contexto del “mundo de la vida” se entiende la opción de Kracauer por el empirismo.

En su trabajo, Pedro Ruiz Torres (ob.cit., pp. 213-38) señala el distanciamiento del autor respecto al “empirismo ingenuo”, propio de los historicistas y positivistas del XIX, que pretenden inducir a partir de los datos las leyes generales de la historia. Pero también respecto a algunas perspectivas críticas (la escuela de los Annales, la historiografía marxista…), que parten de la puesta en marcha de procesos deductivos, que parten de preguntas e hipótesis. Sin embargo, ambos empirismos parten de la misma base:

más que del culto al dato positivo, de considerar el conocimiento de lo general como la clave para la comprensión del mundo. A este respecto, Ruiz Torres llama la atención sobre la obra de dos autores, Charles V. Langlois y Charles Seignobos, a los que no hay constancia de que Kracauer conociera, que en 1898 alertaron contra los historiadores que, influidos por su formación filosófica, introducían “conceptos trascendentes” en la organización de la historia.

Pero Kracauer no renuncia al uso de generalizaciones. Así, configura un concepto de periodo histórico (2010, pp. 173-94) semejante a la mónada benjaminiana, entendido como el punto en que se entrecruzan tensiones históricas diversas, más que como un periodo de tiempo homogéneo. También acuña una variante especial de “idea histórica”, el resultado de intuiciones del historiador, surgida a raíz de los hechos, pero que deriva en algo distinto a ellos. No dejaría de ser una generalización, pero más producto de una intuición basada en criterios prácticos que de un proceso de abstracción lógica.

Diríase que Kracauer busca perfilar un concepto de “idea histórica” vinculado al “mundo de la vida”, más que basado en procesos académicos; sin embargo, justamente esa intención genera una ambigüedad que dificulta la eficacia del concepto. Por un lado, a pesar de sus reticencias respecto a la filosofía, Kracauer se está moviendo en el terreno de la filosofía de la historia y de la epistemología.

Para él, hay un punto en el que lo general y lo concreto son irreductibles, es decir, lo general es solo general, y lo concreto solo concreto. Solo entonces es posible una dialéctica que nunca se clausure, añadimos nosotros. Kracauer desconfía de la abstracción porque se encuentra demasiado cerca de la lógica del sistema. Al mismo tiempo, su opción por el empirismo (o, mejor dicho, “lo concreto”) trasciende lo académico para convertirse en una propuesta que debe ser concretada en el mundo de la vida, donde nuestros razonamientos se entremezclan con nuestra percepción e intuición ante las cosas.

Todo lo cual es perfectamente coherente con sus formas expositivas. Kracauer se reafirma en el uso de una narración como un dispositivo literario apropiado para el discurso histórico. Sin embargo, la cualidad artística de esta modalidad textual narrativa es un subproducto del planteamiento, no un objetivo central (Kracauer, 2010, pp.195-218). En una línea semejante a la defendida por Adorno en “El ensayo como forma” (1954-58), el gusto por lo concreto, la flexibilidad y la capacidad de sugerencia propias de un género literario hacen que el relato sea el más adecuado para mostrar el fluir heterogéneo de la realidad. Esta actitud cristaliza en distintas metáforas, resaltadas por Miguel Ángel Cabrera (2015, pp. 101- 103): en su reseña a Los empleados, titulada “La politización de los intelectuales”, Benjamin denominó a Kracauer como un trapero al amanecer del día de la revolución, que recoge jirones lingüísticos y trapos discursivos para confeccionar un tejido polícromo de retazos, como es el calicó, claro equivalente del caleidoscopio, imagen de raigambre proustiana que alude a la catarata de tiempos históricos, imposible de homogeneizar.

La insistencia de Kracauer en lo inmediato e intuitivo está estrechamente relacionada con su reflexión sobre la imagen. Sobre dos trabajos de la compilación no vamos a ahondar: el que viene a ser un adecuado artículo introductorio a Kracauer, a cargo de su biógrafo Enzo Traverso (ob. cit., pp. 39-50), así como un útil resumen crítico del libro Historia, escrito por Sabina Loriga (ob. cit., pp. 239-62). Y aludiremos ahora a los tres artículos específicos sobre lo visual.

Por su parte, Anacleto Ferrer (ob. cit., pp.192-195) hace especial hincapié en los 499 textos para Frankfurter Zeitung (1921-1930), que establecen un canon crítico que concede importancia a la cultura de masas, como un instrumento para el desvelamiento de las ideologías sociales, a pesar de su fragmentariedad, y con una autonomía estética instransferible.

Subraya Ferrer la idea de que el realismo estético del cine es consecuencia de su realismo técnico. Justamente poco más tarde, publicaba Benjamin “Pequeña historia de la fotografía” (1931), estudiado por Antonio Aguilera (ob. cit., pp. 77-100), que también vinculaba la productividad estética del medio a sus dimensiones técnicas.

Ese mismo año, Kracauer también publicará “La fotografía” (1931), trabajo que para Susana Díaz (ob. cit., pp. 11-37), configura algunas ideas que determinarán su enfoque sobre historia. Al constituirse la foto, a diferencia de la pintura, como un producto relativamente independiente de las intenciones últimas del fotógrafo, se convierte en testimonio objetivo de una época.

Desde este punto de vista, cualquier intento de practicar la fotografía artística se alineará con las fuerzas sociales defensoras del orden establecido. Para la autora, este planteamiento se perfilará en el posterior Teoría del cine (1960), donde a partir de “la naturaleza fotográfica” del medio, se reivindicará su capacidad para “captar al vuelo” la realidad física. La publicación de Teoría del cine en España sugirió en la crítica una cierta relación con el cine inmediatamente anterior, es decir, con el neorrealismo italiano y algunas modalidades del estilo clásico.

El cine, frente a formas artísticas basadas en el pleno dominio del lenguaje por parte del autor, constituye un reducto que el pensamiento abstracto no debe colonizar.

Mirar la imagen en la pantalla proporciona una sensación de extrañamiento respecto a la realidad preexistente a la filmación. Como Jasón percibe el rostro de la Gorgona desde su reflejo en el escudo (para no quedar petrificado con su mirada), contemplar el cine proporciona una mirada más distanciada sobre el contexto cotidiano. De esta manera, deducimos que el cine facilita un constante ejercicio de aprender a mirar y volver a mirar las cosas desde distintas perspectivas.

Más que de un empirismo propiamente filosófico, o inserto en el método científico, la opción de Kracauer por lo concreto parte de la inmersión del individuo en la sensorialidad visual intuitiva del “mundo de la vida”.

Aunque tan solo sea esa sensorialidad vicaria que nos facilita el cine. Desde esta perspectiva, la mera insistencia en que el cine construye la realidad, y no la “refleja”, se ha convertido en un callejón sin salida, si no entramos a detallar cómo es esa construcción.

Referencias pricipales

DÍAZ, Susana (Ed.) (2015). Historia y teoría crítica. Lectura de Siegfried Kracauer. Madrid: Biblioteca Nueva.

KRACAUER, Siegfried. (2010). Historia. Las últimas cosas antes de las últimas. Buenos Aires: Las Cuarenta.

Javier Gurpegui Vidal – I.E.S. “Pirámide”, Huesca.

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R. G. Collingwood: A Research Companion – CONNELLY et al (IJHLTR)

CONNELLY J R G Collingwood A research companionCONNELLY, James Connelly; JOHNSON, Peter Johnson; LEACH, Stephen. R. G. Collingwood: A Research Companion. London: Bloomsbury, 2015.  293p. Resenha de: HUGHES-WARRINGTON, Mamie. International Journal of Historical Learning Teaching and Research, London, v.13, n.2, p.14-15, 2016.

In 1992, I became the fortunate owner of a small photocopied guide to the R. G. Collingwood papers in the Bodleian Library, Oxford. This much-thumbed, much-annotated booklet became the first item in a collection of transcriptions and notes that soon spilled over the limits of a single folder and settled into a row of boxes that continues to grow today.

Such was the lot of a researcher on the life and works of Robin George Collingwood (1889– 1943), philosopher, archaeologist, historian and luminary of Oxford University in the first half of the twentieth century. Until now. Connelly, Johnson and Leach’s companion for researchers admirably fulfils its aims of providing a comprehensive and systematic listing of materials by and on Collingwood and of placing those materials in the context of a detailed chronology of his life (p. 2).

The book is helpfully divided into eight sections, covering a biography, a chronology of life events, letters, unpublished and published works by Collingwood and his commentators and details of the many archive holdings. The largest section – a description of correspondence – is arguably the most helpful, for the volume and scattered nature of holdings provides a considerable challenge to any budding researcher. The chronology is also a powerful aide to understanding Collingwood’s battle with failing health, which he describes rather poignantly in a 1941 letter to Christopher Hawkes as the time ‘since the superincumbent sword of Damocles became clearly visible, and here I am driving a pen, though not well’ (p. 137).

To those who would argue that it is an important rite of passage for new researchers to find materials for themselves, the simplest rebuttal is that comprehensive aids for research assist in the development of a comprehensive and nuanced understanding of the ideas and life events of individuals and groups. Moreover, they minimise the risk of misunderstandings that arise from not having considered particular materials, protecting students, early career researchers and those interested in Collingwood because of his connections to others from the dreaded ‘but you haven’t read x’ of the experienced Collingwood researcher.

There is a little to quibble about the book. The biography (pp. 3–6) gives the reader little sense of The Idea of History as a posthumous collection brought together by Collingwood’s student, T. M. Knox, or of the significant discovery in 1993 of missing chapters from The Principles of History in the basement of Oxford University Press. The published Collingwood is only the tip of an extensive manuscript collection that shows the evolution of his thought at work.

Nor does the book give the reader a sense of what to expect when they see a Collingwood manuscript for the first time. Collingwood’s handwriting is far from challenging as far as philosophers go, and his use of recycled exam scripts provide a helpful reminder of the Oxford in which he worked. But readers do need to be warned about his liberal use of ancient Greek terms, as well as his predilection for quoting from poems without noting their source. What was customary intertextual reference in Oxford of the 1930s can take the present day reader by surprise, and the best remedy is to begin with the revised editions of Collingwood’s philosophical work – starting notably with David Boucher’s edition of The New Leviathan (1992) – as they contain transcriptions and explanatory notes to a significant group of manuscripts.

Finally, the collection does not explicitly give the reader a sense of the balance of Collingwood’s interests in toto, as distinct from a year-by-year summary. This is a significant gap, as an analysis of the Collingwood corpus can remind us not to pass over his contributions to aesthetics when we see the vast lists of writings on archaeology, metaphysics and the philosophy of history.

But these are minor quibbles, and given the significant opportunities for research posed by a still largely untapped group of writings, this Research Companion is a welcome introduction to those new to Collingwood studies.

Marnie Hughes-Warrington – Australian National University, Australia. E-mail: [email protected].

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Sociedade Civil. Ensaios históricos – DE PAULA; MENDONÇA (HP)

DE PAULA, Dilma Andrade; MENDONÇA, Sônia Regina de (Org.). Sociedade Civil. Ensaios históricos. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. Resenha de: CARDOSO, Heloísa Helena Pacheco. A atualidade do pensamento de Antônio Gramsci para a historiografia contemporânea. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 27, n. 51, 4 fev. 2015.

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Teoria da História (v.1) Princípios e conceitos | José D’Assunção Barros

Pode um historiador ser considerado culto e competente sem nenhuma preparação teórico-metodológica? Pode um professor, mesmo dos Ensinos Fundamental e Médio, ensinar sem nenhuma bagagem teórico-metodológico? A epistemologia deve ficar restrita à alguns pequenos círculos ou deve envolver todos os membros da comunidade de historiadores?1 São sobre tais questionamentos que o livro “Teoria da História: princípios e conceitos fundamentais”, de José D’Assunção Barros, se propõe a discutir. Na obra, o autor apresenta explicações fundamentais para a compreensão da História como campo de conhecimento, com suas próprias peculiaridades teóricas e metodológicas. Leia Mais

What is History for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography | Arthur Alfaix Assis

A publicação de What is History for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography, de Arthur Assis, apresenta uma proveitosa discussão sobre a historiografia de Johann Gustav Droysen (1808-1884), importante historiador alemão do século XIX. Com base na análise da historiografia de Droysen, o autor oferece ao leitor um amplo panorama da historiografia alemã durante o século XIX, centrando-se nos debates sobre o historicismo, paradigma dominante no conhecimento histórico alemão oitocentista, e na reformulação do valor pragmático para a historiografia. Nesse sentido, a obra de Arthur Assis não se dirige somente aos especialistas e pesquisadores do pensamento de Droysen, mas a todos os estudiosos de historiografia alemã e geral, história intelectual e mesmo historiografia política, uma vez que destaca as influências políticas do pensamento daquele autor. Leia Mais

 La Historia contraataca – PÉREZ (LH)

PÉREZ, Santana, MANUEL, Juan, La Historia contraataca.  Barquisimeto: Fundación Buria, 2013. Resenha de: CASTEAO, Ofelia Rey. Ler História, p. 189-190,  n.65, 2013.

1 El nuevo libro de Juan Manuel Santana retoma algunos de los temas abordados por él en publicaciones anteriores, pero apuesta por una renovación de sus propios planteamientos a la luz de la rápida evolución de la disciplina histórica y de la multiplicación de sus practicantes, un proceso acelerado en el que a simple vista se detecta un empobrecimiento de la reflexión, de la crítica y, en general, de las bases teóricas en las que la historia debe apoyarse. El libro no se presenta como un manual universitario, pero su estructura, su redacción y su desarrollo, lo harían útil para ese objetivo; debe tenerse en cuenta que en los actuales planes de estudios de las universidades españolas, se han sacrificado las materias teóricas en beneficio de la historia por épocas o por temas, debido a la compresión temporal de los estudios de grado. Este sacrificio en aras de lo práctico, que no se ha denunciado ni por parte de los docentes ni por parte de los estudiantes, se notará de modo creciente en los próximos años, cuando ya no quede rastro de la formación teórica que se impartía en las antiguas licenciaturas. A esto se añade que en el sistema actual de acceso al profesorado universitario se han eliminado las pruebas en las que los candidatos tenían que demostrar un cierto dominio de la tradición historiográfica, de la teoría y de las filosofías de la Historia, y tenían, además, que implicarse y adoptar una posición crítica al respecto de su propio quehacer como historiador; no hay duda de que la desaparición de esta especie de requisito, resta presión ideológica y moral al profesor y al investigador y le permita pensar que todo vale, lo que consideramos una notable pérdida profesional pero sobre todo, para la sociedad a la que nuestro trabajo va destinado.

2 Expresadas quizá de otra manera, estas ideas subyacen al libro de Juan Manuel Santana, que expone sus convicciones en la introducción y en la extensa «fundamentación teórica», en la que deja claro su posicionamiento personal y los caracteres generales de nuestra disciplina en los últimos años. Los tres siguientes obedecen a una configuración más clásica, en especial el dedicado a «la historia pre-científica», pero también los relativos a los paradigmas del siglo XX y a los «encuentros y desencuentros en la Historia», en los que rinde cuentas de los debates vividos en los últimos treinta años y repasa las idas y venidas dialécticas entre modernidad y posmodernidad. Estos capítulos, que ocupan casi la mitad del libro, son los que desde nuestro punto de vista lo hacen útil como texto universitario destinado a docentes y estudiantes.

3 La segunda parte del libro retoma el hilo «de combate» de las páginas introductorias y es en la que se advierte mejor la implicación teórica del autor y la lógica a la que responde el militante título de la obra. Si el primero de los capítulos de esta parte se ocupa de las influencias historiográficas de los «mitos económicos», en el segundo se refuerza el sentido combativo del texto, bajo un enunciado sin ambages – «los neocons secuestran a Clío»-, que marca a los tres finales. De los tres, uno está dedicado, en palabras del autor, a la «reina de las últimas décadas», es decir, la historia cultural, un capítulo en el que quizá no se considera que la verdadera reina de los últimos años es una historia política más renovada en la apariencia que en el fondo. Otro, uno de los de mayor interés para los lectores europeos, se dedica a una historiografía pujante, la latinoamericana, a la que se envuelve en la «emergencia de la periferia», lo que es básicamente correcto, aunque desde Europa se reconoce ya desde hace años que la creatividad, la innovación y algunas fortalezas teóricas están del otro lado del Atlántico; debe tenerse en cuenta que la obra está publicada en Venezuela, lo que permite pensar en que el autor ha pensado también en los lectores americanos. Finalmente, el tercero, titulado «el retorno de la Historia Crítica», retoma el hilo del comienzo e incide en el posicionamiento del autor – «gran parte de nuestras propuestas proceden del materialismo histórico y todas admiten como método general la dialéctica y la preponderancia última de los elementos materiales» (p. 236) – así como en la reivindicación de la utilidad de la Historia como ciencia social al servicio de la sociedad y de sus potencialidades para la crítica y para el cambio.

4 La obra termina con una extensa bibliografía que contiene obras clásicas de la historiografía del siglo XX y las aportaciones más recientes, sobre cuya lectura crítica está basada. Un simple repaso permite ver que la bibliografía refleja bien la paulatina pérdida de obras de reflexión, una pérdida que Juan Manuel Santana se ha propuesto mitigar con este libro.

Ofelia Rey Castelao – Professora Catedrática no Departamento de Historia Medieval y Moderna da Universidade de Santiago de Compostela (FGH-USC). E-mail: [email protected].

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Teoria da História (v.1) Princípios e conceitos | José D’Assunção Barros

Iniciamos esta resenha nos remetendo a algumas questões feitas por José Carlos Reis, em um instigante e provocante artigo. Diz o autor: “Pode um historiador ser considerado culto e competente sem nenhuma preparação teórico-metodológica?”, ou então, “Pode um professor, mesmo do ensino fundamental e médio, ensinar história sem nenhuma bagagem teórico-metodológica?”.2

Reis está entre os historiadores mais dedicados especialistas a abordar as questões teórico-metodológicas da disciplina da História no Brasil e, a seu lado, outro proeminente historiador, José D’Assunção Barros igualmente tem feito sua parte. Este último, escritor de tantos artigos e livros, vem igualmente despertando a atenção do público leitor especializado em História, com uma trajetória consagrada ao estudo de Teoria, Metodologia e Historiografia, propondo que debatamos e discutamos tais esferas do nosso ofício desde o início da graduação nas diversas licenciaturas em História espalhadas pelo país.

