Estado, sociedade e educação profissional no Brasil: desafios e perspectivas para o século XXI | Eraldo L. Batista, Isaura M. Zanardinie e João C. da Silva

O livro tem por objetivo, segundo seus organizadores, apresentar “resultados de pesquisa focalizando questões teóricas e metodológicas e empíricas, trazendo ainda aspectos histórico-conceituais da Educação Básica, particularmente do ensino profissional” de nível médio (Batista, Zanardini e Silva, 2018, p. 13). Trata-se de coletânea de 13 capítulos, escritos por 19 pesquisadores.

Maria Ciavatta, no Prefácio, já nos indica que “o conjunto de textos, sobre vários aspectos do Estado, sociedade e educação no Brasil, é exemplar sobre a questão educacional da população nos cinco séculos de existência conhecida pelo mundo europeu, a terra brasilis, e na atualidade desta segunda década do século XXI” (p. 9). Leia Mais

Trabalho e educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação – LIMA (TES)

LIMA, Marcelo. Trabalho e educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação. Curitiba: CRV, 2016. 130p. Resenha de: VENTURA, Jaqueline. Mercado e formação: uma análise crítica da mercantilização da educação profissional no Brasil. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Riov.17, n.1, Rio de Janeiro, 2019.

Em Trabalho e Educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação, o professor Marcelo Lima, da Universidade Federal do Espírito Santo, faz um convite à reflexão crítica baseado em uma inquietante constatação: a mercantilização da educação e, em particular, da educação profissional.

O trocadilho do título, entre ‘mercado e formação’, traduz o atual movimento de ampliação do caráter privatizante da formação humana. O livro é composto por seis artigos que nos conduzem a refletir sobre como o viés economicista da educação e, em especial, da qualificação profissional, manifesta-se, atualmente, em dois planos simultâneos: a educação como serviço e a educação como mercadoria.

O primeiro capítulo, “Juventude, Trabalho e Educação”, abre o debate com uma reflexão sobre o papel da educação e do trabalho nos dias atuais, relacionando tal debate à situação da juventude no Brasil. O desemprego e a violência no contexto social contemporâneo são discutidos à luz de conceitos como desigualdade, urbanização, ética, educação, invisibilidade e alteridade.

Na sequência, em “A dialética trabalho e educação”, o autor busca no marxismo as referências teórico-metodológicas para discutir o processo de autoprodução humana que fundamenta epistemologicamente a pesquisa tratada no livro. Com o título “A qualificação e as mudanças no mundo do trabalho”, o terceiro capítulo discute como se dá a qualificação atualmente, considerando as mudanças no mundo do trabalho e suas consequências para a educação profissional.

No capítulo “O desenvolvimento histórico do tempo socialmente necessário para a formação profissional do técnico em eletrotécnica na rede federal”, a obra traz um importante e original debate sobre o conceito de ‘tempo socialmente necessário para formação profissional’, um conceito que relaciona os tempos produtivos e os tempos educativos. O autor demonstra que há uma tendência de diminuição desse tempo de formação.

Com base em um estudo empírico sobre o tempo de formação do técnico em eletrotécnica na rede federal do Espírito Santo, o autor conclui que houve uma espécie de ’reconfiguração‘ gradativa dos tempos relativos à formação em diferentes áreas, revelando diferentes concepções pedagógicas para os diversos momentos históricos.

Constata-se que, atualmente, as políticas produzidas na lógica do mercado, como, por exemplo, os cursos do Pronatec – com currículo estreito, imediatista e de baixa carga horária – tendem a esvaziar a base temporal desses currículos para fins de uma formação voltada mais para o trabalho simples do que para o trabalho complexo. Esse movimento restringe a educação às necessidades do campo econômico. Desse modo,

Segundo a perspectiva do discurso hegemônico, um dos meios para superar a suposta carência de formação da força de trabalho brasileira, considerada responsável pela não competitividade do Brasil a nível mundial, é a expansão acelerada da qualificação, bem como o acesso a diferentes níveis de certificação.

