The Identitarians: The Movement Against Globalism and Islam in Europe | José Pedro Zúquete

Em 2010, às vésperas da avalanche de protestos provocada pela crise econômica de dois anos antes, José Pedro Zúquete, pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, publicou Struggle for the World: Liberation Movements for the 21th Century (Zúquete e Lindholm 2010). Escrito em parceria com o antropólogo norte americano Charles Lindholm, o livro traça um grande panorama dos principais movimentos sociais e organizações políticas que se opunham ao que os autores chamam de globalização capitalista. Fossem de esquerda, como os zapatistas no México, ou de extrema direita, como o Front National francês, a publicação destaca como esses grupos operavam a partir de uma forte crítica ao estrangulamento dos modos de vida e de identidades locais.

As duas décadas que se seguiram ao fim da Guerra Fria foram marcadas pela integração do mundo em blocos regionais e pela criação de instituições supranacionais para administrá-los. Até que a expansão progressiva e desenfreada sofreu inesperadamente um grande choque. As fissuras na ordem estabelecida já existiam, é verdade, mas elas nunca ficaram tão claras quanto nos anos que se seguiram à crise de 2008. E foi seguindo personagens que viviam nessas fissuras que Zúquete passou a acompanhar a atuação de grupos políticos radicais contemporâneos. Em artigos e livros dedicados a grupos tão diversos como os praticantes da tática black block e skinheads portugueses, o sociólogo português construiu uma obra robusta sobre alguns dos principais movimentos de contestação no mundo hoje. Leia Mais

Hacia otra historia de América: nuevas miradas sobre el cambio cultural y las relaciones interétnicas – FEDERICO (RBH)

FEDERICO, Navarrete Linares. Hacia otra historia de América: nuevas miradas sobre el cambio cultural y las relaciones interétnicas. México: Universidad Nacional Autónoma de México (Instituto de Investigaciones Históricas), 2015. 178p. Resenha de: KALIL, Luis Guilherme Assis. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.75, mai./ago. 2017.

Pensemos em um membro de uma comunidade indígena do centro da Nova Espanha no século XVI. Ele poderia ter identidades culturais e de gênero, praticar determinado ofício, ser cristão e, no campo das identidades étnicas, estar associado a seu “barrio” e comunidade além de ser vassalo da Coroa espanhola. Esse exemplo hipotético analisado por Federico Navarrete Linares revela muitos dos temas abordados em sua obra, associados, principalmente, aos conceitos de alteridade e identidade.

Nos dois ensaios que compõem a obra,2 o professor da UNAM apresenta um amplo panorama das reflexões associadas a esses conceitos dentro da história do continente americano, bem como propõe caminhos de interpretação. Com esse intuito, Navarrete amplia os recortes temporal e geográfico em sua análise, adotando uma perspectiva continental ao longo de mais de cinco séculos, sob o argumento de que, a despeito das especificidades, existiriam muitas convergências entre as trajetórias históricas dos países americanos, como o pertencimento a um “sistema comum” centrado no mundo Atlântico.3 Da mesma forma, todos teriam se organizado após a independência dentro do marco das novas ideias liberais, o que o leva a defender a importância de uma perspectiva compartilhada – mais do que comparada – da história da América.

Em seu primeiro ensaio – “El cambio cultural en las sociedades amerindias: una nueva perspectiva” -, Navarrete analisa os diferentes tipos de relações culturais estabelecidas pelos ameríndios a partir dos primeiros contatos com o Velho Mundo, passando pelas múltiplas formas de resistência, alianças e lutas por direitos. O historiador inicia o texto analisando as formas em que os índios foram concebidos como objetos de conhecimento e dominação e os consequentes projetos de transformação cultural desenvolvidos. Entre os séculos XVI e XVII, a dimensão religiosa teria sido o foco principal de atenção dos europeus acerca das culturas ameríndias. Dessa forma, a transformação cultural dos considerados “bárbaros” e “pagãos” passaria, necessariamente, pela conversão. No século XVIII, com a ascensão das ideias ilustradas e do conceito de civilização, a religião teria perdido espaço para a educação como estratégia de incorporação dos indígenas. Uma nova mudança teria ocorrido a partir da segunda metade do século XIX, com a crescente hegemonia do pensamento científico associada ao evolucionismo biológico e cultural e a ideais positivistas. Nesse período de consolidação dos Estados nacionais, teriam surgido dois modelos de atuação diante da “raça” indígena: as políticas de mestiçagem, adotadas em países como Brasil e México, e de segregação estrita, presentes nos Estados Unidos e na Guatemala.

No século XX, Navarrete identifica o surgimento de outro projeto de interpretação e atuação sobre as culturas ameríndias: a teoria da aculturação, que reforça a pluralidade cultural e teria se institucionalizado mediante políticas que buscavam facilitar a integração final das culturas indígenas menos avançadas à cultura nacional. Nas últimas décadas, outras teorias teriam ganhado força, como as abordagens que destacam a resistência indígena diante dos europeus e as continuidades culturais com o período pré-hispânico, as interpretações multiculturais (associadas a diferentes formas de organização indígena que visam reforçar seu papel como atores políticos) e os projetos baseados em conceitos como o de hibridação e mestiçagem, que negam a existência de identidades ou culturas “puras”.4

Navarrete enfatiza que todas essas propostas não se limitaram ao campo intelectual, estabelecendo estreitas relações com as políticas de dominação e transformação cultural estabelecidas nos últimos cinco séculos. Além disso, seriam marcadas por forte conteúdo moral, baseado em concepções universalistas de verdade e sobre o curso da história. Mas o autor também ressalta que todas elas encontraram entraves e limitações, relacionados às divergências existentes entre os missionários, funcionários da Coroa ou dos Estados independentes e às formas de resistência, adaptação e criação por parte dos ameríndios.

Ao final, o autor substitui o caráter descritivo e analítico por uma abordagem propositiva, visando apresentar “un marco alternativo de comprensión de las transformaciones culturales de las sociedades amerindias” (p.15). Com base no conceito de rizoma proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari, Navarrete propõe uma abordagem das trocas culturais que prescinde de premissas como a unidade das culturas e a existência de fronteiras claras entre elas, além de colocar em xeque a ideia de que a “entrada de elementos exógenos debe provocar necesariamente una transformación en el conjunto de la cultura de un grupo y, sobre todo, en sus identidades culturales y étnicas y que el valor identitario de los rasgos externos está determinado por su origen” (p.47). Adotando essa perspectiva, o autor problematiza visões que abordam a conversão ao cristianismo ou a adoção do idioma espanhol como rupturas irreversíveis, apontando o conceito de etnogênese5 como importante ferramenta de interpretação para ressaltar a capacidade de invenção, renovação e redefinição cultural e étnica por parte dos indígenas, bem como superar perspectivas que veem as trocas culturais como um “jogo de soma zero”, onde a adoção de um elemento cultural ou identitário externo significaria necessariamente a perda de outro elemento indígena, gerando uma dissolução de sua identidade étnica (p.81-82).

No segundo ensaio, “Estados-nación y grupos étnicos en la América independiente, una historia compartida”, Navarrete concentra suas atenções no período pós-independência com base nas questões que envolvem a construção de identidades dentro dos Estados nacionais. Com a proposta de ressaltar que as definições das diferenças entre grupos humanos são produto de circunstâncias históricas e sociais de cada sociedade (não o reflexo de uma realidade biológica, racial ou cultural), o autor apresenta um panorama da dinâmica dos “regimes das relações interétnicas”, ressaltando os aspectos comuns a todo o continente bem como algumas especificidades nacionais.

O primeiro regime abordado é o “estamentário”, presente em países que conservaram durante parte de sua história independente a categorização étnica e a exploração do trabalho forçado, como a escravidão africana nos Estados Unidos e no Brasil e a tributação de indígenas bolivianos, peruanos e guatemaltecos. Em seguida, viriam os “regimes liberais discriminatórios”, implantados em quase todo o continente durante o século XIX e caracterizados por assumir a concepção liberal de cidadania universal e igualitária ao mesmo tempo que excluía amplos setores da população, formando o que Navarrete denomina como uma “cidadania étnica”. Os regimes “integradores” teriam surgido no século XX em países como México, Argentina e Brasil com uma perspectiva da nação como unidade racial, muitas vezes baseada na mestiçagem. Por fim, o historiador analisa os “regimes multiculturais”, surgidos na América do Norte a partir da década de 1960 e que teriam se espalhado pelo continente com a premissa da nação como um conjunto de grupos distintos cujos direitos deveriam ser reconhecidos e protegidos. Para o autor, esse novo modelo mantém e institucionaliza as diferenças entre uma maioria hegemônica e as minorias definidas como diferentes, além de conceber as identidades culturais e étnicas dos grupos minoritários como uma realidade quase inamovível.

Em ambos os ensaios, podemos observar que Navarrete se preocupa em ressaltar o caráter fluido, múltiplo e histórico das culturas e identidades, em de­trimento das abordagens que as imobilizam e essencializam. Outro aspecto comum é a busca por definir e sistematizar conceitos, projetos de transformação cultural e regimes de relações interétnicas tendo como premissa um recorte continental (ainda que dedique atenção às especificidades nacionais). Dessa forma, o autor aproxima a proibição do consumo de chicha na Colômbia, a perseguição à capoeira no Brasil e as leis Jim Crow nos Estados Unidos como práticas discriminatórias associadas a regimes liberais (p.134-135). Como apontado por Berenice Alcántar Rojas na introdução do livro, essa característica se revela como uma das principais virtudes, mas, simultaneamente, uma limitação da obra (p.12). Nesse mesmo sentido, a identificação de grandes movimentos, projetos ou regimes ao longo dos séculos sugere uma linearidade combatida pelo próprio autor.

