Passés singuliers. Le “je” dans l’écriture de l’histoire | Enzo Traverso

Enzo Traverso Imagem Quatro Cinco Um
Enzo Traverso | Imagem: Quatro Cinco Um

Enzo Traverso es un intelectual que no requiere de mayores presentaciones. Sus investigaciones cruzan temáticas como la memoria, el antisemitismo, los totalitarismos, el pensamiento marxista y el sentido de la historia en la sociedad contemporánea. En Passés singuliers, aborda la problemática concreta relacionada con el énfasis individual asumido en su narrativa sobre el pasado, hasta ahora, tradicionalmente elaborada en tercera persona.

Al respecto, el autor plantea en este libro un conjunto de ejemplos que muestran el giro presente en los escritos de un conjunto de autores en donde, la voz propia aparece para otorgar elocuencia a su experiencia del pasado, reconstruido a partir de su testimonio de los hechos, introduciéndonos en un debate de carácter epistemológico acerca del rol de las subjetividades en el relato histórico. Leia Mais

Time and the Rhythms of Emancipatory Education. Rethinking the Temporal Complexity of Self and Society | Michel Alhadeff-Jones

Michel Alhadeff Jones Imagem Rythmic Intelligence
Michel Alhadeff-Jones | Imagem: Rythmic Intelligence

Michel Alhadeff-Jones is a young researcher who lives between Geneva (Switzerland) and New York (USA). Despite his youth, this book is an essay of impressive maturity. This work, published in the prestigious Routledge publishing house, constitutes an important contribution in the field of education and beyond; it will from now on be an unavoidable reference among researchers, educators and managers who deal with time field and educational rhythms, due to the depth, originality and rigor of its analyses and proposals.

Alhadeff-Jones has an interdisciplinary and extensive background that has facilitated the promising task that has led to this work. In fact, he has been trained in Geneva, Paris and New York. From this perspective, it is important to highlight their knowledge and mastery of time issues in French and English. Here we find an additional value of this work: to put into dialogue the traditions of research developed in French and English, creating fertile intersections and crossroads between both contexts, and thus overcoming this tendency of reciprocal ignorance between the English and French languages, which still survives today. Leia Mais

A aventura – AGAMBEN (SO)

AGAMBEN, Giorgio. A aventura. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Sofia, Vitória, v.8, n.2, p.232-236, jul./dez., 2019.

A tradução das obras de Giorgio Agamben (1942) para o idioma português é significativa para o avanço dos estudos acerca do pensamento desse filósofo contemporâneo que se põe a discutir temas de filosofia, religião, política, direito, economia, cultura. A diversidade temática, característica que perpassa as obras de Agamben, implica possíveis diferentes matizes através das quais se pode aproximar e abordar suas obras: elas não são um domínio exclusivo da filosofia, sendo discutidas também pelas ciências sociais e pelos braços que delas derivam, pela ciência da religião e pela teologia, pela ciência política e pelo direito. Isso é possível porque o conteúdo trazido por Agamben está vinculado à interpretação dos problemas contemporâneos, que, por sua vez, exigem distintas abordagens para que sejam compreendidos em sua integralidade. A aventura ( L’avventura ), obra originalmente publicada na Itália em 2015, não foge a essa caracterização geral.

