Justiça em tempos sombrios: a justiça no pensamento de Hannah Arendt – RIBAS

RIBAS, Christina Miranda. Justiça em tempos sombrios: a justiça no pensamento de Hannah Arendt. [?: Toda Palavra, 2019]. Resenha de: AQUIAR, Odílio Alves. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 23 – jan.-jun. 2020.

Tendo por eixo o tema da ruptura totalitária, Justiça em tempos sombrios faz uma instigante reconstrução das principais preocupações de Arendt, com o intuito de investigar o que ela teria a dizer sobre a justiça, a partir de suas reflexões sobre as questões políticas fundamentais que aparecem em sua obra.

Nesse desiderato, a autora passeia com desenvoltura pelo pensamento de Hannah Arendt, costurando caminhos a partir de um ponto focal: o julgamento de Adolf Eichmamn, em Jerusalém, relatado por Arendt em obra polêmica, de grande repercussão. O tema da justiça está, ali, subjacente, uma vez que, para Arendt, a realização da justiça é o propósito de um julgamento. Abordando os principais problemas jurídicos que o caso Eichmann apresentou, a obra apresenta a contraposição entre a percepção da justiça como uma virtude, própria da antiguidade, e a percepção da justiça como um valor, nascida com os modernos e vai encontrar seu apogeu na obra de Hans Kelsen. Para Christina Ribas, a ideia de que a justiça é um valor veio pouco a pouco a impregnar, de forma sub-reptícia, as diversas teorias contemporâneas da justiça. Como um valor entre outros, na imensa relatividade que caracteriza o contemporâneo, a justiça sofre uma espécie de perversão, perdendo seu significado e sua capacidade de iluminar o presente.

Isso fica evidente no julgamento de Eichmann, exatamente porque não haviam nem leis nem precedentes judiciais para o genocídio, brotando ali de forma contundente as perplexidades dos julgamentos do pós-guerra, relativos a crimes que se revestiam do manto da legalidade.

Nesse sentido, como afirma Celso Lafer, assinando uma apresentação na forma de Orelha, um juízo determinante, baseado na subsunção, seria inadequado no contexto da ruptura totalitária: “Isto não só porque não havia norma positiva aplicável mas também porque não cabia nem a analogia juris de princípios gerais, pois estes eram inexistentes e fugidios, nem a analogia legis, pois esta pressupõe a semelhança relevante, e nada, no passado dos precedentes, era semelhante ao Holocausto”. Para Arendt, o julgamento de Eichmann causou enorme perplexidade porque evidenciou que o sistema jurídico era não apenas insuficiente, mas completamente inadequado para lidar com o paradoxo de um crime legal.

A partir dessa constatação, aparece em Justiça em tempos sombrios uma reflexão interessante sobre a faculdade de julgar, central a Arendt nos últimos anos de sua vida, quando, após dedicar-se a pensar sobre a condição humana, ela voltou-se para a vida contemplativa, procurando investigar as faculdades fundamentais do espírito. Essa preocupação consubstanciou-se em The Life of the Mind, obra publicada postumamente, que deveria tratar do pensamento, da vontade e do julgamento, mas que não incluiu, como era o plano original de Arendt, esse último tema, uma vez que a morte a surpreendeu quando ela começaria a redigir a terceira parte da trilogia. Essa circunstância faz com que a obra de Christina Ribas enfrente um grande desafio, buscando investigar o tema da justiça, de que Arendt não tratou, a partir da reflexão de Arendt sobre a faculdade de julgar, por ela considerava a mais política das faculdades da mente, mas que ela não chegou a escrever.

Talvez por isso Tercio Sampaio Ferraz Jr., prefaciando a obra, que nasceu de tese de doutorado por ele orientada, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, tenha afirmado que a justiça na obra de Arendt é “um não-tema”. Buscando apoio em textos anteriores e navegando pelo conjunto da obra de Arendt, Justiça em tempos sombrios nos apresenta a faculdade de julgar de forma oposta à tradição, ancorada na intersubjetividade, a partir do juízo reflexionante estético kantiano, de cujo pensamento Arendt, tão a sua maneira, se apropriou. Nesse sentido, o julgamento é uma faculdade que o pensamento libera, podendo ser desenvolvida, aprendida a partir da experiência e cuja validade, proporcionada pela mentalidade alargada, exige do julgador que assuma a posição de um espectador entre outros, cujas posições tem que considerar; os espectadores só existem no plural, vivendo num mundo de interdependência universal; para Arendt, a pluralidade é a lei da Terra.

Assim percebida, a faculdade do julgamento, para Christina, se traduziria na ponte entre o pensamento e ação, ou, se quisermos, entre a teoria e a prática, constituindo-se numa chave de leitura importante para a obra de Arendt. Daí o livro ocupar-se, em sua terceira parte, do próprio acusado. Como é sabido, Arendt percebeu em Eichmann sua impressionante superficialidade, uma ausência de pensamento, uma irreflexão que a deixou perplexa. Ela, que ao escrever Origens do totalitarismo havia tratado o mal que ali aparecera como radical, apresenta em Eichmann em Jerusalém a tese oposta, a tão célebre e frequentemente mal compreendida tese da banalidade do mal. Deparando-se com Eichmann, Arendt concluiu que apenas o bem pode ser radical, pois o mal não possui qualquer profundidade. Eichmann aparece como um exemplo da incapacidade de pensar que se espalha, de forma avassaladora, no mundo contemporâneo.

Entre o pensar e o agir, diz Christina, há um abismo, cuja transposição é complicada justamente porque o mal não é radical, de tal modo que “no fenômeno totalitário, quando os seres humanos se tornaram supérfluos, a sombra projetada por alguns […] ameaçou atingir toda a terra”.

Se a justiça é, como quer Hannah Arendt, e Christina Ribas ressalta, “a matter of judgment”, a importância da faculdade de julgar, tanto para a vida a vida contemplativa quanto para a vida ativa, torna-se imensa nas situações-limite, como aquelas que fizeram sua aparição nos períodos totalitários do século XX, mas que, a bem da verdade, se constituem em ameaças sempre presentes. Quando a Constitutio libertatis talvez nos falte, com o que poderemos contar? A obra procura compreender esse drama de nossos tempos, nas dobras de cujas sombras nos espiam imensas incertezas.

Odílio Alves Aguiar – Doutor em Filosofia pela USP, professor titular de Filosofia da Universidade Federal do Ceará-UFC. E-mail: [email protected]

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“A Descoberta do Cotidiano – Heidegger, Wittgenstein e o problema da linguagem” – AQUINO (ARF)

AQUINO, Thiago. A Descoberta do Cotidiano – Heidegger, Wittgenstein e o problema da linguagem. São Paulo: Edições Loyola, 2018. 178p. Resenha de: SILVA, Marcos. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 22, jul./dez. 2019.

O quadro conceitual que organiza nossas atividades e percepção, que regula nossas práticas, possui ele mesmo um fundamento frágil, gratuito, precário, vulnerável a tantas pressões. É, pois, limitado e finito, porque baseado em nossa forma de vida limitada e finita. Não se trata, aqui, de se recusar fundamentos em nossas atividades teóricas e práticas. Contudo, deve-se enfatizar a compreensão de que estes fundamentos, eles mesmos, não têm fundamento necessário algum. Em outras palavras, o fundamento do fundamento poderia ser inteiramente diferente.

Aquilo que parece ser necessário e auto-evidente, aquilo de que estamos mais convictos, maximamente certos, aquilo do que não abriríamos mão mesmo com forte evidência contrária, o que forma a aparente base sólida para nossas ações práticas e teóricas no mundo, aquilo que dá fundamento à nossa linguagem e constitui o pano de fundo de nossas ações no mundo, aquilo que passa tácito, implícito, sem precisar ser dito e tampouco defendido, é, em verdade, baseado em contingências relacionadas a nosso cotidiano e especificidades biológicas e culturais.

É necessário, para se entender esta racionalidade humana fundante, mas sem fundamento, se partir de nossa maneira peculiar de estar no mundo como agentes engajados em inúmeras práticas, sempre mergulhados em uma cultura e na história, jogados num mundo de envolvimentos diversos, corporificados, finitos e mortais. Agir significa tentar, em última análise, ter bases mais seguras para sobrevivência em um mundo hostil ao invés de simplesmente tentar compreendê- lo intelectualmente.

Heidegger e Wittgenstein, me parecem, partem, em suas filosofias, do reconhecimento radical de nossa finitude e limites. Todo o resto, inclusive o aparentemente definitivo e intocável, marcas tradicionais da lógica e da matemática, deveria refletir a nossa condição humana radicalmente finita e precária. Só podemos entender o tipo de ser que nós somos e o fundamento de nossa racionalidade, se procurarmos entender o tipo de práticas com as quais nos engajamos em nosso cotidiano. A nossa capacidade de linguagem e de cognição teórica deve ser vista como baseada em nossa capacidade prática de fazer coisas correta ou incorretamente, ou melhor, de reconhecer e assumir atividades, nossas e de outros, como corretas ou incorretas a partir de parâmetros e critérios acordados e herdados.

Acredito que pensar os dois filósofos, Heidegger e Wittgenstein, em conjunto e não isoladamente, como que insularizados em tradições divergentes, a continental e a analítica, é urgente para a introdução de um novo pensar e para um novo conceito contemporâneo de racionalidade. Ambos, o pensar e a racionalidade, apontam as filosofias de Heidegger e Wittgenstein, devem ser sensíveis à nossa condição humana e aos desafios da contemporaneidade, sem idealizações filosóficas desencaminhadoras.

A aproximação de dois autores tão centrais, seminais e controversos na filosofia contemporânea requer maturidade e originalidade filosóficas. Algo que um bom livro de filosofia deveria ter e o livro de Thiago Aquino “Descoberta do cotidiano: Heidegger, Wittgenstein e o problema da linguagem” mostra sistematicamente.

Em certo sentido importante, filosofia é sempre contemporânea de si mesma e dos problemas de sua época. Thiago Aquino, como um bom contemporâneo de si mesmo, aponta para como devemos pensar, auscultar nossa época, uma vez que não há um fora possível de nossa própria contemporaneidade.

Neste sentido, o livro de Aquino cumpre o papel de estimular discussões tão fascinantes quanto urgentes.

Como Aquino defende, os autores escrevem obras “construídas literariamente de modo a pressupor uma transformação de quem lê como condição de seu entendimento.” p. 121. Acredito que o livro de Aquino possa, através da aproximação, contribuir para a abertura para esta transformação. Aliás, vale notar que a própria aproximação filosófica entre Wittgenstein e Heidegger por si é central, seminal e controversa, como as filosofias dos dois filósofos.

O livro de Tiago Aquino, é um bem-vindo livro: corajoso, instigante e necessário.