Contudo, ao final, esta obra se apresenta como importante contribuição que aprofunda conceitos e questões fundamentais não só às pesquisas acerca da História das Américas, mas também a debates que ocupam espaços centrais na política e na cultura brasileira e de outros países americanos, como as políticas de ações afirmativas e as demarcações de terras para grupos indígenas e comunidade quilombolas, que ganham novos contornos quando analisadas sob uma abordagem continental.

Notas

2 Disponível gratuitamente em: http://www.historicas.unam.mx/publicaciones/catalogo/ficha?id=633.

3 Navarrete faz referência nesse trecho à abordagem de “sistema-mundo” trabalhada por Immanuel Wallerstein, apontando seu caráter “eurocêntrico”, que impediria maior compreensão das complexidades dos espaços “periféricos” (p.70 e 101).

4 O autor identifica duas vertentes associadas a essa perspectiva. A seguida por autores como Serge Gruzinski e Néstor García Canclini, em que a expansão ocidental é vista como marco do início do processo de hibridização e mestiçagem; e outra, apontada por Navarrete como mais interessante, a qual assume que as culturas têm sido híbridas e mestiças desde sempre (p.37-38).

5 Navarrete remete a origem desse conceito à antropologia russa e afirma que estudiosos como Cynthia Radding e Jonathan Hill o utilizaram para analisar o continente americano: “Aunque estos autores lo utilizan exclusivamente para explicar la adaptación de pueblos indígenas a la dominación europea, me parece que puede ser empleado de manera más amplia para todos los procesos de conformación de identidades étnicas” (p.97).

Luis Guilherme Assis Kalil – 1 Professor adjunto A-1 de História da América Colonial e América Independente no século XIX da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-IM). Doutor em História cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-IM). Nova Iguaçu, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

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A cosmologia construída de fora: a relação com o outro como forma de produção social entre os grupos chaquenhos no século XVIII – FELIPPE (RBH)

FELIPPE, Guilherme Galhegos. A cosmologia construída de fora: a relação com o outro como forma de produção social entre os grupos chaquenhos no século XVIII. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2014. 376p. Resenha de: BASQUES JÚNIOR, Messias Moreira. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36,, n.71, jan./abr. 2016.

O livro A cosmologia construída de fora foi originalmente escrito como tese de doutorado e recebeu o Prêmio Capes na área de História em 2014. Trata-se de uma importante contribuição à história e à etnologia indígena das Terras Baixas da América do Sul, pois se baseia em uma aproximação bem-sucedida entre pesquisas antropológicas e um extenso corpo documental referente às práticas e concepções de povos chaquenhos e às suas relações com o outro no século XVIII: afins e inimigos, missionários e invasores europeus. O livro tem o mérito de abordar uma região pouco estudada pela antropologia brasileira: o Grande Chaco, uma das principais regiões geográficas da América do Sul e que constitui zona de transição entre a planície da bacia amazônica, a planície argentina e a zona subandina.2 A análise de registros produzidos por observadores civis e religiosos ao longo do século XVIII evidencia o contraste entre o discurso europeu, centrado na denúncia da barbárie e da inconstância que caracterizariam os nativos, e o modo propriamente indígena de responder ao avanço colonial. Felippe examina três aspectos da cosmologia chaquenha: a guerra, a reciprocidade, e o regime de produção e consumo alimentar. O fio condutor da análise é a mitologia desses povos, aqui entendida como fonte de conhecimento sobre o pensamento ameríndio.

Desde o título até suas páginas finais, o livro demonstra a fertilidade da proposição levistraussiana a respeito da importância da “abertura ao outro” no pensamento ameríndio e nos modos pelos quais esses povos costumam se situar diante da alteridade. Segundo Anne-Christine (Taylor, 2011), essa característica foi desde cedo detectada por Claude Lévi-Strauss, como mostram os dois artigos por ele publicados no ano de 1943 e que estabeleciam “o aspecto sociologicamente produtivo da guerra vista como forma de vínculo … e a primazia da afinidade no universo social dos índios, a primazia da relação com o não-idêntico sobre as ligações de consanguinidade ou, mais exatamente, de identidade” (Taylor, 2011, p.83). O tema da “abertura ao outro” inspirou profundamente os autores mobilizados por Felippe em seu diálogo com a antropologia e, sobretudo, com a etnologia amazonista. Inserindo-se nessa tradição, Felippe apresenta uma descrição histórica e etnográfica que corrobora uma tendência recente da antropologia chaquenha de acentuar as ressonâncias entre os povos da região e aqueles da Amazônia. Retomando o clássico artigo de (Seeger et al., 1979), alguns autores têm defendido a existência de um “pacote amazônico” (Londoño Sulkin, 2012, p.10) cujos componentes também estariam presentes no Grande Chaco e dentre os quais se destacam: o foco no corpo humano e seus elementos como matriz primária de significado social e a existência de um cosmos perspectivista que se encontraria mediado por relações com alteridades perigosas e potencialmente fecundas (Echeverri, 2013, p.41).

O primeiro capítulo trata dos mitos indígenas como construção da realidade, partindo de uma reflexão teórica acerca das diferenças entre o conhecimento objetivo e subjetivo, bem como das concepções de natureza e cultura que fundamentavam o cotidiano e os conhecimentos dos povos chaquenhos no século XVIII. Apesar da grande variedade de versões registradas nas fontes documentais, pode-se notar que, quando tomadas em conjunto, as narrativas míticas refletem problemas similares, como o tema da origem da humanidade e dos animais a partir de uma mesma constituição ontológica, de um fundo comum marcado pela comunicação interespecífica e pela partilha de subjetividade e da capacidade de agência. Felippe descreve como a absorção de ele- mentos exógenos era o eixo do pensamento indígena e, nesse sentido, as transformações criativas que se podem observar na mitologia desses povos revelariam a sua forma de refletir e de responder aos “brancos”, ora incorporando, ora recusando elementos do cristianismo, bem como os objetos, animais, atividades e tecnologias trazidos pelos europeus.

No segundo capítulo, a guerra aparece como meio por excelência para a internalização do outro e como produtora de relações entre diferentes sociedades e no interior de cada uma delas. Nas palavras do autor, a guerra chaquenha era diametralmente oposta à guerra praticada pelos europeus, pois “não se fundamentava na extinção do inimigo, nem na busca pela paz. Era, em realidade, o método mais eficaz de estabelecer relações e, consequentemente, movimentar o meio social” (Felippe, 2014, p.121). O modelo utilizado na análise da guerra chaquenha é “amazônico” e se apoia nas teorias da “economia simbólica da alteridade” (Viveiros de Castro, 1993) e da “predação familiarizante” (Fausto, 1997). A hipótese, em suma, é a de que em ambas as regiões encontraríamos “economias que predam e se apropriam de algo fora dos limites do grupo para produzir pessoas dentro dele” (Fausto, 1999, p.266-267).

Esse capítulo oferece um sólido contraponto às teses que defendem a ocorrência de escravidão – e o uso desse conceito na análise das práticas de apresamento – entre os ameríndios (cf. Santos-Granero, 2009), pois Felippe demonstra que “ao grupo vencedor interessava capturar pessoas e levá-las à sua aldeia como cativos de guerra, porém sem a intenção de mantê-los prisioneiros ou fazer deles escravos” (2014, p.175). Isto é, os cativos de guerra não eram con- vertidos em mercadorias e não viviam sob a lógica de uma objetificação de caráter utilitário: “se havia algum acúmulo era de relações sociais, e não de bens” (p.213). O mesmo pode ser dito acerca dos frequentes roubos e assaltos entre os povos da região e, sobretudo, contra reduções jesuíticas, cidades e vilarejos, práticas estas que lhes permitiam a obtenção de montaria, de armas e de bebidas alcoólicas, e que serviriam para intensificar uma lógica preexistente de captura do outro. Em suma, as reduções e as rotas de comércio “proporcionaram aos índios vantagens materiais e estratégicas que acrescentavam elementos à dinâmica relacional nativa – ao invés de substituí-la” (p.141).

A economia indígena é o tema da última parte do livro. No terceiro capítulo, retrata-se o avanço colonial por meio da implantação de relações comerciais e da integração dos povos nativos ao sistema mercantil. Sem menosprezar a violência e as suas consequências, o autor argumenta que os chaquenhos não foram meramente integrados ao mercantilismo, já que são abundantes os relatos acerca do protagonismo indígena no que concerne à potencialização das relações de reciprocidade com outros povos por intermédio de sua participação no comércio e na circulação de mercadorias não indígenas. Não obstante os esforços dos jesuítas para incutir entre os indígenas o sentido da falta e o desejo pela produção de excedentes, Felippe nos mostra que os missionários repetidamente testemunharam o fracasso dessa “conversão” para uma economia de acumulação. Segundo o autor, os Jesuítas não mediram esforços para “introduzir nos índios a insegurança que os modernos tinham em relação ao futuro” (Felippe, 2014, p.305-306). No entanto, se a inconstância era a resposta indígena diante da obrigatoriedade da crença, a prodigalidade parece ter sido a sua contrapartida às ideias de contrato e previdência.