Barros, tal como José C. Reis, avalia que é essencial para qualquer profissional da História, ter denso conhecimento teórico sobre sua área de atuação. Conforme ressalta o autor,

A Teoria da História constitui um campo de estudos fundamental para a formação do historiador. Não é possível desenvolver uma adequada consciência historiográfica, nos atuais quadros de expectativas relacionadas ao nosso ofício, sem saber se utilizar de conceitos e hipóteses, sem compreender as relações da História com o Tempo, com a Memória ou com o Espaço, ou sem conhecer as grandes correntes e paradigmas teóricos disponibilizados aos historiadores da própria história da historiografia.3 Não por acaso o livro aqui resenhado, “Teoria da História, Vol. I. Princípios e conceitos”, foi lançado originalmente em 2011 e, já no ano de 2013, encontra-se em mais uma edição, a terceira. Tal obra faz parte de um ambicioso projeto, que contará com seis volumes, cinco dos quais já foram publicados.

Ainda que negue ser do tipo “especialista” que se dedica a um único tema, conforme relatou em recente entrevista,4 José D’Assunção Barros tem ocupado lugar de destaque na área de Teoria, produzindo uma respeitada bibliografia acerca do tema, tanto em formato de artigos, ou em seus livros, tais como, “O campo da História”5 e “O projeto de pesquisa em História”6. Isso não significa que o referido autor esteja limitado à “Teoria e Metodologia”, pois como se sabe, pesquisou temas medievais em seu mestrado e doutorado, além de ter estudado a música, lançando há pouco tempo o livro “Raízes da música brasileira”,7 dentre outros, confirmando sua transitoriedade em diversos assuntos.

Trata-se, neste sentido, de um projeto que vem de longa data, amadurecida no decorrer dos anos em que o autor tem publicado dezenas de textos sobre Teoria e Metodologia. Segundo Barros, sua principal intenção foi pensar a coleção “Teoria da História”, “como um livro que buscasse suprir as demandas, nos cursos de graduação, para a disciplina que recebe este mesmo nome”.8

Desse modo, no primeiro volume de sua coleção, o autor pretenderá situar seus leitores sobre questões pertinentes ao “Campo Disciplinar”, “Teoria”, “Metodologia”, “Escola histórica”, “Paradigmas Historiográficos”, dentre outros temas. Sua preocupação em ser didático está presente, e esta é uma de suas características, isto é, fazer da “Teoria da História” um tema que possa ser atrativo e, ao mesmo tempo, indispensável para o estudante de graduação.

No capítulo inicial, de suma importância para toda a coleção, Barros pretenderá mostrar essencialmente o que são Teoria e Metodologia, quais as suas diferenças, e em que momento elas se aproximam e mantém o que ele chama de “confronto interativo”. Segundo o autor, tal cuidado é pertinente e necessário, pois “não são raras, por exemplo, a confusão entre ‘Teoria’ e ‘Método’ e, mais particularmente, entre Teoria da História e Metodologia da História”.9

Para tanto, inicialmente o autor tem a louvável preocupação de apresentar para o seu leitor o que é exatamente uma “disciplina”, ou um “campo disciplinar”, pois uma vez que ele está a falar de História enquanto disciplina, é bastante produtiva sua preocupação em esmiuçar tal questão, evidenciando como todo “campo disciplinar”, seja da Química, Física, Astronomia, Geologia, Medicina, etc., possui uma história e se modifica com o tempo, conjuntamente com suas práticas e objetos. Neste sentido, Barros – apoiado em Bourdieu -, entende que as regras de um campo disciplinar se transformam e podem ser redefinidas a partir de seus embates internos.

Assim, o autor é bastante instrutivo na sua tentativa de reflexão sobre quais elementos são necessários para que exista uma disciplina, ou um “campo disciplinar”. Desse modo, ele nos apresenta um quadro, com dez características, apresentadas da seguinte maneira. Toda a disciplina é constituída, antes de tudo, por, 1) “campo de interesses” (por exemplo, a História e o estudo daquilo que é humano e nas mudanças dos níveis no tempo e no espaço que ocorrem na história); 2) “singularidades” (isto é, conjunto de parâmetros definidores que justificam sua existência. No caso da História, a consideração do tempo, o uso de fontes, etc.); 3) “campos intradisciplinares” (os desdobramentos dentro da própria disciplina em “microdisciplinas”, tais como “História Cultural, “Micro-história”, “História Política”, etc.); 4) “aspectos expressivos”; 5) “aspectos metodológicos”; 6) “aspectos teóricos” (estes três tópicos se referem ao fato de que nenhuma disciplina se desenvolve sem que sejam construídas certas práticas discursivas, metodologias e teorias); 7) “oposições e diálogos interdisciplinares” (ainda que tenha sua singularidade, todo campo de saber está inserido em uma constante luta disciplinar, desde o seu surgimento, e o diálogo entre várias disciplinas é inevitável); 8) “interditos” (aquilo que se coloca como “proibido” ou “interditado” para os praticantes de uma determinada disciplina, mas que pode se alterar com o tempo); 9) “rede humana” (trata-se do próprio ato de fazer, isto é, os próprios indivíduos de um determinado campo o modificam, com maior ou menor grau de impacto, no exercício de seu ofício); 10) “olhar sobre si” (seria a reflexão sobre o campo, no caso da História, isso se dá por meio de disciplinas como a Historiografia, que é uma tentativa de compreender e analisar historicamente o desenvolvimento dos trabalhos históricos).10 Serão mais de vinte páginas dedicadas a explicar os aspectos inerentes a um “campo disciplinar” e que são bastante úteis para a compreensão de todo o texto, pois situa o leitor, a compreender melhor o funcionamento das disciplinas como um todo e, especialmente a História. Após esse tópico, José D’ Assunção Barros irá se debruçar na tentativa de deixar claro o que é “Teoria” e “Metodologia”, suas aproximações e peculiaridades. Segundo o autor, a teoria seria um “modo de ver” e a metodologia, um “modo de fazer”. Nas suas palavras,

A “teoria” remete (…) a uma maneira específica de ver o mundo ou de compreender o campo de fenômenos que estão sendo examinados (…) Por outro lado, a Teoria remete ainda aos conceitos e categorias que serão empregados para encaminhar uma determinada leitura da realidade (…)

Já a “Metodologia” remete sempre a uma determinada maneira de trabalhar algo, de eleger ou constituir materiais, de extrair algo específico desses materiais (…) A metodologia vincula-se a ações concretas (…) mais do que o pensamento, remete à ação e a prática.11

No entanto, conforme já foi mencionado, o autor enfatiza que há um “confronto interativo” entre ambas, nos mostrando como isso se dá, pois como informa, é frequente que uma decisão teórica possa encaminhar um tipo de escolha metodológica ou vice-versa. O “Materialismo Histórico” foi utilizado como exemplo pelo autor,

(…) não é raro que o Materialismo Histórico – um dos paradigmas historiográficos contemporâneos – seja referido como um campo teórico-metodológico, uma vez que enxergar a realidade histórica a partir de certos conceitos como a “luta de classes” ou como os “modos de produção” também implica necessariamente uma determinada metodologia direcionada à percepção dos conflitos, das relações entre condições concretas imediatas e desenvolvimentos históricos e sociais. [Deste modo] Uma certa maneira de ver as coisas (uma teoria) repercute de alguma maneira numa determinada maneira de fazer as coisas em termos de operações historiográficas (uma metodologia).12

Desta maneira, teoria e metodologia são, nas suas palavras, “irmãs siamesas” e que “vivem” inseparáveis na prática da pesquisa científica e, evidentemente, da operação historiográfica.

No capítulo seguinte, intitulado de “Teoria da História e Filosofia da História”, dividido em três subcapítulos -, Barros mostra o encontro entre a historiografia e a ciência a partir da Teoria, e o papel desta última na formação do historiador, “ontem e hoje”, além de explicar as diferenças entre teoria e filosofia da História.

O autor faz um percurso acerca da teorização da História enquanto conhecimento científico, nos mostrando que se antes do século XVIII havia uma Historiografia, entretanto, não se pode falar que existia uma “Teoria da História”. Para ele, tanto as filosofias da História quanto as teorias da História são enunciadas em uma nova era historiográfica que data da passagem do século XVIII para o XIX e que existira entre ambas, cumplicidades e diferenças.

No campo da História, institucionalmente profissionalizada a partir do século XIX, pode-se falar que emergem os primeiros paradigmas historiográficos, que eram o Positivismo, o Historicismo e o Materialismo Histórico. Segundo Barros, uma “Teoria da História, ou um paradigma historiográfico, corresponderá a uma certa visão histórica do mundo, ou mesmo a uma a uma determinada visão sobre o que vem a ser História”.13

Além disso, faz uma observação bastante importante nos mostrando que dependendo de sua filiação teórica, o historiador poderá “ver” o mundo e “pensar” a historiografia de um modo ou de outro, o que não anula, evidentemente, que o mesmo transite por diversas correntes teóricas. Neste sentido, diz ele, com certeira observação:

Diante do amplo conjunto de teorias que se disponibilizam ao historiador, será sempre preciso escolher, pois não existem fórmulas consensuais com vistas a entender ou praticar a história. Em termos de Teoria, cada historiador está condenado a ser livre.14

Para finalizar, Barros apresenta efetivamente as diferenças entre as teorias da história e as filosofias da história. Para ele, as primeiras preocupam-se com a escrita e o ofício da História-Disciplina, enquanto as segundas procuram decifrar o sentido da história-processo. Em termos bastante didáticos, dirá o autor que as “filosofias da história” “podem ser entendidas como um gênero filosófico que produz uma reflexão ou especulação sobre a história”,15 ou, em outras palavras, sobre seu fim. O autor, no entanto, pondera que ainda que as especulações sejam bem mais limitadas nas teorias, elas existem num “certo nível”. Basta ver os casos do Positivismo de Comte, que pensava em um “fim da história” com a “sociedade positiva”, ou então o Marxismo e sua “sociedade sem classes”.

Para simplificar, o autor nos apresenta um ilustrativo quadro mostrando as principais características das filosofias da história e das teorias da história. Em tal ilustração, as primeiras teriam

maior carga de especulação filosófica, preocupação primordial com o sentido da história, produzidas predominantemente por filósofos, que seriam muito mais realizações pessoais dos filósofos, enquanto as segundas carregariam consigo uma menor carga de especulação filosófica, preocupação primordial com a realidade histórica percebida através das fontes, produzidas predominantemente por historiadores e cientistas sociais, espaços de discussão coletiva de setores da historiografia.16

Assim, será a partir do século XIX, com o afastamento das filosofias da história e a partir da formação da comunidade científica dos historiadores e sua institucionalização, que esse profissional passará a teorizar e pensar incessantemente no seu ofício. Isso significa dizer que com a Teoria da História, o “campo disciplinar” História passou a “olhar sobre si”. Desde então, a “Teoria da História estabeleceu-se como um horizonte obrigatório para todo historiador que aprende e desenvolve seu ofício”.17

O terceiro e último capítulo é mais extenso e aborda uma porção de questões que são divididas em cinco subcapítulos. Barros apresentará essencialmente os principais conceitos para o estudo de Teoria da História. Primeiramente o autor divide a Teoria da História em três direções: a primeira seria aquela mais geral, ou seja, o “campo de estudos que examina todos os aspectos teóricos envolvidos na produção do conhecimento histórico”; a segunda, Teoria da História II, mais voltadas às “grandes correntes de concepção da História no interior de cada paradigma (ex: variações do Positivismo […] do Materialismo Histórico), ou mesmo ‘entre’ os paradigmas e até independente deles”; e a terceira, Teoria da História III tem ligação aos problemas mais particulares, ou seja, “sistemas coerentes para a compreensão de processos históricos específicos (a Revolução Francesa, o Nazismo, etc.) desenvolvidos por um ou mais historiadores”.18

Além dessas três, o autor nos mostra alguns outros importantes conceitos, tais como Matriz disciplinar, “Conjunto de preceitos e atributos da História (forma de conhecimento) que é aceito pela ampla maioria dos historiadores”; Paradigma Historiográfico, isto é, “Grandes linhas dentro da historiografia (…) que apresentam uma forma específica de conceber e lidar com a História”, como por exemplo, o Positivismo, Historicismo e Materialismo Histórico; Escola Histórica, “grandes conjuntos coerentes de historiadores, unidos por um programa de ação em comum”; e Campo Histórico, que se divide em dois, pois seria tanto “Modalidades no interior da História, que estabelecem conexão umas com as outras” e, “subespecializações da História”.19 Devemos lembrar, claro, que Barros dedica todo restante de sua obra para esmiuçar tais conceitos. Trata de mostrar as especificidades das Ciências Humanas em relação às Ciências Naturais e Exatas, enfatizando, por exemplo, a ideia de que o historiador, desde a sua graduação, deve ter consciência de que não existe apenas um paradigma historiográfico “verdadeiro”. Por esta razão, pode exercer a liberdade para transitar em vários deles, ou, pelo menos, respeitá-los e aceitá-los como plausíveis dentro do grande campo disciplinar que é a História, para não cair naquilo que José Carlos Reis chama de “pirronismo histórico”.20

Para citarmos um exemplo, no tópico quarto do terceiro capítulo, o autor indica que devemos nos afastar de alguns vícios que, segundo ele, são nocivos ao historiador. Para citar alguns, o péssimo costume de atacarmos autores pessoalmente, em vez de fazermos uma discussão eminentemente teórica, ou então, o “fetiche do autor”, isto é, o endeusamento de determinados teóricos como se fossem os únicos corretos, ou até mesmo a fé cega em um único paradigma ou teoria, como se todos os outros fossem errados. Nas suas palavras, não podemos incorrer no erro de transformarmos determinadas correntes teóricas em dogmas, uma vez que tal atitude “pode transformar uma boa ciência em má religião” (p. 256).

Nesse sentido, o texto de José D’Assunção Barros tem diversas qualidades, desde sua notória erudição, quanto sua disposição em auxiliar (jovens) pesquisadores, pois nessa obra, a principal característica ali encontrada, reside nas suas cirúrgicas explicações dadas ao pesquisador da Ciência da História. Com uma boa quantidade de exemplos, diversos quadros explicativos, e uma narrativa bastante suave, acreditamos que o autor foi bem-sucedido em seu objetivo, uma vez que tal obra merece atenção dos professores de Teoria da História da graduação. No entanto, não se trata de ser apenas uma obra de apresentação da Teoria da História, trata-se de uma demonstração de que não é possível escrever uma história problematizada, sem que haja um exercício teórico-metodológico na orientação das nossas pesquisas e do nosso ensino de História.

Notas

  1. REIS, José Carlos. O lugar da teoria-metodologia na cultura histórica. Revista de Teoria da História, ano 3, n. 6, dezembro de 2011, p. 5.
  2. BARROS, José D’Assunção. Teoria da História Vol. I. Princípios e conceitos. 2013, p. 11. Os grifos são nossos.
  3. ROIZ, Diogo da Silva. Teoria e Metodologia da História no Brasil: entrevista com José D Assunção Barros. Historiae: revista de história da Universidade Federal do Rio Grande, v. 3(1), p. 249-258, 2012.
  4. BARROS, José D’Assunção. O Campo da História – especialidades e abordagens. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. v. 1. 222p.
  5. BARROS, José D’Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. v. 1. 236p.
  6. BARROS, José D’Assunção. Raízes da música brasileira. Ed. Hucitec, 2011.
  7. ROIZ, Diogo. Op. Cit., p. 256.
  8. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 12.
  9. Id., p. 19-40.
  10. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 65-67. Os grifos são nossos.
  11. Ibid., p. 73.
  12. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 87.
  13. Id., Ibid., p. 91-92. Os grifos são nossos.
  14. Id., Ibid., p. 117.
  15. Fizemos um resumo de tais características, que são apresentadas mais detalhadamente em BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 126.
  16. Id., Ibid., p. 147.
  17. Id., Ibid., p. 163.
  18. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 163.
  19. REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2010.

Eduardo de Melo Salgueiro – Doutorando em História – PPGH/UFGD. Universidade Federal da Grande Dourados. Bolsista CAPES. Dourados / Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: [email protected].


BARROS, José D’Assunção. Teoria da História Vol. I. Princípios e conceitos. Petrópolis/RJ. Editora Vozes, 3ª Ed., 2013, 319 p. Resenha de: SALGUEIRO, Eduardo de Melo. Teoria e Metodologia em debate: maneiras de “ver” e “fazer” história. Outros Tempos, São Luís, v.10, n.16, p.316-322, 2013. Acessar publicação original. [IF].

 

Dicionário dos Historiadores Portugueses – Da Academia Real das Ciências até ao final do Estado Novo – MATOS (LH)

MATOS, Sérgio Campos de (Coord). Dicionário dos Historiadores Portugueses – Da Academia Real das Ciências até ao final do Estado Novo. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2015. Resenha de: PEREIRA, Miriam Halpern. Ler História, v. 62, p. 193-197, 2012.

1 Excelente ideia a de produzir um dicionário deste teor. Já existem noutros países europeus, Espanha, França ou noutros países mais distantes como o Brasil. Mas o dicionário português apresenta numerosas singularidades. Ser on-line, até agora este tipo de obras tem sido editado em papel. Também é novidade ser lançado no site da Biblioteca Nacional de Portugal uma obra em construção, os e-books costumam editar-se completos, este produto virtual assemelha-se às antigas edições em fascículos. Por enquanto tem só 30 entradas e listas das futuras entradas agrupadas por historiadores, temáticas, instituições e revistas. São essas listas que permitem compreender um pouco melhor o sentido da construção da obra, que anuncia como ponto de partida a Academia Real das Ciências e como ponto final o dia 25 de abril de 1974. As fronteiras são discutíveis. Na minha opinião ou se começava em Fernão Lopes ou em Alexandre Herculano, tal como têm sido as escolhas de outros países: em França, Christian Amalvi (2004) optou por principiar em Grégoire de Tours, em Espanha (2002) optou-se por 1840.

2 Mas intrigante e pouco claro é o ponto final: 25 de abril de 1974, data do final do Estado Novo. O que se entende por isso? Incluem-se os historiadores já existentes nessa data, ou seja que tinham obra publicada até então? Uma rápida leitura da lista dos nomes on-line mostra que não. Será em função da carreira universitária? Ou o doutoramento? Também não se acerta. Continuam a ser evidentes as ausências, além de tal não se coadunar com o critério anunciado de incluir autodidatas e personalidades de diferentes formações e não só académicos, o que, sendo sempre adequado, ainda o é mais quando se conhece o poderoso filtro ideológico e político que foram as instituições universitárias durante o Estado Novo. Mas tendo incluído Álvaro Cunhal, dever-se-ia incluir também Mário Soares, autor de As Ideias Políticas e Sociais de Teófilo Braga, com prefácio de Vitorino Magalhães Godinho (Centro Bibliográfico, Lisboa, 1950). Aliás a obra de Álvaro Cunhal, As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média, só consta como editada em 1975, no Catálogo da BNP e é pena que a edição clandestina anterior não esteja depositada na BNP. O interesse de homens políticos pela escrita histórica, que explica a inclusão de vários outros nomes, é uma tradição portuguesa, que se deve valorizar hoje, face à «transmutação» atual de gestores tecnocratas em políticos, com demasiada frequência falhos de cultura histórica.