A aproximação marca a coragem pelo enfrentamento da cisão histórica de tradições abarcando movimentos filosóficos muitas vezes conflitantes. De fato, o livro cobre um material tanto vasto como difícil de tradições e períodos diferentes dos dois pensadores. É instigante, por aproximar tradições diferentes e indicar o muito que tem para ser feito em diferentes áreas da filosofia que podem ser iluminadas pela aproximação. É necessário, por oferecer, acredito, uma plataforma filosófica, ainda insipiente, mas suficiente para se pensar e avançar em desafios diversos contemporâneos, como em discussões a respeito de lógicas não-clássicas, natureza da computação, neuro-ciências, cognição corporificada, inteligência artificial, psicologia do desenvolvimento, antropologia, política em dinâmicas intricadas culturais e sociais. Tudo isto em um horizonte de racionalidade finita, intramundana e radicalmente contingente. Eu li o livro como um convite tácito para colaboração. A obra mostra o muito que ainda pode ser feito, apesar do diagnóstico negativo, em sua conclusão, sobre alguma convergência radical entre os dois filósofos.

No que se segue apresento três razões para a tempestividade do livro e em seguida apresento quatro problemas para motivar o debate. A primeira tempestividade examina diretamente a cisão entre filosofia analítica e continental; o segundo elemento oportuno trata justamente do próprio trabalho difícil, mas relevante, de aproximação entre Wittgenstein e Heidegger. E o terceiro ponto de tempestividade, gira em torno da relação própria entre linguagem e lógica no fluxo de nossas vidas cotidianas.

Sobre o primeiro marco da tempestividade, acredito que uma das principais ideias que permanecerão com o leitor após a leitura deste livro provocativo é como temas que ocupam muito esforço e tempo de discussões podem se desgatar e ficar ultrapassados, inclusive em filosofia. A intricada distinção entre filosofia analítica e continental que animou muitas das discussões no último século está gradualmente, acredito, perdendo sua centralidade e relevância. Me atreveria a dizer que, hoje, se remete a mais uma divisão ideológica e institucional que a um problema filosófico genuíno.

Além disso, acredito que este enfraquecimento pode ser um sinal para que possamos levantar suspeitas a respeito da própria origem da divisão entre analíticos e continentais. A pouca importância que Wittgenstein e Heidegger devotaram a esta distinção contrasta com o consenso entusiasmado que esta contenda provocou nas últimas décadas. Ela certamente não está relacionada, de modo algum, com questões de geografia. Rigor conceitual, método argumentativo, e discussões pautadas pela natureza da lógica, podem ser características das duas tradições, como o livro de Aquino testemunha. Além disso, a meu ver, a distinção entre analíticos e continentais não é nem suficiente e nem necessária para o filosofar e não representa critério nem exaustivo e nem exclusivo para o que deve importar na filosofia e para o que significa se engajar seriamente com discussões filosóficas.

James Conant (2016), por exemplo, apresenta o seguinte comentário provocativo em um coletânea promovida para unir as tradições: [It is] no more promising a principle for classifying forms of philosophy into two fundamentally different kinds than would be the suggestion that we should go about classifying human beings into those that are vegetarian and those that are Romanian (p. 17).

Há uma certa dose de arbitrariedade na distinção e esta seguiu uma crescente especialização do trabalho filosófico em muitas sub-áreas muito nuançadas de pesquisa. Estes programas de pesquisa motivaram, infelizmente, muito dissenso, desconfiança mútua e barreiras institucionais e acadêmicas para o desenvolvimento de preocupações e problemas comuns entre filósofos praticantes das duas tradições. Há inclusive ataques de grande virulência documentados na historia deste embate no século XX. Estes fatos limitaram, acredito, significativamente, em muitos casos, o alcance e seminalidade de alguns debates filosóficos.

Isto pode e deve ser mudado. Acredito que não é exagero que o livro de Aquino é um livro oportuno com uma espécie de mensagem política tácita. O livro encoraja uma maneira mais pluralista, cosmopolita e tolerante de se fazer filosofia. Também engaja seu leitor em um diálogo frutífero entre filósofos influentes do passado com interlocutores de diferentes tradições. Acredito que a comunidade filosófica brasileira tem muito a se beneficiar com esta abordagem promotora de uma nova relação transversal entre áreas distintas da filosofia, de uma nova relação produtiva entre analíticos e continentais e da profissionalização da filosofia sem sectarismos e mais inclusiva.

Espero que o livro de Aquino possa ajudar a informar e educar novas gerações de filósofos para ver como a distinção entre analíticos e continentais pode ser não-justificada, ultrapassada e, em alguns casos, sem sentido, quando, por exemplo, tentamos investigar diferentes problemas em debates filosóficos contemporâneos robustos, tanto sobre metodologia quanto sobre conteúdos, concernentes à cultura, mente, linguagem, lógica, politica, subjetividade, normatividade e racionalidade. A divisão entre analíticos e continentais não é intransponível. Especialmente sem os diversos manifestos de combate planetário das últimas décadas.

Eu mesmo comecei como um graduando em filosofia fascinado por Kant, Schopenhauer e Nietzsche e, então, me remeti ao (primeiro) Wittgenstein e Frege como referências do como filosofar. Contudo, agora, com o reconhecimento da deficiência debilitante em partes da metodologia e perspectivas da filosofia analítica profissional, sinto a necessidade de voltar para autores da tradição continental, justamente porque alguns estereótipos presentes são maléficos para se abordar demandas de pesquisa naturais sem excessiva institucionalização. De fato, variantes do naturalismo cientifico ingênuo e do realismo acrítico não são e não devem ser as únicas formas de posição intelectual abertas para um filósofo analítico.

O segundo ponto de tempestividade do livro de Aquino é a própria aproximação de Wittgenstein e Heidegger sob a discussão da natureza da linguagem, independente da leitura atenta ou cuidadosa ou não que um filósofo fez do outro.

Aquino discute, a partir da linguagem, os dois pensadores que parecem ter sido responsáveis, respectivamente, nas variantes analítica e continental da filosofia contemporânea, pela assim chamada virada linguistica. Esta virada historicamente reconhece o protagonismo da linguagem no fazer filosófico, tanto como metodologia quanto como objeto de estudo. De fato, há curtos e raros, exemplos de comentários dos dois filósofos um sobre o outro. Apesar disto, o grande reconhecimento de ambos a respeito dos problemas sobre a relação do sentido da linguagem com a estrutura e totalidade do mundo como tal são investigados por Aquino. Estes problemas não são concernentes apenas à linguagem como um fenômeno histórico ou como uma estrutura formal, mas como relacionada à nossa radical finitude, contingência e intramundanidade evidenciada pelo nosso estar linguístico no mundo tão especial quanto cotidiano.

O livro de Aquino mostra como os dois autores compartilham uma visão muito ampla e significativa a respeito das relações tradicionais entre linguagem e mundo que permanecem abertas e conosco ainda hoje. Um texto recente de Livingston (2016), por exemplo, expõe um problema de limite de compreensão, mas aborda a questão a partir do primeiro Wittgenstein e do último Heidegger.

Acredito que Aquino avança no caminho correto ao pensar o Wittgenstein das “Investigações Filosóficas” e o Heidegger de “Ser e o Tempo”.

Esta observação nos permite falar do terceiro ponto oportuno que Aquino traz. A saber, a ênfase na linguagem e lógica na investigação filosófica e como elas são constituídas no e são constituintes do fluxo de nossas vidas cotidianas.

O primeiro local privilegiado de sentido, significado e valor, ou seja, de normatividade, deveria ser o ambiente próprio de nossas vidas cotidianas, ou como, coloca Aquino, de nossa cotidianidade. Isto mostra a conexão explícita entre os conceitos de ser no mundo, de um lado, e de formas de vida e jogos de linguagem, do outro.

Neste contexto, um ponto alto do livro é defender o lugar próprio da lógica na cotidianidade ao recusar a exclusividade da abordagem lógico-formal dos fenômenos linguísticos, porque esta última não apanharia o fluxo da vida onde o sentido é encontrado e construído. Este movimento recupera o logos clássico na vida cotidiana e pavimenta o caminho para se criticar a centralidade do proposicional no filosofar. Outro acerto, a meu ver, está na avaliação dos pressupostos e implicações da relação íntima entre filosofia e cotidiano, articulando meta-filosoficamente o existencial com o pragmático. Afinal, como Goethe no “Fausto” aponta: “No começo era o ato”, ou seja, habilidades práticas situadas e dinâmicas, e não, o conteúdo intelectual estático fora de qualquer relação com o mundo e o corpo.

Aquino defende que esta associação entre filosofia e cotidianidade incorpora uma mudança de atitude por uma decisão metodológica, de caráter existencial (p. 103).

Assim, a tensão filosófica em descoberta do cotidiano como descoberta do que sempre esteve lá é desenvolvida por Aquino a partir da aproximação difícil entre método hermenêutico e método gramatical na terceira parte de seu livro.

Pode-se afirmar que o pressuposto de que as relações básicas entre cotidiano e linguagem estão encobertas para o próprio cotidiano é o impulso primeiro para a justificação da análise e descrição filosófica da vida, servindo também como base para a avaliação da relação do filosofar com a autocompreensão vigente na vida comum. Enquanto pano de fundo não tematizado, a vida cotidiana padece de uma falta de transparência que o discurso filosófico pretende superar. (p. 104) A discussão sobre o papel constitutivo das práticas na linguagem e na lógica promove a recondução do pensamento para o seu lugar de origem, a vida cotidiana, revalorizada agora como locus primário da significatividade. (p. 75) Em consequência disto, qualquer interpretação filosófica que afaste o filosofar do exercício efetivo da linguagem cotidiana, o lugar da lógica, apontado por Aquino, deve ser suspeito, como a abordagem própria de autores que destacam o caráter metafísico da lógica. Aquino aponta que ambos, Heidegger e Wittgenstein, concordam que o fenômeno da linguagem não é suficientemente compreendido quando tematizado unicamente por intermédio da análise de estruturas formais.

Deste modo, os limites e a origem das teorias deveriam ser nossas vidas elas mesmas. Isto evidencia o primado da prática anterior a teorias e a ênfase de indivíduos inseridos num contexto de significado, de linguagem e de instituições antes do filosofar.

É um acerto tempestivo de Aquino a ênfase na semelhança, apesar das diferenças óbvias e do parco conhecimento de que um filósofo tem do outro.

* * * *

O livro possui, no entanto, ao menos, quatro pontos que poderiam ser, acredito, mais bem desenvolvidos. O primeiro a respeito da discussão sobre lógica. O segundo, a respeito das relações entre formas de vida e estar no mundo. O terceiro, a respeito da discussão contemporânea entre assimilacionismo e diferencialismo. E o quarto, a respeito da terapia linguística.