Trazendo como tema central a aventura, a obra está organizada em cinco capítulos, seguidos de um posfácio, próprio da tradução brasileira, assinado por Davi Pessoa. Aventurar-se : esse é o título do posfácio, que, de acordo com nossa perspectiva, deveria ser a primeira parte da obra a ser lida por dois motivos. Primeiro, ele situa o leitor quanto à arqueologia, método muito caro a Agamben e utilizado pelo autor em uma perspectiva particular. A adequada compreensão da metodologia de investigação implica uma leitura menos propensa a equívocos interpretativos e, além disso, mostra que o método arqueológico não é utilizado na investigação do passado pelo passado, pois para o filósofo importa fazer confluir passado e presente. Conforme indica Pessoa, é preciso “saber viver o embate entre presente e passado para desativar as amarras do chronos , produzindo uma transformação por dentro da temporalidade linear através do uso errático do anacronismo” (PESSOA, 2018, p. 70). Segundo, o posfácio mostra que A aventura não é uma obra sobre um tema aleatório: justifica-se a realização de uma arqueologia da aventura no contexto das investigações de Agamben já publicadas. Esse é outro mérito do posfácio: trazer, mesmo que brevemente, outras obras de Agamben para mostrar a relevância de uma abordagem sobre o tema da aventura. Aí são citadas Signatura rerum: sobre o método (Boitempo, 2019), Ideia da prosa  (Autêntica, 2012) e Infância e história: destruição da experiência e origem da história (Ed. UFMG, 2012). O posfácio ainda faz notar que ao tema da aventura está implícito o da história e o da linguagem, logo, o do surgimento do homem enquanto ser falante e histórico. Ao tema da aventura, então, está vinculado o da antropogênese, que, por sua vez, interessa a cada humano particularmente, pois diz respeito à sua condição de vivente. O posfácio, assim, traz e faz uma adequada introdução à obra no contexto que lhe é próprio.

Demônio : esse é o título do primeiro capítulo. Conforme indica a nota de tradução, o termo original utilizado por Agamben é demone , que, em italiano, guarda uma relação com o termo grego daímon . Note-se, então: a relação aqui pretendida é com a tradição grega e com o significado de daímon , que denota o caráter divino (transcendente) de um chamamento, tal qual acontece com Sócrates, por exemplo. Mantendo essa relação com um aspecto divino/transcendente, Agamben inicia sua obra fazendo menção às Saturnais de Macróbio e para o fato de que nelas se narra um banquete onde uma das personagens atribui aos egípcios a crença de que o nascimento de cada homem é presidido por quatro divindades: Daimon (Demônio), Tyche (Sorte), Eros (Amor) e Ananche (Necessidade). Cada homem, em vida, deve pagar o seu tributo a cada uma dessas divindades e “o modo como cada um se mantém em relação com essas potências define a sua ética” (AGAMBEN, 2018, p. 12). É a essas divindades que Goethe, em Palavras originárias ( Urworte ) (1817), tenta pagar seu débito, acrescentando-lhes uma quinta: Elpis (Esperança). A leitura aí realizada por Agamben mostra que Goethe paga seu tributo somente a uma divindade, Daimon . O poeta tem consciência de sua fuga frente à responsabilidade de pagar tributo a cada uma das divindades e, por isso, acrescenta uma quinta, Elpis , que, de acordo com Agamben, nada mais é do que um disfarce de Daimon . Assim, Goethe mantém-se fiel a uma única divindade e espera dela a salvação. O capítulo se conclui com uma citação a um aforismo de Hipócrates no qual se encontram cinco palavras-chave: vida ( bios ), arte ( techne ), ocasião ( kairos ), experiência ( peira ) e juízo ( krisis ). De acordo com Agamben, essas cinco palavras guardam uma “secreta correspondência” com as divindades de Macróbio e Goethe. Aí está em “jogo a breve aventura da vida humana” (AGAMBEN, 2018, p. 23).