Essa diretriz tem criado um lucrativo mercado de transferência de recursos públicos para instituições privadas, ao expandir as vias formativas de caráter precário e aligeirado na rede privada e ampliar as possibilidades de certificação, realizadas, em sua maioria, com negação do direito ao conhecimento. (Ventura, Lessa e Souza, 2018, p. 158)

Na sequência, o capítulo quinto, “Expansão da rede federal: mercantilização e flexibilidade”, analisa as metamorfoses da rede federal de educação profissional, tomando como base empírica o desenvolvimento histórico dos modelos pedagógicos dessa modalidade de ensino ofertada pelo governo federal no estado do Espírito Santo.

Interessante notar que, ao longo da história, foram construídas marcas identitárias distintas para essa instituição educacional. Desde as escolas de aprendizes artífices até os institutos federais de hoje, cada período foi marcado por um tipo de homem que se deseja formar, ou seja, por um projeto educativo que caracterizou o projeto formativo da instituição.

No atual momento histórico, os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, em um movimento de ampliação e expansão de seu foco, abrangem de cursos de formação inicial e continuada (FIC) até a Pós-Graduação Stricto Sensu. Assim, a flexibilidade e a diversificação de oferta de cursos marcam a sua identidade hoje.

Esse movimento “pseudocria” o direito à educação (expande a rede federal, mas subsidia o setor privado), escondendo seu principal objetivo que é: resolver problema de formação para o mercado pela via da criação do mercado da formação. A criação desse híbrido, anfíbio e IFLEX permite a construção de uma identidade movente e fluída, elástica e adaptável às demandas do mercado. Combinar políticas neodesenvolvimentistas com políticas neoliberais coloca o governo e sua política numa encruzilhada que expressa uma ambiguidade ideológica, mas no fundo se alicerça na complementaridade de ações concretas que se estruturam na flexibilização e na heterogeneização dos tipos de oferta (e de ofertantes) da educação profissional, com o fito de resolver o (pseudo) problema de formar para o mercado pela via do fomento do mercado da formação . ( Lima, 2016 , p. 105, grifo nosso)

Encerra o livro o capítulo “Centros Públicos de Qualificação Profissional”, com a defesa de se reafirmar o caráter público da formação dos trabalhadores. Esse capítulo retoma a proposta de centros públicos de educação, defendida pelo grupo de trabalho nº 09 – Trabalho e Educação, da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação – Anped, em meados da década de 1990 e reafirma a atualidade desta proposta contra-hegemônica.

O capítulo chama a atenção para o fato de que a educação profissional básica, relacionada ao ensino fundamental, voltada para a formação em ocupações subtécnicas, seja oriunda do sistema S ou das políticas do Ministério do Trabalho e Emprego, como o o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos, cursos de formação inicial e continuada (Proeja-FIC) ou o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), apresenta, de modo geral, currículos restritos, com conteúdo de menor complexidade e com uma leitura superficial da ciência e o domínio prático das atividades de produção.

Em suma, um currículo que reproduz as posições subalternas dos trabalhadores manuais. Além disso, o “processo de minimização da intervenção do estado nas áreas sociais também tende a diminuir a qualidade e quantidade da oferta escolar tipicamente estatal” ( Lima, 2016 , p. 124).

Em perspectiva contrária à oferta privada de educação profissional, o autor apresenta a proposta do centro público de educação profissional. Essa proposta alternativa, o projeto do Centro de Referência do Trabalho, a ’Fábrica do Trabalho‘, executado pela Secretaria de Trabalho e Geração de Renda da prefeitura de Vitória, em 2006, decorreu da crítica à lógica mercantil e significou uma alternativa pública, proposta pelo campo crítico.

A materialização do projeto ’Fábrica do Trabalho‘ não ocorreu. Embora a obra das instalações físicas tenha sido construída, disputas políticas internas fizeram com que o projeto político-pedagógico original não chegasse a ser efetivado.

Na conclusão, o autor chama atenção para o seguinte: a concepção privatista da formação profissional associada “à mediocridade política vigente, que se alicerça no personalismo e no marketing eleitoral, num momento de perda de hegemonia do governo do qual emergiu esse projeto” ( Lima, 2016 , p. 125, grifo do autor) inviabilizou a construção desse centro público de educação profissional.