Quanto ao primeiro ponto a respeito da análise da natureza da lógica, vale notar que apesar da originalidade de se dedicar centralmente a ela, Aquino não define o que está chamando de lógica, apenas menciona lógica formal. Contudo, contemporaneamente temos diversos tipos de lógicas formais e formalismos para diversas finalidades diferentes, como a teoria da prova, dos modelos, e da recursão. Isto mostra que a discussão de Aquino ainda pode e deve ser atualizada para trazer atenção de filósofos e lógicos da tradição analitica.

Além disso, há, a meu ver, uma espécie de descompasso técnico entre Wittgenstein e Heidegger para servir como esteio filosófico de críticas à concepção contemporânea de lógica. Aquino trata do lugar da lógica e da recusa de seu caráter metafísico (embora não mencione problemas contemporâneos como revisão de princípios lógicos, normatividade da lógica, e pluralismo lógico). Contudo, o comprometimento de Heidegger com a lógica aristotélica parece inadequado e antiquado para discutir lógica matemática em função da primeira não expressar a complexidade da segunda. Deste modo, Wittgenstein parece estar em melhores condições para uma crítica mais acertada e bem informada da lógica formal.

Ademais, acredito que o expressivismo lógico de Brandom (1994, 2000) poderia ser usado para pensar o fundamento cotidiano da normatividade de nossa lógica, uma vez que Aquino afirma que :De modo recorrente, a lógica é concebida com base na pressuposição de seu valor essencial e de suas promessas de profundidade.

Isso pode ser exibido por intermédio do problema do vínculo entre lógica e ontologia, que não é apenas característico do contexto antipsicologista da época, mas acompanha grande parte da história dessa disciplina. (p. 150). Ora, Brandom mostra, acompanhando em parte o segundo Wittgenstein, que ainda é possível ter profundidade filosófica na lógica formal, apesar de recusarmos seu pretenso fundo metafísico. (Aliás, muito pouco de autores heideggerianos pragmatistas como Dreyfus, Brandom, e Haugeland aparecem no livro de Aquino. Rorty poderia ser mais mencionado).

O segundo ponto que poderia ser, a meu ver, mais bem desenvolvido no livro de Aquino é a relação entre os conceitos de forma de vida e Weltbild. Acredito que em muitos pontos o livro de Aquino pressupõe, mas não explica a associação entre ser no mundo (no sentido existencial e singular) e forma de vida (com ênfase no caráter social, público e biológico). Com efeito, podemos ter discussões existencialistas sem mencionar aspectos sociais e biológicos e discussões naturalistas sem a menção de aspectos existenciais. Além disso, vale notar que vida cotidiana não é o mesmo que estar no mundo e não pode ser identificado tampouco sem explicações com forma de vida. Esta dificuldade aponta outros dois problemas, a saber, a distinção entre forma de vida e cultura (p. 28) e à relação de forma de vida e discussões modais (p. 55) na própria periodização de Wittgenstein. Há no livro de Aquino várias idas e vindas no exame da trajetória filosófica de Wittgenstein, mas Aquino não discute, por exemplo, os tipos de problemas que levaram o primeiro Wittgenstein ao segundo, passando por seu rico período intermediário. Ademais, em várias ocasiões, para tratar do pano de fundo público e cultural do ser no mundo, Aquino usa o “Sobre a Certeza” (como por exemplo, p. 53-54 ou p. 152-55) e não “Investigações Filosóficas”. O conceito de Weltbild do “Sobre a Certeza” me parece mais radical que o conceito de jogos de linguagem na base de nossas formas de vida. Não podemos, em um certo sentido filosoficamente relevante, saltar para fora de nossa imagem de mundo, como poderíamos transitar entre diferentes jogos de linguagem em formas de vida diferentes, mas semelhantes.

Vale notar que no “Sobre a Certeza”, o uso de forma de vida é muito escasso. O conceito principal parece ser o de Weltbild para tratar de conflitos profundos entre imagens de mundo ao enfatizar como somos introduzidos nelas. A pergunta que emerge aqui é: A remissão de Aquino aos textos finais da trajetória filosófica de Wittgenstein é acidental? Não seria o “Sobre a Certeza”, o texto existencialmente importante do Wittgenstein em função do exame do nosso Festhalten em uma imagem de mundo herdada e da investigação da vulnerabilidade de nossas convicções fulcrais e da nossa segurança precária baseadas em crenças sem fundamento último? O terceiro ponto que poderia ser mais bem desenvolvido no livro de Aquino se remete, a meu ver, à distinção contemporânea entre assimilacionistas e diferencialistas.

O primeiro grupo de filósofos defendem a continuidade entre o ser humano e outros animais. Ao passo que a segunda tradição enfatiza a descontinuidade nas características entre seres humanos e animais não-humanos. Neste contexto, as motivações dos dois filósofos, Wittgenstein e Heidegger, parecem ser bem diferentes, ate mesmo antagônicas, como Aquino, ele mesmo, admite. (p. 61). O assimilacionismo de Wittgenstein se baseia na visão de que a linguagem deveria ser pensada como pertencendo a nossa história natural, assim como andar, comer e dormir. A linguagem humana seria uma característica animal nossa e assim como outras características deve ter sido selecionada através de um período muito longo de trocas dinâmicas com o meio e outros indivíduos por trazerem vantagens evolutivas para nossa espécie. Segundo esta visão, estamos em continuidade com outros animais. Não há nada de especial entre nós e outros animais. Afinal, “somos animais primitivos”. Este é um lema do “Sobre a Certeza” (SC 475). Isto parece contrastar frontalmente com uma espécie de anti-assimilacionismo de Heidegger que visa enfatizar justamente a descontinuidade entre homem e natureza. Nesta visão, haveria uma profunda e radical descontinuidade entre seres humanos e outros animais. Afinal, a existência do humano seria uma abertura especial, uma irrupção, uma vez que o mundo dos animais seria carente de significado. Com seres humanos, algo radicalmente novo e irredutível, aparece na natureza.

O quarto ponto que, a meu ver, mereceria mais desenvolvimento trata da própria imagem de terapia e despertar existencial. Aquino descreve, por exemplo, a terapia Wittgensteiniana:

O tema da terapia é, portanto, a fixação em certas expressões, que são frequentemente empregadas e dificilmente dispensadas. A filosofia tradicional demonstra claramente o nível do apego alcançado não apenas rejeitando o abandono ou a substituição dessas expressões por outras menos fascinantes, mas também pela busca contínua de um refinamento do seu sentido, como se a definição ou o esclarecimento fosse um meio de aprofundamento da compreensão. Essa tendência necessita de tratamento, antes de tudo, porque a aparência de profundidade gerada pela expressão linguística é uma ilusão gramatical sustentada por um pathos. (p. 124)

Esta aparência de profundidade parece ser justamente um ponto de crítica Wittgensteiniano que poderia ser direcionado ao Heidegger. O Procedimento terapêutico da filosofia de Wittgenstein, descrito, por exemplo, na p. 138, parece encontrar exatamente na filosofia de Heidegger uma paciente, apesar de Aquino parecer mais simpatico às abissalidades de Heidegger. Dualmente, a análise do discurso filosófico de Wittgenstein, o limitando e regulando, se remetendo ao nosso domínio de línguas naturais e cotidianas poderia ser um bom exemplo de “falatório” não-filosófico para Heidegger. Em certo sentido relevante de filosofia como terapia pela linguagem, poderíamos dizer que: Heidegger e Wittgenstein poderiam ser ambos paciente e terapeuta um do outro.

Referências

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BRANDOM, Robert. Making It Explicit: Reasoning, Representing, and Discursive Commitment . Cambridge, MA: Harvard University Press, 1994.

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CONANT, James. The Emergence of the Concept of the Analytic Tradition as a Form of Philosophical Self-Consciousness. In. JEFFREY A. BELL, Andrew Cutrofello, PAUL M. Livingston (Eds.): Beyond the analytic- continental divide: pluralist philosophy in the twenty-first century. New York: Routledge, 2016. p. 17-58.

HEIDEGGER, Martin. Being and Time. Translated by Joan Stambaugh, revised by Dennis Schmidt. Albany, New York: SUNY Press, 2010.

LIVINGSTON, Paul M. Wittgenstein Reads Heidegger, Heidegger Reads Wittgenstein: Thinking Language Bounding World. In: JEFFREY A. Bell, ANDREW Cutrofello, PAUL M. Livingston (Eds.): Beyond the analytic- continental divide: pluralist philosophy in the twenty-first century. New York: Routledge, 2016. p. 222-248.

WITTGENSTEIN, L., Tractatus logico-philosophicus“ (logisch- philosophische abhandlung). Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 1993.

______. “PHILOSOPHICAL INVESTIGATIONS” (Philosophische Untersuschungen). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1958.

______. “ON CERTAINTY” (ÜBER GEWISSHEIT). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1969.

Sobre o autor Marcos Silva – Doutor em Filosofia (2012) pela PUC-Rio, com período sanduíche na Universitaet Leipzig, de 2009 a 2011, (bolsista DAAD/CAPES). Pós-doutorado na UFRJ (2012). Pós-doutorado (2014-2015) pela UFC, Professor da UFAL. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. E-mail: [email protected]

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Der rückstoss der methode: Kierkegaard und die indirekte mitteilung SCHWAB (ARF)

SCHWAB, Phillip. Der rückstoss der methode: Kierkegaard und die indirekte mitteilung. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012. Resenha de: BARROS, Wagner. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 17, jan./jun. 2017.

O livro de Phillip Schwab, intitulado Der Rückstoss der Methode, se apresenta como uma importante contribuição e indispensável para as pesquisas que versam sobre a comunicação indireta no pensamento de Kierkegaard. Ainda que inúmeros trabalhos tenham desenvolvido reflexões sobre o assunto, frequentemente o problema da comunicação é tratado de forma tangencial ou coadjuvante, dificilmente desempenhando um papel central. É neste contexto que a interpretação de Schwab se torna particular, pois o autor não concebe o discurso indireto como estilo literário ou um recurso utilizado por Kierkegaard para trazer a discussão sobre a existência, mas como elemento constitutivo do próprio processo de análise filosófica. Para Schwab, a comunicação indireta não é só principio estrutural, mas também o modo de realização essencial e a forma necessária do pensamento kierkegaardiano: A comunicação indireta não é uma peculiaridade estilística da forma, também não é uma roupagem literária do pensamento filosófico. A comunicação indireta não é […] uma tática maiêutico-pedagógica que serve ao objetivo de alcançar um resultado para o receptor da comunicação. A comunicação indireta é o método de Kierkegaard […] (p.12 – nossa tradução) Percebe-se, portanto, que a interpretação proposta não visa reduzir a comunicação indireta ao uso de pseudônimos, como sugere a explicação de Ponto de vista1. A leitura se afasta também da tese segundo a qual a comunicação indireta ou o discurso religioso adquirem sua significatividade mediante o reconhecimento da práxis religiosa, como apresenta Schönbaumsfeld2. Schwab entende o discurso indireto como um elemento central da filosofia de Kierkegaard que está articulado com todo o seu pensamento e se faz presente mesmo em obras que não exploram o tema de forma explícita, principalmente porque a comunicação indireta apontaria para um método que se auto revoga diante da tentativa de analisar a existência.

