Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764) | Patrícia Ferreira dos Santos

Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana, é fruto da tese de mestrado de Patrícia Ferreira dos Santos, defendida em 2009 na Universidade de São Paulo e orientada por Carlos de Almeida Prado Bacellar. Este trabalho se enquadra num amplo movimento de renovação dos estudos sobre a Igreja no mundo português da época moderna e mais especificamente sobre a Igreja no Brasil colônia. A partir de um uso renovado e muitas vezes inédito – já que as fontes, apesar de por vezes de difícil acesso, existem – da documentação, a autora contribui para uma melhor compreensão das lógicas de funcionamento das instituições episcopais e das conflitantes relações com os representantes do poder civil, e com os próprios membros da igreja mineira do período em que governou o seu primeiro bispo, d. fr. Manuel da Cruz (1748-1764).

O livro está dividido em cinco capítulos, tradicionalmente organizados de modo a partir dos temas mais amplos aos mais específicos, dando assim ao leitor informações cada vez mais precisas sobre a problemática em pauta. O capítulo 1, “Jogos de forças: atores e instituições”, sobrevoa o processo de construção das relações Estado e Igreja em Portugal, desde a formação do padroado régio a partir do contexto da reconquista e do modo como a coroa pouco a pouco fortaleceu uma doutrina jurídica enquanto fundamento de sua atuação – e das ordens militares – nas conquistas ultramarinas, até o contexto das tensões geradas pelas reformas postas à obra durante a segunda metade do século XVIII, passando pelo importante e complexo jogo criado pelas reformas tridentinas. O segundo capítulo, “Imbricando forças”, estuda a formação da rede eclesiástica na região mineradora e sua paulatina implementação em paralelo, ou melhor, de modo imbricado, com a implantação da estrutura administrativa civil no que se tornaria a capitania das Minas e o bispado de Mariana. Servem aqui de exemplo – graças à abundância das fontes, como a autora explica em sua introdução – os casos de duas freguesias da região, a de Nossa Senhora da Conceição das Catas Altas e a de Nossa Senhora da Boa Viagem de Curral del-Rei. O terceiro capítulo, “O poder da palavra”, concentra-se na atuação do primeiro bispo de Mariana, d. fr. Manuel da Cruz, no que toca a implementação do aparato administrativo da nova diocese e a atividade de controle (das almas e dos corpos) do prelado, sobretudo por meio das cartas pastorais, importante instrumento de governo. O quarto e o quinto capítulos, “Contendas” e “Batalhas de jurisdição”, se debruçam finalmente sobre os vários episódios de tensão surgidos durante o episcopado de d. fr. Manuel da Cruz, e que, como dito, serve de baliza para toda a obra. Ali são descritas as contínuas trocas de acusações feitas entre o bispo, os fieis, os membros do cabido catedralício e os membros do governo civil em torno de questões de fiscalidade, jurisdição ou honra, sempre dentro da turva paisagem do padroado.

O objetivo do trabalho é contribuir para a compreensão da construção e da efetivação da autoridade episcopal no contexto específico das Minas. Movimento que na verdade resultou, como sempre aponta a autora, em amplos conflitos, não só com instituições e grupos já presentes naquela sociedade, mas inclusive com personagens surgidas apenas com a chegada do prelado, como é o caso do clero capitular. A problemática escolhida é claramente posta na página 101, ao fim da larga parte introdutória do livro, onde Patrícia Ferreira dos Santos se pergunta se a “imbricação de forças, da Igreja, do Estado, da justiça e da religião”, logrou a desejada coesão em prol da administração da capitania.

Para começar a responder a essa pergunta, o capítulo três se debruça de modo bastante original sobre a importância da palavra, ou seja, dos sermões e cartas pastorais, para a implementação do governo episcopal e assim também, de um maior controle do que fazia e pensava a população local. São destaques, a preocupação com o comportamento do clero e com a catequese dos escravos do bispado, questões que revelam a especificidade colonial daquela região, mas também algo da personalidade do prelado. Assim, é também neste capítulo que a autora apresenta a personagem principal e fio condutor do livro, o bispo d. fr. Manuel da Cruz.

É, contudo, nos capítulos seguintes, que se aborda a questão do problema dos inúmeros atritos criados ou sofridos pelo bispo: com seus párocos, sobre a questão da cobrança indevida de emolumentos; com os membros do cabido, pelo controle da nomeação a cargos e por questões de prestígio, contenda que se transformou em grave afrontamento; e, finalmente, com o governo civil, em questões de jurisdição sobre irmandades e sobre os próprios clérigos do bispado, em tempos em que o regalismo se firmava sem nenhuma ambiguidade no mundo português por meio da política pombalina em relação à Igreja.