O quarto capítulo apresenta as razões de outra recusa: a não incorporação de métodos e técnicas do sistema econômico moderno, em especial, da agricultura como forma de produção de excedente e da domesticação de animais para reprodução. Inspirando-se em (Sahlins, 1994, p.163), Felippe procura de- monstrar que as razões dessa recusa não se resumiam a uma divergência de percepções ou aos limites do entendimento dos povos nativos, conforme alegavam os missionários e agentes burocráticos ou coloniais, pois “o problema não era empírico, nem tampouco prático: era cosmológico”. Daí os índios que optaram por ou foram cooptados a viver nos povoados missioneiros não terem se dedicado à domesticação de animais, tampouco demonstrado interesse pela manutenção do “stock de subsistência” oferecido nas haciendas. A recusa à domesticação seria, desse modo, o “efeito de uma impossibilidade”, pois “tudo se passa como se entre o amansamento dos animais autóctones passíveis de ser caçados e sua domesticação verdadeira havia um passo que os ameríndios sempre se recusaram a dar” (Descola, 2002, p.103, 107). A resiliência indígena frustrava os missionários, que denunciavam o fato de consumirem “com desordem o rebanho destinado a sua manutenção” (Fernández, 1779 apud Felippe, 2014, p.315) e de sua economia de produção alimentar se limitar ao consumo imediato, mesmo nos casos de povos horticultores.

A invasão europeia no Chaco e o avanço da empresa colonizadora provocaram grande movimentação de povos indígenas, bem como o seu decréscimo populacional e o extermínio de tribos marginais à área chaquenha. Diante das transformações por que passaram, não podemos negligenciar a distância que se impõe entre os modos de vida indígena pré e pós-conquista. Entretanto, há um inegável “ar de familiaridade” (Fausto, 1992, p.381) entre os relatos sobre os chaquenhos dos Setecentos analisados por Guilherme Galhegos Felippe e os povos que hoje se encontram nessa região, o que torna o seu livro leitura obrigatória para antropólogos e historiadores interessados no Grande Chaco e em suas ressonâncias com a história e a cultura dos povos indígenas das Terras Baixas da América do Sul.

Referências

DESCOLA, Philippe. Genealogia dos objetos e antropologia da objetivação. Horizontes Antropológicos, v.8, n.18, p.93-112, 2002. [ Links ]

ECHEVERRI, Juan Álvaro. La etnografía del Gran Chaco es amazónica, In: TOLA, F. et al. Gran Chaco. Ontologías, poder, afectividad. Buenos Aires: Asociación Civil Rumbo Sur, 2013, p.41-43. [ Links ]

FAUSTO, Carlos. A dialética da predação e da familiarização entre os Parakanã da Amazônia oriental: por uma teoria da guerra ameríndia. Tese (Doutorado) – PPGAS-Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 1997. [ Links ]

FAUSTO, Carlos. Fragmentos de História e Cultura Tupinambá: da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.381-396. [ Links ]

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LONDOÑO SULKIN, Carlos David. People of Substance: An Ethnography of Morality in the Colombian Amazon. Toronto: University of Toronto Press, 2012. [ Links ]

MITCHELL, Peter. Horse nations: The Worldwide Impact of the Horse on Indigenous Societies Post-1492. Oxford: Oxford University Press, 2015. [ Links ]

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. [ Links ]

SANTOS-GRANERO, Fernando. Vital Enemies: Slavery, Predation and the Amerindian Political Economy of Life. Austin: University of Texas Press, 2009. [ Links ]

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TAYLOR, Anne-Christine. Dom Quixote na América: Claude Lévi-Strauss e a antropologia americanista. Sociologia & Antropologia, v.1, n.2, p.77-90, 2011. [ Links ]

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Notas

2A palavra “chaco” deriva do Quechua e significa “grande território de caça” (MITCHELL, 2015, p.15).

Messias Moreira Basques Júnior – Doutorando em Antropologia Social, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

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América aborigen: de los primeros pobladores a la invasión europea – MANDRINI (S-RH)

MANDRINI, Raúl. América aborigen: de los primeros pobladores a la invasión europea. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2013. 289 p.  Resenha de: ZAPATA, Horacio Miguel Hernán. Um recorrido por la Historia de la América Precolombiana: uma reseña de homenaje y despedida. SÆCULUM Revista de História, João Pessoa, [34] jan./jun. 2016.