Aventure (em francês): esse é o título do segundo capítulo. Aqui Agamben recorre à literatura trovadoresca para falar da aventura, o que torna A aventura próxima de uma das primeiras publicações de Agamben, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental (Ed. UFMG, 2007). Tal proximidade se nota, sobretudo, pela lida com obras de poetas trovadores, revelando, assim, sua importância para o pensamento de Agamben como um todo. É nesse capítulo que se inicia propriamente uma arqueologia da aventura. Trata-se, porém, não de uma arqueologia cronológica, mas kairológica, pois o que interessa ao autor é ir em direção à origem da palavra na condição de evento. Para tanto, importa compreender duas identificações realizadas ao longo do capítulo. A primeira é entre cavaleiro e poeta: a procura daquele por aventura é a mesma deste. O poeta, assim, narra-se no poema. Dessa maneira, não é possível pensar a aventura sem pensar na implicação de um “eu”. Não se trata, porém, de tomar a aventura como um objeto contraposto ao sujeito: não há antecedência de um ou outro aqui, tampouco a identificação do “eu” com um “sujeito”. A partir dessa primeira identificação, Agamben afirma: “a aventura é para o cavaleiro [logo, para o poeta] tanto encontro com o mundo quanto encontro consigo mesmo e, por isso, fonte ao mesmo tempo de desejo e de espanto” (AGAMBEN, 2018, p. 29). A segunda identificação é entre evento e narração: o que se escreve é a narrativa, mas esta coincide com a aventura histórica, de tal modo que “aventura e palavra, vida e linguagem se confundem” (AGAMBEN, 2018, p. 32).

É com o exemplo de um poema de Maria de França que Agamben prossegue a arqueologia kairológica da aventura. O que aí surge em palavra é aventura e, ao mesmo tempo, verdade: verdade não no sentido apofântico da lógica, isto é, como coincidência entre evento e narrativa, mas verdade como advir. Assim, “aventura e verdade são indiscerníveis, porque a verdade advém e a aventura não é senão o advir da verdade” (AGAMBEN, 2018, p. 34). Outro exemplo por ele utilizado é o da identificação da aventura com uma mulher, Frau Âventiure : aqui a intenção de Agamben é fazer notar que a aventura não é algo que preexiste à história narrada. A aventura é a narrativa e está viva nela e através dela, sendo, por isso, o próprio evento da palavra. Se há uma identificação notável entre evento e narrativa, então a aventura não pode ser somente um termo poetológico, mas deve também possuir um significado ontológico: “se o ser é a dimensão que se abre para os homens no evento antropogênico da linguagem, se o ser é sempre algo que ‘se diz’, então a aventura tem certamente a ver com uma determinada experiência do ser” (AGAMBEN, 2018, p. 38). O final do segundo capítulo aponta para uma interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger que será levada a cabo no quarto capítulo.

O terceiro capítulo — Eros — inicia-se com uma advertência: antes de tentar definir essa experiência do ser, deve-se “limpar o terreno das concepções modernas da aventura, que correm o risco de obstruir o acesso ao significado originário do termo” (AGAMBEN, 2018, p. 39). Essa advertência servirá de guia para os apontamentos críticos que Agamben irá fazer a respeito da concepção de aventura de Hegel, Georg Simmel e Oskar Becker, tidas por ele como concepções modernas, nas quais se encontra “a ideia de que ela [a aventura] seja algo estranho — e, portanto, excêntrico e extravagante — com relação à vida ordinária” (AGAMBEN, 2018, p. 41). O capítulo se encerra com uma crítica a Dante Alighieri: para este autor do medievo a vida do homem não é algo como uma aventura. Isso, de acordo com Agamben, significa uma traição consciente do sentido próprio do termo no período medieval, ou seja, ao não utilizar a aventura para narrar as experiências vividas pelos cavaleiros, Dante está afirmando que a vida não é tal qual a aventura. É a isso que Agamben se contrapõe, mostrando, assim, que a sua concepção é mais próxima dos poemas dos trovadores, onde há identificação de vida e aventura, do que dos modernos, onde a aventura é algo excêntrico.