O objetivo da primeira seção do livro é realizar uma leitura “sistemática”, ou seja, explorar a estrutura da comunicação indireta e compreendê-la enquanto método. Embora não se encontre uma análise textual, o autor elabora um esquema conceitual que permite compreender a função do indireto. Assim, é destacado que a comunicação indireta representaria um contra-movimento [Rückstoss] do método, um movimento contrário a qualquer tentativa de definição. O contra-movimento do método descreveria o movimento fundamental de um método que trabalha contra si mesmo: é a tensão do pensamento. Este contra-movimento seria a primeira característica da comunicação indireta, uma vez que a busca de sua definição resulta em fracasso, ou melhor, é o próprio fracasso da representação que a comunicação indireta porta em si. Este fracasso da abordagem direta indicaria a inconclusividade [Unabschlossenheit] ou um contra-projeto que se opõe a qualquer pensamento sistemático.

Ainda na primeira parte do trabalho, o autor faz uma distinção entre o conceito [Begriff] e a realização [Durchführung] da comunicação indireta. No primeiro caso, trata-se das reflexões explícitas de Kierkegaard sobre a comunicação, enquanto o segundo diz respeito à comunicação indireta executada, ou seja, quando Kierkegaard a emprega. Por exemplo, Pós Escrito (1846) seria um texto que não só teoriza, mas também executa o método indireto.

É preciso ressaltar que, assim como o termo contra-movimento do método, a diferenciação entre realização e conceito não se encontra nos textos de Kierkegaard. A elaboração destes conceitos extrapola a análise textual e assinala o trabalho interpretativo de Schwab. Estes “conceitos” assumem a função de expor o discurso indireto enquanto método no interior das próprias obras de Kierkegaard. Desta forma, o livro de Schwab revela a unidade entre a leitura estrutural, histórica e exegética das obras, e a elaboração conceitual do próprio intérprete.

A segunda parte do livro se dedica a uma análise do discurso indireto em diversos períodos do pensamento kierkegaardiano e tem como objeto o conceito de comunicação. Schwab parte de Pós Escrito, onde o contra-movimento do método é descoberto na impossibilidade de uma representação da existência, sobretudo devido à incomensurabilidade entre interior e exterior. Para o autor, nesta obra a comunicação indireta não estaria restrita ao domínio religioso, mas abrangeria toda esfera existencial, uma vez que o existir não se deixaria representar pela linguagem. Segundo Schwab, Pós Escrito coloca a impossibilidade de uma comunicação objetiva sobre a existência devido à própria incapacidade de acesso direto à efetividade existencial. Assim, qualquer comunicação existencial direta é negada, visto que o existir não se deixa representar.

O próximo objeto de análise é a comunicação em Ponto de Vista explicativo da minha obra como escritor (1848). Neste texto, haveria um conceito maiêutico- -teológico da comunicação indireta, uma vez que comunicar indiretamente seria descrito por Kierkegaard como “enganar para a verdade”, retirar o indivíduo de uma falsa concepção de religiosidade para colocá-lo diante do verdadeiro cristianismo.

Schwab conclui então que o discurso indireto é considerado por Kierkegaard como algo transitório, pois o que é dito indiretamente poderia ser comunicado de forma direta. Assim, observa-se que Pós Escrito e Ponto de vista assumiriam concepções de comunicação divergentes, dado que, na primeira obra, o indireto diz respeito à impossibilidade da representação da existência, enquanto no segundo texto, o indireto é transição para o direto ou um simples recurso.

Enquanto a comunicação indireta, em Pós Escrito, tem como referência a existência que não pode ser pensada, em Ponto de vista Kierkegaard estaria preocupado com a explicação da totalidade de sua obra, ou seja, expor qual foi seu objetivo desde as primeiras publicações. Deste modo, Schwab considera um erro comparar ou estabelecer uma unidade entre as definições de discurso indireto, pois as estruturas e contextos de ambas as obras são totalmente diferentes. Em Pós Escrito, por exemplo, o uso do pseudônimo criaria um distanciamento e impediria qualquer relação direta com o escritor. Neste livro, não seria possível concordar ou discordar do autor porque não há a expressão da opinião daquele que redige o texto. Já em Ponto de vista, Kierkegaard se apresentaria como autoridade e explicaria como ele deve ser lido. Consequentemente, o espaço da apropriação do leitor é reduzido. Destarte, Schwab não tem a intenção de apresentar um conceito definido e determinado sobre a comunicação diante da totalidade das obras de Kierkegaad. Seu trabalho visa antes apresentar o contexto em que cada concepção é elaborada, trazendo assim os elementos que ocupam as reflexões de Kierkegaard. Para o autor, as obras são como constelações, autônomas entre si e possuem uma pergunta determinada que deve ser considerada quando se pretende interpretar as obras. Por estas razões, não seria possível estabelecer uma definição geral, uma vez que isso já implicaria em retirar o conceito de um texto e generalizar, esquecendo que cada livro se volta para um problema determinado: “ele [o indireto] se manifesta nos contextos respectivos de sua forma concreta e não se deixa determinar abstratamente e esquematicamente com antecedência.” (p. 301 – nossa tradução).

Entre os trabalhos que exploram o tema da comunicação indireta, é comum constatar a tentativa de defender uma concepção geral. Nos trabalhos de Clair (1997), Fahrenbach (1997) e Diep (2003), por exemplo, a comunicação indireta é apresentada como uma comunicação voltada para a existência e interioridade.

Trata-se de uma comunicação que não se pauta na objetividade, porém de uma comunicação aberta capaz de expressar o movimento do devir que caracteriza a efetividade existencial. É possível assumir ainda que comunicação indireta se caracteriza principalmente pelo uso dos pseudônimos, um recurso estilístico que está a serviço de um objetivo mais amplo, como o aprofundamento existencial ou retirar o leitor de um falso cristianismo3. Seguindo o quadro exposto por Schwab, observa-se que, caso a comunicação indireta seja compreendida como uma comunicação existencial que tem o sentido da existência como problema, então toma- -se Pós Escrito como ponto de partida. Por outro lado, Ponto de vista ofereceria a base para se interpretar a comunicação indireta como emprego de pseudônimos ou instrumento maiêutico-teológico. Neste contexto, o discurso indireto não estaria relacionado com a inexpressividade do existir, mas a um artifício que auxilia o leitor a sair de um erro.

Quando Schwab enfatiza a importância da avaliação das estruturas interna das obras e a necessidade em considerar sua autonomia, portanto não confundir o conceito comunicação proposto por Pós Escrito com aquele de Ponto de vista, o autor visa desfazer o embate entre as tentativas conflitante que procuram estabelecer um conceito universal do indireto. De acordo sua leitura, as diferentes abordagens de Kierkegaard sobre o tema da comunicação revelariam uma reflexão em movimento, uma reflexão e que é retomada em diversas fases. Cada texto do filósofo dinamarquês apresentaria elementos distintos no que diz respeito à comunicação. Por estes motivos, as reflexões de Kierkegaard não possuiriam uma unidade conceitual fixa.

Após expor e discutir as concepções divergentes de Pós Escrito e Ponto de vista, a próxima tarefa é elucidar como esta transformação ocorreu. O trabalho se concentra nos textos escritos por Kierkegaard durante os anos de 1846 até 1848.

Neste momento, o livro apresenta uma rica análise histórico-interpretativa sem perder do horizonte a tese defendida. Manuscritos e esboços de Kierkegaard pertencente a esta época, como os NB3, NB 4, NB 5, NB 6, NB 7, além de obras publicadas, como Obras do amor, a terceira versão de Livro sobre Adler e a segunda parte de Exercício no cristianismo, que foi concebida em 1848, são comentados e explorados detalhadamente. Estes textos apresentariam diferentes abordagens sobre a comunicação indireta, indispensáveis para a formulação final de Ponto de vista. Schwab evidencia que, se em Pós Escrito o tema da impossibilidade da representação da existência perpassa a comunicação, nos anos posteriores o filósofo dinamarquês começa a questionar o seu lugar pessoal em relação à totalidade das obras, sobre a produção pseudonímica e se ele próprio, enquanto pessoa, poderia ou deveria comunicar diretamente.

As explicações de Ponto de vista se tornam questionáveis principalmente devido à publicação, anos mais tarde, de Doença para morte e Exercício do cristianismo, cujo autor é o pseudônimo Anti-Climacus. Ora, Ponto de vista defende que toda comunicação indireta pode ser transformada em comunicação direta. Quais foram os motivos que levaram Kierkegaard a retornar os pseudônimos ou o indireto? Por que o filósofo, após explicar como deveria ser lido, volta a se expressar indiretamente? Esta dificuldade é explorada no final da segunda seção do texto de Schwab, que tem o objetivo de se aprofundar no conceito de comunicação após os anos de 1848. Para realizar esta tarefa, o autor se concentra nos escritos dos anos de1848-9, incluindo as anotações não publicadas. Estes textos enfatizariam a dúvida de Kierkegaard no que diz respeito à publicação de Ponto de vista e se tanto Doença para morte quanto Exercício do cristianismo deveriam ser assinados por algum pseudônimo. Schwab defende que, durante este período, a comunicação indireta não pode ser desvinculada do auto-questionamento de Kierkegaard. O conceito de comunicação estaria atrelado à decisão de como e se realmente as obras deveriam ser publicadas.

A segunda seção da obra de Schwab termina analisando as observações finais de Kierkegaard sobre comunicação. O autor ressalta que, nos últimos anos, o discurso indireto é submetido a diversas reformulações e reinterpretações.

Schwab conclui assim que, diante da ausência de uma definição fixa, a indeterminação seria um dos traços essenciais da comunicação indireta, pois significa que não é possível pensá-la in abstracto, mas apenas em situações específicas e contextualizadas, reforçando a independência dos textos e a necessidade de situar cada definição.

Esta pesquisa “histórica” de Schwab, que recorre principlamente aos NB e busca apontar os problemas singulares que cada obra enfrenta, merece destaque.