Reseñar un libro nunca es una tarea sencilla, pero siempre resulta apasionante, puesto que uno siente que realizar una lectura atenta, detenida y profunda de la obra con el fin de darla a conocer constituye, pues, un indudable privilegio que sólo puede presentarse en contadas ocasiones. Sí, escribir la reseña de un libro no es una tarea simple. Y en el caso del libro América aborigen. De los primeros pobladores a la invasión europea, resulta ser una tarea aún más difícil y compleja, puesto que nos enfrenta a una obra que fue escrita por un historiador de talla como Raúl Mandrini, uno de los investigadores más conocidos en el medio académico argentino y con una amplia proyección en el mundo latinoamericano y europeo. Habiendo atesorado una prolífica carrera académica docente e investigativa con el correr de los años2, Raúl Mandrini contribuyó – desde el regreso de la democracia en Argentina (1983) – a un giro fundamental en la historiografía de los pueblos indígenas, presentando una visión original y renovada de esos temas y dejando una fuerte impronta en los estudios históricos sobre las poblaciones indígenas y los múltiples contactos que existieron entre el mundo de los nativos y el de los “blancos” o criollos, con claras proyecciones en las producciones posteriores. Son numerosos los investigadores que completaron su formación y dieron los primeros pasos de una carrera de destacada producción académica gracias a su visión y generosa capacidad de reconocer talentos.  Y qué decir de los retos intelectuales frente al producto de uno de esos autores que, debemos confesarlo, concitó nuestra atención y entusiasmo desde temprano, al punto de que somos conscientes de que ha marcado – y sigue haciéndolo – nuestra propia y actual carrera como docente e investigador universitario. Para quienes tuvimos la posibilidad de conocer y conversar con Raúl Mandrini, nos encontramos con uno de esos grandes eruditos en un mundo de sabios del fragmento, sin por ello dejar de ser un especialista de la primera hora, muy riguroso y crítico; pero sobre todo, una excelente persona a nivel humano, un hombre amable, honesto, sensible, abierto y comprometido con una sociedad más democrática y plural. Más aún, cómo confeccionar una reseña cuando la triste noticia de que Raúl Mandrini ha fallecido recientemente – 23-XI-2015 – pareciera dejar sin sentido tal empresa, sugiriendo que la redacción de esas habituales “palabras de despedida” sería, en todo caso, la tarea más correcta y apropiada en este momento.  Frente a esta serie de condicionantes, nos preguntamos ¿cómo no caer en el terreno de un halago meramente formal que nos impidiera expresar nuestras propias opiniones en relación a los aportes del libro y, además, evitar el exceso descriptivo sin dejar de destacar la importancia que el contenido de la obra en cuestión puede ofrecer al lector? Por otro lado, ¿cómo soslayar el enfocarse en aquellos temas que resultan más afines a nuestro interés en desmedro de otros que no son tan atractivos para nosotros? Finalmente, ¿cómo evitar ser aburrido o reiterativo, sobre todo suponiendo que el que tiene el libro entre sus manos – o la posibilidad de acceder a él – lo leerá completamente? En definitiva, ¿de qué modo es posible congeniar la revisión crítica y la enorme responsabilidad del merecido homenaje a una persona cuya impronta se ha transformado en legado? Son estos interrogantes las razones que hacen que escribir una reseña del último libro del profesor, del historiador, de Raúl – como me dijo “tutéame sin problemas” – sea un gesto que (nos) cuesta mucho.   Sin embargo, decidimos construir esta recensión a partir del modo que, quizás, nos hubiera aconsejado seguir, procurando dar cuenta de la cantidad y densidad de los problemas abordados en las casi trescientas páginas que abarca el volumen de América aborigen. De los primeros pobladores a la invasión europea, una obra que ya constituye un referente obligado del mundo académico latinoamericano sin lugar a dudas. A riesgo de que esta última afirmación pueda resultar una fórmula muchas veces repetida, no queremos dejar de usarla por varios motivos. En primer y contenido en el título, puesto que justamente se aboca a recuperar la historia – mal conocida, cuando no expresamente borrada de la memoria histórica – de la vida y la cultura de los diferentes pueblos que ya llevaban habitando varios milenios el continente en los momentos iniciales de la conquista.  Este libro, enmarcado en el emprendimiento más amplio de la colección Biblioteca Básica de Historia del sello editorial Siglo XXI, es un producto de una historia social, esto es, una reconstrucción del pasado prehispánico diferente de aquellos análisis que pueden ofrecer los arqueólogos y antropólogos sociales, quienes por muchos años fueron los que indagaron acerca de estas sociedades dadas las tradiciones disciplinares forjadas al calor de las ideologías decimonónicas. Pero a la vez un tratamiento específico, que procura dejar en claro que la historia no es una verdad fijada de una vez y para siempre, sino que se trata de una construcción intelectual que forjamos desde el presente, producto de los trabajos sucesivos que en conjunto van modificando la comprensión del pasado prehispánico. De esa manera, el autor parte de una noción de que no sólo el futuro es impredecible – por el hecho de que está siendo construido – sino que incluso el ayer nunca es cerrado y definitivo. En concordancia con estas premisas, Raúl Mandrini cuestiona los parámetros sobre los cuales se asentó la historiografía americanista del siglo XIX y gran parte del XX, que mostró a estos colectivos sociales como “pueblos sin historia” o – en algunos casos – de poca antigüedad, homogéneos en términos culturales y raciales, primitivos y estáticos. Amparado en una concepción específica de la historia social, su propuesta contribuye a confirmar la antigüedad de la presencia de estas comunidades, su gran diversidad y heterogeneidad, la complejidad de sus formas de organización económica, social y cultural, sus elaboradas expresiones artísticas y estéticas, sus destrezas y habilidades para adaptarse a un medio a veces hostil, las profundas transformaciones que experimentaron y, en definitiva, el dinamismo de su vida histórica.  En segundo lugar, es una obra de síntesis que trata de delinear una perspectiva general, sistemática y organizada del pasado (o los pasados) de esas poblaciones originarias a partir de una narración atrapante donde su objeto nunca se desdibuja, por lo que su redacción no puede más que concebirse como un esfuerzo por compaginar el ingente volumen de información – producto de los impresionantes avances de la investigación arqueológica y la disponibilidad de un mayor número de testimonios – que conforma el estado actual de nuestro conocimiento sobre los entornos ecológicos y las prácticas socioculturales de aquellas sociedades. Por tanto, su composición deja entrever las virtudes de quien, como Mandrini, domina de modo magistral tanto la profesión docente como el oficio de historiador, permitiéndole ofrecer un texto de lectura sencilla, elocuente y accesible, sin que su apego a la rigurosidad del conocimiento científico signifique sobrecargar la obra con los tecnicismos de la jerga académica, las complejidades del lenguaje científico y el abuso de la cita erudita. Esto no ha impedido que el autor dote varias de sus afirmaciones con cierto tono hipotético o que no refleje las polémicas vigentes y si no las soluciones para las mismas, al menos algunas de las distintas interpretaciones que al día de hoy coexisten y compiten sobre una misma problemática. Y ello no sólo hace más interesante al libro, sino que además lo convierte en el reflejo de um mundo académico en perpetuo debate y construcción.  A lo largo del volumen se traza un cuadro de una historia cercana a veinte milenios, marcada por profundas y complejas dinámicas sociohistóricas, desde los primeros pobladores hasta el surgimiento de las formas económicas y sociopolíticas más complejas, expresadas en las dos grandes construcciones estatales encontradas por los españoles, los imperios azteca e inca. La obra concluye en torno al año siglo XV, momento en que la presencia de los europeos, a través de sus instituciones y prácticas políticas, económicas, sociales y culturales, trastocó definitivamente el mundo social y espiritual aborigen. En lo que atañe al marco espacial es necesario remarcar la flexibilidad y pertinencia de su dilucidación, en la medida en que Mandrini sortea los escollos de las historiografías latinoamericanas nacionalistas que proyectaron los límites geopolíticos y las jurisdicciones contemporáneas – nacionales o provinciales – sobre las realidades que se remontan milenios atrás y plantea que es preciso tener en cuenta que la percepción misma de los medios y paisajes, así como la organización del espacio, de las poblaciones indígenas eran distintas de las nuestras. Con destreza analítica el autor explicita que las experiencias vividas a lo largo de la historia de estas sociedades evidencian la ocupación de una gran heterogeneidad ecológica, en la cual se ven implicados una pluralidad de climas, suelos, ambientes y recursos, logrando así sintetizar tanto los cambios como las continuidades y mostrar que las comunidades humanas no eran receptoras pasivas de ellas, sino que actuaban sobre el medio y lo transformaban.  En vinculación con este conjunto de consideraciones, otro aspecto que diferencia este libro de otros volúmenes dedicados a la historia de la América precolombina es la organización de los contenidos y del relato, la cual en este caso se presenta alejada de los marcos historiográficos comúnmente aceptados, así como de las periodizaciones arqueológicas convencionales, al tiempo que enfatiza el análisis de los grandes procesos sociales que vivieron los pueblos indígenas americanos por sobre la descripción de la cultura material y documentos. Tampoco se arroga la ciclópea tarea de ensayar una historia total, sino que por el contrario se centra en las experiencias más significativas que atravesaron aquellas poblaciones originarias en el curso del tiempo y que permiten comprender de manera vívida y sugerente los significados que una comunidad atribuye a los acontecimientos en los que participa. Así, el libro consta de una introducción, diez capítulos, un epílogo y un acápite con bibliografía comentada, en el que el lector puede encontrar textos de referencia susceptibles de ser consultados ante cualquier duda o intento de profundización de una temática particular o un período específico. De igual modo, la presente edición se encuentra por fortuna profusamente acompañada por mapas, imágenes y fuentes, un aspecto que merece subrayarse precisamente porque en tanto recurso bien empleado, contribuye a hacer entender de mejor manera las explicaciones y reforzar el sentido del texto, haciendo más vivida la historia, pero también posibilita concientizar sobre el significado e importancia de ese patrimonio histórico y cultural.  Luego de la introducción, destinada a plantear sintéticamente algunas cuestiones vinculadas a los desafíos que significa construir una historia social del mundo indígena prehispánico, el primer capítulo ofrece un panorama general de las poblaciones del continente en la etapa inicial de las exploraciones españolas, hacia 1500. Además de reseñar lo que serán las “grandes civilizaciones” de Mesoamérica y los Andes, sobre las que profundizará más adelante, ofrece una breve aproximación a las sociedades de las tierras frías y templadas de América del Norte, el área intermedia y las zonas orientales y meridionales de regiones bajas tropicales y subtropicales de América del Sur. La decisión de comenzar el libro con ese momento encuentra su justificación en una doble premisa: en primer lugar, dejar en claro que América no era un continente vacío ni poco poblado, y que los espacios no ocupados eran aquellos donde las condiciones ambientales eran tan extremas que hacían imposible la vida humana; y en segundo lugar, mostrar la multiplicidad de adaptaciones creadas por las comunidades humanas, la variedad de formas económicas, sociales y políticas, y la diversidad y riqueza de sus manifestaciones culturales. Seguidamente a los procesos generales del poblamiento del continente, Mandrini aborda el carácter de los primeros antiguos cazadores-recolectores que pudieron adaptarse a ambientes desiguales y aprender a explotar una variedad de recursos a lo largo de diversas latitudes, entre cuyas transformaciones más fundamentales para hacerlo aparecen el paso al modo de vida sedentario en aldeas y la domesticación de plantas y animales.  En los siguientes acápites, el autor profundiza en las implicancias que tuvieron el avance de la producción de alimentos, el aumento sostenido de la población, el afianzamiento de las aldeas y la incorporación de la alfarería y la metalurgia para las poblaciones de Mesoamérica y los Andes centrales y meridionales, bases para el ulterior proceso de emergencia de desigualdades sociales, formación de grandes áreas de interacción e integración regional y, más tarde, de unidades sociopolíticas de tamaños variables en dichas macro-regiones. Se estudian las diferentes tradiciones político-culturales que resultaron en ambas áreas de la profundización de las diferencias sociales, la consolidación de las sociedades urbanas y la emergencia de los primeros Estados fuertemente regionalizados, fenómenos que a su vez implicaron la expansión de las economías políticas, el incremento del poder de las elites urbanas al vincularlo con el mundo de las divinidades y el surgimiento de estilos artísticos bien definidos. También se ocupa sobre los procesos de crisis y colapso de las unidades políticas, así como también de las nuevas tendencias a la regionalización que estuvieron acompañadas por el incremento de la violencia, la inestabilidad política, el retroceso en las condiciones medioambientales y el desplazamientos de poblaciones.  En último capítulo Mandrini enfoca su atención en la construcción de las formaciones políticas más extensas y complejas del mundo prehispánico con las que se toparon los españoles, los imperios azteca e inca, que dominaron más de la mitad del territorio mesoamericano y los Andes centrales y meridionales respectivamente. Una especial consideración merece en esta sección el profundo razonamiento explicitado por el autor acerca de que más allá de sus diferencias, las políticas imperialistas de estos Estados compartían un punto en común: recogiendo tradiciones y experiencias anteriores, ambos lograron someter a un abigarrado mosaico de poblaciones cultural, política y lingüísticamente diferentes, exigiéndoles tributos y distintas prestaciones o servicios. El libro se cierra con el epílogo donde se vierten algunas líneas acerca del impacto de la presencia europea sobre las sociedades aborígenes.