A obra em exame, Trabalho e Educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação , é fruto de um estudo apurado e crítico. É um livro produzido por quem está preocupado em elucidar e transformar a realidade social e, por isso, é uma valiosa contribuição ao nosso pensar e fazer transformador também.

Ela nos oferece uma boa reflexão sobre as relações entre mercado e formação. E, principalmente, nos três últimos capítulos, oferece-nos uma análise crítica sobre a mercantilização da educação profissional no Brasil.

Referências

LIMA , Marcelo . Trabalho e educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação . Curitiba : CRV , 2016 , 130 p. [ Links ]

VENTURA , Jaqueline P. ; LESSA , Ludmila L. ; SOUZA , Samantha C. V. Pronatec: ampliação das ações fragmentárias e intensificação da privatização da formação do trabalhador . Revista Trabalho Necessário , ano 16 , n. 30 , 2018 . [ Links ]

Jaqueline VenturaUniversidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação , Niterói , RJ , Brasil. E-mail: [email protected]

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Ensino médio integrado: travessias – SILVA (RHH)

Monica Ribeiro da Silva é doutora em Educação pela PUC-SP e professora na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tem vasta produção sobre a Educação Profissional e 14 livros publicados como autora ou organizadora, em sua maioria, com temas sobre o ensino médio integrado, a Educação Profissional integrada à Educação de Jovens e Adultos (Proeja) e Currículo.

O livro resenhado inicia com uma excelente apresentação que informa o leitor sobre as temáticas abordadas nos seus oito capítulos. Toda a discussão gira em torno do Decreto nº 5.154/04,1 e o objetivo geral do livro é compreender o processo de institucionalização e implementação do ensino médio integrado. Leia Mais

Realidades da Educação Profissional no Brasil – BATISTA; MÜLLER (TES)

BATISTA, Eraldo Leme ; MÜLLER, Meire Terezinha (Org.). Realidades da Educação Profissional no Brasil. Campinas: Alínea, 2015. 290 p.p. Resenha de: LIMA, Julio Cesar França. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.2, maio/ago. 2015.

O livro Realidades da Educação Profissional no Brasil está estruturado em duas partes: “Aspectos da Educação Profissional” e “Movimentos Pontuais na Educação Profissional”, respectivamente, e organizado em torno de 13 capítulos que abordam diferentes aspectos teórico-práticos e períodos históricos da formação para o trabalho e da educação profissional no país. Seus organizadores são vinculados ao grupo de estudos e pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Abrindo a primeira parte da coletânea, Romeu Adriano da Silva discute a tendência de determinados estudos da área trabalho-educação, que, a partir de uma certa leitura da ´ontologia do ser social´ de Lukács, tomam a categoria trabalho como central para as pesquisas educacionais, porém com um viés predominantemente essencialista do trabalho. Dialogando com esses estudos, para os quais a práxis educativa não é trabalho, confronta seus argumentos com o de outros autores também tributários do pensamento de Lukács e com o próprio Lukács, para afirmar que o raciocínio daqueles autores opera sob a lógica da exclusão e não da contradição, a partir de uma leitura imanente e ahistórica da categoria trabalho. Para Romeu esse tipo de ´ontologia’, entre outras consequências, “parece afastar a possibilidade de uma concepção pedagógica cujo pressuposto seja a tese da combinação da instrução com o trabalho, uma tese marxiana” (p. 28), o que leva não só ao imobilismo, mas na impossibilidade de se avançar em direção a uma educação de caráter emancipatório.

Em “Educação para a práxis”, de Hélica Silva Carmo Gomes e Eraldo Leme Batista, o foco são as contribuições de Gramsci para uma pedagogia da educação profissional. Partindo da crítica à pedagogia das competências que se ancora na filosofia do pragmatismo, os autores se propõem a repensar e buscar alternativas para a construção de uma nova pedagogia fundada na filosofia da práxis e que tem na escola unitária proposta por Gramsci o seu lócus de realização. Uma perspectiva antagônica ao pragmatismo, que se baseia no princípio da unidade teoria e prática, na articulação do saber para o mundo do trabalho com o saber para o mundo das relações sociais, que se preocupa com a autonomia, com o pensamento novo e independente do trabalhador, com a construção de uma nova forma de sociedade e que compreende três aspectos principais: a práxis técnico-produtiva, a práxis científico-experimental e a práxis histórico-política. Os autores reconhecem que a implementação dessa proposta no contexto atual está muito distante do real, o que não impede a necessidade de discutir a construção de caminhos possíveis para uma pedagogia da práxis que vai contra a adaptação ao existente e a coisificação do trabalho, a favor da formação de sujeitos sociais ativos e educados para a crítica da sociedade atual e da lógica compulsiva do mercado.