3 A grande notoriedade posterior a 1974 parece explicar a presença de autores que não tinham quase nada publicado no domínio da historiografia até o dia 25 de abril de 1974 e só depois daquela data, às vezes vários anos mais tarde, é que vieram a publicar obras de vulto de natureza histórica. O crivo não foi pois a relevância científica das obras publicadas antes de 1974, critério que é evidente não ter sido aplicado. O critério da morte terá sido o que explica uma dessas presenças, a de João Bénard da Costa, segundo me foi explicado pelo coordenador. Mas mesmo seguindo esse critério, continuam as ausências. Não constam Rómulo de Carvalho, Ana Maria Alves, César de Oliveira, Sacuntala de Miranda, Maria Ioannis Baganha, Jill Dias, António Candeias, entre outros. O critério da morte, adotado no caso francês, para evitar a tendência hagiográfica, podia até ter a vantagem de rejuvenescer o dicionário português. Estando prevista a sua conclusão em 2015, estarão excluídos desta obra 41 anos de produção historiográfica portuguesa! Por acaso trata-se, como é geralmente sabido, de um período de intensa renovação da historiografia e das ciências sociais em Portugal. Mas mesmo entre os autores clássicos encontrei uma lacuna inexplicável: como se pode omitir José Acúrsio das Neves autor da História das Invasões Francesas?

4 Uma boa ideia foi incluir os historiadores estrangeiros que escreveram sobre a história de Portugal, aliás bem poucos, mas também houve aqui esquecimentos importantes, recordo apenas H. E. S. Fisher, Rebecca Catz ou ainda Lucia Perrone que não constam, mantendo-se aqui a falta de um critério de escolha compreensível. E eis que se descobre nova indefinição: será que não se inclui a historiografia sobre as antigas colónias?

5 Autores estrangeiros prestigiados que estudaram a história colonial portuguesa em África, como Herman Bauman, Beatrix Heintze, David Birmingham, Allen Isaacman, Douglas Wheeler, René Pélissier, Basil Davidson não constam, embora várias das suas obras tenham sido editadas nos anos 50, 60 e início de 70. Foram fundamentais nesta área, numa época em que entre os portugueses quase só funcionários do Estado Novo escreviam sobre a África dita «portuguesa», sobretudo no que se refere aos séculos XIX-XX.

6 E como explicar também a reduzida presença de brasileiros, cuja produção sobre a história colonial portuguesa no Brasil é enorme? Consta Novais, cujo primeiro livro data de 1975 (portanto fora do período demarcado), mas não se avistam vários autores, alguns bem anteriores, como Tarquínio de Sousa, Alice Canabrava, E. Viotti da Costa, Carlos Guilherme Mota, entre tantos outros. Infelizmente o francês Abade Raynal escreveu o célebre livro O estabelecimento dos portugueses no Brasil (1770) antes de 1779, data da criação da Real Academia das Ciências.

7 Em relação à Asia, como se pode omitir Donald F. Lach, autor do notável livro Asia in the making of Europe (1.ª edição1965, reeditado 1971), em que se dedica a Portugal diferentes capítulos em cada um dos 4 volumes desta grande obra? Como ainda não se traduziu este livro magistral? Pannikar, autor de Asia and western dominance – a survey of Vasco da Gama epoch of Asian History (1959), também não está previsto. Só me tenho referido a autores com obra dentro das balizas atuais deste dicionário, ainda que as considere questionáveis. Talvez Gaston Perera, historiador do Sri Lanka, que estudou a ocupação portuguesa no seu país, em obras recentes, tendo falecido subitamente em 2011, pudesse também ser incluído…

8 A dificuldade em excluir a produção de 38 anos de intensa vida científica ou intelectual torna-se evidente quando se consultam as duas únicas entradas temáticas já existentes, História de Arte e História Cultural, a bibliografia referida é num caso posterior a 1979 e no outro a 1990. E naturalmente que a baliza temporal também ultrapassa largamente 1974 nas biografias e bibliografias ativas e passivas de algumas das principais entradas já existentes.

9 Consultando a lista das instituições, encontram-se as Faculdades de Letras e de Direito, mas aqui também as ausências surpreendem, não constam nem o ISCEF (predecessor do ISEG), nem sequer o GIS, predecessor do ICS, nem a Faculdade de Economia de Coimbra, nem o ISCTE (a comemorar este ano os 40 anos de existência). Quanto às revistas, só constam revistas fundadas antes de 1974, mas está indicado como termo limite do âmbito em consideração a data de 2011-2012, quando elas ainda existem. Porém, nenhuma das novas revistas que surgiram nesse período estão incluídas: a Revista da História das Ideias, a Revista de História Económica, a Ler História, entre outras. Ainda mais estranha é ausência da Revista de Economia, que antes de 1974 publicou estudos importantes de história.

10 Face às balizas temporais adotadas surpreende menos que ao mencionar as fronteiras da história com outras ciências humanas, se não refira nem a sociologia, nem a ciência política, embora já existissem com nome camuflado. O regime estado-novista tinha os seus gostos (des-gostos) linguísticos e semânticos. É mais um lapso.

11 Na apresentação on-line conclui-se que o dicionário será acrescentado regularmente com novas entradas e poderá beneficiar com sugestões críticas dos seus leitores. Aqui ficam as minhas. No que me diz respeito, embora o meu primeiro livro, que é o texto também da tese de doutoramento, tenha sido publicado em 1971, e tenha tido grande impacto e embora tenha vários artigos publicados em revistas estrangeiras e portuguesas prestigiadas antes do 25 de abril, e já então fosse professora universitária, espero e prefiro estar viva em 2015 e continuar a escrever e a publicar a meu gosto, a estar morta para ser incluída no dicionário, o que mesmo assim seria incerto… Desejo também nessa altura festejar os longos anos de José Manuel Tengarrinha, alguns bem menos de José Sasportes, de Maria Beatriz Nizza da Silva, e meus também. Todos nós com obra publicada antes de 1974 somos ainda demasiado jovens para este dicionário desatualizado de 41 anos. O dicionário espanhol, publicado em 2002, avançava até 1980, e mesmo assim foi criticado por não se prolongar mais. Bem equilibrada e transparente foi a opção do Dicionário Histórico de Economistas Portugueses, organizado por José Luís Cardoso, incluindo na sua seleção dos economistas aqueles que tivessem completado 70 anos à data da publicação. Útil também salientar que o critério de relevância científica, em detrimento de funções universitárias, administrativas, políticas ou outras, presidiu a essa escolha, assim como a prioridade dada à análise da obra científica, reduzindo a parte biográfica, em geral já retratada em outras obras de referência. O que também não constituiu norma comum nas entradas já disponíveis neste dicionário.

12 Não há nenhuma referência a um motor de busca por nomes ou temas, de forma a cruzar informação. Seria desde já útil. Quem se interessasse por António Sérgio poderia encontrar a referência à polémica com Mário de Albuquerque, referida por Ana Leal Faria, mas que não mereceu a atenção de Romero de Magalhães, com ou sem razão, essa não é a questão. Esperemos que, no que parece ser o primeiro dicionário virtual do mundo neste domínio, esta funcionalidade seja introduzida rapidamente. Não o fazer seria um desperdício dos novos meios tecnológicos. Um contrassenso. Mais um.

13 Sem qualquer sombra de dúvida, este dicionário merece ser revisto, remodelado com base em critérios transparentes e naturalmente atualizado – prolongando-o até o final do século XX, para não constituir uma ocasião perdida de prestar um excelente serviço à comunidade científica, evitando um considerável desperdício de meios humanos e financeiros, e podendo vir a contribuir para uma boa imagem nacional e internacional das instituições envolvidas, a Biblioteca Nacional de Portugal e o Centro de História da FLL-UL.

Miriam Halpern PereiraProfessora catedrática emérita do ISCTE-IUL e investigadora do CEHC, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. E-mail: [email protected]

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Teoria da História (v.2) Reconstrução do passado: os princípios da pesquisa histórica | Jörn Rüsen

RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado. Teoria da história II: os princípios da pesquisa histórica. Tradução de Asta-Rose Alcaide. Brasília: UnB, 2007, 188 p. Resenha de: ARRAIS, Cristiano de Alencar. Métodos e perspectivas na teoria da história de Jörn Rüsen. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p.218-222, setembro 2010.

Fruto de um projeto de pesquisa que demandou aproximadamente uma década de reflexões sobre os fundamentos, limites e possibilidades do conhecimento histórico, Reconstrução do passado é parte constituinte da trilogia de Jorn Rüsen sobre teoria da história que teve sua publicação original iniciada em 1983 com Razão histórica e finalizada em 1989, com a publicação de História viva. O conjunto desses três livros constitui-se numa das mais importantes contribuições desse historiador e filósofo da história que, desde a década de 1960, com a publicação de sua tese de doutoramento sobre J. G. Droysen, vem militando no campo da teoria da história e da história da historiografia.

Como observou Rocha (2008), a relação sistêmica entre os volumes faz com que a importância de cada um deles deva ser pensada, num primeiro momento, de maneira mais ampla. Essa relação está explícita na tentativa do autor de cobrir os principais elementos constituidores da história como ciência, tomando como referência a estrutura experimental desenvolvida por Droysen (2009) – uma autojustificativa sobre o significado da teoria da história e sua função para a constituição do saber histórico, uma reflexão sobre os fundamentos do método histórico, desenvolvidos a partir dos conceitos de metódica e sistemática, e um exame da função tópica do saber histórico.

Evidentemente que essa referência sintética não dá conta do vigoroso empreendimento de apropriação desenvolvido pela trilogia. A utilização do termo apropriação não é injustificada, na medida em que, para além dessa dívida intelectual com a obra de Droysen, pode-se perceber também a utilização de um dispositivo heurístico que comanda as reflexões produzidas nos três volumes.

Se como nos próprios termos de J. Rüsen, a teoria da história é uma metateoria (um pensar sobre o pensamento histórico), nada mais coerente que esse tipo de reflexão nortear também o seu próprio projeto filosófico. Nesse sentido, o primeiro volume é dedicado a questões relativas aos interesses (as carências de orientação na mudança temporal), o segundo volume, aos métodos (as regras da pesquisa empírica) e às perspectivas de interpretação (modos de explicação, perspectivas e categorias de análise) e o terceiro e último volume às formas (de representação do passado, associado à historiografia) e às funções (a didática como instrumento capaz de direcionar o agir humano).

Essa retomada das reflexões produzidas ainda no século XIX também pode ser em parte percebida, por exemplo, em Memória, história e esquecimento, de Paul Ricoeur, na medida em que este autor estrutura seu projeto filosófico segundo uma tríade sustentada por uma proposta fenomenológica para a relação entre história e memória (a história como herdeira erudita da memória), epistemológica (a metódica, sistemática e tópica, identificadas, respectivamente, com a fase documental, explicativa e de representância) e hermenêutica (uma crítica à pretensão da história como saber absoluto, uma ontologia da condição histórica e uma fusão de horizontes, no sentido gadameriano) (RICOEUR 2008). Mas no caso da trilogia de Rüsen, existe uma dimensão pragmática que procura associar o produto da pesquisa em sua forma expositiva – a historiografia – às necessidades de socialização humana, visto que a mesma se torna instrumento formador da identidade histórica.

Dentro desse grande projeto de análise é que se situa, portanto, Reconstrução do passado. Em que pese a mudança de tradutor, que acarretou uma sensível modificação na forma do texto e afetou a inteligibilidade de algumas passagens – demandando ao leitor uma atenção redobrada às suas torções e à linguagem adotada neste volume – considero importante destacar três temas que demonstram a vitalidade dessa obra específica.

Primeiro, a inversão da relação entre metódica e sistemática, visto que nos tradicionais manuais dedicados à teoria e metodologia da história, a parte dedicada à “teoria” tem apenas valor provisório e acessório. Na proposta do autor, a regulação metódica depende das determinações prévias sobre o que deve ser elaborado como “história”, ou seja, existe uma dependência explícita entre os métodos empregados na pesquisa e os pontos de vista que o pesquisador aplica à matéria. Assim, “O conhecimento histórico não é construído apenas com informações das fontes, mas as informações das fontes só são incorporadas nas conexões que dão o sentido à história com a ajuda do modelo de interpretação, que por sua vez não é encontrado nas fontes” (RÜSEN 2007, p. 25).

Daí porque, partindo da crítica ao uso análogo que certas filosofias da história fazem de suas teorias, com as ciências da natureza – uma aproximação que parte, por um lado, de uma suposição equivocada de que só é racional uma explicação que recorra a leis, e que trata um determinado tipo de racionalidade como o único existente, como percebeu Perelman (2004), e por outro, de uma preocupação de tornar a história tecnicamente útil, sem levar em consideração que essa pragmática no interior das ciências humanas não deve ser julgada a partir de critérios técnicos, mas existenciais – o autor analisa duas formas de explicação na história: a nomológica e a intencional, apontando suas limitações. O intuito, neste caso, seria determinar uma forma mediana do procedimento explicativo na ciência da história. A superação desses dois modelos seria encontrada na explicação narrativa associada às considerações desenvolvidas por Danto (1965). Entretanto, há que se ressaltar que elas pouco avançam sobre as teses de Ricoeur (1994) ou White (1995), denotando, portanto, uma necessidade de atualização dessa discussão, tão importante à época da publicação de Reconstrução do passado.

Um segundo importante elemento a ser destacado na obra está associado ao tratamento dado às filosofias da história, no âmbito de uma teoria da história, ou seja, a solução encontrada pelo autor para o problema da possibilidade de uma teoria da história que incorpore a noção de totalidade para a ciência da história. Neste caso, a primeira tarefa empreendida é a de destruir o edifício teleológico das filosofias da história de tipo especulativo, seja com um argumento formal (a história “não pode deixar de ser concebida como universal sem deixar de ser história, isto é, estruturada narrativamente” [RÜSEN 2007, p. 58]), seja sob o ponto de vista material (a crítica de uma concepção de humanidade derivada de uma dimensão biológica, sem levar em consideração suas implicações para o mundo histórico). Tais questões, segundo o juízo do autor, implicam a inviabilidade de um tipo de teoria da história que possa ser considerada sob o ponto de vista absoluto, total e fora do próprio processo que narra.

Isso não implica, entretanto, um alinhamento a um ponto de vista que imponha uma concepção de experiência histórica marcada pela diversidade e pela diferença. Como opção a essas duas alternativas, Rüsen propõe uma antropologia histórica teórica que, formalmente, apresente a mudança como cognoscível por meio de seus conceitos elementares. Nesse sistema de categorias históricas, o tempo seria caracterizado como história, de maneira a ser apreendido pela pesquisa. É importante notar que se trata aqui de uma distensão da concepção kantiana de tempo como categoria a priori, na medida em que o tempo da natureza torna-se humano. Além disso, materialmente, uma antropologia histórica teórica explicaria os fatores que são determinantes nesse processo, dimensionando um “sistema de suposições quanto às razões da mudança temporal do homem e do mundo” (RÜSEN 2007, p. 67) e construindo um quadro de referências das interpretações históricas, além de funcionar como instrumento de reconhecimento de uma identidade coletiva.

Dessa forma a noção de totalidade poderia ser recuperada por meio do conceito de humanidade (agora uma concepção normativa que procura responder às perguntas sobre como o homem realiza sua historicidade), cujo sentido seria gerado pela própria mobilidade temporal do agir e sofrer humanos. A proposta do autor, entretanto, carece de um desenvolvimento maior, na medida em que não analisa a forma como essa proposta se realizaria historiograficamente, assim como suas consequências para interpretações da experiência temporal baseadas em sistemas de categorias que tematizam a própria mudança.

Por último, o autor efetua um reposicionamento do conceito de heurística no âmbito da metodologia histórica nesse momento de redefinição das fronteiras da ciência da história. A julgar pela forma como a heurística é geralmente tratada na maioria das obras dedicadas a este tema, este parece ser um aspecto menor, meramente técnico, de catalogação e tipologização das fontes. Na direção contrária dessa perspectiva, Rüsen entende a heurística como o momento em que o saber teórico toma a forma de questionamentos claros e abertos à experiência, ao mesmo tempo em que produz uma estimativa metodologicamente regulada do que as fontes podem dizer (de modo a superar a limitação dos campos de experiência já apreendidos e direcioná-las ao historicamente estranho). É, além disso, o momento de exame e classificação das informações das fontes relevantes para responder às questões levantadas (visto que a relevância de uma fonte depende das perguntas históricas elaboradas) e da ampliação do conteúdo informativo das mesmas. Nesse sentido, o autor proporciona à heurística um status até então esquecido, afinal “uma hipótese é heuristicamente fecunda se corresponder às carências de orientação das quais, em última análise, se originou” (RÜSEN 2007, p. 119).

Há que se ressaltar também o esforço do autor em abordar as operações substanciais da pesquisa, ou seja, a forma como o conteúdo experiencial do passado, projetado nas fontes, pode ser apreendido. Entre a abordagem analítica e a abordagem hermenêutica existiria a abordagem dialética, com uma função análoga ao modelo narrativo de explicação histórica, desenvolvido no primeiro capítulo da obra. Muito embora a pretensão dialética esteja explícita, a tentativa de aproximação dos dois modelos denota uma clara submissão da analítica à hermenêutica. Nesse sentido, não se realiza exatamente um movimento dialético, mas uma incorporação de contextos de causalidade e de processos estruturais e sistêmicas do agir humano aos processos reconstrutivos de sentido desse agir. Assim, embora mascarado, o privilégio dado por Rüsen continua associado pela tradição hermenêutica da qual é um legítimo representante.

Finalmente, a ênfase dada pelo autor aos problemas lógicos e conceituais que envolvem os princípios da pesquisa histórica revela uma marca própria e inovadora que permeia todos os três livros que compõem suas reflexões para o campo da teoria da história. Ao invés de um conhecimento enciclopédico e de catalogação, típico dos mais populares manuais, Reconstrução do passado é um convite ao aprofundamento sobre os fundamentos da ciência da história e dos fatores que articulam o pensamento histórico com vistas à sua racionalização. Nesse sentido e na medida em que supera uma concepção eunuca do exercício teórico na pesquisa histórica, Rüsen denota a face mediadora da teoria da história, expondo sua capacidade de articular a abstração conceitual com as determinações empíricas do processo de constituição do saber históricocientífico.