O quarto capítulo — Evento — é onde Agamben apresenta a sua ideia do que seja aventura. Deve-se notar aqui a importância do segundo capítulo para que o quarto seja bem compreendido: estando mais próxima da concepção de aventura das trovas medievais, a ideia de aventura agambeniana não se identifica com elas, porém. Os apontamentos críticos do terceiro capítulo servem de baliza para a posição assumida por Agamben: nem medieval, nem moderna, mas em diálogo com ambas. Para compreender a sua posição é preciso estar atento a dois pontos característicos desse capítulo. Primeiro: a aventura sempre se dirige a um quem , que, por sua vez, não preexiste à aventura como um sujeito. Para Agamben, a aventura é o que se subjetiviza. Disso decorre a afirmação de que “eu”, “tu”, “aqui” e “agora” são categorias de locução e não categorias lexicais, isto é, são categorias que não podem assumir/possuir uma definição prévia definitiva. O evento, assim, é sempre evento de linguagem e a aventura se torna indissociável da palavra que a anuncia. Há, de fato, uma proximidade entre evento, aventura e linguagem. Por isso, a aventura/evento não exige uma decisão/escolha, logo, nela não há um problema de liberdade. É só assim que o vivente pode se apropriar do evento, ou melhor, ser apropriado por ele. Essa é uma tese que Agamben busca em Heidegger, seu principal interlocutor nesse momento da obra: o homem não possui a linguagem, mas a linguagem o possui. O homem serve-lhe de morada. A interlocução com Heidegger é o segundo ponto característico desse capítulo. Afirmando a ocorrência simultânea de apropriação de ser e homem que acontece no evento/aventura, Agamben coloca em questão o tornar-se humano do homem vivente: “o vivente se torna humano no instante e na medida em que o ser lhe advém” (AGAMBEN, 2018, p. 57). O evento/aventura é antropogênico e ontogênico, pois nele coincide o tornar-se falante do homem com o advento do ser à palavra e da palavra ao ser. Há aí uma analogia entre aventura e Ereignis , termo chave do pensamento tardio de Heidegger. Agamben, na verdade, chega a sugerir que a tradução mais adequada de Ereignis é aventura, deflagrando, com isso, seu aspecto ontológico.

A aventura tem a ver, então, com um vivente tornar-se humano, isto é, falante, o que guarda relação direta com duas obras de Agamben, a saber, O aberto: o homem e o animal (Civilização Brasileira, 2017), na qual o que está em jogo é como o homem se diferencia do animal, e Ideia da prosa (Autêntica, 2012), na qual o tema central é a linguagem e a sua indissociabilidade do pensamento. Descobre-se, desse modo, o que está em causa em A aventura : o evento antropogênico, que, em si, “não tem história e é, como tal, inapreensível” (AGAMBEN, 2018, p. 60). Esse é o principal resultado da arqueologia kairológica: como não pode ser definido definitivamente, o evento antropogênico (e ontogênico) é sem história .

Elpis : esse é o título do quinto capítulo. Aqui o autor volta a falar do significado de Demônio e, com isso, regressa ao ponto inicial da obra, fechando-a tal qual um círculo. Já não fala mais de Goethe, mas o exemplo lá utilizado pode ser aqui percebido nas entrelinhas. Por isso, interessa entender a importância do manter-se fiel ao demônio: “o demônio é a nova criatura que as nossas obras e a nossa forma de vida colocam no lugar do indivíduo que acreditávamos ser segundo nossos documentos de identidade” (AGAMBEN, 2018, p. 62). Daí a importância de Goethe: a vida poética é aquela que se encontra como tal e, com isso, rompe com uma pseudo-identidade. “Isso significa que ao demônio pertence constitutivamente o momento da despedida — que, no momento em que o encontramos, devemos nos separar de nós mesmos” (AGAMBEN, 2018, p. 62). No limite, o exemplo inicial de Goethe orienta toda a reflexão de Agamben. O demônio não é um deus, mas semideus, isto é, sempre possibilidade, potência, e nunca atualidade do divino. A potência que regenera, ou seja, liga-rompendo, é Eros , amor, à qual está ligada a esperança, Elpis , trazida por Goethe como a quinta divindade, mas que, na verdade, se mostra como uma outra face do Demônio .