Justino de Souza Junior propõe atualizar o debate teórico da relação trabalho-educação com a discussão sobre “O princípio educativo da práxis”. Partindo do pressuposto de que a valorização da categoria trabalho acabou por subtrair o estatuto teórico da categoria práxis, Souza Junior resgata a sua importância para a reflexão dessa relação. Dialogando com Kosik, Konder, Paulo Netto e Vásquez, o autor aponta para a obscuridade conceitual das definições da práxis e do trabalho, na qual a primeira é reduzida a trabalho e a segunda definida como práxis. Ao contrário, vai apontar que a práxis determina muito mais globalmente que o trabalho o ser social, pois, além do momento laborativo, a práxis envolve também o momento existencial. Baseado em Lukács, diz que “o trabalho é a práxis primeira, mas esta abre um processo que se complexifica cada vez mais e desenvolve o ser social criando outras formas de práxis que não são trabalho e se distinguem dele, mas atuam na formação e desenvolvimento do ser social (…)” (p. 77, grifo nosso). Enfim, para o autor, no debate marxista em torno da relação trabalho-educação, “a prioridade ontológica do trabalho não anula a importância da práxis social em geral para a formação do ser social, logo, ela não pode conduzir à ideia de exclusividade da importância do trabalho como princípio educativo” (p. 80). Entretanto, ao apontar que as outras modalidades de práxis, entre elas a educativa,não são trabalho fica a questão se estamos diante (ou não) de uma posição que contraditoriamente pode afastar a possibilidade de uma concepção pedagógica cujo pressuposto seja a tese da combinação da instrução com o trabalho, tal qual discutida no primeiro texto dessa coletânea.

No texto “Problematização, trabalho cooperativo e auto-organização: possibilidades de procedimentos de ensino integrado”, o debate é sobre a didática da educação profissional sob a perspectiva integradora, ou da unidade indissolúvel teoria-prática sob a perspectiva dialética. Refutando tanto o tecnicismo como o politicismo, Ronaldo Marcos de Lima Araújo e Maria Auxiliadora Maués de Lima Araújo compreendem que as técnicas de ensino são mediações das relações professor-aluno, são condições necessárias, mas não suficientes do processo de ensino, pois devem estar subordinadas, política e metodologicamente, às finalidades e práticas sociais que a conformam. No caso, articuladas com um projeto educacional integrador e emancipador. Daí que tomam como referências para o trabalho didático a problematização, o trabalho coletivo e a auto-organização. Descartando a perspectiva de neutralidade da técnica, sustentam a possibilidade de sua ressignificação e seu potencial de desenvolvimento de emancipação social e da autonomia e capacidade criativa dos discentes. Desse ponto de vista, abordam o potencial de diversas estratégias de ensino-aprendizagem, tais como, a aula expositiva dialogada, os laboratórios e oficinas, o estudo do meio: trabalho de campo, o estudo dirigido e o jogo, e as estratégias e critérios para a avaliação do processo de aprendizagem.

A preocupação de Paulo César de Souza Ignácio em “A acumulação flexível no Brasil e suas demandas de qualificação da força de trabalho” é demonstrar que o grau de desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas no Brasil na atualidade, apesar de ajustar os sistemas de formação do trabalhador no sentido da polivalência e flexibilidade, permite dialeticamente que a politecnia seja uma alternativa concreta a essa concepção de educação. Após discutir a crise estrutural do capital nos anos 1970, a emergência do novo padrão de acumulação flexível e a consequente linearização da produção, que está na base da flexibilização do trabalho operário, sua desespecialização e polivalência, o autor analisa o comportamento do mercado de trabalho no Brasil, a partir dos anos 1990, e as demandas do capital industrial pela universalização da educação básica aliada à formação profissional de base polivalente. Com base nessa análise, sustenta que a mesma materialidade histórica que impõe o perfil de formação de caráter polivalente também é a que permite que a concepção politécnica de ensino seja trazida novamente ao debate no âmbito das políticas educacionais.