Enfim, quais seriam as razões profundas de tanta discórdia? A autora, nas suas “considerações finais”, aponta o modo como o bem-estar dos povos e a defesa dos vassalos eram frequentemente mencionados pelos litigantes como fundamentos para as acusações portadas contra o oponente do momento, mas que esses párocos gananciosos, cabido escandaloso, bispo zeloso da sua posição e agentes civis em busca de alargamento de jurisdições, na verdade, não faziam mais do que reafirmar, nessas contendas, as vexações que eles próprios faziam sofrer à população. Ferreira dos Santos aponta assim para uma análise bastante restrita do contexto estudado, mas que ela própria mostra, em outras partes do seu texto, ser mais ampla. Ao descrever os vários litígios que d. fr. Manuel da Cruz esteve implicado, ela chama a atenção para as indeterminações das leis do Reino, causa de muitos conflitos de jurisdição (p. 227). Mais adiante, relembra o quanto a questão do padroado, devido a uma “certa indefinição de limites, papéis e campos de jurisdição” acabou pautando as relações entre a Coroa e a Igreja pela desconfiança (p. 255). Mas é ainda um pouco mais atrás que ela parece chegar mais perto de uma explicação, ao afirmar que “As batalhas de jurisdição […] criaram impasses que forçaram iniciativas de reformulação dos procedimentos e da atuação dos cargos e sua normatização, pela coroa” (p. 221). Tratava-se, assim, de um sistema político e também legal (ou seja: o sistema político e legal específico do Antigo Regime) que se pautava por uma multiplicidade de fontes normativas, e que estava habituado a tratar da administração do seu próprio corpo de modo bastante casuísta. Pode-se avançar a análise para uma tradicional interpretação do ‘dividir para melhor reinar’, mas não me parece que esta seja a melhor solução.

Poderiam ter sido úteis à autora algumas análises sociológicas da história política e religiosa da Europa da época moderna, como, por exemplo, aquelas vinculadas aos conceitos de disciplinamento social e de confessionalização, cunhados por autores alemães dos anos 1980 (ver a síntese que deles fez Federico Palomo, A Contra- reforma em Portugal. 1540-1700, 2006), mas na verdade já existentes, de certo modo, nas leituras da História das religiões de autores como Jean Delumeau (O pecado e o medo, 2003). Do mesmo modo, a “imbricação” entre governo civil e religioso, entre Estado e Igreja, numa sociedade de Antigo Regime que a autora aqui estuda, poderia ter sido melhor compreendida com uma leitura mais ampla dos trabalhos de José Pedro Paiva (alguns deles mencionados por Ferreira dos Santos), como a sua contribuição ao livro História Religiosa de Portugal, de 2000, ou o livro Os bispos de Portugal e do Império (1495-1777), de 2006. Nestes trabalhos o autor mostra o quanto os poderes civil e eclesiástico estavam interconectados em Portugal. Por um lado, este maior diálogo com a bibliografia poderia ampliar as perspectivas de análise de um governo episcopal tão bem documentado e, por outro, os conflitos estudados seriam ótimas ocasiões para se por à prova, ao nível regional das Minas – ou “micro” das paróquias de Catas Altas e de Boa Viagem –, os conceitos e as análises desenvolvidas pelos autores acima citados.

Bruno Feitler – Professor no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: [email protected]


SANTOS, Patrícia Ferreira dos. Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764). São Paulo: Editora HUCITEC/ FAPESP, 2010. Resenha de: FEITLER, Bruno. Poder e jurisdição sob o episcopado de D. fr. Manuel da Cruz (1748-1764). Almanack, Guarulhos, n.5, p. 212-214, jan./jun., 2013.

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 Jerusalém colonial – VAINFAS (VH)

VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial. Judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, 376 p. Resenha de: FEITLER, Bruno. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./Jun. 2012.

Nesse livro, que é dos últimos resultados da sua importante produção historiográfica, Ronaldo Vainfas se mantém dentro da temática dos estudos sociorreligiosos, seguindo um veio que iniciou com seu Trópico dos pecados (1989). Vainfas estuda desde então fenômenos vários de desvios religiosos no mundo católico português. Esse prisma na verdade diz muitas vezes mais sobre as instituições e as culturas dominantes do que os estudos a elas diretamente dedicados. Essa história sociológica, voltada para as rupturas e as descontinuidades à la Foucault, e que Vainfas domina com uma extrema sensibilidade e familiaridade, é uma importante contribuição para a compreensão do Brasil colônia e também um estímulo metodológico para os historiadores brasileiros.

Em seu livro, Jerusalém colonialJudeus portugueses no Brasil holandês, mais do que apenas estudar a estrutura e o funcionamento da comunidade sefaradita local (o que não deixa de fazer), Vainfas continua a tratar daqueles comportamentos e personagens heterodoxos. Contudo, não lhe interessa estudar ritos e cerimônias religiosas, mas sim o comportamento social e os dilemas identitários dos seus personagens, tratando assim de uma questão que não deixa de ser de uma extrema atualidade. Com todos os cuidados necessários, ele abre uma janela para as ligações existentes entre religião, cultura, origem geográfica e identidade no mundo português, no qual esses judeus estavam inseridos muitas vezes com extremo gosto, e a despeito da rejeição que sofriam de parte dos “bons” católicos.