Algumas passagens apresentada pelo autor são traduções inéditas e revelam elementos fundamentais para um entendimento do tema da comunicação em Kierkegaard. Sem dúvida, havia a necessidade de um estudo que percorresse os desdobramentos da comunicação indireta no corpus kierkegaardiano e o trabalho de Schwab assume não só esta responsabilidade, mas realiza a tarefa de forma bem sucedida. Além disso, seu livro é um dos poucos estudos que procuram adentrar nas estruturas internas dos textos e realizar uma comparação sistemática durante os diversos períodos da produção de Kierkegaard, verificando em que medida há ou não modificações conceituais e como estas são concretizadas.

Após explorar os diferentes escritos kierkegaardianos que problematizam diretamente a comunicação indireta, a quarta parte do livro se volta para a relação entre ironia e comunicação. O foco passa a ser O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Apesar de Kierkegaard não mencionar o termo comunicação indireta no estudo dedicado a Sócrates, Schwab defende que a forma indireta realizada já se encontra presente naquele texto. Os traços do indireto poderiam ser localizados na figura de Sócrates, que expressaria a incomensurabilidade entre o interior e o exterior. Esta incomensurabilidade é o que aproximaria a ironia com o discurso indireto, pois o aspecto da representação do método indireto apontaria para a ambivalência de uma forma de representação que se volta contra si e é inconclusa, indicando a representação essencial do irrepresentável.

Um detalhe interessante é que, para Schwab, este elemento seria constatável também na ironia romântica. A comunicação indireta se negaria a um acesso direto, sistemático, tal como a ironia romântica escaparia de toda tentativa de uma determinação abrangente, direta, não irônica. Mas se é possível afirmar que o contra-movimento do método já se encontra pré-figurado nos românticos, a diferença fundamental consistiria em que, enquanto a ironia romântica a representação do absoluto é impossível, a comunicação indireta kierkegaardiana traz o particular como o irrepresentável.

O último tópico do livro traz a realização da comunicação indireta para o debate. Este capítulo se delimita a análise de três textos de Kierkegaard: A repetição, O conceito de Angústia e Doença para morte. Em A repetição, Schwab diagnostica processo indireto a partir do momento em que a própria obra não busca o conceito, mas como e se a repetição é atingida ou pode ser executada. Esta efetivação, porém, não se deixaria representar ou descrever, mas assumida. Neste aspecto, o autor entende que A repetição coloca o problema do querer dirigir-se a algo (repetição) que não pode ser representado diretamente, pois a repetição consiste exatamente na execução. A obra de Kierkegaard apresentaria um duplo movimento, o querer-dizer e não-poder-dizer, o falar e a frustração constante da fala que deve garantir paradoxalmente a efetividade da realização existencial que emerge no espelho da possibilidade.

Já no caso de O Conceito de Angústia, Schwab descobre o contra-movimento do método ou a realização da comunicação indireta quando Virgilius estabelece um limite para a ciência. Este limite seria o particular que permanece inacessível para método abstrato cientifico. O que poderia ser constatado, nas explanações de Virgilius, é o processo cientifico apontando sempre para algo que reside fora da especulação, como o “não lugar do pecado” ou a incomensurabilidade entre a esfera das ciências e a efetividade [Wirklichkeit]. Apesar de o texto ter a aparência de uma comunicação de saber ou teórico, Schwab defende que o indireto está presente na forma do tratamento conceitual do problema da angústia, posto que Virgilius levaria o leitor para a fronteira da abordagem científica.

Por fim, Doença para a morte apresentaria o indireto a partir do momento em que desespero não é descrito por Anti-Climacus como transição, mas diferentes formas auto-realização que é estática e contínua. A análise do desespero é horizontal e isto revelaria o processo indireto, dado que as múltiplas formas de desespero se revela incomensurável com a oposição conceitual abstrata.

No que diz respeito à estrutura do livro de Schwab, percebe-se a ausência de uma conclusão ou considerações finais. Porém, é necessário ressaltar que o texto não analisa as singularidades para chegar a uma tese geral conclusiva, mas apresenta o movimento inverso, ou seja, parte primeiro de uma concepção sistemática e, em seguida, expõe como o contra-movimento do método se realiza em cada obra. O leitor perceberá também a falta de uma discussão sobre os Discursos edificantes. O autor não investiga em que medida o indireto poderia estar (ou não) presente nestas obras e muito menos adentra na polemica travada por Pattinson (2002, p.12-34). segundo a qual os discursos edificantes também podem ser concebidos enquanto indireto, contrariando assim as afirmações de Ponto de vista. Todavia, apesar do silêncio, Schwab pode indicar caminhos para solucionar esta questão quando enfatiza a necessidade de se considerar o contexto específico de cada obra e evitar generalizações. Enfim, se o livro não encerra as controvérsias sobre o tema da comunicação indireta ou um conceito definitivo, a análise sistemática e histórica realizada por Schwab deve servir de modelo para os próximos estudos.

Referências

CLAIR, A. Kierkegaard, existence et éthique. Paris: PUF, 1997.

CONANT, J. Kierkegaard’s Postscript and Wittgenstein’s Tractatus: Teaching how to pass from disguised to patent nonsense. Wittgenstein Studies, 1997, v. 2, 1997. Disponível em: http://sammelpunkt.philo.at:8080/520/ Acesso em: 12 abr. 2016.

DIEP, P. Ética y sinsentido. Kierkegaard y Wittgenstein. Topicos, 2003, n. 24, p. 9 – 29.

SCHÖNBAUMSFELD, G. A Confusion of the Spheres: Kierkegaard and Wittgenstein on Philosophy and Religion. Nova York: Oxford Press, 2007.

FARENBACH, H. Grenzen der Sprache und indirekte Mitteilung: Wittgenstein und Kierkegaard über den philosophischen Umgang mit existentiellen Argumentos, ano 9, n. 17 – Fortaleza, jan./jun. 2017 165 Der rückstoss der methode: Kierkegaard und die indirekte mitteilung – Wagner Barros (ethischen und religiösen) Fragen. Wittgenstein Studies, v. 2, 1997. Disponível em: http://sammelpunkt.philo.at:8080/520/ Acesso em: 12 abr. 2016.

PATTISON, G. Kierkegaard’s Upbuilding Discurses: Philosophy, Theologie and Literature. Londres/Nova Iorque: Routledge, 2002.

HONG, H. V., & HONG, E. H. (1998). Historical introduction. In: KIERKEGAARD; S. The point of view. Nova Jersey: Princenton University Press, p. 9-27.

Notas

1 Maiores detalhes, C.f. HONG, H. V., & HONG, E. H. (1998)

2 Maiores detalhes, C.f. SCHÖNBAUMSFELD (2007).

3 Algo semelhante pode ser encontrado na leitura de Conant. O autor compreende a comunicação indireta enquanto tática que visa atingir determinado fim, embora critique a possibilidade do indireto apresentar algum tipo de verdade “inefável”. C.f. Conant, J. (1997). Kierkegaard’s Postscript and Wittgenstein’s Tractatus: Teaching how to pass from disguised to patent nonsense. Wittgenstein Studies, v. 2, 1997. Recuperado de: http://sammelpunkt.philo.at:8080/520/ Acesso em: 12 abril 2016.

Wagner Barros – Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Acesso à publicação original

 

Algumas reflexões Wittgensteintianas a partir do “Heidegger Urgente: introdução a um novo pensar”

GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Algumas reflexões Wittgensteintianas a partir do “Heidegger Urgente: introdução a um novo pensar”. Editora Três Estrelas, 2013. Resenha de: SILVA, Marcos. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.16, jul./dez. 2016.

O livro do Prof. Giacoia representa uma competente introdução à filosofia de Heidegger com a elucidação de conceitos-chave de sua filosofia como Dasein, Auseinadersetzung, Zuhandensein, Vorhandensein, Weltlichkeit, Erschlossenheit, Mitsei, dentre outros. A obra também explora, como se deveria esperar, as fases do pensamento Heiddegeriano, nomeadamente o assim chamado primeiro Heidegger e o Heidegger depois de sua Kehre.

Há também uma boa introdução a sua trajetória biográfica, inserindo momentos- chave em seu contexto filosófico e apontando a influência de outros autores centrais (como, Dilthey e Husserl) no desenvolvimento de alguns conceitos.

As confrontações com Nietzsche são particularmente pertinentes no horizonte da urgência de um novo pensar, ao se trabalhar conceitos com a vontade de poder, perspectivismo, eterno retorno e a associação da técnica com o niilismo.

A parte que se pretende original do livro me parece ser o confronto com temas contemporâneos, sobretudo com o desenvolvimento tecnológico enredado em “uma escalada compulsiva, em uma espiral infinita” (p. 10). Estas características de nossos dias atuais motiva grandemente, por um lado, um “delírio contemporâneo de onipotência (essencialmente moderno)” (p. 11) e, por outro lado, parece justificar a introdução de uma nova forma de pensar (p. 44 e p. 10 e 13).

Como ser filósofo e não refletir o seu tempo? Neste sentido, filosofia é sempre contemporânea de si mesma e dos problemas de sua época. Devemos, como bons contemporâneos de nós mesmos, pensar, auscultar nossa época, uma vez que não há fora de nossa contemporaneidade. Neste sentido, o livro do prof. Giacoia cumpre o papel de estimular discussões fascinantes e urgentes.

Não há nada de particularmente novo na seção “como ler Heidegger”. Se trata basicamente de instruções genéricas, que a meu ver, poderiam ser aplicadas também na leitura de outros grandes filósofos originais, a saber, método, zelo, paciência e empenho.

Em sua conclusão, o prof. Giacoia, em busca de um pensamento por vir, se remete mais uma vez ao porquê é urgente pensar com e a partir de Heidegger.

No que se segue, gostaria de apresentar algumas reflexões sobre normatividade que poderiam motivar um diálogo também urgente entre Heidegger e Wittgenstein em nossa contemporaneidade. Em relação a Wittgenstein e Heidegger pouco se escreve e pouco se pensa. Isto deveria ser revertido, inclusive no Brasil, com a promoção de um diálogo mais rico entre estes dois autores e entre a divisão entre Continentais e Analíticos. A aproximação de Davidson dos hermeneutas, de Sellars a Kant, de Brandom a Hegel, mostra que o diálogo pode ser muito seminal.

Um ponto de comunidade filosoficamente relevante nas obras de Heidegger e Wittgenstein é o movimento de apontar erros da tradição. Algo que era auto- -evidente em determinadas escolas é abalado por suas críticas. Heidegger e Wittgenstein não estão só desenvolvendo novas críticas; eles estão solapando pressupostos de escolas que fundam nossa maneira de pensar e agir. Neste horizonte, a discussão de um fetichismo de nossa época em relação ao sucesso de ciências naturais motiva a crítica a teses positivistas de que a filosofia deveria ser uma ciência ou alguma atividade teórica contígua ao fazer científico. Giacoia trata desta questão, embora restrita a Heidegger, apontando o seu quietismo teórico e a postura de silêncio existencial como características centrais da resposta ao sentido da filosofia e à inserção do homem no mundo (p. 19, 68). Giacoia também associa de maneira muito forte, porque aparentemente exclusivista, a filosofia oriental com Heidegger (p.45). Ora, tanto o quietismo quanto a referência a escolas do oriente são pontos que marcam o pensamento de Wittgenstein também.