Referências

DANTO, A. Analytical philosophy of history. London: Cambridge University Press, 1965.

DROYSEN, J. G. Manual de teoria da história. São Paulo: Vozes, 2009.

PERELMAN, C. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2008.

_______. Tempo e narrativa – V. 1. Campinas: Papirus, 1994.

ROCHA, S. M. Resenha do livro História viva. In História da historiografia, n° 1. 2008. Disponível em http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/ article/view/29/26. Acesso em 25 de julho de 2010.

WHITE, H. Meta-história: a imaginação histórica no século XIX. São Paulo: Edusp, 1995.

Cristiano Alencar Arrais Professor Adjunto Universidade Federal de Goiás (UFG) [email protected] Rua 1044, 129/903, Ed. Imperial – Setor Pedro Ludovico Goiânia – GO 74825-110 Brasil Palavras-chave Teoria da história; Sistemática; Metodologia.

A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845) – ARAUJO (RBH)

ARAUJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008. 204p. Resenha de: CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.59, jun. 2010.

A publicação de A experiência do tempo, de Valdei Lopes de Araujo, deve ser vivamente aproveitada. Trata-se de um livro rico, digno de se encontrar nas estantes dos interessados em história política e intelectual do Brasil no século XIX, mas também nas bibliotecas dos estudiosos da história da historiografia e – por que não? – da filosofia da história. Melhor ainda: pode despertar no estudioso de vocação empírica o interesse pelas questões filosóficas mais abstratas, bem como mostrar à mente mais especulativa e reflexiva que os conceitos podem encontrar correspondência na realidade histórica mutável.

Valdei Lopes de Araujo é professor na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), onde integra o Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM). O livro é fruto de sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio, resultante de pesquisa orientada por Luiz Costa Lima. A refinada abordagem feita por Valdei Araujo se explica, sem nenhum demérito para a originalidade da obra, em parte pela formação obtida sob orientação de um intelectual que sempre estimulou a reflexão teórica e foi um dos responsáveis pela difusão da hermenêutica literária no Brasil, e que resulta na grande contribuição do livro de Valdei Araujo para o debate teórico e historiográfico. Seu mérito, portanto, consiste na sofisticada incorporação de discussões teóricas desenvolvidas na Alemanha na segunda metade do século XX, sobretudo aquelas herdeiras e críticas da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, autor que influenciaria tanto o historiador Reinhart Koselleck como um teórico e crítico literário do porte de Hans-Ulrich Gumbrecht. Sente-se a influência de Koselleck e Gumbrecht no texto de Valdei Araujo: do primeiro, a preocupação com a história conceitual, gênero no qual o autor se sai extremamente bem, dando bom exemplo de como os conceitos não são reflexos polidos da vida histórica, mas a própria forma pela qual esta se torna inteligível. Destarte, o conceito é lugar de experiência, e não de distanciada e desinteressada cognição por parte de intelectuais diletantes. Nada melhor que uma boa obra de história dos conceitos para que o estudioso da história do Brasil e da historiografia brasileira tenha a chance de manchar a imagem homogênea do intelectual brasileiro retórico e desocupado, que se preocupava com o mundo das letras somente por distração e ornamento. Mas o conceito – e aqui se percebe a influência de Gumbrecht – é também fruto de uma radical presença histórica, situada circunstancialmente. O livro, portanto, é profundamente feliz em se apropriar de textos teóricos como os de Koselleck e Gumbrecht sem, em momento algum, cair no erro de fazer de sua pesquisa uma exposição de conceitos importados, uma aplicação que viria meramente a confirmar o já sabido. Assim, embora a obra lide com fontes em grande parte já analisadas por outros historiadores, a maneira de lidar com elas é bastante original e criativa.

O livro inicia-se com uma questão fundamental para se pensar não somente a independência do Brasil, mas o que ela representa categorialmente como experiência moderna. Como diz Valdei Araujo em suas considerações finais: “A relação com o tempo e com o passado estava ainda condicionada, de um lado, por elementos clássicos da imitação e do exemplo e, de outro, por um entendimento geral do universo como a repetição de leis eternas e eventos cíclicos” (p.185).

A primeira parte de A experiência do tempo, denominada “A História do Sistema”, basicamente descreve e analisa a trajetória um tanto trágica de José Bonifácio de Andrada e Silva, o qual, tomando por base ainda uma visão cíclica de história, concebia o sentido da história do Brasil a partir da regeneração. Regeneração é possível somente se for entendida como a etapa subsequente à decadência, termo fundamental para a compreensão morfológica das ciências naturais. A propósito, é instigante perceber a semelhança do debate intelectual brasileiro sobre a modernização com a discussão travada no espaço alemão no último quarto do século XVIII, como demonstram as pesquisas de Peter Hans Reill.1 Porém, “regeneração”, para Bonifácio, se implicava a recuperação da essência de ser português, ainda que transplantada para o Brasil, não significava um retorno. Para usar os termos do autor, ao “espelhar” a história de Portugal, a história do Brasil abria uma possibilidade em sua busca de consciência, a de ser “uma outra história que já não podia mais ser de Portugal” (p.63). É esta a dialética delineada por Valdei Araujo, a do “tempo como repetição” (título do primeiro capítulo) para o “tempo como problema” (título do segundo capítulo). A tentativa da natural superação da decadência abria, portanto, a fresta para o projeto moderno. Afinal, a regeneração dar-se-ia em uma natureza virgem, pura, plenamente visível em seus princípios criadores, a qual teria sua potencialidade moldada pela ciência.2 O dilema da singularidade da história brasileira, posto pelo autor desde Bonifácio, é detidamente desdobrado no exame da possibilidade da existência histórica da língua e da literatura brasileiras, que deveriam ser construídas tendo por base o eixo clássico greco-latino, mas sem fazer dessa base um modelo a ser meramente copiado.

A segunda parte do livro (“O Sistema da História”), que compreende um excurso e dois capítulos adicionais, trata justamente da maneira pela qual os intelectuais brasileiros enfrentaram o incômodo gerado pela necessidade incontornável de se afirmar a singularidade nacional. Incômodo? Necessidade? Sim. O autor afirma-os muito precisamente: “As teorias disponíveis que poderiam explicar a constituição de novas formas, sejam animais, sejam políticas, estavam muitas vezes fundadas na ideia de degeneração” (p.126), e conclui, demonstrando a dimensão do problema, que, sendo verdadeiro o modelo organicista, “a mudança só poderia ser entendida como aperfeiçoamento, regeneração ou degeneração. O mesmo não seria válido então para as nações? Como entender o surgimento de uma nova nação?” (p.126).

Valdei Araujo apresenta, então, os esforços dos intelectuais envolvidos com a revista Nitheroy (como Domingos José Gonçalves de Magalhães) e com a própria fundação do IHGB. Se na primeira se percebia a tonalidade romântica com a qual se coloriria a singularidade nacional em fase de afirmação (mas na qual a história pertencia a um grupo amplo das “letras”), no documento fundador do IHGB, de 16 de agosto de 1838, percebe-se a presença de traços marcantes daquilo que – lembra muito bem o autor – Arnaldo Momigliano considerou fundamental para a caracterização da historiografia moderna, a saber, a conjunção da tradição antiquária e erudita, a preocupação com o sentido filosófico da história, e, por fim, a narrativa. Para Valdei Araujo, o primeiro traço é muito mais visível que os dois subsequentes, principalmente o terceiro, ainda muito discreto.

Outra faceta da modernidade ressaltada pelo autor, tão importante quanto o estabelecimento das bases da pesquisa histórica (mas dela decorrente), reside na abertura da possibilidade da experiência no lugar da imitação. O fato, assim, não é a recapitulação de um exemplo já feito, registrado, ensinado e conhecido, mas, sobretudo, a expressão da individualidade de uma época. O fato, portanto, é impensável dentro do modelo cosmológico ou exemplar, mas torna-se cognoscível em sua assimilação pela pesquisa antiquária e erudita no escopo da tentativa de afirmação da singularidade nacional.

A singularidade, de alguma forma, operava uma interessante transformação semântica: a degeneração deixava lugar para a consciência da finitude, para a consciência de uma experiência tipicamente moderna – a sensação da transitoriedade de todas as experiências. O projeto inicial do IHGB era, mostra muito bem Valdei Araujo, marcado por uma ambiguidade essencial: distante do organicismo que animara um José Bonifácio, o mundo letrado que girava em torno ao Instituto não respirava ainda o ar do pensamento evolucionista, naquele momento o único capaz de, para me apropriar de uma expressão de Henry James, ser o fio capaz de unir todas as pérolas. Como diferenciar as épocas da história do Brasil? Como organizar os fatos?

O livro de Valdei Araujo cumpre papel importante no ambiente atual de discussões teóricas e historiográficas, bastante marcadas pelo embate entre o ceticismo quase cínico dos ditos “pós-modernos” e os racionalistas. Afinal, Experiência do tempo mostra que a historiografia brasileira dá uma guinada fundamental em um momento de crise de orientação – para usar um termo de Jörn Rüsen. Portanto, não há problema algum em se escrever história em tempos de incerteza. De alguma maneira, sempre foi assim e esse foi o desafio sempre respondido, ainda que de muitas maneiras diferentes, pelos historiadores.

Notas

1 Cf. REILL, Peter Hans. Vitalizing nature in the Enlightenment. Berkeley: University of California Press, 2005;         [ Links ] ______. Die Historisierung von Natur und Mensch. Der Zusammenhang von Naturwissenschaften und historischem Denken im Entstehungsprozess der modernen Naturwissenschaften. In: KÜTTLER, Wolfgang; RÜSEN, Jörn; SCHULIN, Ernst. Geschichtsdiskurs Band 2: Anfänge modernen historischen Denkens. Frankfurt am Main: Fischer, 1994.         [ Links ]

2 Nesse sentido, permito-me uma comparação. José Bonifácio lembra muito o Goethe que viaja pela Itália. Na península, encontra a serenidade juvenil e a naturalidade de cuja falta tanto se ressentia em Weimar, onde já era um grande nome intelectual, sufocado pelas formalidades cortesãs. Vale lembrar que ambos – Bonifácio e Goethe – dedicavam-se largamente à ciência natural. Para uma visão da concepção de natureza em Goethe, ver MOLDER, Maria Filomena. O Pensamento morfológico de Goethe. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995.         [ Links ]

Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor Adjunto II do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, Campus Santa Mônica. Av. João Naves de Ávila, 2121, Bloco H, sala 1H42. 38400-902. Uberlândia – MG – Brasil. E-mail: [email protected].

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Figuras do pensável. As encruzilhadas do labirinto VI | Cornelius Castoriadis

“É autônomo aquele que dá a si mesmo suas próprias leis” (CASTORIADIS, 2004, p. 161)

Com essas palavras, de Cornelius Castoriadis, já se buscou resumir sua filosofia, como a busca constante pela autonomia do sujeito (VALLE, 2008). Mas, evidentemente, ela não se limita a essa busca pela autonomia (CHAUÍ, 1995; CASTORIADIS, 1992, 2006). Aliás, é em sua interpretação do homem e das instituições, ou antes, da forma como os homens instituem imaginariamente as sociedades e, inversamente, estas dão contorno as suas formas de agir e pensar, que se deve pensar o lugar que teria a autonomia em seu pensamento, visto que, segundo ele, “a história da humanidade é a história do imaginário humano e de suas obras” (CASTORIADIS, 2004, v. 6, p. 127). Talvez o local em que melhor o autor tenha analisado esta questão tenha sido em sua obra As encruzilhadas do labirinto, organizada em seis volumes, o último dos quais foi póstumo. Para organizar mais didaticamente a exposição, destacou-se num primeiro momento como foi organizada esta obra pelo autor, e num segundo, analisou-se os seus principais aspectos teóricos e metodológicos. Leia Mais

Quaderni del Carcere: Edizione crittica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana | Antonio Gramsci

Uma obra pode ser considerada um clássico quando projeta influência para além de seu tempo e espaço. Assim pode ser definida a obra de Antônio Gramsci (1891-1937), cuja influência sobre as Ciências Sociais e Humanas pode ser medida pelo grau de apropriação que as diferentes matrizes e correntes epistemológicas fizeram de seus escritos.

A leitura de Gramsci sobre o desenvolvimento histórico da sociedade italiana e suas análises sobre os problemas culturais, sociais, políticos, econômicos e educacionais de seu tempo tornaram seu pensamento um importante referencial teórico sobre o século XX. Leia Mais

Reconstrução do Passado – Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica | Jörn Rüsen

É inconteste que o grosso calibre do arsenal historiográfico estrangeiro importado pelo mercado editorial brasileiro é constituído por pesquisas oriundas da historiografia francesa, nossa maior referência em se tratando de estudos históricos. Entretanto, as reflexões historiográficas originárias na atmosfera intelectual alemã também encontram grande receptividade dentre os historiadores brasileiros, prova disso é a retumbante proliferação dos trabalhos de Jörn Rüsen no Brasil. Nos últimos anos, a editora da Universidade de Brasília, através do professor Estevão de Rezende Martins, propiciou à nossa comunidade acadêmica a tradução, para a língua portuguesa, da vigorosa trilogia de Jörn Rüsen, denominada de Grundzüge einer Historik (Esboço de uma teoria da história), composta pelas obras: Historische Vernunft (Razão Histórica)1 , publicada no Brasil em 2001; além de Rekonstruktion der Vergangenheit (Reconstrução do Passado)2 e Lebendige Geschichte (História Viva)3 , estas derradeiras oferecidas ao público brasileiro em 2007.

Tencionando atualizar a tradição intelectual da Historik e desenvolvendo profundos estudos sobre os trabalhos teóricos de Droysen, Rüsen vem dedicando-se à reflexão sobre os princípios que fundamentam o pensamento histórico, dando ênfase aos processos históricos de formação da moderna ciência da história e à apropriação do conhecimento histórico no contexto da vida social, naquilo que cunhou como “função didática da história”. Por intermédio do construto teórico denominado de “matriz disciplinar”, Rüsen apresenta um sistema de teoria da história, cuja amplitude reside na análise dos complexos problemas que envolvem a prática profissional dos historiadores: desde o polêmico vínculo entre conhecimento histórico e vida humana prática, até a complexa relação entre pesquisa e escrita da história. Leia Mais

Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios | Ciro Flamarion Cardoso

Produzida pelo professor/pesquisador Ciro Flamarion Cardoso, Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios, nos fornece uma ampla discussão no que se refere à teoria da História. Ao dialogar com diferentes tendências historiográficas, o autor promove uma série de debates em torno da questão de como se “fazer História”.

Com sua postura marxista, acredita que a História só possa ser interpretada através das condições materiais que compõem cada sociedade e não pela consciência, linguagem ou religião que cada uma possui. Apóia as primeiras gerações dos Annalles por privilegiarem as estruturas e a longa duração, refutando veementemente o positivismo por restringir-se apenas à história factual e a curta duração. Leia Mais

Las dificultades con la filosofía de la historia – MARQUARD (HH)

MASQUARD Odo 1928 2015 Banco de lecturas wordpress com e1593718621350

 

MASQUARD Las dificultades con la Filosofía de la HistoriaMARQUARD, Odo. Las dificultades con la filosofía de la historia. Valencia: Pre- Textos, 2007, 268pp. Resenha de: MATA, Sérgio da.[1] História da Historiografia, Ouro Preto, n.1, ago. 2008.

MARQUARD Odo (Aut), Las dificultades con la filosofía de la historia (T), Pre- Textos (E)

O famoso dito de Madame de Staël sobre aquele “povo de poetas e pensadores” encerra uma meia verdade. A metade falsa é a que diz respeito aos poetas. Lembro-me de uma cena que tive a oportunidade de acompanhar pela televisão há alguns anos atrás: o velho Habermas, quando do recebimento do Prêmio da Câmara do Livro alemã, discursando longamente para uma platéia em que estavam o então chanceler Schröder e todo o primeiro escalão do governo social-democrata. Essa gente leva os filósofos a sério.

Na medida em que o pensamento filosófico alemão sempre levou a história – embora nem sempre os historiadores – a sério, não faz qualquer sentido persistir naquela tola cesura, outrora defendida por um Fustel de Coulanges, de que “há história, e há filosofia. Mas não há filosofia da história”. Esta fórmula traduz uma forma de escapismo não de todo incomum no meio historiográfico, tendo ainda a grande desvantagem de tornar o historiador cego para as inúmeras modalidades de filosofia da história existentes. Especialmente quando, sem se dar conta, partilha de uma delas.

Se a crítica da filosofia da história ao longo do XIX deve muito ao historicismo, a da segunda metade do século XX se confunde com a (embora não se reduza à) crítica do marxismo. O curioso é que quanto mais a trajetória dos novecentos desmentia as previsões catastrofistas/utópicas dos marxismos de todas as colorações, mais espaço se lhe concedia no debate intelectual, na imprensa, na academia. A filosofia da história não é apenas um fenômeno recorrente e persistente; seus postulados por vezes mostram-se impermeáveis ao mais flagrante desmentido dos fatos. Tal fenômeno, convenhamos, dá o que pensar. Odo Marquard foi um dos que tentou explicar o porquê disso.

Nascido em 1928, Marquard cedo se afastou das duas tendências dominantes da filosofia alemã no pós-1945. Aos 21 anos, na companhia de seu amigo Hermann Lübbe e outros, foi a Freiburg, onde, segundo disse mais tarde, “todos acreditavam em Heidegger”. Lá, se surpreendeu com a existência de pelo menos quatro “seitas” que reivindicavam para si o direito de representar o verdadeiro pensamento do autor de Ser e tempo. A forma pouco respeitosa com que Heidegger analisou uma seção da Crítica da Razão Pura o incomodou (Marquard, 1989). Interessou-se também pela obra de Marcuse, mas o maio de 1968 lhe abriu os olhos para as contradições internas do projeto teóricopolítico dos frankfurtianos. Desde então, ele diz ter se tornado uma espécie de “derrotista transcendental”. Como Lübbe, acabou se juntando ao grupo de Joachim Ritter na Universidade de Münster, tendo participado do gigantesco empreendimento que foi a publicação do Dicionário Histórico da Filosofia (treze volumes editados entre 1971 e 2007). Do aprendizado com Ritter, a quem reiteradamente se referiu como mestre, Marquard preservou tanto a liberalidade no diálogo com diferentes tradições filosóficas quanto – e isso me parece decisivo – a crítica da crítica à modernidade (Diersch, 2004). O pertencimento a este “terceiro partido”, o de Ritter, tão pouco conhecido fora da Alemanha, ajuda a explicar porque somente três décadas após a publicação do original o leitor de língua hispânica tem acesso às Schwierigkeiten mit der Geschichtsphilosophie.