Roberto Leme Batista discute “Trabalho, educação e a ideologia da cidadania” com base na análise de documentos que serviram de referência para a reforma do ensino médio e da educação profissional no Brasil a partir dos anos 1990. Da análise o autor destaca o uso de conceitos que supostamente seriam um passaporte para a construção, desenvolvimento e consolidação da cidadania, e outros que são omitidos ou desaparecem no discurso dos teóricos do capital. Para ele, os documentos da reforma do ensino médio e da educação profissional no país são impregnados de determinismo tecnológico e ancorados fundamentalmente nas necessidades do capital.

Encerrando a primeira parte da coletânea, Zuleide S. Silveira aborda a temática da educação tecnológica, indicando que desde o pós-Segunda Guerra Mundial esse ensino vem sendo progressivamente subordinado à dinâmica da política de ciência, tecnologia e inovação articulada com o movimento de internacionalização da economia brasileira, bem como voltando a escola para as necessidades estritas do mercado. Isso ocorre por meio das reformas educacionais, do processo de ‘cefetização’ e atualmente se expressa na instituição da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, inspirada no modelo anglo-saxão de universidade moderna. Após identificar as duas concepções de sociedade e escola em disputa no país – o projeto liberal-corporativo e o projeto que visa a emancipação política do trabalhador, e o tipo de capitalismo dependente que articula o moderno e o arcaico, a autora aponta para a contradição do capital que, de um lado, exige maior qualificação para o trabalho, ou formação para o trabalho complexo, e de outro lado, a sua desqualificação, ou a formação para o trabalho simples.

O texto “A educação profissional no Brasil: análise sobre o centro ferroviário de ensino e seleção profissional – década de 1930”, de Eraldo Leme Batista, abre a segunda parte da coletânea com a experiência de formação profissional para esse setor, a partir da trajetória de Roberto Mange e dos estudos realizados na revista do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), do qual era representante, ao mesmo tempo que era diretor do Centro Ferroviário. Identificado como o principal intelectual orgânico da burguesia industrial brasileira nesse período e com grande prestígio junto aos educadores escolanovistas, Mange era um entusiasta das propostas de formar o ´trabalhador ideal´, ´comportado´, ´civilizado´, e ´colaborador´, fundamentada nos princípios da Organização Racional do Trabalho, de base taylorista/fordista, e no desenvolvimento do método psicotécnico e na racionalização dos métodos de ensino industrial. O seu projeto pedagógico era formar uma nova classe trabalhadora nacional, dócil, amável, educada, disciplinada e que vestisse a camisa da empresa, mas também difundir o discurso de uma nova sociedade capaz de enfrentar o atraso e o subdesenvolvimento.

O texto seguinte, de Meire Terezinha Müller, complementa a discussão acima na medida em que se debruça sobre a educação profissional realizada pelo Senai, criado em 1942, e, particularmente, sobre as Séries Metódicas Ocupacionais (SMO), introduzidas no Brasil sob a liderança de Roberto Mange. Como ´método´, as SMOs “são definidas como o modelo que propõe o aprendizado a partir da decomposição das funções em várias fases, com grau crescente de dificuldade às quais os aprendizes iam tendo acesso ao vencer a série anterior” (p. 181). Eram utilizadas tanto nas disciplinas instrumentais como nas disciplinas de formação geral. Para a autora, esse ´método´ se aproxima dos postulados de Comte, Dewey e Comenius, mas se distancia do modelo de educação praticado pelas Corporações de Ofícios e das propostas de Pistrak e Makarenko. Desde sua implantação no Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional, do qual Mange foi diretor na década de 1930, até a atualidade, as SMOs vêm sendo modernizadas em decorrência das mudanças operadas nos processos produtivos, mas não deixaram de ser uma educação subordinada às necessidades do capital, de base pragmática e necessária à neutralização da resistência operária e à despersonalização dos indivíduos, já que funcionam como uma barreira aos ´inaptos´ e minimiza qualquer postura crítica à rotina produtiva das empresas.