Desse modo, em A aventura, o que está em causa para Agamben não é a mera arqueologia de um termo, abordando-o desde uma perspectiva que faz implicar filosofia e literatura. Ao realizar uma arqueologia da aventura, Agamben traz à tona uma nuance específica do evento antropogênico e ontogênico do tornar-se humano: o fato dele ser sem história . Desde nossa perspectiva, esse é o ponto culminante do texto e, justamente por isso, tem-se, a partir dele, uma chave de leitura muito interessante fornecida pelo próprio Agamben contra concepções historicistas que se acercam de sua obra. Por fim, recomenda-se a leitura de A aventura , pois somente assim o leitor ficará a par da complexidade e da qualidade da discussão aí trazida por Agamben.

Luís Gabriel Provinciatto – Doutorando em Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Brasil. E-mail: [email protected]

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O jogo do Eu: a mudança de si em uma sociedade global – MELUCCI (C)

MELUCCI, Alberto. O jogo do Eu: a mudança de si em uma sociedade global. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2004. 184 p. Resenha de: SALVA, Sueli. Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 155-159, jan./abr. 2010.

Esse livro direciona-se a todos aqueles que têm o desejo de compreender o ser humano que habita o mundo contemporâneo buscando saber quem ele é, e como se torna quem é em suas multiplicidades.

Alberto Melucci nasceu em Rimini, na Itália, em 1943 e faleceu em 12 de setembro de 2001. Sociólogo e psicólogo, atuou na Universidade de Milão como professor de Processos Culturais e na Escola de Psicologia Clínica. Também atuou como professor em outros países da Europa, da Ásia, da América Latina, da América do Norte e desenvolveu uma intensa atividade de pesquisa. O autor produziu uma vasta produção bibliográfica centrada nos problemas da teoria sociológica, análise da ação coletiva, mudança social, mudança cultural e identidade, aprofundando as duas últimas temáticas. Possui várias publicações sobre os processos de globalização, sociedade planetária, vida pessoal, vida cotidiana e sobre as relações sociais. Centra-se, nos últimos anos sobre o processo de transformação de si em uma sociedade que muda em grande escala e com um ritmo nunca antes imaginado. Essa é a temática central da obra: O jogo do Eu: a mudança de si em uma sociedade global. No Brasil a obra de Alberto Melucci ficou conhecida através do Professor Dr. Nilton Bueno Fischer, que a difundiu no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nilton partiu no dia 25 de julho, deixando ainda mais intenso o frio do dia mais frio do inverno de 2009, e sem a sua dedicação essa obra não estaria traduzida e publicada no Brasil.

Para apresentar a obra O jogo do Eu… tomo as palavras de Touraine (1998, p. 73), que diz: “O sujeito não é uma ‘alma’ presente no corpo ou o espírito dos indivíduos. Ele é a procura, pelo próprio indivíduo, das condições que lhe permitem ser o autor da sua própria história.” Nas palavras de Touraine (1998), o processo de busca do indivíduo “das condições que lhe permitem ser o autor de sua obra” está atravessada por inúmeros processos presentes na sociedade contemporânea. Para Melucci (2004), em O jogo do Eu: a mudança de si em uma sociedade global, esses processos não podem acontecer fora do próprio sujeito na sua relação consigo e com o mundo. A leitura dessa obra é, portanto, um convite para olhar o sujeito, sua experiência cotidiana, a relação consigo e com o mundo, procurando compreender como ele se move entre os artefatos que o circunda, na tentativa de construção da própria história. O livro instiga a construir uma sociologia da escuta, capaz de pôr em contato verdadeiro o observador e o observado, ou seja, alerta para o compromisso de olhar para o sujeito, considerando não apenas o ponto de chegada, mas os dilemas, as alegrias, as emoções, os conflitos enfrentados durante o percurso de construção de si.