Sin demérito de las aportaciones mencionadas hasta el momento – ya que todas evidencian ser fruto tanto de una profunda investigación empírica como de una reflexión teórica sensata –, una cuestión que sorprende es la falta de una mayor atención sobre otras poblaciones amerindias, especialmente aquellas que habitaron en las llanuras y planicies del tercio meridional de América del Sur y las zonas interiores de las grandes cuencas fluviales tropicales del Orinoco, el Amazonas y el Plata, más allá de lo expuesto escuetamente en el capítulo segundo. Desde luego, este hecho no es el resultado de una decisión deliberada de excluir a tales sociedades indígenas, sino que puede obedecer a otra serie de razones. En principio, puede decirse a favor de Mandrini que gran parte de esas poblaciones originarias, en particular las comunidades que en el curso del tiempo vivieron en el actual territorio argentino y sus regiones vecinas, fueron objeto de otro de sus libros de divulgación que publicó en la misma colección y sello editorial3, por lo cual volver a trazar esa historia resultaba ser una elección poco inteligente cuando el campo historiográfico ya cuenta con un excelente volumen que pone el foco sobre los grandes procesos sociales atravesados por esas poblaciones. No obstante, no dejan de brillar por su ausencia algunos capítulos que reflejen la vida de las poblaciones originarias de la región amazónica de la América del Sur, sociedades suficientemente investigadas y documentadas en libros y artículos de revistas editados en las últimas décadas. En vistas de esto, hubiera sido deseable que Mandrini ahondara más en la experiencia de tales comunidades humanas, favoreciendo así a un mejor conocimiento – mucho más claro y explícito – de la antigüedad de su presencia en el entorno selvático, sus destrezas para adaptarse a un medio a veces hostil, su gran diversidad sociopolítica y heterogeneidad cultural y la complejidad de su universo simbólico. Esto permitiría entender los mecanismos concretos que les han posibilitado conservar modalidades de organización sociopolíticas laxas y segmentarias pese a estar en contacto con sociedades mucho más centralizadas, cuestiones tan centrales a la problemática que convoca el libro.  Respecto de esta llamativa ausencia temática en un producto de divulgación elaborado por un especialista como Mandrini, podemos enunciar – al menos – dos razones. En primer lugar, la larga vigencia, dentro del mercado editorial de contenido histórico, de una perspectiva historiográfica localizada casi exclusivamente en las denominadas “altas culturas” de Mesoamérica y Andes, fuente inagotable de orgullo nacionalista para ciertos países – como México, Perú y Bolivia – y objeto de numerosos proyectos de investigación, mientras que las sociedades de áreas culturales consideradas “marginales”, aquellas que usualmente habitaron las periferias de las “grandes civilizaciones”, no han recibido la misma atención por parte de los especialistas ni han sido objeto de una revalorización equivalente en las obras sobre historia indígena precolombina. Y en segundo lugar, el escaso diálogo del medio académico argentino con los estudios arqueológicos y etnohistóricos acerca de las poblaciones amazónicas, llevados a cabo principalmente por antropólogos, historiadores y arqueólogos de Brasil y que tanto han hecho para reconocer el lugar de la Amazonía antigua en la historia americana. Esta particular deuda con la historiografía amazónica constituye una situación que merece ser reevaluada en el futuro, procurando acortar la brecha aún existente entre ámbitos y especialidades, buscando ampliar los contactos personales de los estudiosos y potenciar la formación de redes académicas, propiciando tanto la articulación de proyectos individuales en programas más amplios de investigación interdisciplinaria como la organización de reuniones científicas internacionales que sirvan para socializar y discutir los resultados; todo un conjunto de actividades que permitan reconocer la variedad de formaciones sociales nativas que han coexistido e interactuado, contribuyendo a una comprensión más íntegra de un mundo indígena sumamente complejo, heterogéneo, dinámico y contrastante.  Más allá de estas últimas puntualizaciones críticas, es indudable que este último volumen que nos legó Raúl Mandrini constituye un gran aporte a la historiografía y antropología americanas al ofrecer, a través de una perspectiva original, sintética y rigurosa, una recorrido ágil y, sobre todo, una prosa sencilla y directa, una muy buena obra de divulgación para aquel que desee conocer el pasado de estas sociedades. Un libro como éste se convierte rápidamente – como ha ocurrido con otros materiales del mismo autor pensados con el mismo propósito4 – en un insumo básico y obligatorio para estudiantes, docentes e investigadores. Son éstos tipos de producciones sólidas las que motivan la disposición de continuar explorando novedosos medios para investigar y divulgar una amplia, prolífica y compleja realidad sociocultural que todavía ofrece mucha tela para cortar: las diversas historias de las sociedades originarias del continente americano.

Notas

2 Raúl Mandrini se graduó de Profesor de Historia en la Universidad de Buenos Aires. Se desempeñó como docente en las Universidades Nacionales de Buenos Aires (UBA), Lomas de Zamora (UNLZ), Salta (UNSa), del Centro de la Provincia de Buenos Aires (UNCPBA), Rosario (UNR), y Luján (UNLu). Se inició en la UBA como Ayudante de Trabajos Prácticos en 1965, culminando como Profesor titular en las tres últimas. Por razones políticas permaneció alejado de la vida académica entre 1975 y 1983. Entre enero y marzo de 1989 fue profesor invitado en la Universidad Autónoma de Puebla (México). En la UNCPBA, se desempeñó como Profesor Titular con dedicación exclusiva, cargo obtenido por concurso público en 1985, por segunda vez en 1991, renovado por el Consejo Superior en 1996, y renovado nuevamente por Concurso Público en 2004, teniendo a su cargo las cátedras de Historia General II (Antigua) e Historia de América I (Prehispánica). Renunció por jubilación en abril de 2009. Dictó además, como profesor invitado o visitante, seminarios y cursos especiales de grado y postgrado en universidades argentinas y del exterior (México, Uruguay, Chile, España). Inició su trabajo en investigación como Auxiliar de Investigaciones en el Instituto de Historia Antigua Oriental de la Facultad de Filosofía y Letras de la UBA entre 1965 y 1972. Durante 1985 fue becario del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) de la República Argentina, y adscripto al Instituto de Ciencias Antropológicas de la UBA. Ingresó por concurso al Sistema de Apoyo para Investigadores Universitarios (SAPIU) de CONICET. Desde su fundación en 1986, y hasta su jubilación en 2009, fue investigador titular del Instituto de Estudios Histórico-Sociales de la UNCPBA, institución de la que fue director entre 1992 y 2000. Fue además investigador visitante en el Instituto de Investigaciones Antropológicas de la Universidad Nacional Autónoma de México, el Centro Nacional Patagónico dependiente del CONICET, la Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales y la Universitat de Girona. Desde 2010 y hasta su fallecimiento fue Investigador adscripto, con categoría de Profesor Titular interino (ad-honorem), en el Museo Etnográfico “Juan Bautista Ambrosetti” dependiente de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Participó en congresos y jornadas científicas en Argentina y el exterior con presentación de ponencias; dictó seminarios, conferencias y cursillos sobre temas de su especialidad en instituciones públicas y privadas de distintas ciudades de la Argentina (Buenos  Aires, Bahía Blanca, Azul, Tandil, Balcarce, Olavarría, Salta, Jujuy, Río Gallegos, Mar del Plata, Posadas, Trelew, La Plata, Venado Tuerto, Carmen de Patagones, Santa Rosa, Neuquén, Necochea y Puerto Madryn) y del exterior (México, Monterrey, Saltillo, Temuco, Montevideo, Madrid, Barcelona, Gerona, Huelva, Sevilla, Cádiz, Providence, Pittsburgh y Filadelfia).   MANDRINI, Raúl. La Argentina aborigen. De los primeros pobladores a 1910. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2008.

Raúl J. Mandrini publicó Volver al país de los araucanos (en coautoría con Sara Ortelli, Buenos Aires: Sudamericana, 1992), Las fronteras hispanocriollas del mundo indígena latinoamericano en los siglos XVIII y XIX. Un estudio comparativo (compilado junto a Carlos Paz, Tandil: IEHS-UNICEN, 2002), Los indígenas de la Argentina. La visión del “otro” (Buenos Aires: Eudeba, 2004), Vivir entre dos mundos. Las fronteras del sur de la Argentina. Siglos XVIII-XIX (Buenos Aires: Taurus, 2006) y Sociedades en movimiento. Los pueblos indígenas de América Latina en el siglo XIX (compilado junto a Antonio Escobar y Sara Ortelli, Tandil: IEHS-UNICEN, 2007).

Horacio Miguel Hernán Zapata –  Historiador. Doctorando en Humanidades y Artes por la Universidad Nacional de Rosario. Becario del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – CONICET, Argentina. E-Mail: <[email protected]>.

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[MLPDB]

O pensamento mestiço – GRUZINSKI (RBH)

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 398p. Resenha de: GIL, Antonio Carlos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

Neste seu novo livro, Serge Gruzinski, historiador francês, diretor de pesquisa do Centre Nacional de la Recherche Cientifique (CNRS) e diretor de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), comenta em suas páginas iniciais a experiência precursora de Aby Warburg, um famoso historiador da arte de inícios do século XX. Warburg, imbuído de um olhar antropológico, descobrira um vínculo entre a cultura dos índios hopis do Novo México e a civilização do Renascimento. Gruzinski também se volta para esta relação, pois um dos objetivos centrais deste seu novo livro é observar como os povos ameríndios da segunda metade do século XVI, estão impregnados de diversos elementos europeus e vice-versa. Ou seja, se trataria de fato do estudo de culturas mestiças.

Gruzinski, ao abordar este tema, faz sempre uma ponte com o presente. Afinal, vivemos ainda mais radicalmente hoje as influências do processo de mundialização que se iniciou com a expansão européia no século XVI. Da Amazônia a Hong Kong vivemos em mundos mesclados, onde temos que nos esforçar para juntar os fragmentos que nos chegam por todas as partes, hoje em escala planetária. Nossas práticas atuais foram inauguradas no México do Renascimento (p. 90). A narrativa de Gruzinski demonstra que o arcaico é um engodo e que estamos profundamente contaminados pela modernidade. Sua epígrafe retirada de Mário de Andrade: “Sou um tupi tangendo um alaúde”, que também encerra o seu livro, exprime de maneira simbólica o que o autor irá demonstrar em todo o decorrer do livro. Vários traços característicos das sociedades analisadas, no caso, as sociedades indígenas da América Espanhola do século XVI, provêm da Península Ibérica e da Itália do Renascimento e não do distante passado pré-hispânico. O fenômeno da mestiçagem manobra com um número muito grande de variáveis que muitas vezes fogem à percepção dos historiadores. Além da grande complexidade das mestiçagens, o autor demonstra que havia e ainda há uma grande desconfiança em relação ao tema. Gruzinski estende a sua crítica aos antropólogos amantes de arcaísmos e de “sociedades frias” ou de tradições autênticas. Gruzinski certamente, ao escolher o título de seu livro, quer marcar sua distância do autor de “O pensamento selvagem”. Em seu primeiro capítulo, de fato, critica a antropologia estruturalista por ter desprezado a importância dos processos de recomposição permanente, privilegiando por sua vez as totalidades coerentes, estáveis e com contornos tangíveis. A todos que ignoram os efeitos da colonização ocidental e as reações que se desencadearam, o autor acusa de ocultadores da história, sem a qual é impossível conhecer a profundidade essencial desse processo.