Wittgenstein, em seus debates com alguns membros do Círculo de Viena, no começo da década de 30, trouxe textos de poetas místicos indianos para a discussão para rejeitar alguns mau-entendimentos de sua obra de juventude.

Alguns membros do círculo de Viena a associam com um forte positivismo motivado pelo espírito cientificista. Com efeito, no Tractatus, o que não pode ser dito não é absurdo e descartado. É, pois, justamente o que tem mais valor e está para fora da linguagem e de um mundo radicalmente contingente, sem sentido e sem finalidade. Por outro lado, o ataque que Carnap faz a Heidegger me parece injusto e irresponsável, porque educou gerações de filósofos preocupados neste tipo de contenda ideológica entre analíticos e continentais e na mútua desqualificação de escolas aparentemente rivais. Heidegger e Wittgenstein, eles mesmos, parecem nunca ter demandado muito esforço para se inserirem neste tipo de discussão de bastidores da filosofia. Acredito que os dois são filósofos que se inserem na tradição da morte de Deus, anunciada por Nietsche: defendendo a recusa de qualquer elemento transcendente ou metafísico na base do mundo e de nossas atividades.

Interessantemente os dois filósofos nasceram na mesma época, tiveram grandes orientadores (Husserl e Russell), e devotaram suas primeiras obras na década de 20 a desenvolver alguns problemas a partir da metodologia de seus Doktorvaeter (consolidando a escola da fenomenologia, de um lado, e a da análise lógica, de outro lado). Além disso, ambos passam por uma Kehre no final da mesma década. Ambos desafiam a tradição metafísica explicitando o que nós já sabemos e sempre soubemos no uso de nossa linguagem ordinária e no tipo de acesso não problemático e corriqueiro que temos aos objetos que nos circundam. O mote filosófico do programa fenomenológico husserliano auf die Sachen selbst zuruckzuA gehen (p. 35) pode claramente ser visto no desenvolvimento da filosofia de Wittgenstein também. A centralidade da linguagem e seus limites e a similitude entre os conceitos entre Lebenswelt e Lebensform também podem ser explorados.

Há uma característica filosoficamente relevante que perpassa boa parte da obra destes dois filósofos radicais, ao recusarmos maiores detalhamentos de estilo e método que fariam a aproximação impossível. Ambos os filósofos parecem defender, de maneiras diferentes, que o fundamento das coisas não tem fundamento.

Todo fundamento é situado, contextual e radicalmente humano. A partir da compreensão profunda de nossa finitude, tudo em nossa volta, nossas práticas, nosso conhecimento, nosso mundo, deveria refletir isto.

Aqui poderíamos defender que há um ataque direto ao fundamentalismo filosófico que marca tantas escolas filosóficas ao longo da história e da nossa cultura.

Nós não podemos argumentar do que é e do como pensar, em suas essências últimas e racionais, porque o raciocínio já pressupõe certas respostas a estas perguntas e conceitos que organizam nosso discurso e experiência. De toda forma, acredito que ambos os filósofos não acreditam que esta falta de razão última ou justificação definitiva para a linguagem e o mundo não tira do pensar a sua validade ou legitimidade, mas ao contrário: a falta de fundamento último mostra como alguns fatores centrais em nossas atividades devem ser tomados como fundamentos sem fundamentos.

A discussão sobre a possibilidade do não ser, a temporalidade, a facticidade, a contingência, a finitude, e a falta de fundamento podem ser aproximadas entre os dois autores. Além disso, até mesmo a idéia de abertura e o ser como abertura e vazio poderia ser seminalmente usada em pesquisas filosóficas acerca da obra de Wittgenstein, porque linguagem para ele parece necessariamente residir sobre não-racionalidade e, no limite, em fatores que são injustificados e injustificáveis como a nossa socialização e nossa particular suscetibilidade a socialização. Nos lembremos que as Investigações Filosóficas, por exemplo, são abertas por uma crítica contundente de Wittgenstein a imagem de aprendizado de nomes como descrita por Agostinho que aponta acordos tácitos complicados na base de nossas referências triviais a coisas no mundo. Além disso, tomemos a importância do contexto pedagógico no Sobre a certeza (SC) que apresenta a assim chamada epistemologia de Wittgenstein. Com frequência, a discussão se remete à pergunta de como uma criança aprende coisas que permanecem (e devem permanecer) intocáveis ou indubitáveis. (SC §144, 233, 374) Wittgenstein sugere que uma criança deve primeiro poder confiar, antes de duvidar (SC §160, 480). Aprende-se com a linguagem o que permanece imune à investigação e ao que pode ser investigado (SC §472). Se crianças em seu processo de inserção em práticas duvidarem imediatamente do que está sendo ensinado, elas não serão capazes de aprender alguns jogos de linguagem (SC §283).

Talvez pudéssemos usar jargão Heideggeriano aqui. A criança deve estar aberta para ser inserida ou introduzida em uma prática. Depois da inserção, a relação entre uma imagem de mundo e aprendizado infantil parece ficar evidente (SC §167). Neste sentido, tentar fundar a certeza do conhecimento, como faz Moore em alguns de seus trabalhos (1974, 1974a), com o emprego do operador epistêmico “eu sei” prefixando várias proposições, segundo ele indubitáveis, seria ilegítimo. O contexto de educação parece ser paradigmático e decisivo para Wittgenstein, funcionando até mesmo como metodologia filosófica ao sugerir para nos perguntarmos em casos de certeza indubitável como uma criança as aprende. (SC §581). Curiosamente a ausência de dúvida em algum ponto é fundamental para o entendimento de nossa lógica e aritmética. Nestas práticas não precisamos de acordo com o mundo, mas com outros indivíduos de nossa comunidade, ou com a humanidade (SC §156, 281).

Analogamente, Heidegger acusa a metafísica tradicional de focar exclusivamente nos objetos a mão, ou seja, em algumas entidades que não se mudam e não são afetadas em seus contornos. Fundar características invariantes em nossas praticas e acordos e não em elementos transcendentes, é dar um fundo objetivo e estável, mas sem fundamento definitivo, a práticas cognitivas do homem, como ciências, lógica e matemática.

É claro que a crise dos fundamentos das ciências, incluindo fundamentos da matemática e da lógica que motivam a emergência de lógicas não-clássicas e abordagens variadas de anti-realismo no século XX, representa uma crise da racionalidade.

Isto motiva grandemente a defesa de uma nova noção de razão mais apropriada para nossa finitude. Para tanto, deveríamos enfatizar o fator humano, social e histórico no próprio desenvolvimentos de nossas atividades científicas.

A partir daqui eu gostaria de me concentrar no papel que a noção de Maßstab, em especial, poderia desempenhar na aproximação da filosofia dos dois filósofos em um novo pensar urgente.

Vale destacar que a polissemia da palavra em alemão é grande. Ela é discutida em diferentes contextos e tem diferentes usos, tais quais, instrumento (régua), metragem, sistema de coordenadas, escalas, critério (“Hast du einen Maßstab dafür?”), um cânon, um paradigma, um padrão ou Vorbild (“Bach ist der Maßstab der Musik!”), objeto de comparação ou protótipo (“Wir setzen Maßstäbe!”), regras e normas (“Welche sind die Maßstäbe für die Behandlung von Tiere hier?”), dentre outras acepções.

Inspirado por reflexões de Heidegger e Wittgenstein, gostaria de destacar o papel humano e normativo de Maßstaebe em nossas práticas na fundação desta nova racionalidade da finitude. Elas são objetos pelos quais nós avaliamos a qualidade de alguns procedimentos e descrições. O objeto de comparação não pode, ele mesmo, ser verdadeiro ou falso, mas ele determina como avaliamos coisas como verdadeiras ou falsas. Desvios e/ou contraexemplos não são falsos, são confusos e/ou absurdos (Unsinn).

Algumas teses podem ser elencadas no desenvolvimento da filosofia de Wittgenstein a partir de 1930 que se conformam grandemente à filosofia Heideggeriana. Acredito que originalmente Wittgenstein percebe que não existe uma Maßstab natural. Um sistema de coordenadas, uma escala, ou um sistema de medida não é algo psicológico e nem físico e tampouco fundado em um espaço lógico eterno compartilhado entre linguagem e mundo. A alternativa para este dilema é justamente a natureza social, impessoal e histórica da introdução destes sistemas para que possamos avaliar a qualidade das nossas descrições do mundo e de nossas atividades. Não há critério subjetivo, mas também não há critério absoluto.

Este elemento normativo, qual seja, da possibilidade de correção de práticas e atos a partir de Maßstaebe pode ser o fio condutor para se restaurar a correlação entre racionalidade, lógica e ética nesta racionalidade da finitude, uma vez que todas são fundamentalmente constituídas em relação com elementos deontológicos como obrigação, comprometimento e dever, ou seja, são compostas a partir do reconhecimento de normas. Normas e regras são objetivas e gerais, embora não absolutas ou universais. São estáveis, mas não definitivas. Escalas devem ser estipuladas, introduzidas, estabelecidas. Não há medidas no mundo independente de nossas práticas.

Uma forma radical de convencionalismo não é consequência desta abordagem: não se trata aqui que poderia haver quaisquer regras postuladas, porque regras devem apresentar um sucesso pragmático para uma determinada finalidade inserida em uma Lebensform. Elas não são convencionais, porque são frutos de uma assembléia, mas porque poderiam ser outras e dependem da estabilidade de certos acordos tácitos em nossas práticas. Não é que tudo valha, se tudo for humano demasiado humano. Devemos entender que a importância e liberdade do indivíduo decresce na medida em que aumenta o número de praticantes. A aceitabilidade de Maßstaebe pressupõe regularidades sociais em uma comunidade.

Isto claramente também está relacionada com a emergência de figuras de autoridade pública, política e de seus efeitos perlocutórios em uma comunidade, seja na figura de pais em núcleos familiares, do educador de jovens em ambientes pedagógicos, de um líder em práticas políticas mais sofisticadas ou de um cientista (ou mago) com grande prestígio em sua comunidade.