O livro tem o tema da identidade como o foco central, sempre se contrapondo ao princípio da compreensão da identidade como absoluta, argumentando acerca da multiplicidade do eu, expondo a complexidade que envolve a tentativa de responder a uma pergunta simples: Quem sou eu? A busca da resposta sobre Quem sou eu? convive com outro dilema: o de tentar compreender Como me torno quem sou?. Ao tentar compreender Como me torno quem sou?, é possível visualizar o caminho construído individualmente na cotidianidade. São os labirintos do percurso que inundam de sentido a experiência do viver.

A obra está dividida em dez capítulos, e cada um deles aborda aspectos importantes da constituição do sujeito, sua relação consigo, com o outro, com o tempo, com a complexidade da sociedade contemporânea, com os processos de mudança acelerados, com a corporeidade, com o universo social e cultural, com a natureza. O consistente trabalho empírico de Alberto Melucci como sociólogo e psicólogo clínico se reflete no aprofundamento teórico de cada tema tratado e nos convida a refletir sobre os homens e as mulheres, habitantes deste mundo e suas experiências cotidianas. Essas experiências, fundantes na busca da construção de si, se movem entre o limite das estruturas e as possibilidades excessivas do mundo contemporâneo que nos impulsiona à escolha. Para o autor cada sujeito em seu viver cotidiano carrega a marca dessa tensão, sem que ela possa ser resolvida. Cada ser busca, de um lado, o impulso dinâmico para criar o espaço e os conteúdos da experiência e, de outro, a necessidade de considerar os limites naturais intrínsecos da experiência. Nessa busca constrói a si mesmo, cuja mecânica não está estruturada sobre uma engrenagem fixa. Nesse espaço do jogo, o sujeito precisa aprender a se mover, sob pena de se perder. A experiência possibilita que ele jogue a partir do que se apresenta em cada momento, pois esse jogo é dinâmico e exige o aprendizado de novas estratégias para se mover, que se torna possível através da abertura de si mesmo para o outro.

A preocupação com a busca de si que cada homem e cada mulher experimentam ao longo da vida, no intuito de se encontrarem, como sujeitos em suas múltiplas identidades é um dos aspectos em que o autor se detém. Para ele a identidade pessoal se insere em uma complexidade, dada a particularidade das experiências vivenciadas por um a um dos sujeitos. O Eu não pode ser compreendido de maneira absoluta e imediata; esse sempre conservará elementos enigmáticos, que dificultam que se responda de maneira definitiva à pergunta: Quem sou eu? A resposta à pergunta Quem sou eu? conterá sempre a ambivalência, uma vez que, para respondê-la não é suficiente que se tenha certa similaridade com o outro, mas também é preciso diferenciar-se reivindicando uma singularidade. Cada um de nós pertence a uma pluralidade de grupos, gerados por múltiplos papéis sociais, nosso eu torna-se múltiplo, entramos e saímos constantemente dos grupos de pertencimento com mais rapidez do que no passado, nos movemos “como animais migrantes nos labirintos da metrópole, viajantes do planeta, nômades do presente”. (MELUCCI, 2004, p. 60).

Para o autor a identidade se funda na relação social, é caracterizada como capacidade de reconhecer os efeitos da própria ação e reconhecê-la como nossa. As nossas ações não são o simples reflexo dos nossos vínculos biológicos e ambientais, são produções simbólicas de sentidos que, ao serem reconhecidas por nós mesmos, se tornam nossa propriedade e possibilitam a troca com os outros. Dada a dinâmica na produção da identidade, o autor argumenta que a palavra identidade parece não comportar o caráter processual da construção de nós mesmos, por esse motivo o autor sugere a palavra identização.