“Tempos ´Modernos’ no Brasil? O parque fabril brasileiro e as iniciativas senasianas”, de Desiré Luciane Dominschek, analisa alguns aspectos da constituição das escolas do Senai, fundado em 1942, tendo como pano de fundo o processo de industrialização na era Vargas e sua palavra de ordem ´a disciplinarização do trabalho’, bem como a reforma educacional de Gustavo Capanema. Aqui reaparece novamente a figura emblemática de Roberto Mange, primeiro diretor regional do Senai em São Paulo, e sua pedagogia industrial, baseada no método psicotécnico, na formação sequencial e nas séries metódicas. Essa proposta burguesa de aprendizagem profissional de forte apelo ideológico e que implica a taylorização e alto grau de padronização dos métodos de ensino está na base da constituição das escolas senasianas.

Talita Bordignon, em “O ´intento diferenciador´ das ações governamentais por meio do ensino técnico a partir de 1946”, discute o papel da Comissão Brasileiro-Americana para o Ensino Industrial (CBAI) e a influência do sistema educacional voltado à formação para o trabalho nas diversas esferas da vida do cidadão comum, a partir da segunda metade dos anos 1940, no contexto da ideologia nacional-desenvolvimentista. A partir da análise do Boletim do CBAI, órgão que funcionou entre 1946-1961, a autora indica que a preocupação central não se restringia à formação profissional, mas à formação moral, ideológica e cultural dos indivíduos inspirada no modelo norte-americano de viver. Além disso, aponta para o papel reservado aos médicos e psicólogos do trabalho em ´ajustar´ os indivíduos à sociedade e ao trabalho industrial, mesmo aqueles que tivessem ´capacidades reduzidas´ em relação à maioria considerada ´normal´.

O texto “O empresariado industrial nacional e seus projetos educacionais: a dialética da formação humana entre as décadas de 1970 e 1980”, de Jane Maria dos Santos Reis, problematiza a categoria formação humana na perspectiva dialética, a partir das demandas de trabalhadores pelo empresariado industrial no período considerado, visando identificar as representações dos empresários acerca da educação dos trabalhadores. Partindo da hipótese de que “os projetos educacionais do empresariado mineiro (…) são funcionais ao processo de acumulação do capital via desenvolvimento econômico de caráter dependente e combinado (…)” (p. 241), a autora conclui que os projetos educacionais visam subordinar o sistema educacional aos interesses do empresariado. Entretanto, considerando o debate proposto pela autora, a discussão ficaria mais rica com o aprofundamento sobre a improdutividade da escola produtiva, ou sobre os vínculos e desvínculos da relação trabalho-educação, e sobre a existência (ou não) de uma burguesia nacional.

Fechando a segunda e última parte da coletânea, Joice Estacheski e Rita de Cássia da Silva Oliveira discutem “A educação profissional de base politécnica: desafio para o estado do Paraná”, a partir de um olhar crítico sobre essa modalidade de ensino proposta pela Secretaria de Educação do Estado do Paraná. Para isso, as autoras abordam as Diretrizes Curriculares da Educação Profissional do Estado do Paraná, construída em 2006, pautada no ‘trabalho como princípio educativo’ e nos pressupostos gramscianos da ‘escola unitária’ e apresentam uma pesquisa realizada com docentes dessa modalidade de ensino. Em relação ao primeiro aspecto, dizem que apesar das diretrizes apontarem para uma formação omnilateral, “as forças conjunturais do atual sistema de produção não permitiram sua concretude” (p. 263). O consenso predominante na estrutura da educação é o de se adequar às necessidades do mercado. Nesse sentido, a maioria dos cursos são na modalidade subsequente e não na modalidade integrada, se distanciando assim da perspectiva de romper com a lógica que articula a educação profissional diretamente ao mercado de trabalho. Em relação aos docentes pesquisados, na sua maioria dos cursos subsequentes, apontam que: não foram preparados para superar a visão mercadológica da formação humana; não há clareza sobre a visão ontológica do ser social e, consequentemente, da ‘educação politécnica’ e do ‘trabalho como princípio educativo’; se dividem quanto à existência ou não da dualidade educacional; e que as condições estruturais para a operacionalização dos cursos estão aquém daqueles necessários ao bom funcionamento de cursos que tenham por base a politecnia.