Em todos estes casos de aprendizado, introdução e aplicação de escalas é essencial destacarmos o papel normativo envolvido. A aplicação tem que poder ser controlada, regulada e corrigida. O problema aqui não é a possibilidade do falso como na tradição plantonista e realista, mas a possibilidade da correção. A possibilidade de eliminar erros é central. Deve haver, então, um deslocamento da linguagem pensada como composta de entidades objetivas que identificam condições de verdade para os atos e compreensões práticas da aplicação de regras constitutivas de significados linguísticos.

Em um sentido filosoficamente relevante, estas escalas que constituem nossos sistemas linguísticos, lógicos e matemáticos não descrevem nada, mas são usadas para avaliarmos nossas descrições, ou seja, elas não podem ser nem verdadeiras e nem falsas. Elas são o critério pelo qual nos avaliamos a verdade ou falsidade de determinadas descrições. Um critério é usado para avaliar uma descrição; mas ele mesmo não é uma descrição. Para avaliarmos este critério não podemos usá-lo, mas temos que evocar um outro critério. E para avaliar este outro critério, um outro e assim por diante. Nenhum deles precisa representar nada, nem uma gramática profunda e nem um domínio independente de entidades supranaturais.

Divergências radicais de nossos critérios e paradigmas de avaliação não são falsas; são incompreensíveis ou plenos erros. No limite, serão consideradas devaneios.

Podemos avançar mais um pouco nossas especulações normativas, com as seguintes questões: Se adotarmos, para fim de argumento, a teoria da verdade por correspondência, teremos uma descrição correspondente à realidade, se for ver dadeira. Contudo, como a descrição ou proposição corresponde à realidade? Como se testa uma descrição? Com quais critérios nós verificamos a verdade de um juízo ou este concordar com a realidade? O que vai ditar a prioridade de um critério em relação a outro? Em caso de conflito de evidência, como determinamos qual evidencia é mais relevante? O que vai determinar qual é o critério ou escala mais relevante? Adequação com os dados, a simplicidade, a consistência, o poder unificador da explicação, a recusa de elementos ad hoc, computabilidade, eficiência, efetividade, necessidade social de uma época? Aqui um aspecto existencial e pragmaticamente importante toma lugar, a saber, a decisão tomada por indivíduos engajados em determinadas práticas públicas.

É importante notar que em um ambiente de conflito temos que fornecer instruções para se testar nossas afirmações (SC § 641). Nestes casos, como em muitos ambientes teóricos, precisamos mais de acordo com outras pessoas, nossos Mitmenschen, que com fatos.

Nós não estabelecemos fatos, nós estabelecemos os critérios pelos quais descrições dos fatos são avaliadas. Nesta visão revisitada da racionalidade, marcada pela finitude e pela normatividade, nós somos ligados pelas nossas normas e pelos compromissos de nosso discurso e nossos atos. Nós somos racionalmente integrados pelos nossos compromissos disciplinados por normas e pelos atos pelos quais somos responsáveis. Aqui o papel que o uso, o costume e as instituições desempenham nesta concepção normativa da racionalidade é evidente.

Relevantemente, precisamos de um ambiente de instrução, de estar com o outro. Onde uns confiam em outros e onde haja autoridades reconhecidas. Em práticas sociais, um indivíduo tem que ser reconhecido pelos que ele reconhece.

Em outras palavras, deve haver um reconhecimento recíproco na base desta racionalidade normativa. Neste horizonte, é fascinante também nos perguntarmos como autoridades são constituídas? São autoridades porque elas sempre acertam? Ou porque elas definem o que é um acerto? Elas parecem ser tornar objetos de referência, porque influenciam as práticas onde critérios são estabelecidos. Elas são autoridades, porque instituem critérios novos ou instituem critérios novos porque são autoridades? Com esta curta resenha ao intrigante livro do Prof. Giacoia espero ter mostrado como se pode promover a aproximação entre Heidegger e Wittgenstein nesta rearticulação da razão pela finitude do ser humano, na precariedade de nossas práticas, fundando a objetividade nas normas publicas estáveis, mas não definitivas, de comunidades.

Pensar os dois filósofos, Heidegger e Wittgenstein, em conjunto e não isoladamente é urgente para a introdução de um novo pensar.

Referências

MOORE, G. E. Uma Defesa do Senso Comum. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção os Pensadores).

______. Prova de um mundo Exterior. São Paulo: Abril Cultural, 1974a. (Coleção os Pensadores).

WITTGENSTEIN, Ludwig. TractatusLogico-philosophicus. Tagebücher 1914-16. Philosophische Untersuchungen.Werkausgabe Band 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.

______. Some Remarks on Logical Form. Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volumes, v. 9, Knowledge, Experience and Realism, p. 162-171 Published by: Blackwell Publishing on behalf of The Aristotelian Society, 1929.

______. Philosophical Investigations. Translated by G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1953.

______. On Certainty. Edição bilíngue. G. H. von Wright & G. E. Anscombe (Orgs.). Londres: Basil Blackwell, 1969.

______. Wittgenstein und der Wiener Kreis (1929-1932). Werkausgabe Band 3. Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1984.

Marcos Silva – Pós-doutorando em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC)/CAPES-PNPD. E-mail: [email protected]

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Ciência: pesquisa, métodos e normas – DAU; DAU (ARF)

DAU, Shirley e DAU, Sandro. Ciência: pesquisa, métodos e normas. Mutum: Expresso, 2013, 173 p. Resenha de: CARVALHO, José Maurício. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.13, jan./jun. 2015.

Os autores são professores de Filosofia e trabalham com Metodologia Científica há anos, havendo publicado diversas obras sobre o assunto. Sandro é Doutor em Filosofia com estágio de pós-doutorado em Ética e Shirley é mestre em Filosofia e estuda Filosofia analítica, Lógica e Linguagem. Dedicam-se também a Epistemologia e História das ciências.

Este livro foi organizado em 16 capítulos e trata da pesquisa científica e sua divulgação. Parte da fundamentação teórica dos estudos científicos para a especificidade das práticas de investigação que contribuem para o desenvolvimento da ciência. Os autores abordam, como atividades práticas, o processo de construção: do projeto e da pesquisa em geral, dos resumos, referências, monografias, relatórios técnico-científicos e artigos científicos.

No capítulo inicial os autores examinam a especificidade dos textos científicos e oferecem técnicas de divisão e interpretação das partes que permitam a boa compreensão desses textos. Esclarecem a diferença entre comentário e explicação, mostrando que a segunda prevalece sobre o primeiro, porque é anterior e restringe-se ao texto, enquanto o comentário pressupõe a explicação, interroga e não se restringe ao texto.

Segue-se o capítulo dedicado aos métodos utilizados na ciência. Eles são apresentados como “caminho estabelecido por determinada ciência, a fim de conseguir conhecimentos válidos por intermédio de instrumentos confiáveis” (p. 17) ou, mais rigorosamente, citando os autores L. Liard, como “conjunto de processos de conhecimento que constituem a forma de uma determinada ciência” (id, p. 17). Neste caso o método possui uma base lógica e dois pontos básicos: reprodutibilidade e falsificabilidade. O primeiro ponto significa que a pesquisa ou experimento pode ser repetido por qualquer pesquisador e o outro que suas hipóteses podem ser recusadas ou falsificadas. As ciências usam variados métodos e, portanto, a escolha do método deve se adequar ao problema e tratamento escolhidos pelo pesquisador. Os autores explicam que a ciência moderna desenvolveu-se partindo da observação, da formulação de hipóteses falsificáveis, da indução ou colocação das hipóteses à prova, da interpretação dos resultados e formulação da teoria, estabelecimento da conclusão.

O capítulo terceiro trata do resultado dos experimentos consolidados em teorias que são fundamentais em qualquer ciência. Os autores aproximam a origem da Ciência com o da Filosofia, remetendo-a ao século VI a. C. na antiga Grécia. Esclarecem que a Ciência moderna, cujo método foi desenvolvido por Galileu Galilei, ganhou perfil diferente e afastou-se da Filosofia e Ciência antes praticadas, adotando “experiências rigorosas, organizadas em leis gerais, por outras palavras, é qualquer corpo de conhecimentos fundado em observações dignas de fé e organizado no sistema de proposições ou leis gerais” (p. 26). Ao tratar da especificidade da Ciência moderna estruturada na razão aplicada (experimental), os autores a diferenciam da Filosofia que se baseia na razão pura; da Religião que usa a fé, possui caráter mais subjetivo e depende da crença de cada um, e da Arte baseada na intuição e não na razão. Eles diferenciam o método indutivo, que vai do particular para o geral, do método dedutivo, que segue o caminho inverso. O conhecimento científico, de modo geral, possui os seguintes traços: “classificar os conhecimentos, descrever os fatos, explicar os fenômenos; interpretar os diferentes casos; ser autocorretivo, experimental, descritivo, particular, cumulativo, operativo” (p. 31). Os autores esclarecem que o conhecimento científico é parcimonioso, isto é, prefere explicações simples. Salientam o propósito da ciência de construir teorias que expliquem os fenômenos e se referem à estas teorias como “uma visão sobre um tema” (p. 40). Eles as caracterizam como possuidoras de “definição rigorosa; coerência interna, generalização por meio de deduções, ampliação do conhecimento” (p. 40). Destacam ainda a utilidade das teorias como critério para sua continuidade.

O capítulo IV é dedicado ao estudo dos conceitos, que são a base da ciência. Contudo, comentam os autores, que não basta reunir conceitos para chegar a uma ciência, é preciso que os conceitos estejam organizados em teorias, cujas características foram examinadas no capítulo anterior. O conhecimento adequado dos conceitos é um bom critério para saber se se conhece uma teoria e para organizar o debate, pois “aquele que afirma e aquele que pergunta, devem ter claro qual o significado do conceito empregado” (p. 44).

Um conceito científico caracteriza-se “por ter um significado claro, preciso e abstrato, que não resulta de preferências, de gostos e de anseios individuais” (p. 44). Contudo, a característica principal de um conceito científico é “identificação dos elementos centrais daquilo que é estudado” (p. 45) e não se referir “a um caso único, a um fenômeno, mas a classes, a grupos, a relações, etc.” (p. 45). A compreensão de um grupo de conceitos que estão numa ciência dirige o olhar do cientista, assim ele perceberá o fenômeno com os olhos da ciência que lhe é familiar, ou “cada um perceberá o mundo com os conceitos que for condicionado” (p. 46).