Nosso percurso de vida contém as diferentes dimensões do tempo, cuja metáfora da espiral as sintetiza. Essas dimensões são representadas pelo círculo, que simboliza a circularidade do ritmo da natureza que, aos poucos, vai serem substituído pela flecha. A flecha representa a meta a ser alcançada, o progresso, a salvação. Essa dimensão se mostrou bastante útil para a religião e para a indústria na modernidade. Por último, a metáfora dos pontos que se identifica com a dimensão fragmentada e descontínua da contemporaneidade cuja perspectiva de futuro se mostra sombria, e o tempo, como uma sequência de temporalidades desconexas.

Essa pluralidade de dimensões representa a temporalidade que vive o homem. Esse, por sua vez, inunda-se de outras temporalidades, relacionadas com a condição humana e expressam o desejo do homem de fluir e resistir ao tempo. A temática do “tempo” entrelaçado à análise de experiências individuais e ações coletivas se expressa em sua multiplicidade.

O corpo também é foco de preocupação do autor, pois ele considera seu papel fundante na construção e na perda da identidade, cujas experiências estão mergulhadas em uma sociedade em constante mudança que também transforma a experiência humana do tempo. O corpo, da forma como o conhecemos hoje, como cada um o tem e que se desenvolveu desde o seu nascimento, é resultado de um processo de construção no qual está implicada a forma como o nosso contexto social e cultural pensa e se relaciona com esse corpo. Esse pressuposto nos permite admitir que o corpo se transforma continuamente através dos estímulos que recebe e se constitui através da interferência que sofre do meio em que habita. Tendo sido relegado a áreas marginais ao longo da História, no tempo contemporâneo, cresce o interesse pelo corpo, pois ele é considerado “símbolo e instrumento de comunicação e canal da nossa afetividade, é nossa propriedade única e inalienável, que permite que sejamos reconhecidos quando outras formas de identificação vacilam”.

(MELUCCI, 2004, p. 93). Ao mesmo tempo, o interesse pelo corpo responde a um apelo do mercado, elevando-o a produto, sujeito, e, ao mesmo tempo, objeto. De outro modo, olhar para o corpo, prestar atenção aos seus sinais é um modo de valorização de si. A atenção ao corpo e a busca pelo bem-estar físico pode ser uma possibilidade de encontro com a sua temporalidade e com a sua totalidade, ou seja, corpo como corporeidade. Em sua delicada atenção à corporeidade, o autor atenta para a dimensão do tempo interno que corresponde ao tempo de eros, subjetivo, descontínuo, reversível e imprevisível, que depende da percepção, das situações e das experiências de cada um. Temporalidade essa que co-habita com o tempo externo que corresponde à marcação da máquina, cujas características correspondem à linearidade, irreversibilidade, previsibilidade. Tempo interno e tempo social precisam coexistir. Muitas vezes, o tempo interno, o tempo do corpo, submete-se ao tempo social, provocando conflitos e angústia, esses gerados pelo excesso de possibilidades que nos são oferecidas e que excedem aquilo que realmente podemos viver.

Melucci nos alerta sobre as questões ecológicas argumentando que esse tema, de certa maneira, virou moda; entretanto, essa temática não apenas revela a preocupação com o planeta, mas as possibilidades de intervenção na natureza desenvolvidas pelo homem. O conhecimento científico que está à disposição da humanidade não pode retroceder. A ação humana depende desses conhecimentos, mas esses também expõem um dilema de difícil solução. Dispor desses recursos significa ampliar a possibilidade de intervir na humanidade, mas, ao mesmo tempo, responder à natureza, àquela dimensão que nos constitui como seres capazes de construir sentidos para o viver.

Através da obra o autor nos convida a viver de forma menos narcisista, que nosso percurso seja impulsionado pela busca do encontro com o outro, cujo tecido que simboliza esse encontro pode ser ricamente ornado com as relações humanas, as quais as palavras jamais serão capazes de descrever.

Referências

MELUCCI, Alberto. O jogo do Eu: a mudança de si em uma sociedade global. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2004. 184 p.

Sueli Salva – Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora no Departamento de Metodologia do Ensino da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

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