Gruzinski tem a preocupação de tentar definir o que seria o conceito de mestiçagem. Tarefa difícil na medida em que os termos “mistura”, “mestiçagem” e “sincretismo” são carregados de diversas conotações e a priori (p. 42). Gruzinski alerta que a compreensão do termo choca-se com os hábitos intelectuais que preferem os conjuntos monolíticos e os clichês e estereótipos em vez dos espaços intermediários (p. 48). Alerta também para as ciladas que se impõem quando se utilizam os conceitos de cultura ou identidade. Neste sentido, o autor critica aos que “evocam a existência de uma ‘América Barroca’ ou uma ‘economia do Antigo Regime’ como se pudesse se tratar de realidades homogêneas e coerentes, das quais só restasse estabelecer os traços originais” (p. 54). Ou seja, Gruzinski adverte que para analisarmos as mestiçagens, nós, historiadores, precisamos “submeter nossas ferramentas de ofício a uma crítica severa e reexaminar as categorias canônicas que organizam, condicionam e, com freqüência, compartimentam as nossas pesquisas” (p. 55). Na análise que Gruzinski se propõe, emprega o termo “mestiçagem” para designar as misturas que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos imaginários e formas de vida, vindos de quatro continentes, América, Europa, África e Ásia. Já o termo “hibridação” é utilizado por Gruzinski na análise das misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilização ou de um mesmo conjunto histórico (p. 62).

Ao analisar o momento da conquista, Gruzinski relembra que a chegada dos europeus gerou altas turbulências e foi sinônimo de desordem e caos, e que sem esta noção em mente não podemos compreender a evolução da colonização e as misturas provocadas pela conquista (p. 73). Surgiram o que o autor chama de “zonas estranhas” onde a improvisação venceu a norma e o costume, ou seja, os vínculos que ligaram os espanhóis e as populações ameríndias foram profundamente marcados por indeterminações, precariedades e improvisações. Havia um déficit constante nas trocas que se estabeleciam, visto que se relacionavam fragmentos e estilhaços da Europa, da América e da África. Além do impacto da conquista, Gruzinski desenvolve em um de seus capítulos outro processo que considera importante na formação das mestiçagens na América Espanhola: a ocidentalização. Ela operou a transferência para o nosso lado do Atlântico dos imaginários e das instituições do Velho Mundo (p. 94). Um dos elos essenciais dessa ocidentalização foi a cristianização.

Ao considerar o processo de ocidentalização, Gruzinski passa a abordar a cópia indígena. Fruto da demanda de uma clientela espanhola ou indígena, ávida por objetos de estilo europeu, a reprodução indígena, ou melhor, a noção de cópia acabou por se revelar extremamente elástica. Gruzinski demonstra que a concepção européia de reprodução deixava um campo considerável à interpretação e à invenção. Neste ponto, o autor começa a analisar o que consideramos o cerne deste seu novo livro: as mestiçagens da imagem.

De uma forma bastante criativa, Gruzinski, ao analisar os frisos do desfile das Sibilas que se encontram na “Casa do Decano” em Puebla ou os afrescos que enfeitam a igreja agostiniana de Ixmiquilpan, foge dos esquematismos e clichês construídos em relação aos índios da América, que sempre se referem aos esplendores das civilizações pré-colombianas ou à decadência inapelável que teria se sucedido (p. 131). Gruzinski demonstra que os indígenas, que pintaram as imagens analisadas, se inspiraram nas obras de Ovídio, principalmente em “As metamorfoses”, e adaptaram motivos clássicos de modo a dar às cenas indígenas um aspecto antigo. Gruzinski acredita que a razão para tantos esforços em unir os motivos ovidianos e indígenas seria maquiar as inúmeras reminiscências pagãs cujas conseqüências reflexivas poderiam assim estar fora do alcance de um espírito europeu.

Gruzinski direciona o nosso olhar para um espaço ornamental — os frisos. Seriam estes espaços um local dedicado às frivolidades da decoração, aos efeitos superficiais e ao culto do pormenor? Gruzinski afirma que é preciso reconsiderar o papel das margens e do ornamento na arte européia e a devolver a esses espaços o papel e o significado que lhes cabem. Gruzinski também põe em relevo a importância do maneirismo na proliferação do gosto pelo bizarro, pelos fenômenos estranhos e monstruosos, que influenciou o uso dos grotescos europeus pelos artistas mexicanos — os tlacuilos. Os grotescos revelam o gosto da época pelos arabescos e bestiários fantásticos. Em sua análise, Gruzinski demonstra que os grotescos permitiram a troca entre dois mundos — o indígena e o europeu. Neste sentido, o autor se volta para este objeto tão pouco estudado mas essencial para o processo de localização de engrenagens e processos de mestiçagem. Os grotescos europeus, ainda que explorem tendências decorativas, privilegiam metamorfoses e hibridações que estão presentes no pensamento do Renascimento. A contribuição de Gruzinski se dá pelo fato de constatar que a hibridação presente nas gravuras analisadas se transforma, em solo mexicano, em mestiçagens, uma vez que houve naquele momento um alargamento gigantesco de horizontes (p. 193). Cabe ressaltar que Gruzinski, em relação ao seu conceito de mestiçagem, não trabalha com a idéia de choque, justaposição, substituição ou mascaramento. O autor considera que o processo resultante da mestiçagem não é um puro produto dos meios que o engendraram. Neste sentido, o autor prefere trabalhar com a idéia de “atraidor” que à maneira de um ímã permite ajustar entre si peças díspares, reorganizando-as e dando-lhes um sentido (p. 197). Ou seja, ao unir concepções diversas, o atraidor possibilita a expressão de um pensamento mestiço, como podemos ver nos afrescos indígenas, no mapa-paisagem da cidade de Cholula ou nos cantares indígenas mexicanos.

Gruzinski se apropria da expressão “culture of disappearance” utilizada pelo sociólogo Ackbar Abbas, que analisa a situação de Hong Kong no último decênio do século XX (p. 315). Gruzinski considera míopes os que reduziram o passado do México a uma história de massacres e destruições, e que por muito tempo ignoraram ou fizeram desaparecer as formas singulares do Renascimento indígena (p. 316). Os nobres mexicanos, para evitar serem assimilados ou reabsorvidos, tiveram que aprender a “sobreviver a uma cultura de desaparecimento” adotando estratégias para tirar partido de mutações, evitando a hispanização pura e simples (p. 316). Portanto, o autor de uma maneira bastante feliz descarta as ciladas da marginalidade que apenas consolida o centro, assim como escapa às ilusões do local, percebido de forma ideal como um porto seguro que teria conservado a antiga pureza (p. 317).

Gruzinski, o tempo todo, nos alerta que o conjunto de componentes extremamente diversos como os pictogramas, os grotescos, as fábulas antigas, os cromatismos, os efeitos luminosos, frutos do encontro e do enfrentamento, não de duas culturas, mas do que ele chama “dois modos de expressão e comunicação” (p. 273), pertencem a um espaço novo, a uma “zona estranha” (p. 243), cuja compreensão depende da invenção de novos procedimentos de análise.

Os artistas da cidade do México no século XVI, assim como os cineastas de Hong Kong, segundo o autor, elaboraram novas práticas da imagem, ao mesmo tempo que desestabilizaram e distorceram os gêneros, sejam eles os grotescos do Renascimento, os velhos cantares ameríndios ou os filmes de kung-fu (p. 319).

Este livro de Gruzinski, além de ser uma obra de grande erudição, também é uma lição de método. A nós, historiadores, propõe que estejamos atentos à interdisciplinaridade e a todas as formas de expressão que permitam um enriquecimento das formas de análise de nosso objeto de estudo. Como disse anteriormente, Gruzinski faz diversas pontes com o presente. O seu estudo do México espanhol após a conquista não impede que analise certas questões contemporâneas como a mundialização, a “World Culture” e a influência cada vez mais predominante dos Estados Unidos. Gruzinski, por exemplo, analisa em seu livro os filmes de Peter Greenaway “Prospero´s Books” e “The Pillow Book”, e o cinema do diretor Wong Kar-wai procedente de Hong Kong. Um dos filmes de Wong Kar-wai, “Happy Together”, que narra as peripécias de dois chineses em Buenos Aires, dá título a sua conclusão. Ao analisar este filme, Gruzinski, através do olhar do diretor, expõe a força das mestiçagens num mundo onde imperam os fluxos de informação e poder do capitalismo em nível mundial.

Gruzinski está atento à complexidade do tema na medida em que realça os limites que uma mistura pode alcançar, uma vez que pode se transformar em uma nova realidade ou adquirir uma autonomia imprevista. Portanto, o autor sugere que o estudo destes limites com suas conseqüências para o fenômeno da mestiçagem está sendo reservado para um livro futuro. Nele, talvez o autor possa nos mostrar algo que ainda não foi abordado neste livro. Qual será o lugar da cultura mestiça neste processo de mundialização engendrado em escala planetária pelo capitalismo? Gruzinski já demonstrou a impossibilidade do retorno ao passado, do despertar das culturas submetidas. Resta-nos indagar se a cultura mestiça se manterá refém dentro dos limites da tradição ocidental ou se permitirá o surgimento de algo novo que romperá com a lógica do sistema de dominação atualmente vigente.

Certamente o leitor que se dispuser a ler “O Pensamento Mestiço” de Serge Gruzinski, não se decepcionará e poderá se deixar levar pelo prazer de descobrir uma outra América.

Antonio Carlos Amador Gil – Universidade Federal do Espírito Santo.

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 Os Olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação – PRATT (RBH)

PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação. Bauru, EDUSC, 1999, 394p. Resenha de MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.20 n.39, 2000.