Essa leitura sociológica da (curta) história da comunidade judaico-nordestina (1636-1654) tem assim origem no próprio percurso de Vainfas. Mas ela também deve muito à mais recente produção historiográfica sobre a diáspora sefaradita, como ele claramente frisa desde a sua introdução, sobretudo nos trabalhos de Yosef Kaplan e com seu conceito de “judeu-novo”.

Esses judeus, descendentes daqueles convertidos à força no Portugal de 1497, em seguida estigmatizados pelo epíteto de “cristãos-novos”, sofreriam, por sua origem judaica e por uma vivência católica por vezes secular, “dramas de consciência” (p. 15). Assim, Vainfas faz uma história geral da comunidade judaica do Recife de Israel (Kahal Kadosh Tsur Israel), cuidadosamente reconstituindo o percurso da comunidade mãe de Amsterdã, e retomando de José Antônio Gonsalves de Mello, sua principal inspiração, temas como a importância dos sefaraditas para a economia da empresa comercial da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil, concentrando-se na questão identitária. Vainfas intencionalmente quis se manter livre de adotar qualquer conceituação mais ampla de um “espírito judaico” ou sefaradita, como fizeram muitos dos seus predecessores no estudo da diáspora judaico-portuguesa. Ele quer assim evitar reduzir a análise da religiosidade dessas pessoas a algo de unívoco, desviando-se do caminho seguido pelos inquisidores (“Melhor não imitá-los”, p.278), e pondo em causa autores mais recentes como Nathan Wachtel, que defendem a ideia de uma “essência judaica” generalizada dos cristãos-novos ibéricos (p.41). Nosso autor contudo sucumbe, ao meu ver, a uma certa generalização, ao afirmar que “a ambivalência dos judeus novos era, portanto, inerente à identidade cultural – e individual – da maioria deles” (p.75). Mas essa pequena nota não diminui em nada a importância do seu livro. Vainfas aplica ao caso brasileiro, no seu estilo instigante e inconfundível, as mais recentes interpretações historiográficas sobre o judaísmo sefaradita, que até agora permaneceram restritas a limitadas publicações acadêmicas.

Jerusalém colonial também traz novidades. Vainfas revê de modo surpreendente, entre outras questões (a origem recifense do judaísmo de Nova York, a figura do jesuíta Antônio Vieira, as divisões no seio da comunidade judaica, etc.), a personagem de Isaac de Castro Tartas. Preso na Bahia em nome da Inquisição em 1644, e queimado vivo em seguimento ao auto-da-fé lisboeta de 1647, ele foi transformado num verdadeiro mártir do judaísmo pela comunidade de Amsterdã. Vainfas desfaz o mito do erudito e corajoso rapazola que de Recife teria passado a Salvador para proselitizar cristãos-novos, mostrando a trágica indefinição identitária de Isaac.

O autor também consegue, retomando uma documentação de certo modo já surrada, encontrar novas e interessantes leituras da estrutura social da comunidade judaica do Pernambuco holandês. Vainfas mostra que Tsur Israel foi monopolizada por homens vindos da Europa. Ele fala primeiramente de “Uma nova diáspora. Diáspora colonial” para se referir à comunidade pernambucana, tendo em vista a sua intrínseca ligação com a empresa da Companhia das Índias Ocidentais (p.160-161). Mas em seguida mostra que essa colonialidade também pode ser flagrada na preponderância numérica que os “retornados” na Europa tinham sobre os que se tornaram judeus professos no Brasil. Para crescer, a comunidade dependeu sobretudo da imigração. Finalmente, essa preponderância europeia também era social. “Os judeus convertidos no Recife acabaram relegados à condição de judeus de segunda categoria. Judeus incertos. Judeus coloniais” (p.188). É sem dúvida isso que explica que alguns desses judeus-novos tenham escolhido ir para Amsterdã para se fazer circuncidar, em vez de utilizar os serviços dos mohelim locais.1

Já a escolha de uma estrela de seis pontas para ilustrar a capa do livro parece ser um anacronismo editorial, já que a chamada estrela de Davi só se tornou um símbolo especificamente judaico durante o século XVIII, a partir do mundo askenazi.2

Em todo caso, é o trabalho uma grande contribuição aos estudos dos judeus no Brasil, sobretudo em tempos de redefinições identitário-religiosas.

1 Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT). Inquisição de Lisboa (IL). Processo 11562. Processo contra Pedro de Almeida.
2 Ver SCHOLEM, Gershom. L’étoile de David: histoire d’un symbole. In: Le messianisme juif… Paris, 1992, p.367-395.         [ Links ]

Bruno Feitler – Departamento de História – Unifesp. Estrada do Caminho Velho, 333. 07252-312. Guarulhos, S.P. [email protected].