Ademais, a derrocada do assim chamado “socialismo real” e a subseqüente crise das esquerdas ofereceu condições para que um autor assumidamente cético como Marquard se faça ouvir por um público mais amplo. O cético, diz ele, não é alguém que não tem uma posição, mas alguém com demasiadas posições. O cético se curva ante o fato de que “o homem é uma forma de vida que pende para discrepâncias de opinião” (p. 117). Ele nada tem em comum com o pessimista crônico, cuja inclinação pelas filosofias da história em nada difere da do otimista crônico. O cético torna-se particularmente apto a conviver com o que nosso autor acredita ser o traço fundamental da modernidade: o pluralismo. E a valer-se daquela figura de linguagem que é a preferida dos céticos, a ironia. Em março deste ano, por ocasião de sua condecoração pelo presidente Horst Köhler, declarou numa entrevista que “a filosofia deve ser de um tipo tal que pelo menos seu autor seja capaz de entendê-la”. Quisera ser esta a divisa de toda a filosofia.

O que este auto-denominado “beletrista transcendental” – Marquard é detentor, entre outros, dos prêmios “Sigmund Freud” de prosa científica e “Ernst Robert Curtius” pelo conjunto da obra ensaística – persegue em Las dificultades con la filosofía de la historia? O livro apareceu originalmente em 1973, como primeiro produto da sua transição do campo da estética e do estudo da obra de Kant, Schiller e Schelling para a filosofia da história propriamente dita. Seu projeto ali, ele o definiu como uma “filosofia da história da resignação da filosofia da história”, uma “teoria da decadência da teoria do progresso” (p. 28 e 164).

Mas esta filosofia é assumidamente uma crítica. Para tanto, Marquard se vale de uma vasta literatura e de uma perspicácia impressionante, bem como da antropologia filosófica, que ele demonstra – com minúcia de historiador – ser não apenas coeva, mas o oposto da filosofia da história. Daí que o livro seja dividido em duas seções. A primeira, denominada “preparativos para dizer adeus à filosofia da história”, e a segunda “preparativos para dizer adeus à crítica da antropologia”, cada uma contando três capítulos. Uma densa e provocativa introdução antecipa para o leitor as teses principais defendidas ao longo de livro. Sua sentença de abertura: “o filósofo da história limitou-se a transformar o mundo de diversas maneiras; agora se trata de deixá-lo em paz” (p. 19).

Isso poderia sugerir a defesa de um princípio de não-ação, e, portanto, conservadorismo. Marquard se defende dizendo que o ceticismo não se opõe ao interesse por um mundo melhor (como afirmou Horkheimer), “mas apenas às ilusões desse interesse” (p. 38).

O seu alvo não é apenas a filosofia da história em sua acepção dominante, mas também o que ele chama de as suas formas “tardias”: a hermenêutica, os surtos tipologizantes na historiografia e na sociologia, a psicanálise, o estruturalismo francês. Inegavelmente, adversários de peso. E, no entanto, o brilhantismo da crítica e a solidez dos argumentos, não bastasse a sofisticação estilística com que os constrói, fazem da leitura de Las dificultades con la filosofía de la historia um exercício de fruição intelectual e estética que é raro – bem raro – em obras desta natureza.

O escopo dos problemas tratados se amplia de maneira vertiginosa. Marquard nos revela as insuspeitas dívidas de Hegel em relação à filosofia transcendental; os resíduos de filosofia da história no pensamento de Freud; o surgimento surpreendente e algo paradoxal da noção de “tipo” nos últimos escritos de Dilthey; e ainda a história do conceito filosófico de antropologia desde fins de século XVIII. Mas pode-se dizer que o eixo do empreendimento crítico de Marquard se encontra nos ensaios Idealismo e teodicéia e Até que ponto pode ser irracional a filosofia da história? Em Idealismo e teodicéia o autor desenvolve uma sofisticada análise das origens religiosas da filosofia da história. Não ao modo de Karl Löwith, mas num sentido bem mais radical e, por assim dizer, específico. Ele parte da teologia. De fato, foram os teólogos os primeiros a atacar um elemento basilar do idealismo alemão, qual seja, a “tese da autonomia”. O idealismo postula a liberdade radical do homem, donde se conclui que deve ser o homem, não Deus, quem dirige o destino humano. A crítica do idealismo realizada por teólogos judeus, protestantes e católicos a partir da década de 1920 é, acima de tudo, a crítica da autonomia. Marquard acredita ser necessária uma defesa da tese da autonomia, “posto que a autonomia é o princípio da modernidade” e que “seu abandono implica geralmente na condenação do mundo moderno como decadência” (p. 187).

A questão de fundo é bastante antiga, e num certo sentido fora antecipada pelo gnosticismo. Agostinho tentara resolvê-la. Foi finalmente Leibniz, em 1710, que chegou à sua elaboração clássica: somente a autonomia do homem torna plausível a existência do mal no mundo, pois, do contrário, teríamos de atribuílo a Deus – eis aí o cerne do problema da teodicéia. Algo que o Corão exprime exemplarmente: “Deus não oprime os homens. Eles oprimem-se a si mesmos” (10:44). Marquard afirma que a teodicéia só se realiza integralmente no idealismo alemão e na tese, por este defendida, da liberdade radical do homem. O idealismo “salva” Deus da incômoda condição de responsável pelo mal que grassa no mundo. Se a configuração do idealismo deve ou não ser entendida à luz das teses de Koselleck sobre a patogênese do mundo burguês, é algo que não interessa diretamente a Marquard. O que ele busca, antes, é demonstrar a existência de uma outra conexão fundamental: a de que a filosofia da história moderna se origina da transformação da teodicéia tradicional em teodicéia idealista.

Será esse fardo, o da autonomia radical, demasiado pesado para o homem? De certo. Tanto Kant como Fichte e Schelling foram levados, posteriormente, a procurar forças que guiassem ou suportassem o homem em sua tarefa. Essas forças seriam a natureza e… o próprio Deus. O resultado, paradoxal (Marquard é um especialista na identificação de paradoxos), pode ser resumido assim: o idealismo prolonga a teodicéia, e, no entanto, “invoca a Deus ao mesmo tempo em que o faz irreal” (p. 70).

Pode parecer que tal problema nada diga respeito aos historiadores, mas pelo menos dois dos mais conhecidos dentre eles não viam as coisas desta forma. Droysen escreveu no prefácio ao segundo volume de sua história do helenismo que “a mais alta tarefa de nossa ciência é, efetivamente, a teodicéia”.

A julgar pelas últimas páginas de suas Reflexões sobre a história universal, Burckhardt tinha uma opinião semelhante. O ponto alto do seu livro é, na minha forma de entender, o ensaio Até que ponto pode ser irracional a filosofia da história? Como é do feitio do autor, o texto se desenvolve a partir de uma tese apresentada logo de início. A tese: “a filosofia da história é irracional ao menos quando em nome da emancipação preconiza o [seu] contrário e quando em nome da autonomia preconiza a heteronomia” (p. 75). Vejamos como ele a desenvolve e sustenta.

O advento da filosofia da história, que Marquard reconhece ter sido exemplarmente historiado por Koselleck, redefine a situação do homem. De marionete de Deus ele passa a artífice do mundo. À época de Leibniz predominava o otimismo metafísico, e Deus ainda podia ser absolvido. Na segunda metade do século XVIII, porém, este sistema é posto em questão.

Precisamente neste momento nasce a filosofia da história. E, em decorrência dela, chega-se a uma terrível questão. Sendo mal o mundo, ou Deus é mal ou… então Deus não existe. A única possibilidade de “salvar” Deus, isto é, de preservá-lo em sua absoluta pureza e bondade, é expulsá-lo de todos os assuntos humanos. Daí que o idealismo alemão seja, na prática, o que Marquard chama de um ateísmo ad maiorem Dei gloriam.

A filosofia da história seria uma continuação da tentativa de solução do problema da teodicéia, só que por outros meios. Para Marquard, a filosofia da história é “a realização plena da posição da autonomia [do homem]; sua missão é a da demonstração concreta da seguinte tese: o próprio ser humano faz seu mundo e numa tal medida que inclusive ali onde não há mais remédio senão aceitar o dado, isto pode explicar-se pelo fato de que ele simplesmente se esqueceu de que ele próprio era seu criador” (p. 80). O homem deve se lembrar ou ser lembrado da autonomia da qual havia se esquecido e consumá-la na forma de liberdade. O ônus desta liberdade está em que ele deve também assumir para si, e apenas para si, a razão de todo o mal. Ele, não Deus, é um “autor de atrocidades” (Täter von Untaten, no original).

Coisa estranha: este homem (como Dostoiévski já havia percebido), agora liberto e consciente de sua liberdade, não parece muito feliz com ela. Manifestase então o que Marquard julga ser uma disposição fundamental – antropológica, portanto – do homem: a da “arte de não ter sido”. Sob a égide da filosofia da história, o homem parece carecer de vontade de ser plenamente aquilo que ela lhe promete. Significa, na prática: alguém deve conduzir a história – e que não sejamos nós! Alguém ou algo, como o espírito universal, as classes sociais, etc. Dá-se o fenômeno sumamente interessante de que justamente as filosofias da história que emanciparam o homem passem a buscar, compulsivamente, um “outro ator”, o ator verdadeiro da história. Com este fim, acabam associando-se às filosofias da natureza, como se percebe em Schelling, em Marx, em Engels. Finalmente, essa busca por um “outro ator” acaba esbarrando, não raro, no terreno do qual a filosofia da história inicialmente pretendera se afastar, o da religião. Completa, assim, um giro de 360 graus.

Não é outro o caminho trilhado pelos Horkheimer e Benjamim tardios, fortemente marcados por preocupações de tipo teológico e messiânico. A autonomia do homem não tornou o mundo melhor. Esse “outro ator” desempenha a função de um álibi, de uma justificativa pelo nosso fracasso enquanto senhores dos destinos do mundo. Um álibi com diversas faces, como a natureza, o messias, até mesmo o inimigo de classe.

Enfim, o argumento de Marquard, construído com inegável brilhantismo e concisão, retorna à questão que dá nome ao capítulo. Em que reside a irracionalidade da filosofia da história? Nisto: no de defender, simultaneamente, uma tese (a da autonomia) e o seu contrário (a heteronomia).

Se eu pudesse fazer um reparo a este belo livro, seria um reparo de natureza puramente formal. A sua introdução deveria vir ao fim, na forma de uma conclusão. Pois muito do que ela antecipa, de maneira complexa e extremamente condensada, só se apreende após a leitura de todos os ensaios.

Ali, o autor mostra como extrai da crítica de Hans Blumenberg ao conceito de secularização a essência do seu empreendimento. Haveria uma relação direta entre teodicéia e filosofia da história. Esta não passaria de uma forma secularizada daquela. Para Marquard, “a filosofia da história não se define especificamente por sua modernidade”. Na verdade, postula ele, “a filosofia da história é a antimodernidade” (p. 25). Pois ela assenta no “mito da emancipação” e nada mais faz que trair-se a si mesma. Se a teodicéia culmina na eliminação de Deus, a filosofia da história culmina na eliminação do ser humano.

As aporias da filosofia da história levam-no a buscar o seu oposto, a antropologia filosófica. É no mínimo divertida a forma como ele demonstra em que medida tanto Dilthey como alguns dos discípulos de Heidegger (Löwith e Bollnow, entre outros) trilharam exatamente esse caminho (p. 146, 254-255).

Para Marquard, fique claro, não se trata de uma tentativa de superação, mas de diálogo. Poder-se-ia dizer que o cético, parafraseando aquele personagem de Guimarães Rosa, entende que uma filosofia, apenas, é muito pouco.

Há muitos filósofos amigos da história, mas bem poucos que sejam amigos dos historiadores. Marquard é um deles, e somente por esta razão já valeria à pena lê-lo. É bem verdade que, em outra ocasião, afirmou que “a história é algo demasiado importante para ser deixada apenas aos historiadores” (Marquard, 1986, p. 54). De acordo. Contudo, e para isso ele próprio chamou a atenção, sem a historiografia e as demais ciências empíricas da realidade – como as chamava Weber – a filosofia cede à tentação de encontrar em si mesma a única realidade que verdadeiramente conta (die Versuchung, die Philosophie zum einzigen Realitätsverhältnis zu machen). Sem a ciência histórica, tanto maiores as chances de que o discurso filosófico sobre a história manifeste essa forma peculiar de alienação que é a de enredar-se em si mesmo. Em entrevista reproduzida em seu último livro lançado na Alemanha, Marquard (2007, p. 20) sugere que a melhor forma de fuga do mundo se obtém por intermédio do sono, não da filosofia.

Bibliografia

DIRSCH, Felix. Konservativer Skeptiker zwischen Herkunft und Zukunft. Criticón, n. 181, p. 43-48, 2004.

MARQUARD, Odo. Schwierigkeiten mit der Geschichtsphilosophie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1982.

_____. Apologie des Zufälligen. Stuttgart: Reclam, 1986.

_____. “Die verweigerte Bürgerlichkeit”. Frakfurter Allgemeine Zeitung, 23/ 09/1989.

_____. Skepsis in der Moderne. Stuttgart: Reclam, 2007.

[1] Professor do Departamento de História Universidade Federal de Ouro Preto Rua do Seminário, s/n – Centro Mariana – MG 35420-000.

Um historiador fala de teoria e metodologia, ensaios | Ciro Flamarion Cardoso

São poucos os historiadores brasileiros que podem apresentar uma produção tão rica e diversificada quanto o professor Ciro Flamarion Cardoso. Parte de sua vida foi vivida fora do Brasil, à época da ditadura militar e, contudo a sua presença foi marcante na formação de uma geração que leu e refletiu o Métodos da História, seus escritos sobre o trabalho escravo na antiguidade e Uma Teoria da História. Em suas obras nota-se uma constante critica à pequena importância que o estudo da filosofia tem recebido na formação dos historiadores no Brasil. Essa preocupação teórica o levou a refletir, com outros autores, em Caminhos da História.

Após os eventos do final dos anos oitenta, ocorreu a debandada dos historiadores para fora dos caminhos da interpretação marxista da história. Ciro Flamarion é um dos raros que mantém a sua adesão àquele método de estudo, àquela filosofia explicativa da história. Assim, não surpreende a edição desses ensaios, produzido ao longo de doze anos, resultado de suas reflexões e perplexidades, advindas de sua prática docente.

Pouco avesso aos salameques e ao culto das novidades por serem novidades, o autor de Um Historiador fala de teoria e metodologia, continua fiel ao viés fundamental de sua obra. Ciro nos mostra como ele continua capaz de dialogar com o mundo e apresenta o marxismo como ainda capaz de dar conta da complexidade que estudos setoriais não conseguem, segundo ele, enfrentar plenamente.

Dividido em quatro partes, o livro organiza didaticamente os grandes temas que estudos históricos enfrentam atualmente. Na primeira parte, composta por dois capítulos, o Autor dedica-se a debater as novas perspectivas e compreensão do Tempo e do Espaço para a História, dedicando um capítulo para o debate sobre a construção do espaço, nesses novos tempos em que as realidades parecem estar cada vez compressas e em que os limites geográficos, definidos matemática e geometricamente no final do século XIX, mostram-se ineficazes para a compreensão das políticas atuais dos países e estados.

A segunda parte é dedicada ao acompanhamento do debate epistemológico atual, com destaque especial ao anti-realismo do pensamento histórico contemporâneo e sobre a influência negativa que o Autor entende que as teorias do conhecimento exercem na atual produção histórica no Brasil. Talvez seja a sua adesão incondicional ao marxismo que o impeça de olhar com maior simpatia a atual produção vinda dos programas de pós-graduação das universidades, talvez muito ávidas por aceitar as novidades conseqüentes das contradições européias, aceitas sem o respaldo de um estudo filosófico que seja capaz de assumir as novas tendências sem superar simples macaqueação própria do novidadeirismo.

A terceira parte é dedicada à reflexão do pensamento histórico e ao debate historiográfico contemporâneo. Embora instigante, essa parte pode ser apontada como frustrante por limitar esse debate apenas até os anos trinta. Esperava-se mais, na reflexão sobre a atual produção, essa que vem desde a segunda metade do século. Mas, talvez, com esse enorme hiato, o autor queira nos dizer que não ocorreu ainda uma real e nova interpretação da história brasileira, nem universal, além daquelas que foram apresentadas nas primeiras décadas do século XX, pouco importando que seja uma história produzida nos limites do Brasil ou além deles. Seria isso produzido pela quebra dos paradigmas, pela queda física, antes da metáfora, do muro que separavam as duas maiores experiências políticas ideológicas do século findo há quase uma década, ou a duas décadas, como quer um outro historiador marxista, Eric Hobsbawm. Interessante capítulo, desta parte, é quando nosso Autor quase se transforma em perscrutador do futuro ao discorrer sobre “que história convirá ao século 21” e reflete sobre como a crise dos paradigmas, o cultivo quase niilista da dúvida permanente e da certeza de que só a dúvida existe pode levar os historiadores a perder a perspectiva, atolando-se nos mais diversos solipsismos.

A parte quarta desse livro é dedicada a debater questões mais setorizadas tanto quanto à teoria quanto ao método histórico. No nono capítulo estão abordadas questões atuais no debate sociológico, político e histórico, referindo-se mais diretamente às questões étnicas, tão pungentes e atraentes numa globalização na qual para não se tornarem massas liquidas, voltam-se a paradigmas pré-modernos vestidos em vistosas roupagens pós-modernosas, escondendo nas colorações cintilantes, ranços de racismos que podem fazer retornar com mais tragicidade situações aparentemente vencidas em meados do século XIX. Capítulo muito interessante é o dedicado à chamada História das Religiões, uma quase ciência e uma quase teologia, ou uma teologia que não quer dizer-se como tal. Para ele muitos dos que se dizem historiadores das religiões, deixaram-se seduzir pelos mistérios que atraem os crentes, esquecendo-se dos problemas que são os verdadeiros interesses do historiador, do cientista. Ao crente basta a admiração e contemplação da verdade religiosa, ao historiador a admiração serve apenas de pretexto para iniciar a busca do entendimento de porque homens e mulheres, em determinados tempos e lugares, criaram sistemas e necessitaram afirmar que esses sistemas foram doados gratuitamente por alguma entidade não humana, mas superior aos homens e mulheres Tais adesões à pseudociência História das religiões só é possível pela negativa em abordar os problemas humanos a partir de sua materialidade.