O livro de Mary Louise Pratt, Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation. Londres/Nova Iorque, Routledge, 1992, que aparece agora em versão para o português, com o título de Os Olhos do Império. Relatos de Viagem e Transculturação, traduzido por Jézio Gutierre e com revisão técnica desta autora e de Carlos Valero, Bauru, EDUSC, 1999, é um trabalho de grande peso intelectual, que vem sendo profusamente discutido nas universidades norte-americanas, latino-americanas e, em menor escala, no meio acadêmico brasileiro. A presente tradução, facilitando o acesso ao livro, deve sanar esta lacuna.

Obra de grande impacto acadêmico, com discussões teóricas inovadoras e análise minuciosa de uma ampla gama de relatos de viagem, o livro de Mary Pratt encontra-se na intersecção da análise de texto e crítica ideológica. Procurando desvendar não apenas os mecanismos ideológicos e semânticos por meio dos quais os viajantes europeus, a partir de meados do século XVIII, criaram um novo campo discursivo, forjando uma consciência planetária a respeito do outro colonial e suas culturas, a autora associa estes escritos e seus tropos às diferentes fases do expansionismo capitalista e suas conquistas dos territórios interiores do mundo colonial. Neste sentido, é este livro hoje considerado fundamental para a reavaliação dos processos de constituição de um repertório semântico-cognitivo imperialista que se construiu a partir dos anos de 1750, entrelaçando as amplas dinâmicas da expansão do capitalismo em direção às áreas coloniais à produção de um saber que vai criativamente reinventar a realidade colonial, produzindo os novos paradigmas e o repertório de imagens por meio dos quais estas novas dinâmicas puderam ser efetivamente realizadas e implementadas.

Como nota a autora em sua introdução, este livro foi escrito no ambiente acadêmico norte-americano da década de 1980, como parte de um amplo esforço de resistência à onda conservadora que então se impunha, e como exercício de descolonização do conhecimento. Embora se encontre estruturado nos moldes dos estudos acadêmicos, neste trabalho Mary Pratt não se furta à discussão política em seu sentido mais profundo, estabelecendo alguns marcos teóricos para resistência intelectual às análises globalizantes. Conceitos largamente desprezados pelas análises de texto pós-modernas, como os de imperialismo e descolonização, aparecem neste livro contextualizados num recorte teórico afinado com as discussões mais atuais, tornando este um livro que se localiza numa perspectiva interdisciplinar, útil aos estudos da literatura, antropologia, história e outras disciplinas.

Valendo-se da análise de texto e da crítica ideológica, Mary Louise Pratt analisa a literatura de viagem relativa à África no momento em que os europeus lutavam por superar os obstáculos que se antepunham à conquista do território interior do continente, possibilitando o enraizamento dos interesses políticos e comerciais. A autora se volta igualmente para a análise da literatura de viagem sobre a América do Sul, com algumas incursões sobre o México, ressaltando exatamente sua coincidência com o que se convencionou denominar como crise do sistema colonial, eclosão dos movimentos de independência e rearticulação desta área à divisão internacional do trabalho da era imperialista. Neste empreendimento a autora vai propor uma nova visão das relações entre a metrópole e as áreas coloniais, entre o saber europeu e o saber nativo, entre visitantes e visitados, entre viajantes e viajados (neologismo que a autora lança mão para sublinhar o caráter interativo destes encontros). A dimensão da autora é global – mas não globalizante – e é, sobretudo, relacional e interativa, desprezando as análises unilaterais e pretensamente imparciais mas que tomam, por princípio, o olhar imperial e o ponto de vista difusionista como verdade neutra e marco zero analítico. Novos recortes temáticos, novos conceitos e releituras renovadas da literatura imperial permitem que a autora coloque literalmente de cabeça para baixo as interpretações clássicas deste tema, sempre por meio da desconstrução de um universo semântico aparentamente neutro e objetivo. Para tal, alguns conceitos são fundamentais e eu vou apenas nomeá-los rapidamente.

Primeiro o de transculturação, entendido como um fenômeno da zona de contato e que se refere às apropriações dos materiais nativos pelos europeus mas também à maneira pela qual os coloniais se apropriam dos estilos imperiais, construindo eles próprios modos de representação que, absorvidos pelo olhar imperial, constituem um universo cognitivo que passa a ser considerado como originariamente europeu. O termo transculturação foi criado na década de 40 por Fernando Ortiz em seu Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar, e é lá correlacionado ao universo das trocas culturais. Este mesmo conceito foi, na década de 70, utilizado por Angel Rama nos estudos literários. No entanto, parece-me que o uso extensivo do conceito de transculturação em Olhos do Império reporta-se a um universo mais amplo, que é o da constituição de repertórios de símbolos, imagens e discursos que conformam um modo ou estilo cognitivo e um repertório semântico e imagético por meio do qual o outro colonial passa a ser abordado.

Outro conceito fundamental ao livro é o de zona de contato que é compreendido como sinônimo de fronteira cultural, enfatizando as dimensões interativas e improvisadas dos encontros coloniais, pondo em questão como os sujeitos coloniais são constituídos nas e pelas relações entre colonizadores e colonizados, ou viajantes e visitados, em termos de interação e trocas no interior de relações assimétricas de poder. Frente a esta dimensão a autora, invertendo os paradigmas analíticos da análise objetiva, racionalista e eurocentrada do olhar imperialista, faz a pergunta fundamental que, de fato, norteia sua abordagem: Em que medida as construções européias a respeito do outro subordinado teriam sido moldadas pelos próprios subordinados através da construção de si próprios e de seu ambiente tal como eles – os próprios coloniais – os apresentaram aos europeus? Refletindo sobre a constituição do paradigma imperialista, Pratt ressalta a importância da viagem e da literatura de viagem romântico-naturalista como experiência daquilo que se convencionou denominar de modernidade, propondo a crítica aos conceitos reificados que norteiam estas análises e que igualmente legitimam a utilização acrítica dos conceitos da pós-modernidade.

Marcadas por processos culturais complexos norteados pelo racionalismo, pela ciência, pelo romantismo, pela constituição de um self individualizado e pelas teorias raciais, a experiência da viagem e da literatura de viagem se apresentavam como espaço privilegiado para a articulação do novo paradigma imperial. Possibilitando, por meio do deslocamento, a que viajantes e seu público – as sociedades envolvidas com os desafios da modernidade – refletissem a respeito de si próprias, a literatura de viagem, ao mesmo tempo, abria espaço para a construção, por oposição, de um discurso sobre a alteridade e sobre o papel do ocidente no domínio, condução e absorção das sociedades não-ocidentais. Enquanto experiência individual do sujeito-viajante às portas da modernidade, a viagem para terras longínquas surgia claramente como metáfora da viagem interior, suportando experiências pioneiras de subjetividade e auto-conhecimento. Enquanto discurso auto-reflexivo do homem que, ao viajar, observa, reflete e cataloga terras estranhas e povos selvagens, a viagem realizava uma apropriação discursiva das áreas coloniais, dando origem a uma configuração nova, porém extremamente efetiva de conquista, que Mary Louise Pratt denominou de “anti-conquista”, em alusão ao caráter aparentemente pacífico e reflexivo do viajante-naturalista e às características abstratas da apropriação catalagadora por ele promovida.

A literatura de viagem naturalista – masculina, eurocêntrica, com traços edipianos, da dedicação dos filhos viajantes ao pai Lineu, ou mais tarde ao pai Humboldt, ou no caso do Brasil, a Martius – e seu objetivo de estabelecer uma posse intelectual e abstrata de um saber e da natureza, traços sugestivos da idealização e impotência do filho edipiano, expressa um desejo de posse a ser realizado sem violência, que caracterizaria a anti-conquista. Note-se que um dos objetivos explícitos de Olhos do Império é o de discutir as relações entre a viagem, sua literatura e a questão de gênero. Para tal Mary Pratt não apenas sublinhou o caráter androcêntrico da viagem naturalista como dedicou todo um capítulo às viagens realizadas e relatadas por mulheres, procurando determinar as particularidades do olhar feminino sobre as áreas coloniais, bem como sua inserção na construção de formas específicas e variadas da abordagem imperial.

Os estudos acadêmicos sobre o Iluminismo, fortemente eurocentrados, têm freqüentemente negligenciado o papel dos agressivos empreendimentos coloniais e comerciais europeus que funcionaram como modelo, inspiração e base de teste para formas de disciplina social que, re-importadas para a Europa nos finais século XVIII e inícios do XIX, tornaram-se importantes mecanismos sociais na construção da ordem burguesa. É preciso igualmente lembrar que a sistematização da natureza coincidiu com o apogeu do tráfico de escravos, com o sistema de plantation, com o genocídio colonial na América do Norte e na África do Sul, com as rebeliões de índios e escravos nos Andes, Caribe e América do Norte e noutras partes do globo. Na seqüência, Mary Pratt faz uma aproximação entre a célebre acumulação primitiva de capital e a sistematização da natureza que, nela inspirando-se, conduziu a idéia de acumulação a um extremo totalizante. Enquanto base de um gênero literário a literatura de viagem serviu para suprir as necessidades de cultura, educação e lazer das nascentes classes médias européias e norte-americanas, construindo, entre outras coisas, um repertório comum a respeito dos povos selvagens e um consenso sobre a necessidade da intervenção do homem branco no mundo pós-colonial que então se esboçava.