Julio Cesar França Lima – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Políticas e cuidado em saúde mental: contribuições para a prática profissional – JORGE; CARVALHO (TES)

JORGE, Marco Aurélio Soares; CARVALHO, Maria Cecilia de Araujo; SILVA, Paulo Roberto Fagundes da (Org.). Políticas e cuidado em saúde mental: contribuições para a prática profissional. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014. 296 p.p. Resenha de: CAVALCANTI, Maria Tavares. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.2, maio/ago. 2015.

Na contracapa do livro Políticas e cuidado em saúde mental: contribuições para a prática profissional, organizado por Marco Aurélio Soares Jorge, Maria Cecília de Araújo Carvalho e Paulo Roberto Fagundes da Silva, Nilson do Rosário Costa aponta para a importância da educação profissional na capacitação dos jovens e na renovação das atribuições funcionais de adultos e afirma que a articulação entre a educação profissional e a reforma psiquiátrica é uma decisão estratégica necessária e urgente. Este é um dos motivos que torna o livro aqui comentado tão importante. Ele vem preencher uma lacuna de textos reflexivos e práticos para todos os profissionais que atuam nos diferentes cenários da reforma psiquiátrica brasileira, incluindo os profissionais de nível médio.

De nada adiantaria a implantação de um parque fantástico de serviços de saúde mental por todo o Brasil, se o que se passa no dia a dia desses serviços reproduz uma lógica onde o usuário dos serviços de saúde mental é visto apenas como o portador de uma doença mental que tem que ser silenciada, normatizada, curada. É evidente que a minoração do sofrimento e uma vida mais plena para os sujeitos que sofrem de algum transtorno mental está na pauta de qualquer profissional que atue neste campo, mas sem a adoção de alguns requisitos básicos, que invertem de certa forma a lógica da prática em saúde mental, a reforma ficaria como letra morta.

Que requisitos seriam esses?

Refletindo sobre o que uma prática renovada e ampliada tem nos ensinado, nós diríamos que são elementos fundamentais:

  • O fato de que os usuários nos mostram o caminho, sempre;
  • Ouvir nunca é demais;
  • Ter calma. Evitar soluções apressadas;
  • Nunca desistir. Apostar e acreditar sempre;
  • Colocar em duvida, suspender nossas certezas;
  • Estar presente;
  • Sempre recomeçar.

Este livro nos fala desses requisitos e nos fornece uma base para que eles se tornem possíveis. Sua origem e elaboração deve-se em parte ao Curso de Especialização Técnica de Nível Médio em Saúde Mental oferecido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz. Este curso tem como compromisso a qualificação dos trabalhadores para atuarem no Sistema Único de Saúde (SUS) em uma perspectiva que conjuga a incorporação dos novos conhecimentos científicos a uma formação integral voltada para a diversidade conceitual e temática do campo da atenção psicossocial.

O livro é dividido em 12 capítulos que vão de uma abordagem mais geral sobre o SUS e as políticas de saúde mental no Brasil até orientações para o dia a dia da prática dos trabalhadores em saúde mental nas diversas situações encontradas, seja na atenção básica, nas crises, com crianças e adolescentes, com usuários de álcool e outras drogas, com idosos e em estratégias mais diretamente ligadas à reabilitação, tais como trabalho, lazer, moradia, empoderamento dos usuários e familiares. Há ainda um capítulo sobre a psicopatologia e os transtornos mentais e um outro sobre psicoterapia e a psicofarmacoterapia. Sempre na ótica do que é mais útil para o trabalhador da ponta, aquele que está diretamente em contato com os usuários dos serviços de saúde mental dando vida com sua prática a estes serviços e a própria reforma psiquiátrica.