A leitura dos Ensaios contidos em Um historiador fala de teoria e metodologia é interessante àquele que já se encontra na militância da história, seja como professor apenas, seja como professor, pesquisador e historiador. Para os que estão iniciando-se nos afazeres do historiador, essa é uma leitura obrigatória. Nela ocorrerá o encontro com um permanente estudioso da história, e um constante enamorado pelas criações dos homens que vivem as contradições das sociedades que criam e na qual vivem.

Severino Vicente da Silva – Professor adjunto, atuante no programa de pós-graduação do Departamento de História da UFPE.


CARDOSO, Ciro Flamario. Um historiador fala de teoria e metodologia, Ensaios. Bauru, SP: Edusp, 2005. Resenha de: SILVA, Severino Vicente da. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p. 262-265, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]

 

História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade | José Carlos Reis

Nesta obra, José Carlos Reis transparece, com erudição, a importância da filosofia e de suas construções teóricas. Nas páginas finais do último artigo, ele ressalta: “Filosofia e história são atitudes complementares – toda pesquisa filosófica é inseparável da história da filosofia e da história dos homens e toda pesquisa histórica implica uma filosofia, porque o homem interroga o passado para nele encontrar respostas para as questões atuais” (p. 240). O livro é uma junção de ensaios do próprio autor, cada um com uma especificidade singular e, ao mesmo tempo, contínua, linear: todos tratam de “teoria da história”. Valendo-se de uma abordagem dos principais parâmetros contemporâneos do contexto historiográfico, Reis interroga, instiga, mostra caminhos, posicionamentos. Seu poder de síntese é invejável: diz muito em tão pouco. Para quem já estava cansado ou mesmo entediado com as discussões sobre verdade, modelos epistemológicos, historicismo, além das que envolvem concepções de tempo histórico e das oposições entre modernidade e pós-modernidade, o autor demonstra que ainda é possível um pensamento crítico e um esforço reflexivo.

No primeiro capítulo, o autor traz a “história da história”, analisando desde a metafísica até a pós-modernidade. A preocupação dos historiadores com a “humanidade universal” e o “sentido histórico” pautam sua análise. Ele quer discutir a passagem modernidade/pós-modernidade e suas possíveis repercussões na historiografia. Começa com os gregos, que não teriam construído a idéia de “humanidade universal”, tendo sido formulada com os romanos. Com o Cristianismo, a história esteve dominada pela Providência Divina e o futuro dependia da fé. A partir do século XIII ele perde sua força e surge uma outra representação da história: a “modernidade” e sua busca da racionalização.

A modernidade trouxe uma nova consciência do sentido histórico, uma nova representação da temporalidade histórica e, com ela, o mundo se fragmentou em valores distintos. O espírito capitalista (entenda-se burguês) é moderno, desencantado, secularizado, racional, tenso.

No século XVIII retorna a idéia de história universal. Pensa-se em direitos universais. Nesse momento, a modernidade através das filosofias da história recolocaria à história a questão do sentido histórico: é o desenvolvimento do processo de progresso, revolução, utopia; a idéia de história está dominada pelos conceitos de razão, consciência, sujeito, verdade e universal.

No século XIX , a história-conhecimento torna-se científica, o conhecimento histórico aspira a objetividade científica, a verdade. A eficácia da história está em servir ao Estado e às instituições da sociedade burguesa. Nietzsche seria o primeiro a romper com o conhecimento histórico científico e, a partir do século XX, aprofundariam-se as críticas, passando-se a recusar o determinismo, o reducionismo e o destino inescapável. A pós-modernidade concretizou-se no pós-1945, não acreditando na razão, pois os sentidos são multiplicados – o universal se pulveriza, fragmenta-se – e a história global é descartada. Os interesses voltam-se ao pequenos dados, aos indivíduos, o olhar em migalhas opera por fatos, biografias, múltiplas narrações: é a desaceleração da história. O estruturalismo aprofundou a revolução cultural pós-moderna, desconfiando do sujeito, da consciência, da revolução, da razão. Para Reis, estamos vivendo a pós-modernidade. O novo ambiente cultural é complexo e ambíguo: os historiadores pensam em rupturas, fragmentação, individualismos em plena globalização. O conhecimento histórico prioriza a esfera cultural, as idéias, os valores, as representações, linguagens, e a história torna-se ramo da estética, aproximando-se da arte, da literatura, do cinema, da fotografia, da música.

No segundo capítulo, Reis procura fazer um balanço das possíveis perdas e/ou dos possíveis ganhos do percurso da história do “global” às “migalhas”. Para tal, segue os pressupostos de François Dosse, o crítico francês dos Annales que destacou a descontinuidade presente nos “seguidores” dos “pais fundadores”. Para conseguir um balanço entre perdas e ganhos, Reis conceitua história global e história em migalhas. História global teria dois sentidos: “história de tudo” e “história do todo”. O primeiro sentido seria entendido por “tudo é história”, o segundo seria a intenção de apreender o “todo” de uma época. Este último sentido não teve espaço na terceira geração dos Annales. Já as migalhas, podem significar a multiplicação dos interesses e das curiosidades históricas; a fragmentação, a especialização extrema, a desarticulação dos tempos históricos. Ou, no sentido otimista, as migalhas significaram o amadurecimento do projeto inicial; a história escrita no plural, múltipla, que analisa partes da realidade global. Por fim, nosso autor faz uma enumeração riquíssima em termos de prós e contras dessa passagem do global às migalhas, colocando-se no lugar de quem avalia uma perda ou um ganho.

O terceiro capítulo, intitulado “A especificidade lógica da história”, levanta questões que colocariam em dúvida a possibilidade do conhecimento histórico, entre elas: “A história é um conhecimento possível?”. Salienta a importância da reflexão teórica problematizante, alertando sobre a impossibilidade de ser historiador sem tomar o conhecimento histórico como problema. A questão a ser pensada seria a existência de um conhecimento histórico reconhecível. Esse conhecimento talvez estivesse na recusa da ficção. Nessa luta contra a ficção, a história aproxima-se da ciência. Quanto a possibilidade de história científica, José Reis apresenta quatro modelos: nomológico, compreensivo, conceitual e narrativo. O modelo nomológico, centrado em Hempel, defende a unidade da ciência, as explicações causais; é um modelo neopositivista, que busca encontrar leis gerais, da mesma forma que as ciências naturais. O modelo compreensivo tem dois expoentes: Dilthey e seu método da compreensão e interpretação das ciências do espírito, e Weber com uma visão racionalista da compreensão. A sociologia compreensiva busca interpretação da conduta humana; para compreender, pode-se construir o “tipo ideal” de uma ação racional. Para Reis, Weber ainda sustenta uma visão racional da história. O modelo conceitual está baseado na história científica weberiana: ela é racionalmente conduzida, fundamentada na compreensão e em conceitos. A compreensão e subjetividade incluídas na história não abdicariam a abordagem científica da mesma, presentes através de tipos e conceitos. Paul Veyne, com influência weberiana também defendeu a história conceitual, que para ele estaria entre a ciência e a filosofia. Para o Veyne de “O Inventário das diferenças”, a história conceitual seria científica porque oferece uma inteligibilidade comparativa. Já o Veyne de “Como se escreve a história”, tem a história como “narrativa verdadeira”, mas não científica. François Furet, também influenciado por Weber – e Reis salienta que os Annales “parecem dever mais a Weber do que querem admitir” – percebe a história como oscilação entre arte da narração, inteligência do conceito e rigor das provas, mas não como ciência. Por fim, no modelo narrativo e atual (alguns autores sustentam que o discurso histórico sempre foi narrativa), espera-se uma relação mais estreita com o vivido, o tempo, os homens. A história-problema entrou em crise por afastar-se dos homens e negar a temporalidade. Para Veyne, a história é uma narrativa que explica enquanto narra, é compreensão, é atividade intelectual. Paul Ricoeur esclarece a estrutura de uma nova narrativa histórica, lógica e temporal, ou seja, temporalidade e a narratividade se reforçam. Ricoeur defende o primado da compreensão narrativa em relação à explicação, sendo a narrativa histórica uma representação construída pelo sujeito, que se aproxima da ficção e retorna ao vivido. A história, em última análise é a narrativa do tempo vivido.

No quarto capítulo, Reis discute as posições da verdade sobre o conhecimento histórico. Os céticos em relação à história fazem várias objeções à possibilidade da objetividade e verdade em história, entre elas estaria o fato desse conhecimento estar ligado ao presente (que sempre reinterpreta o passado), à subjetividade, à compreensão e à intuição; ainda ao fato de não produzir explicações causais, de ser conhecimento indireto do passado, de utilizar a mesma linguagem da ficção, de utilizar fontes lacunares, de ser interpretação e construção de um sujeito e ter o conhecimento pós-evento. O conhecimento objetivo seria aquele válido para todos, universal, analítico, problematizante, necessário. Para Reis não há razão para o ceticismo. Ele cita Koselleck, para quem a história precisa sustentar duas exigências: produzir enunciados verdadeiros e admitir a relatividade. Na tentativa de indicar posições para o alcance da verdade histórica, Reis busca as teses de alguns autores. Divide-os em realistas metafísicos e nominalistas. Começando pelos primeiros, tem-se que para Ranke a história produziria verdade através do método crítico. Nesse sentido o sujeito não se anula, apenas se esconde, se autocontrola. Weber não vê a possibilidade de abordar o real em si, apenas aspectos, partes. O sujeito divide-se em esferas lógicas autônomas. Duas subjetividades buscam a verdade, que é conhecimento empírico. Em Marx, o sujeito deve assumir sua subjetividade. A verdade não é universal, mas de um grupo social. O conhecimento histórico produzido é objetivo, mas parcial, relativo, pois o historiador precisa tomar partido. Para Ricoeur, a verdade é traduzida pelo sujeito de forma comunicável a partir de uma objetividade que exige a presença da subjetividade. Na mesma direção, Marrou declara ser a objetividade histórica, específica, subjetiva, através de valores éticos universais. Todos procuram critérios universais para a verdade, todos são construções totalizantes da verdade histórica. Nos nominalistas, a subjetividade é plena, o universal é impensável. Em Foucault a verdade é construção de um sujeito particular e expressa relações de poder: essas relações criam linguagens e saberes para se legitimarem. Michel de Certeau tem a história como fabricação do historiador, um discurso que emerge de uma prática e de um lugar institucional e social. Duby assume a história subjetiva, que estaria próxima da literatura e do cinema, onde a imaginação e o sonho não são proibidos. Por fim, Koselleck sustenta a verdade histórica caleidoscópica, se relaciona com a história da história, examina a historiografia anterior. O passado é selecionado, reconstruído em cada presente. Reis conclui esse capítulo ressaltando que a verdade histórica é obtida com exame exaustivo do objeto, com todas as leituras possíveis.

O quinto capítulo traz a discussão sobre o tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e nos Annales. O historiador tem interesse no temporal, na alteridade humana, não deseja conhecer o que está fora do tempo, o que não muda, deseja sim, conhecer a mudança, logo o tempo da história seria um terceiro tempo. Para Ricoeur, o tempo histórico refere-se à vida humana e o calendário é indispensável, pois é ele que numera e em cada marca dessa numeração existiu um homem individual (social). Outro conceito é o de geração, trata-se de vida compartilhada. O tempo histórico representa permanência de gerações e seqüência de gerações. A terceira conexão são os vestígios, os arquivos, pois as gerações deixam sinais, marcas, que são buscadas pelo historiador. Koselleck critica o conceito de tempo calendário, mas não o descarta, advertindo para o conhecimento interior do mundo humano, a idade interna de uma sociedade, ou seja, a relação estabelecida entre seu passado e seu futuro. Na perspectiva dos Annales, o tempo histórico é estrutural – influência das Ciências Sociais que compreendiam o tempo como “estrutura social” – existindo a recusa da mudança, em favor do modelo, da quantidade, da permanência. A influência foi o aparecimento na história do mundo mais durável, mais estrutural (estruturas econômicas, sociais, mentais), de movimentos lentos, com desaceleração das mudanças, e é justamente o conceito de “longa duração” que permitiu maior consistência ao terceiro tempo do historiador.

O sexto e último capítulo é dedicado à contribuição de Dilthey para a história, que, aliás, é considerado como o pensador que “redescobriu a história”. Dilthey é associado ao historicismo, embora seja difícil enquadrá-lo em algum rótulo. Ele estaria entre um historicismo romântico e um epistemológico por buscar compreender o homem enquanto ser histórico, compreender a alteridade e todos os aspectos da vida de um povo; a história em Dilthey é mudança e o que permanece é compreensão, comunicação entre homens diferentes, sendo o homem “experiência vivida” e a verdade, o processo histórico.

No contexto do século XIX, Dilthey apontou o caminho da história, da vida, tendo por missão da história “apreender o mundo dos homens através do estudo das suas experiências no passado” (p. 241). Reis diz que em Dilthey filosofia e história estão unidas. Talvez esse fato tenha cativado nosso autor a ponto de despertar tanto seu interesse por Dilthey.

De fato, Reis cativa o leitor com sua narrativa, sua exposição, sua paixão pela teoria. Este livro é mais uma referência obrigatória a todos que se preocupam em pensar o papel da teoria na contemporaneidade; ele incita os historiadores ao conhecimento dos paradigmas atuais das ciências sociais. Se José Reis pretendia com este livro, “fazer circular, renovar, estimular e transmitir cultura” (p. 13), parece-nos que ele conseguiu!

Mauro Dilmann – Mestrando em História pela Unisinos/RS.


REIS, José Carlos. História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. Resenha de: DILMANN, Mauro. Cantareira. Niterói, n.9, 2005. Acessar publicação original [DR]

Razão histórica: teoria da história- os fundamentos da ciência histórica | Jörn Rüsen

Resenhista

Arthur O. Alfaix Assis – Doutorando em história pela Universidade Witten-Hcrdeckc (Alemanha); bolsista da Fundação Capes.

Referências desta Resenha

RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história- os fundamentos da ciência histórica. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora UnB, 2001. Resenha de: ASSIS, Arthur O. Alfaix. A ciência da história como resposta racional a carências de orientação. História Revista. Goiânia, v.9, n.2, p. 331-339, jul./dez.2004. Acesso apenas pelo link original [DR]

Um estudo crítico da História | Hélio Jaguaribe

Os recentes eventos – espetaculares impactos de aviões comerciais cheios de desprevenidos passageiros, chocando-se com o maior edifício de Nova York e um dos maiores do mundo, ademais de outro tanto contra o Pentágono, Ministério da Defesa em Washington – levaram o próprio presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, a declarar, a telespectadores estupefactos em escala mundial pela comunicação instantânea via satélite, que se tratava da primeira guerra mundial do século XXI.

Naturalmente logo vieram recordações do otimismo de Francis Fukuyama em muito discutido artigo publicado na revista Foreign Affairs sobre o fim (pacífico…) da história, e pessimismo de Samuel P. Huntington em artigo, também ali, transformado em livro sobre o choque das civilizações. Leia Mais

Metahistory. The Histórica, Imagination in Nineteenth-Century Europe / Hayden White

O papel da historiografia na construção social da cultura e, por conseguinte, na conformação da identidade dos integrantes dos respectivos grupos é um tema relevante na reflexão histórica contemporânea.

O ponto fulcral para a contribuição historiográfica ao processo de construção das identidades está no pensamento histórico e nas formas culturais de fixação deste pensamento. Esse tema tem ocupado debates e colóquios pelo mundo afora, além de conduzir a um grande número de publicações, desde a década de 1980.

Destacar e explicar o caráter multifacetado e mutante dos modos de expressão histórica do pensamento identificador da individualidade e da sociedade foi um dos objetivos principais do modelo narrativista inaugurado pelo livro de Hayden White, Metahistory. The Histórica/ Imagination in Nineteenth- Century Europe} Rapidamente essa obra veio a ser considerada como o sinal de uma mudança de paradigma na historiografia contemporânea, com a pretensão de ter superado ingenuidades passadas quanto à isenção metódica da história. A idéia é a de que o pensamento histórico de cada geração (mesmo dentro de uma “mesma” cultura) elabora seu modo próprio de ler e reler seu tempo e seus textos, a exemplo das teorias literárias estruturalistas, semióticas, desconstrutivistas, formalistas, intertextualistas, analíticas do discurso, enfim pós- e até mesmo pós-pós-modernas. O “choque” provocado pela teoria narrativista, ao pôr em evidência os limites da ciência histórica — questão que o paradigma “libertário” do modelo positivista e do seu culto às fontes, em sua influência sobre os modos de fazer história desde meados do século 19, havia amplamente ignorado. Um exagero parece ter acarretado o outro. As reações à teoria de Hayden White foram muitas. Aqui não se busca examinar este debate, mas registrar um de seus efeitos benéficos. A conside ração da diversidade historiográfica como um ganho para a produção do pensamento histórico e de sua inserção cultural em um mundo cada vez mais interativo e interdependente decorre, ao menos em sua valorização recente, deste debate, prevalente nos últimos vinte anos. Não há nisso apenas a (re)descoberta do outro como identidade própria (e não sempre reduzido à do observador ou a ela submetido), mas igualmente uma revalorização do recurso à teoria da história como sistema de equacionamento dos inúmeros fatores que constituem o “objeto” da análise social, inclusive no caso da história.

A coletânea editada por Jôrn Rüsen e Sebastian Manhart, Geschichtsdenken der Kulturen — Eine kommentierte Dokumentation (O pensamento histórico nas culturas — uma documentação comentada, Frankfurt/Main, Alemanha: Humanities On Line, 2002) tem por objetivo imediato abrir acesso, a todos os interessados, aos espaços culturais em que a memória e a narrativa, como constituintes do pensamento histórico, contribuem para a construção das identidades. Os dois primeiros volumes dessa colerânea trazem textos e comentários do espaço sul-asiático: Südasien — Von den A.nfàngen bis %ur Gegenwart (Ásia do Sul — dos primórdios ao presente). Stephan Conermann edita, introduz e comenta a visão muçulmana do século 13 ao século 18 (Die muslimische Sicht, 2002, ISBN 3- 934157-22-X, 350 p.), e Michael Gottíob faz o mesmo com o pensamento moderno da Ásia do Sul, de 1786 até os dias de hoje {Historisches Denken im modernen Südasien, 2002, ISBN 3-934157-23-8, 474 p.). Um terceiro volume encontra-se em preparação, versando sobre poética histórica indiana, a cargo de Georg Berkemer (Vom Rigveda %ur historischen Versdichtung — Hinduismus, Jinismus, Buddhismus und orale Traditionen, 2003, ISBN 3-934157-30-0, 344 p.).