Por meio da crítica ideológica e da desconstrução dos textos naturalistas, a autora também reelabora o conceito de natureza. Segundo nota Mary Pratt, nos escritos de viagem do período, natureza significa antes de tudo regiões e ecossistemas não dominados por europeus, embora incluindo muitas regiões da entidade geográfica conhecida como Europa. A história natural impôs uma autoridade urbana, letrada e masculina sobre todo o planeta, elaborando um entendimento racionalizador, extrativo e dissociativo, que suprimiu as relações funcionais e experenciais entre as pessoas, plantas e animais. O resultado deste processo concretizou-se na prefiguração de uma certa forma de hegemonia global, que deu origem a um paradigma descritivo e uma apropriação do planeta aparentemente benigna e totalmente abstrata, produzindo uma visão utópica e inocente da autoridade mundial européia, a qual a autora se refere como a de anti-conquista.

Conforme sublinha Os Olhos do Império, a literatura de viagem anterior ao paradigma naturalista segue o modelo do antigo relato de viagem marítimo. Neste, o enredo gira em torno das narrativas de aventura e sobrevivência (catástrofes, naufrágios, lutas pela sobrevivência em terras estrangeiras) nas quais a perspectiva analítica é interativa e os nativos podem ainda ser inclusos no mesmo universo institucional dos europeus. Acrescente-se que nesta literatura o marco divisório a partir do qual o europeu julga e classifica a sociedade nativa é a escravidão que estabelece a divisão básica entre o eu e o outro, sendo os escravizados percebidos como brutais e inferiores, mesmo quando o observador, homem, europeu e branco, refere-se às sociedades africanas e à escravidão tradicional e doméstica nelas existente.

Por seu turno, a literatura de viagem que começa a se concretizar com a expedição do geógrafo Charles de la Condamine à América do Sul em 1735 e com as viagens realizadas também em meados do XVIII à África, reflete um empreendimento narrativo, de caráter cumulativo e organizacional, na qual a geografia é minuciosamente documentada e o mundo humano naturalizado. Aqui se reencena Adão no Jardim do Éden nomeando a natureza. A paisagem é descrita como inabitada, devoluta, sem história e desocupada, até mesmo pelo próprio viajante. A atividade de descrever a geografia e identificar a flora e a fauna estrutura uma narrativa a-social em que a presença européia ou nativa é absolutamente marginal, ainda que fosse este, evidentemente, um aspecto constante e essencial da viagem em si. Neste sentido, conforme aponta Mary Pratt, é fácil relacionar esta literatura e sua produção de um corpo sem discurso, desnudo e biologizado com a força de trabalho desenraizada, despojada e disponível criada pelo colonialismo. Nestas descrições, as mudanças são naturalizadas e descritas como lacunas, a historicidade das sociedades locais desaparece e o estado em que os viajantes encontram estas sociedades – muitas vezes já profundamente deterioradas pela influência colonial – é descrito como eterno e atemporal.

Em sua análise, a autora reflete sobre os princípios da anti-conquista mostrando a maneira pela qual esta se legitimava ideologicamente argumentando a existência de uma reciprocidade entre europeus e as sociedades coloniais, entre viajantes e viajados. Utilizando-se de conceitos derivados do discurso das nascentes ideologias liberais e capitalistas, porém contextualizado-os na análise de texto, a autora aponta para a falácia desta suposta troca, que legitimaria a intervenção classificatória do sábio europeu nas áreas coloniais, aqui denominada como zona de contato. Mary Pratt forja o conceito da mística da reciprocidade mostrando que a literatura de viajem naturalista assenta-se sobre as mesmas bases ideológicas e discursivas do capitalismo. Interessante notar que uma parcela do livro concentra-se no enfoque da literatura de viagem sobre a África, como a realizada por Mungo Park e relatada em seu livro Travels in the Interior of Africa, publicado em 1799 (por sinal, lido e citado por Southey quando escrevia a História do Brasil), bem como sobre muitas outras, que aparecem vinculadas aos interesses europeus comerciais e de conquista do interior da África. Entre estas destacam-se as que objetivavam delimitar o curso, direção, nascente e desaguadouro do Rio Niger, com vistas a estabelecer rota transcontinental mediterrânea, que atravessasse a África, supostamente desaguando no Nilo. Por meio da análise destes textos, constrói a autora uma taxionomia da literatura de viagem e das fases da conquista da África. Assim, o viajante naturalista que lança mão da ciência se associa ao aparato estatal e panóptico da vigilância, absorvendo as ambições territoriais dos impérios. Por seu turno, a viagem sentimental (associada às qualidades da domesticidade, interioridade e privacidade), alia-se aos ideais do comércio e da iniciativa privada. Conclui a autora que a mística da reciprocidade na literatura de viagem remonta à mística da reciprocidade das relações capitalistas, embora saiba-se que o capitalismo tem como base exatamente a negação deste princípo na própria base das relações sociais. Neste sentido, a viagem sentimental identifica-se com a fase de tentativa de conquista da África e seus autores com a missão civilizadora que é, em essência, o contrário ideológico e simbólico da reciprocidade

Numa operação ainda mais ousada, Mary Louise Pratt percebe nos conflitos entre raça, relações raciais e movimentos abolicionistas dos finais do XVIII e inícios do XIX nas Américas, os motivos de uma literatura de viagem sentimental, que em seus enredos e soluções narrativas estabelece as relações sentimentais entre homens brancos e mulheres nativas, com a óbvia submissão destas últimas, como codificadora de uma nova solução racial. Isto é, na realidade, as soluções narrativas desta literatura dão forma a uma proposta política reformista em ascensão nesta conjutura, que propõe uma saída humanitária ao problema da escravidão e da assimetria das raças, que seria o da abolição com a manutenção da subserviências das culturas nativas e afroamericanas ao homem branco. Seria o romantismo criação da zona de contato e expressão destas experiências inusitadas de encontros culturais assimétricos e, recambiado para a metrópole, seria apropriado como a mais pura expressão do espírito europeu?

Analisando a literatura de viagem sobre a América hispânica, a autora chama a atenção para a reivenção da América enquanto natureza, operação esta que se concretizou por meio da reatualização do deslumbramento dos primeiros cronistas, sobretudo de Colombo, como se três séculos de colonização não houvessem ocorrido. O grande inspirador desta vertente foi Alexander von Humboldt e, no caso do Brasil, este lugar foi ocupado por Martius. A autora aponta para a historicidade desta reinvenção, pois a América é reinventada como natureza primal e o espanto e deslumbramento inicial são reatualizados como ato histórico, embora a infraestrutura colonial a partir da qual os viajantes se valem para realizar a viagem esteja lá, bem presente, embora completamente eludida nos relatos de viagem. Assim, por exemplo, as solidões andinas, que constituem uma imagem extremamente valorizada por Humboldt, que as descreve em cenas carregadas de dramaticidade. No entanto, sabemos que é nesta mesma solidão que vive a maior parte da população indígena do Peru, tendo sido inclusive o centro de gravidade de grandes civilizações.

A autora descontrói o discurso naturalista, analisando a historicidade da produção do texto em todas as suas instâncias de produção, circulação e apropriação. Ao mesmo tempo, e este me parece é outro aspecto extremamente importante a ser ressaltado, é o fato de que o saber que os naturalistas produzem é na verdade fruto da apropriação do saber nativo. Mais ainda, as relações sociais estabelecidas entre o viajante e as populações coloniais, sejam elas compostas de índios, escravos, autoridades coloniais ou fazendeiros, apenas surgem no texto exercendo funções instrumentais, de informantes, guias ou hospedeiros do viajante. Desta maneira, como aponta Mary Pratt, as populações coloniais surgem no texto em um estado de disponibilidade, que é em si a essência das relacões coloniais. Assim, a natureza ahistórica, as populações instrumentalizadas e despersonalizadas e o processo histórico colonial elidido (e acrescente-se para o caso das antigas civilizações, do México e Peru, a arqueologização da cultura, que desconhece os elos entre aqueles índios decaídos que carregam as malas e os instrumentos e os produtores das maravilhas das antigas civilizações) forjam um saber que, vazado num estilo da ciência do XIX, conforma aquilo que convencionamos chamar de literatura de viagem ilustrada e naturalista. Refazendo estes circuito, Pratt pergunta-se se o romantismo foi, de fato, concebido na Europa e daí transplantado para a América ou na verdade foi ele um, entre tantos processos originais produzidos nas e pelas Américas e, transculturado para Europa, ali transformou-se na concretização mais sutil e sublime do espírito europeu.

Interessante sublinhar que a autora não pára aí, isto é, no desvelamento da historicidade e na crítica ideológica da escrita de viagem e do saber científico naturalista, mas refaz o circuito mostrando como a produção e publicação da literatura de viagem irá realimentar um sistema que tem como elo final a volta à América. Nela, esta mesma literatura será apropriada pelas elites crioulas do XIX, mas não de forma mecânica. Na verdade o que vai ocorrer é uma apropriação seletiva que vai justificar uma nova inserção da América no contexto imperial, no processo de descolonização e nos movimentos de independência. Movimentos novos e essencialmente americanos, como sublinharam Benedict Anderson e a própria autora (embora Pratt não pareça compartilhar da mesma concepção de comunidade imaginada de Anderson), estes serão apropriados pelas elites crioulas europeizantes em busca de sua auto-justificação e legitimidade. Todas estas idéias estão minuciosamente discutidas e analisadas no texto propondo novas formas de se pensar estas questões fundamentais para nossa história. Embora o Brasil não seja o tema deste livro, as interpretações e debates aqui discutidos têm para nós grande interesse.

Finalmente, chamo atenção para um erro que aparece na página 42 da tradução portuguesa, na qual Carl Linné é citado como “naturalista francês”, embora no livro Os Olhos do Império, em sua versão original, inglesa e na tradução em espanhol, ele apareça corretamente denominado como de origem sueca.

Maria Helena Pereira Toledo Machado – Universidade de São Paulo;

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