Na introdução, Pilar Belmonte faz um breve histórico do movimento da reforma psiquiátrica brasileira, apontando que o processo de redemocratização da sociedade brasileira no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 forneceu um terreno fértil para o projeto de reforma sanitária e de reforma psiquiátrica, e que esta última passou por alguns períodos, desde a humanização dos hospitais e o desenvolvimento de uma rede ambulatorial até a proposta do fim dos manicômios e a construção de uma rede comunitária de assistência à saúde mental, na qual os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) têm um lugar estratégico. O marco legal foi também fundamental, com a aprovação da lei n. 10.216/2001, bem como as estratégias de inversão do financiamento dos hospitais psiquiátricos para a atenção comunitária.

A importância do profissional de nível médio neste processo está no fato de que este profissional pode vir a ser um elemento fundamental para uma inserção maior dos serviços diretamente no território onde vive o usuário, sua família, onde está seu local de estudo, trabalho ou lazer, suas relações etc. Para isso o profissional precisa ser empoderado em sua função, articulando o saber (estudo) e o fazer (prática). É importante, por exemplo, que o profissional de nível médio conheça muito bem o SUS e as políticas de saúde no Brasil, tema abordado no primeiro capitulo (Machado, Fonseca e Borges). Neste capítulo, além do panorama histórico da evolução das políticas públicas de saúde no Brasil, há uma ênfase na importância da atenção primária e na estratégia de saúde da família como fundamentais para a organização do SUS. Este capítulo é complementado pelo seguinte que discute a Organização da Política de Saúde Mental (Schechtman e Alves), reforçando o direcionamento para uma assistência cada vez mas comunitária e menos hospitalar, e pelo terceiro capítulo, que aborda a Saúde Mental na Atenção Básica (Carvalho). A atenção básica é por vocação comunitária e cada vez mais fortalece-se como a porta de entrada no sistema de saúde. Como então integrar a saúde mental na atenção básica? A proposta do Ministério da Saúde é a criação de Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) com a presença de profissionais de saúde mental que ‘matriciam’ os profissionais da Estratégia Saúde da Família em relação aos casos de saúde mental, inclusive com atendimentos e visitas domiciliares conjuntas.

Em seguida, o livro debruça-se sobre as Estratégias de Intervenção em Saúde Mental (Leal e Muñoz) discutindo a construção do projeto terapêutico do usuário, a importância do estabelecimento de uma relação de confiança, a identificação da rede e do território de cada pessoa, o acolhimento, a experiência do adoecimento, o cuidado com as famílias. Este capítulo é fundamental para ajudar o profissional de nível médio ou outro a elaborar a sua prática, o que realmente é importante ao atuar com um usuário de saúde mental.

Seguem-se os dois capítulos mais tradicionais, mas igualmente importantes, sobre a psicopatologia e os transtornos mentais e as terapêuticas em saúde mental (psicoterapias e psicofarmacoterapias) (Jorge). Estes são conhecimentos fundamentais para qualquer pessoa que se aventure no campo da saúde mental, mas devem ser lidos e estudados dentro da ótica de todo o livro, muito bem explicitada no capítulo que aborda as Estratégias em Saúde Mental e também no capítulo “Crise, Rede e Hospitalidade: uma abordagem para a reforma psiquiátrica” (Campos).

No capítulo sobre reabilitação psicossocial (Fagundes da Silva), ficamos conhecendo um pouco mais sobre os Dispositivos Residenciais no Brasil e as políticas de geração de renda para usuários de Serviços de Saúde Mental, bem como a importância do lazer e os centros de convivência, que se situam na interface entre saúde, assistência, cultura, educação etc.

Os capítulos específicos sobre álcool e drogas (Alarcon), saúde mental na infância e adolescência (Lima) e envelhecimento (Groisman) são excelentes introduções aos temas. E por fim há uma discussão sobre empoderamento e sua importância para o movimento da reforma psiquiátrica (Soalheiro).

Portanto, o livro Políticas e cuidado em saúde mental cumpre com excelência o que seu subtítulo antecipa – ‘contribuições para a prática profissional’. Trata-se de um livro que seguramente auxiliará enormemente a todos os profissionais do campo da saúde mental, sem exceção, pois embora dirija-se prioritariamente ao profissional de nível médio, traz uma discussão atualizada e profunda, que contempla com folgas o que qualquer profissional do campo gostaria e precisaria saber.

Maria Tavares Cavalcanti – Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]>

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