A inspiração culturalista e historiográfica dessa coletânea deve seu impulso principal à teoria crítica da história elaborada por Rüsen,2 desde seu tempo como professor na Universidade de Bochum, mas fundamentalmente nos projetos que dirigiu no Centro de Pesquisa Interdisciplinar da Universidade de Bielefeld (ZiF, Bielefeld, Alemanha) e nos que dirige há quase dez anos no Instituto de Ciências da Cultura (Kulturwissenschaftliches Instituí), em Essen. Rüsen é certamente um dos principais autores contemporâneos de teoria e metodologia da história. Seu diálogo internacional é amplo e sua preocupação com a tarefa esclarecedora do pensamento histórico como fator de resgate da autonomia crítica dos indivíduos e como fator de entendimento multicultural são mundialmente reconhecidos Um dos desafios enfrentados por Rüsen está na forte pressão que o paradigma ocidental da ciência história vem sofrendo, nos últimos anos. Exige- se desse paradigma e de seus praticantes a revisão de seus fundamentos, não apenas por causa dos avanços significativos e da inovações de sua especialidade, mas igualmente pela consciência crescente de que o sistema ocidental de interpretações, predominante até o presente, está sendo cada vez mais posto em cheque pelas tradições historiográficas não-ocidentais, amplamente ignoradas, subestimadas ou menosprezadas. Apesar de o conhecimento das culturas não-européias ter progredido gradualmente — o que se deve também ao fato de que o circuito de influências da globalização produz efeitos reversos sobre os centros de irradiação da pressão econômica, comercial ou culrural — o conhecimento das múltiplas formas não-ocidentais de lidar com o passado ainda continua sendo absorvido de modo apenas superficial, tanto na ciência histórica como no senso comum. A perspectiva da historiografia ocidental continua claramente hegemônica, e até a história da historiografia permanece concentrada na historiografia ocidental desde os gregos (uma espécie de eurocentrismo expandido). Uma provável causa desse déficit cognitivo não se reduzia à mera falta de interesse pelas formas de pensar e de exprimir-se não-ocidentais, mas pode estar nas grandes dificuldades em se ter acesso aos textos básicos dessas culturas. As dificuldades mais freqüentes são duas: a barreira da língua e a inexistência de corpora sistematizados.

A falta de conhecimento acerca da relevância de determinados textos e das relações entre os diferentes gêneros textuais dificulta igualmente a compreensão de seus discursos quando não se está por dentro das respectivas ciências especializadas (por exemplo: sinologia, arabologia, indologia e assim por diante). A diversidade das tradições historiográficas, cujo significado somente se alcança no contexto da respectiva história social, religiosa e discursiva, tampouco vem a ser apreendida e avaliada adequadamente sem a intermediação de especialistas.

A edição comentada de textos “O pensamento histórico das culturas” contribui para diminuir os obstáculos referidos ao estudo dos discursos historiográficos não-ocidentais e para criar um acesso às formas mais representativas do modo de lidar com o tempo, com a lembrança e com a história, fora do âmbito eurocêntrico. A coletânea procura fornecer ao leitor um primeiro panorama de diversos textos de diferentes feituras, de modo a permitir construir uma representação adequada das respectivas tradições historiográficas. O período coberto vai dos primeiros inícios das tradições orais e escritas na forma de lendas religiosas, anais tribais, crônicas da corte ou do Estado, até os textos cada vez mais marcados pelo modelo da historiografia ocidental (ou a ela opostos, a partir de um passado recente).

Os critérios adotados pelo procedimento de seleção têm, obviamente, uma conseqüência inevitável: de um corpus sempre cada vez maior só se pode apresentar uma parte relativamente pequena. Ademais, quase sempre é preciso fazer a primeira tradução na história desses textos em uma outra língua, além de os ordenar e comentar cientificamente. A escolha e o comentário dos textos vão, pois, bem além do âmbito de uma única ciência especializada.

A edição destina-se tanto ao especialista em história ou outras ciências sociais da cultura como aos demais interessados, abrindo-lhes o acesso à história e à cultura das regiões em questão. Até os dias de hoje, não há, em inglês, francês ou alemão, nenhuma coletânea de fontes históricas dessas culturas. Para o público de língua neo-latina, como o leitor do português, a barreira da língua continua, mesmo se forma relativa, na medida em que o alemão não é um idioma correntemente praticado. Mas a barreira diminui, certamente, pois é ainda mais difícil encontrar quem possa ler e comentar textos em mandarim, hindu ou japonês.

O conceito diretor da coletânea, “pensamento histórico”, tem por intenção dar conta do amplo espectro das mais diversas maneiras e práticas de refletir sobre a experiência do tempo, o relacionamento com o tempo e as atribuições de sentido ao passado. A antologia reúne, por conseguinte, além de excertos da historiografia dinástica chinesa e dos discursos mais recentes sobre a especificidade científica da concepção indiana de história desde a independência, inscrições chinesas em ossos de oráculo ou em tablitas indianas, lendas de templos budistas, epopéias persas ou ainda trechos de romances populares árabes. A grande quantidade de gêneros literários, assim como sua classificação e seu comentário permitem apreender a amplitude dos modos de lidar com o passado, fora das tradições que nos são familiares. Pode-se desvelar, assim, a evolução constante de determinados gêneros literários, por vezes ao longo de séculos, e sua diferenciação, influência recíproca e mescla.

Ter colocado lado a lado conteúdos e linhas de tradição diversas permite também elaborar uma primeira representação da complexidade das respectivas culturas e relações sociais, determinantes dos processos de intercâmbio intercultural contemporâneo, no plano regional como global.

O plano geral da obra inclui ainda duas outras coletâneas já em andamento: sobre a China e sobre os países centrais do islamismo. Nas três coletâneas fica claro que a periodização estabelecida pelos autores foge do eurocentrismo, que colocaria o domínio colonial e a independência com marcos delimitadores. As obras procuram inserir-se em referências cronológicas internas aos textos e às culturas em que foram concebidos — embora, obviamente, as datas obedeçam ao calendário gregoriano hoje universalmente praticado na vida civil. Uma vantagem está em que as obras estão disponíveis também em formato eletrônico (www.humanities-online.de). E de se recomendar a todo interessado em abrir seus horizontes e conscientizar-se da diversidade social e cultural do mundo — mais importante talvez do que sua pasteurização “globalizada” — que faça uso dessa(s) coletânea(s), enriquecendo sua própria cultura com o aprendizado dos idiomas que lhes dão acesso — que seja começando pelo alemão.

Notas

1 O edição original, em inglês, foi publicada em 1973 pelajohns Hopkins University Press (Baltimore e Londres). Como em diversos outros países, o livro de H. White só veio a ser traduzido no Brasil em 1992 (EDUSP), omitindo-se no título em português de que se trata da imaginação histórica na Europa do século 19. A polêmica suscitada pela obra talvez explique a opção os editores. Com efeito, Metabistory tornou-se um clássico do assim chamado pensamento pós-moderno acerca da historiografia, a ponto de duas das mais importantes revistas dedicarem números especiais ao tema: History and Tbeory (vol, 19,1980) e Storia delia Storiografta (vols. 24 e 25,1993 e 1994).

2 A Editora da Universidade de Brasília já publicou o primeiro volume da teoria da história de J. Rüsen: Razão Histórica, 2000). Os dois volumes que completam o tríptico deverão ser publicados em 2003.

Estevão C. de Rezende MARTINS – Universidade de Brasília.


WHITE, Hayden. Metahistory. The Histórica/ Imagination in Nineteenth-Century Europe. Johns Hopkins University, 1973; RÜSEN, Jörn; MANHART, Sebastian (Ed.). Geschichtsdenken der Kulturen — Eine kommentierte Dokumentation (O pensamento histórico nas culturas — uma documentação comentada). Frankfurt/Main: Humanities On Line, 2002. Resenha de: MARTINS, Estevão C. de Rezende. Pensamento histórico, cultura e identidade. Textos de História, Brasília, v.10, n.1/2, p.214-219, 2002. Acessar publicação original. [IF]

Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês – KOSELLECK (RBH)

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução de Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. Resenha de: MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. Revista Brasileira História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.

Obra de fundamental importância para o conhecimento da dinâmica interna do Iluminismo e da gênese do mundo burguês, Crítica e crise, publicada na Alemanha em 1953, é traduzida somente agora em língua portuguesa. Pretendendo desvendar a natureza do mundo contemporâneo, a obra pode ser lida também como importante contributo à Teoria da História.

Koselleck propõe-se a demonstrar como a Filosofia da História, produção intelectual elaborada no século XVIII, não apenas justificou a ascensão da burguesia, como também inaugurou uma nova percepção do mundo, do mundo em crise, algo que se estende desde a Revolução Francesa até a Guerra Fria. Esta percepção do mundo é elaborada através da Filosofia da História, que cria a prospectiva utópica.

Nesta tese, o autor procurará associar análises relevantes da produção intelectual do XVIII, sem fazer, contudo, uma História das Idéias (Geistgeschichte). O movimento das idéias lhe interessa apenas na medida em que desvele o incidente político. Interessam-lhe menos as genealogias ou as formas do pensamento organizado, e mais sua evidência política.

Seu tema versa sobre os filósofos das Luzes antes da revolução, seus atos e pensamentos, independentemente de serem eles pensadores eruditos ou meros autores de panfletos anônimos. Interessa-lhe destacar seus denominadores comuns: a abordagem heurística, que visa a elucidar a ligação entre a utópica filosofia da história e a revolução desencadeada em 1789, que reside na conexão pressuposta entre crítica e crise (p. 13).

Segundo ele, a conjuntura a partir da qual surgiram as Luzes não explica as mudanças ocorridas no século XVIII. O que mudou foram as circunstâncias: o Estado estava se enfraquecendo na França, e por isso, em que pese o monarca continuar a decidir soberanamente, ele pareceu submeter-se às Luzes. No entanto, o Estado Absolutista permanece intacto até a Revolução Francesa1.

A crítica dos iluministas provocou a crise na medida em que o senso político lhes escapava. O espírito burguês do século XVIII transformou a História em um processo. Ao soerguerem como que um tribunal da razão, as Luzes passam a chamar às falas a Teologia, a História, a Arte, o Direito, o Estado e a Política. E, interessante, os filósofos das Luzes aplicaram o método divino à história (condenação/salvação). Submete-se o plano da salvação divina às Luzes.

Neste processo de secularização, o plano da salvação se torna o plano do futuro, moralmente justo e conforme a razão. Mas a moral (ética cristã secularizada) é estrangeira à realidade dada, e vê na ordem política uma determinação heteronômica que embaraça sua autonomia. Por isso, a salvação secularizada (doravante concebida como progresso) só pode se concretizar no futuro, pois a crítica é impotente diante das instituições estabelecidas. Por isso a história se reveste de uma perspectiva utópica.

Dois fatos importantes marcaram o início e o fim do Absolutismo: as guerras religiosas e a Revolução Francesa.

Na França, onde o Estado consegue muito cedo subjugar as guerras religiosas por meio de uma ação racional (pela política, porquanto o Estado logra eliminar todas as demais instituições autônomas em seu favor), constrói-se, de forma mais evidente, a doutrina da razão de Estado.

A razão de Estado pressupõe que a política pode ser tratada fora das considerações morais. Esta se desenha pela percepção de que as guerras religiosas são fruto da intolerância e da liberdade do povo para escolher entre esta ou aquela verdade moral.

Para que a paz seja estabelecida faz-se necessário, pois, que o soberano suprima a liberdade do povo em nome da própria paz.

Barclay2, já em 1605, confrontou o monarca com a seguinte alternativa:

Ou restituis a liberdade ao povo, ou lhe assegureis a paz interior, pela qual o povo sacrificou sua liberdade (…) Se o monarca admitisse oposição, sem dívida se libertaria de responsabilidades, mas carregaria a culpa por todas as agitações que nascessem da intolerância (…) ou fazia que todos se curvassem ou ninguém se submeteria (p. 22).

Mas não há, nestes escritos, a idéia de perda total da liberdade. A liberdade deve ser vivenciada no mundo interior. Nesta esfera, é o indivíduo mesmo que se julga, no refúgio de seu eu. Já o seu eu exterior é julgado pelos que dominam. Quem quer externar o que sua consciência diz, morrerá. Logo, a consciência é algoz de si mesma, pois é ela quem provoca a guerra religiosa.

Esta distinção entre vida exterior e vida interior faz com que se rompa a relação responsabilidade/ culpabilidade, constitutiva da consciência. Os súditos não tinham mais responsabilidade, apenas culpabilidade. A responsabilidade passou a ser apanágio do soberano.

Entretanto, para que o soberano domine, necessário se faz agir com eficácia: não lograr manter a paz é o limite de seu próprio poder. Por isto, necessita acumular poder, elaborar regras e jogos que só ele conhece e que não podem ser conquistados pela moral.

As guerras religiosas influenciaram decisivamente a Teoria Política de Hobbes. Ele funda uma antropologia individualista, ao afirmar serem para o homem bem problemáticos os vínculos sociais, políticos e religiosos, pois ele tende, inexoravelmente, ao apetite e à fuga, ao desejo e ao medo. Trata-se, pois, de uma teoria da guerra civil, donde se justifica a importância do Estado: o Estado de guerra pertence à natureza humana; a paz só existe enquanto esperança e desejo… (p. 27). Já a razão não precisa da moral, pois substitui a moral na política, porque a moral é definida pela religião, e como há muitas religiões, os valores se conflitam. Afinal, quando os presbiterianos e independentes evocam a graça teológica, trata-se apenas da expressão de sua paixão (p. 29).

A pretensão das seitas, para Hobbes, de julgar entre o bem e o mal, não leva à paz, mas é fonte do próprio mal. Isto se deve não apenas à vontade de poder que atiça a guerra civil, mas também à referência a uma consciência que não tem apoio exterior. A consciência moral não é causa da paz, mas da guerra.

Ao separar consciência e ação, Hobbes introduz o Estado sob o aspecto de instância, que exclui a moral de suas repercussões políticas, pois o interesse público e o ato de legislar do soberano são a autoridade e não a verdade. E submete também o Direito ao Estado, porquanto o Direito, por sua vez, está ligado aos interesses sociais e esperanças religiosas. Por esta razão, também o Direito tem de se sujeitar à autoridade do rei.

O Estado torna-se então o Deus mortal. Mais do que isto: torna-se um automaton, a grande máquina (p. 33). Ele assegura, protege, prolonga a vida dos homens. Mas como mortal, ele pode se esfacelar e fazer a sociedade cair no estado da natureza — o que levaria a uma nova guerra civil. Portanto, o Estado tem de fazer de tudo para assegurar a obediência de todos.

É a partir desta clivagem que o homem se parte em dois, uma metade privada e a outra pública, e suas convicções passam a ser vivenciadas no secreto — in secret free.

A dicotomia entre homem simples e homem público é constitutiva da gênese do segredo. As Luzes dilatarão pouco a pouco o foro interior da convicção, mas toda a pretensão ao que revelava domínio do Estado ficava necessariamente envelopada com o véu do sagrado.

A neutralização da consciência pela política favorece a secularização da moral. Mas o arrefecer da religiosidade é fatal para o Estado, porque os temas tradicionais vão ser reeditados de forma secularizada. Quando se esquece as origens do Estado (guerra civil), a razão de Estado aparece como imoral por excelência. Com o fim das guerras de religião, o Estado será portanto encarado como uma pessoa moral que, independentemente da Constituição (católica ou protestante), Monarquia ou República, vê-se face a face com outros Estados. Neste território, a um só tempo existencial e político, os filósofos das Luzes debruçam-se sobre si mesmos. Seu ponto de partida é o foro interior, que vai se dilatando até que se crie como que um segundo espaço público. Gradativamente, esta dilatação atingirá o próprio Estado.

Para John Locke, que viveu num país em que o parlamento já exercia bastante influência sobre o Estado, há três sortes de leis:

A Lei divina, que regulamenta o que é pecado e o que é dever (The divine law the mesure of sin and duty); a Lei civil, que regulamenta o crime e a inocência (The civil law the mesure of crimes and innocence), ou seja, a lei do Estado, ligada à coerção cuja tarefa consiste em proteger o cidadão; em terceiro lugar, a lei especificamente moral, que arbitra sobre o vício ou a virtude, que é revelada pela opinião pública (p. 50).

Uma vez que não é autorizada pelo Estado, a opinião pública só existia secularmente nos clubes, cafés e salões, onde as pessoas transitavam e emitiam seus juízos — não legislavam diretamente, mas a força de seu julgamento autônomo residia na censura, donde a necessidade de publicizá-la.

É neste contexto que se compreende o movimento intelectual de Locke que, ao interpretar a lei filosófica como opinião pública, investe politicamente no foro interior da consciência humana — subordinada por Hobbes à política do Estado. Para Locke, as ações públicas não devem estar submetidas apenas ao Estado. Por isto, ele trespassa a restrição existente no Absolutismo, porquanto a moral não se limita ao eu interior, mas afronta o Estado.

Quem decide? Instância moral dos cidadãos ou a política do Estado? Ou os dois em conjunto? A lei moral não pode exercer poder, mas sim influência política indireta.

Neste círculo (da crítica) encontrar-se-ão os burgueses arrivistas, os protestantes perseguidos, os sábios, eclesiásticos progressistas, militares de alta patente, magistrados, atores que constroem um segundo domínio, compreendido por Koselleck como o reino da crítica.

A estratégia deste novo domínio público (que é ao mesmo tempo privado) é semelhante à dos maçons, que pretendiam traçar planos racionais para a felicidade da vida social. Afinal, os maçons mesclam poderes místicos da igreja e polícia secreta do Estado, ao que associam ainda um terceiro poder — a censura.

No reino da crítica, ainda não se pretende destruir o Estado; quer-se viver como iguais entre si, à parte do Estado, sem hierarquias. O segredo é a garantia de sua proteção: A liberdade secreta se torna o segredo da liberdade. A outra função do segredo é a de propiciar a coesão entre os irmãos. Nasce aí uma nova elite, denominada humanidade, que sente ser seu dever servir a este novo mundo.

A quem eles obedeciam? Ao desconhecido, pois o seu superior era invisível. Logo, quem detinha mais segredos sobre as organizações, detinha mais poder.

Os maçons, aos seus próprios olhos, queriam fazer o bem, mas encontravam obstáculos, quais fossem: a divisão do mundo entre homens e Estados divergentes, a hierarquia social e as religiões em conflito.

Por esses motivos, a crítica permanecia obediente ao Estado, devendo os progressistas limitarem-se ao espírito das ciências3.

No entanto, à medida que a crítica da razão torna todos iguais, inclusive o soberano, ela reduz todos os homens à condição de cidadãos. E se todo cidadão é igual, todo poder é abuso de poder, e o rei absolutista é um usurpador.

Por outro lado, tanto quanto o rei, os críticos transformam-se em tiranos de sua própria argumentação, ou seja, têm de ser igualmente criticados. Para Kant, no reino da crítica com seus segredos, a política pareceu retomar as funções do Estado com seus arcanos. Não é mais a crítica que se substrai do Estado; ela quer estender seu reino tão soberanamente, que são os Estados e as Igrejas que parecem fechar-se diante do julgamento da crítica, para se submeterem a ela. A crítica adquire tanta segurança que chega a tachar o Estado e a Igreja de hipócritas. Se o Estado não se submete à razão crítica, ele só tem direito a um respeito dissimulado. Em síntese, o politicum da crítica não se caracteriza pelo falado, mas por separar o Estado de seu reino.

O dualismo entre o reino da moral e o reino da política permitiu abrir um horizonte apolítico (ser a favor ou contra), primeiramente contra as religiões, e gradativamente contra o Estado. Graças a este pensamento dualista, a nova elite adquiriu uma consciência de si original, a saber, um grupo de pessoas que como representantes e como educadores de uma nova sociedade tomam posição dizendo não ao Estado Absolutista e à Igreja.

No momento em que as Luzes negam o Estado Absolutista, a história fica em aberto e, assim, se enuncia a crise4.

Na Alemanha, observa-se clara percepção da tensão entre moral e política, o que deveria provocar a cisão entre Estado e sociedade5. Todavia, nesta região, a burguesia é fraca e minoritária, logo, as sociedades secretas são ferrenhamente perseguidas e colocadas fora da lei. Diz-se delas que são um Estado dentro do Estado, que se trata de uma conspiração jesuítico-maçônica, acima dos Estados soberanos, para destruí-los, a eles e às igrejas. O que os incita a pensar nestes pequenos grupos como tão poderosos, com uma força catastrófica? A Filosofia da História, vista como grande ameaça, pois iria substituir a religião pela moral.

Os maçons, segundo Leibniz,

aparecem no lugar de Deus. Assim como Deus só age de maneira oculta, fornece ser, força, vida e razão sem deixar-se perceber, os irmãos das lojas também têm que encobrir seu segredo, pois na opacidade de seus planos reside a bondade, a sabedoria e o sucesso do grande projeto (p. 115).

Para Leibniz, os maçons queriam abolir o Estado, sem violência, simplesmente minando-o gradativamente.

Ainda, a Filosofia da História, para Leibniz, legitima a arte moral e produz o homem novo, deus na terra que quer dirigir a história (p. 116), mas não o fará pela violência, e sim pela vontade.

Göchhausen, um militar prussiano, maçon, mas lacaio do rei, assim denuncia os iluministas:

A razão, aparentemente, irá criar um território sem fronteiras e instaurar a era da frugalidade espiritual, física e política no país de fria abstração; mas, de fato, só haveria duas condições toleráveis: a classe que governa e a classe que é governada (p. 119).

Dadas estas perseguições, a revolução não se desenlaça na Alemanha, mas na França. Neste país, a crise se inicia com Turgot, Ministro de Estado oriundo das Luzes, censor moral que entra na cena pública. Para conter a revolução, defendia ser necessário criar-se um Estado cesarista, com um espaço para os liberais. Colocava-se contra os parlamentos e contra o rei.

Turgot, como Hobbes, defendia o Absolutismo esclarecido. Logo, o rei só tinha legitimidade quando suas leis se assentassem no direito moral, sem o que perderia sua autoridade. Ao operar uma divisão dualista entre a moral e a política, Turgot elide

a questão concreta de saber onde e como o direito moral e o poder coincidem, o que equivale a uma forma política de uma ordem moral de Estado… Se para os absolutistas a subordinação da moral à política era o princípio de ordem que colocou um fim à guerra civil e impediu que ela se reacendesse, para Turgot, esse princípio transformou-se no facho que a inocentava, pois, para Turgot, submeter a consciência à política não é evitar a guerra civil, mas fomentá-la. Opor-se à voz da consciência é ser sempre injusto, é justificar a revolta e dar lugar ao tumulto (p. 125).

Com este reconhecimento, Turgot prepara a cena para a revolta.

Rousseau, o primeiro dos democratas modernos, apresenta-se com a seguinte questão: A condição de liberdade é que cada um só obedeça a si mesmo. O monarca não representa a vontade da sociedade, esta é representada pela vontade geral. Mas esta vontade geral, que é agora soberana, é entretanto invisível. Se todos são soberanos, a sociedade é estatizada. Mas esta totalidade racional só o é em aparência, pois cada cidadão só adquire liberdade quando participa da vontade geral, mas como homem ele não sabe quando e como seu eu interior coincide com esta vontade geral, pois o homem individual se engana, enquanto a vontade geral nunca pode se enganar.

Para não permitir o engano, impõe-se a correção das vontades, que é concretizada com a ditadura. A ditadura se diferencia do Absolutismo porque nela se integra o eu interior, e não apenas o eu exterior (ou seja, há que se transformar as ações em convicções). Para tanto, como nem todos os cidadãos conhecem a vontade geral, precisam de guias que criem a identidade entre a moral e a política — com vistas a mostrar o bom caminho. O reino da opinião pública de Rousseau se torna ideológico. O censor público transforma-se em chefe ideológico. Entretanto, ele não pode demonstrar que está mandando, ele tem de dissumular, como nas sociedades secretas.

A ditadura ideológica da virtude desaparece atrás da máscara da vontade geral. Mas porque é instável, impõe-se, ao lado da ideologia, o terror. Daí resulta a desagregação da ordem. Logo, a autoridade não é só ela imoral, mas transforma toda a sociedade em imoral, porque mesmo o homem esclarecido tem de ser hipócrita.

A inocência moral leva à desobediência, que leva à revolta, que resulta na guerra civil. A crise significa então o tribunal da moral, onde vencerá o despotismo ou a justiça.

Este paradigma pode ser evidenciado em Raynal — que enxerga na independência dos Estados Unidos a oposição entre velho e novo mundo; o velho, déspota, o novo, da inocência moral6. Quem triunfa naquele país é a verdade moral dos oprimidos. Ou seja, é com a guerra e com seus meios violentos que se inicia o tempo em que a virtude e o vício se separam. Raynal conclama à revolução em nome da Filosofia da História; crise e Filosofia da História estarão doravante intimamente ligadas.

Com estas constatações, Koselleck conclui que a incerteza da crise se identifica com a certeza do planejamento da história utópica. Esta provoca aquela, e vice-versa; as duas juntas perpetuam o processo que os intelectuais burgueses abriram contra o Estado Absolutista. A burguesia usurpa o poder com a má consciência de um moralista que crê que o sentido da história é o de tornar dispensável o poder. A utopia como resposta ao Absolutismo abre assim o processo dos Tempos Modernos. Porque, de resto, com Tom Paine, a vitória da revolta norte-americana deu-se pela verdade moral, e na França revolucionária, pela política…

Notas

1 Com esta afirmativa, o autor se afasta das interpretações que entendem as idéias como responsáveis pela revolução. Se elas o foram, não foram seus atores que estiveram à frente do movimento (p. 19 e ss.).

2 Humanista e jurista, Barclay tinha em vista o Estado Absolutista; suas idéias foram acompanhadas de perto por Richelieu.

3 A institucionalização da crítica se dá, num primeiro momento, de forma dissimulada, pelo e no teatro ou pela e na literatura. O resgate do drama tem este sentido, de oposição de forças diametralmente opostas: razão/ revelação, liberdade/ despotismo, natureza/ civilização, comércio/ guerra, moral/ política, decadência/ progresso, luz/ trevas.

4 Koselleck toma de empréstimo o termo crise, tal qual ele é empregado por Rousseau, como uma doença do corpo.

5 À época do Sturm und Drang (Tempestade e ímpeto), primeira fase do Romantismo, também compreendido como Romantismo Ilustrado.

6 Segundo Koselleck, em Raynal, a inocência moral deixa de ser pensada como antecessora no tempo do Absolutismo, e é projetada no presente, geograficamente — o oprimido dos Estados Unidos contra a Europa despótica.

Marionilde Dias Brepohl de Magalhães – Universidade Federal do Paraná

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Geschichte sehen / Jörn Rüsen

Ver a história é o título de uma obra coletiva, organizada por Jõrn Rüsen, Wolfgang Ernst e Heinrich Theodor Grütter (Geschichte sehen. Beitràge zur Àsthetik historischer Museen. Pfaffenweiler: Centaurus, 1988, 171+XXV pp.), que debate as questões referentes à apresentação de conteúdos históricos em museus e sua função social-pedagógica. A representação mental da memória e da consciência históricas é analisada desde a perspectiva do ideário presente nas mentalidades e nas organizações sociais que se pensam e expõem, mediante critérios de escolha de temas, objetos, textos e espaços.

Encenar a história como um espetáculo, como um espelho, torna-se um problema teórico e metodológico que ultrapassa o âmbito do gosto, da afetividade, da emoção. A conjuntura da construção da identidade e da especificidade dos grupos sociais mediante a elaboração da consciência histórica toma, na decisão de fazer museus e de preservar indícios [como no conservacionismo arqueológico], uma dimensão que mescla critérios político-administrativos e posições teórico- metodológicas. O mesmo vale para as exposições temporárias, da qual é exemplo a organizada em Munique, de 22 de outubro de 1993 a 27 de março de 1994, sobre München – Hauptstadt der Bewegung (Munique —A capital do movimento), cujo catálogo (485 pp.) não é uma mera descrição de peças expostas e logradouros da cidade, mas um livro de reflexão sobre a realidade social e econômica da Alemanha e sobre a consciência alemã na primeira metade do século XX, que levou (ou tornou possível que se levasse) ao surgimento do nazismo e à consagração da capital da Baviera como a capital do “movimento”. Numa e noutra obra reflete-se de modo esclarecedor sobre as três dimensões da cultura histórica: a política, a científica e a estética, ou seja: o poder, a verdade e a beleza, indispensáveis à qualificação social de histórias que tencionam ter efeito sobre a realidade concreta dos homens.

Ver a história exprimiria, assim, a sintonia suposta (e esperada) entre o mostrado (ou escrito) e o observador (ou leitor), na medida em que as três dimensões encontrariam, na exposição e na compreensão, inteligência comum.

A preocupação com a enunciação e a exposição do pensamento histórico enquanto formador e formulador de identidade social é uma constante na segunda metade do século XX. Os historiadores de língua inglesa e alemã sempre manifestaram interesse especial pelas questões teóricas e metodológicas.

Desde os anos 1960 vem sendo intensa a dedicação a essas questões, em particular ao desenvolvimento da história social e das idéias. A renovação também da história política a que os Anna/es e seus descendentes decerto não são estranhos — reforçou essa tendência. A constituição da história como ciência social e a garantia de sua cientificidade foram objeto de textos que marcaram de forma indelével a prática da ciência histórica no espaço de língua alemã (e mesmo inglesa), como Geschichte ais Sozialwissenschaft, editada pelo historiador social alemão Hans-Ulrich Wehler, em 1973. O crescimento da reflexão teórica sobre os fundamentos da história acelerou-se nos anos 1970 com a formação de amplo grupo de trabalho reunindo filósofos, historiadores, sociólogos, literatos, antropólogos, politólogos e outros (não apenas alemães, mas também ingleses e americanos). Do trabalho desses especialistas resultou uma série de seis volumes de excepcional qualidade, sob o título geral de Theorie der Geschichte, publicado pela dtv wissenschaft, de Munique, entre 1974 e 1990, com os seguintes temas: “Objetividade e partidarismo na ciência histórica”, “Processos históricos”, “Teoria e narrativa na história”, “Formas da historiografia”, “Método histórico” e “Todo e parte”. A tônica desses trabalhos está na pluralidade de abordagens e na interdisciplinaridade, em torno do eixo sistematizador da história social. Jõrn Rüsen, um dos principais formuladores da teoria contemporânea da história, publicou — entre 1983 e 1989 — a mais completa síntese em teoria e metodologia da ciência histórica, sob o título geral de Elementos de uma teoria da história e em três partes: Fundamentos da ciência histórica, Reconstrução do passado: os princípios da pesquisa histórica e Fíistória viva: formas e funções do saber histórico (Gõttingen: Vandenhoek & Ruprecht).

Rüsen concentra-se no caráter racional e seletivo, valorativo e orientador que a elaboração do conhecimento histórico, sob o rigor do método e da pesquisa empírica controlada, possui.

O principal foro de repercussão e valorização das opções teóricas e metodológicas da ciência histórica vem sendo, desde 1962, a revista History and Theory (Wesleyan University, Middletown, Conn., EUA), que tem hoje, entre seus editores, I. Berlin, R. Koselleck, J. Rüsen, A. Danto, J. Passmore, P. Veyne, W. Dray, H. White e J. Topolski. A contribuição da revista para a libertação da ciência histórica de sua fase empirista, descritiva, foi decisiva. Inúmeros equívocos clássicos, como o da confusão entre estilo narrativo e desqualificação da história como ficção pararomanesca, puderam ser desmascarados e superados nas páginas de Hayden White, por exemplo.

Conexo com a questão teórica e com a perspectiva social- pedagógica da exposição do juízo histórico descritivo e explicativo, há um importante aspecto adicional que se destacou, nos últimos quinze anos. Também ele tem a ver com o produto historiográfico constituído e com seu efeito social na comunidade. Trata-se do caráter didático-pedagógico do saber histórico. Com o Manual da didática da história (Handbuch der Geschichtsdidaktik. Düsseldorf: Schwann, 1a edição: 1979; 3a edição: 1985), organizado por K. Bergmann, A. Kuhn, J. Rüsen e G. Schneider, busca-se ultrapassar a freqüente torre de marfim em que a história se encastela, para dar à historiografia uma dimensão a que não pode ficar alheia: a de co-autora da identidade e do processo de constituição dos grupos sociais. Assim, o Manual abre com a apresentação da história como meio ambiente mental dos homens em sociedade, passa por sua consolidação como ciência de rigor, debate longamente o papel e a função da história no ensino escolar e na preparação de seus docentes e conclui pela análise da presença da história no espaço público fora das trincheiras formais das escolas e das universidades. Esse tipo de reflexão potencializa o papel social do conhecimento histórico na perspectiva de sua relevância para a definição mesma do agente racional humano no contexto de seu mundo (de seu espaço de vida, de pensamento, de ação): pensar-se a si próprio e a seu mundo, historicamente, é constituir-se e a ele. A realidade (re)construída pelo saber histórico revela, assim, o caráter antropológico do mundo pensado, descrito e explicado. Sentir a história dessa forma, tomar-lhe o pulso, é — para um número crescente de historiadores — uma tarefa que vai além da pesquisa e da elaboração de uma monografia.

A queda do muro de Berlim e a súbita necessidade de (re)encontrar-se o sentido e a direção dos alemães em sua vertiginosa história contemporânea ofereceram ocasião para um sem-número de estudos e publicações. Muitos relevam análise política e das relações internacionais. Um, contudo, da registra o quanto essa circunstância da vida da Alemanha fez recrudescer o interesse pela história, já que o passado e o presente da sociedade alemã e de seu contexto social, político e econômico são tão carregados de episódios complexos e de repercussão mundial. Interesse an der Geschichte (Interesse pela história. Org. por Frank Niess. Frankfurt—Nova York: Campus, 1989, 144 pp.) acolhe posições de historiadores alemães de renome, que se dedicam a esmiuçar a complicada relação, para os alemães, entre consciência, explicação histórica e responsabilidade social coletiva. A “catástrofe alemã” do nazismo e da ruptura social subseqüente à “organização” da guerra fria, cuja fronteira cortava a Alemanha em duas, constituíra-se em um ponto nevrálgico da consciência histórica que, após inúmeras polêmicas, desembocou na maior delas, em 1986. Esta ficou conhecida como o Historikerstreit (a polêmica dos historiadores), cujo teor foi a superação de um tipo de ser alemão e de fazer-lhe a história que rompesse com o período 1933-1945. A “catástrofe alemã” (W.Schulze), o “aprendizado da história” (K.-E. Jeismann), a história como “objeto de exposição” (G. Korff), a mulher na história e a história das mulheres (G. Bock), o esclarecimento [no sentido do fluminismo] e a instituição do sentido (H.-U. Wehler), a continuidade e a ruptura da identidade (J. Rüsen) e outros temas candentes fizeram da história, para o dia-a-dia dos alemães, algo de interesse prático e imediato, conquanto ainda não ao ponto de tornar os livros de história tão lidos “popularmente” (não confundir com vulgarização ou pseudohistória) como na França. O componente histórico, como elo de coesão e estruturação da consciência de si, aparece, assim, como o interesse mesmo de sua constituição racional, individual e social: “Uma ciência histórica orientada por idéias da Aufklárung, formuladas em sintoma com a atualidade, pode contribuir para enunciar um saber orientador racional, fundado historicamente” (H.-U. Wehler).

Ficam referidas aqui, pois, algumas leituras que trazem contribuição renovadora e inovadora para o campo da ciência histórica e de seus desdobramentos, para bem além do espaço lingüístico alemão. Há certa dificuldade, para nosso público, em ponderá-las, justamente por se tratar de livros publicados em alemão, língua de uso pouco freqüente entre os historiadores no Brasil. Alguma coisa das contribuições desses autores tem versão inglesa (traduções integrais e, no mais das vezes, artigos publicados na History and Theory), o que pode ajudar no acesso aos textos.

Nota

1. A produção historiográfica contemporânea é tributária da revolução metodológica original e originária da escola dos Annales; como aqui não se dá notícia específica dela, remete- se, para um balanço sucinto e sob as categorias derivadas da investigação da superação do Antigo Regime, a Peter Burke: A Escola dos Annales 1929-1989. A Revolução Francesa da historiografia. São Paulo, Editora UNESP, 1991 (orig. francês: 1990).

Estevão C. de Rezende Martins – Universidade de Brasília.


RÜSEN, Jörn; WOLFGANG, Ernst; GRÜTTER, Heinrich Theodor (Org.). Geschichte sehen. Beitràge zur Àsthetik historischer Museen. Pfaffenweiler: Centaurus, 1988, 171p. Resenha de: MARTINS, Estevão C. de Rezende. Ver, sentir, fazer a história. Textos de História, Brasília, v.2, n.4, p.175-180, 1994. Acessar publicação original. [IF]