Segue-se um capítulo dedicado a verdade. Os autores tratam dos critérios de verdade estabelecidos por três grandes escolas filosóficas: realismo (relação entre a consciência e a coisa), idealismo (coerência interna) e pragmatismo (utilidade das afirmações). No que se refere propriamente às verdades científicas, elas se dividem em três tipos: as que se limitam a formular o que pode ser exato, as que aceitam a probabilidade e aquelas que se abrem à possibilidade do mundo de cada pessoa influir no conhecimento. Estas últimas são as ciências humanas que, com base na fenomenologia, reconhecem, por baixo dos fatos objetivamente descritos, elementos do chamado mundo da vida. No que se refere à relação dos fatos, os autores distinguem as verdades lógico-formais, das objetivas, ontológicas e morais. Poderíamos entender as primeiras como as da Lógica e Matemática, as segundas como as das Ciências da natureza e as duas últimas da Filosofia. Quanto a relação com a verdade ela pode produzir quatro tipos de dúvidas: “espontânea, refletida, metódica e universal.” (p. 53). A primeira é aquela em que a pessoa não emite juízo sobre algo, mesmo que tenha elementos para fazê-lo, a segunda nasce da ausência de elementos necessários à conclusão, a terceira é um tipo de método empregado para chegar a uma verdade indubitável e a última refere-se à posição dos céticos, que negam a possibilidade de chegar a verdades fundamentais.

Quanto aos critérios de verdade os autores apontam seis: a autoridade (abandonada pelas ciências modernas), a evidência (o que aparece para o indivíduo), o senso comum (uma espécie de instinto comum), a necessidade lógica (ausência de contradição) e a experiência.

O capítulo VI estuda a pesquisa científica e os autores a definem como a que utiliza “métodos racionais, científicos, na comprovação ou não, das teorias apresentadas” (p. 57). Eles apresentam como objetivo da pesquisa científica “encontrar respostas coerentes, para os problemas (questões) propostos pelo pesquisador” (p. 58) e diferenciam as pesquisas quantitativas, que trabalham com a quantificação das variáveis, das qualitativas, mais empregadas nas ciências humanas. Esclarecem que essas últimas se desenvolveram no século passado e resumem o debate então realizado entre os intérpretes das chamadas ciências duras e as outras. Tratam, ainda que superficialmente, dos limites da razão experimental que foi desenvolvida na modernidade para tratar dos problemas do homem, assunto da fenomenologia.

A partir do capítulo VII o livro ganha um caráter prático, orientando o leitor em como utilizar as técnicas empregadas na pesquisa científica. Distinguem esquema, resumo e fichamento. Esclarecem que esquema “permite ao estudante compreender uma obra em seu todo” (p.63). Eles propõem no capítulo VIII o resumo como “apresentação concisa de um texto qualquer” (p. 65) e tratam no capítulo IX de um tipo especial de Resumo denominado Resenha.

Explicam que Resenhas são um tipo específico de resumo seguido de comentário crítico, por isto dizem que eles devem ser “elaborados por especialistas” (p. 67). Normalmente as revistas científicas recebem bem este tipo de resumo dedicando-lhe uma parte própria, porque é importante aos especialistas da área terem um resumo comentado das obras daquela ciência pois não é possível, hoje em dia, ler tudo que se publica nas diversas áreas da ciência.

O capítulo X é dedicado ao fichamento, definido como técnica para “guardar um grande número de informações sobre um documento em pequeno espaço.” (p. 69). O fichamento pode ser da obra toda ou de uma parte, além de conter citações que serão úteis na elaboração do trabalho que pretende fazer. O capítulo XI é um resumo da NBR 10520 e explica como fazer citações curtas e longas. Segue-se um capítulo sobre como fazer referências, resumo da NBR 6023, de livros, monografias, periódicos, eventos, trabalhos em eventos, legislação, jurisprudência, doutrinas, filmes, documentos cartográficos e sonoros.

O capítulo XIII explica como se faz um projeto de pesquisa, apresentado como “caminho que será percorrido, no estudo do problema proposto” (p. 97).

Os autores detalham os elementos imprescindíveis do projeto (capa, folha de rosto, sumário, apresentação, justificativa, área de concentração, natureza, delimitação do assunto, revisão da literatura, problema, hipóteses, procedimento, análise dos dados, objetivos, conteúdo, metodologia, cronograma, referências, anuência do orientador).

O capítulo seguinte é dedicado à monografia, definida como “texto sobre um único assunto” (p. 129), e que pode ser desde um TCC até uma tese de doutoramento. Consiste num resumo da NBR 14724. Suas características básicas são: sistematicidade, metodologicidade e relevância. Uma monografia se divide, geralmente, em cinco partes: “introdução, desenvolvimento, conclusão, bibliografia, notas.” (p. 131). Os autores finalmente afirmam que a estrutura formal da monografia são três grandes partes: os elementos pré-textuais, os textuais e os pós-textuais.

Os capítulos finais explicam como fazer um relatório e um artigo científico, respectivamente comentando as NBRs 10719 e a 6022. Os artigos científicos, matéria do último capítulo, são definidos como: “publicação com autoria declarada, que apresenta e discute ideias, métodos, técnicas, processos e resultados nas diversas áreas do conhecimento.” (p. 163). O artigo serve para divulgar um tema estudado e deve vir em linguagem “clara, coerente, objetiva, impessoal” (p. 163) e conter os elementos pré-textuais, textuais, pós-textuais.

Este livro é importante porque coloca o leitor diante do fato de que fazer ciência é mais do que aprender conceitos e teorias, exige produzi-la. Esta atitude é própria de um tipo de ciência desenvolvido na modernidade, com os estudos de Francis Bacon, Isaac Newton e os iluministas, que contrapunham a nova formulação da ciência à antiga construída na velha Grécia por Platão e Aristóteles. A ciência moderna nunca está pronta, mas em continuado processo de construção. Por isso, o estudo das técnicas de pesquisa é essencial numa atividade que está sempre se fazendo. O movimento iluminista reforçou a confiança na razão aplicada e no modelo de ciência moderna pautada na observação dos fatos, experiência e cálculos. Os autores incorporam aspectos importantes dos estudos de filosofia da ciência. Entre eles o entendimento de que a enumeração dos fatos ou descrição dos conceitos não é suficiente para fazer ciência, antes é preciso comparar os fatos observados e julgá-los para construir teorias. Isto é o que ensinava, por exemplo, o médico e fisiologista francês Claude Bernard no século XIX. Os autores incorporaram ainda uma concepção mais atual de ciência que trata da sua validade em virtude da autocorreção, princípio baseado na falibilidade das teorias, conforme postulado por Charles Sanders Peirce e pela falsificabilidade, conceito desenvolvido por Karl Popper. Para este último uma teoria é válida não devido a sua demonstração, mas por sua permanência provisória, enquanto não vingam os esforços por refutá-la.

No capítulo IX os autores tocaram numa questão importante da ciência moderna, a sua necessária especialização. Como lembra Ortega y Gasset no capítulo XII de La rebelión de las masas (O.C., Madrid, Alianza, v. IV, 1994): “nem sequer a ciência empírica, tomada em sua integridade, é verdadeira se separada da Matemática, da Lógica, da Filosofia. Porém o trabalho em que nela se tem, irremediavelmente, tem que ser especializado.” (p. 217). Esta especialização exigida pela ciência moderna contém, contudo, um grave risco que o Ortega repetiu em mais de um lugar e isto não foi mencionado no livro.

É que a especialização não legitima o conhecedor de uma ciência opinar sobre outros assuntos. Quando ele assim faz torna-se uma espécie de novo bárbaro, detalhadamente estudado por Ortega. Este especialista deverá passar por uma reciclagem, se estiver correto o que diz Ortega na continuidade do livro, pois se:

o especialismo tornou possível o progresso da ciência experimental durante um século, aproxima-se uma etapa nova em que ele não poderá avançar por si mesmo se não encarregar uma geração melhor de construir um novo aparelho mais poderoso. (p. 219-220). Este novo especialista é uma exigência dos nossos dias, mas ainda assim será ele um especialista.

O assunto nuclear, da perspectiva epistemológica, consiste na discussão entorno à verdade levada a cabo no capítulo V. E aí também há virtudes. Parece importante a distinção dos conceitos de verdade construídos por diferentes escolas filosóficas: realismo, idealismo e pragmatismo. Também parece fundamental a diferença entre os critérios de verdade adotados por diferentes ciências: a verdade exata da linguagem matemática, as afirmações aproximativas da estatística e as verdades cuja objetividade relativa está em disputa com as referências subjetivas do mundo da vida. Faltou indicar que essas diferentes visões de verdade científicas nascem em diferentes tipos de ciência, as primeiras da natureza e as últimas do homem. A distinção entre os diferentes tipos de dúvida também foi muito criativo. O que ficou a merecer maior aprofundamento é o fato de que as verdades são diferentes nas Ciências, na Filosofia, na Religião e até as Pessoais. Todas as formas de verdade são importantes, mas se organizam em níveis distintos. Neste aprofundamento sobre as diferentes verdades faltou também um esclarecimento sobre os limites das chamadas ciências duras, ou a ciência experimental, pois suas teorias começaram a ser refutadas pelo desenvolvimento da própria filosofia da natureza no século que passou.

José Maurício Carvalho – Doutor e professor de Filosofia na UFSJ. Email: [email protected]

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Wittgenstein on Phenomenology and Experience: An Investigation of Wittgenstein’s ‘Middle’ Period – THOMPSON (ARF)

THOMPSON, James. Wittgenstein on Phenomenology and Experience: An Investigation of Wittgenstein’s ‘Middle’ Period. [?]: University of Bergen Press, 2008. Resenha de: SILVA, Marcos. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 13, jan./jun. 2015.

I read Thompson’s well-written and relevant book ‘Wittgenstein on Phenomenology and Experience’, published by the University of Bergen Press in 2008, with great interest. My PhD Dissertation, defended in 2012, has direct connections with his main object of investigation, especially because one of my interests there was to evaluate logical problems with the expressiveness of color exclusion within the tractarian background.

Thompson’s treatment of the so-called Middle Wittgenstein period, documented by the transitional material that appeared in the Nachlass, is for this reader the most seminal feature of his work on Wittgenstein’s phenomenology. His commentary provides a useful addition to the leading and influential researchers already focusing on this challenging and oftneglected material. Thompson manages to handle significant problems with Wittgenstein’s exposition about experience and phenomenology without lapsing into the sort of misleading labels and programmatic vagueness that has dominated commentaries of the last two decades in the “Wittgensteinian scholarship”, for instance discussions of the tractarian passage 6.53, which orientates the contention of resolute reading. The secondary literature has too often rendered Wittgenstein an isolated and aptly neglected author in contemporary analytic philosophy.

One potentially misleading feature of Thompson’s exposition, however, is the symmetric approach that he takes towards presenting Wittgenstein’s thoughts about experience and phenomenology; on the contrary, a careful reading seems to reveal that phenomenology was a centrally important topic in Wittgenstein’s philosophical development, while experience was not.

Consider the frequency and centrality with which phenomenology was directly discussed by Wittgenstein, while any discussion of experience was very often fragmentary and marginal. Moreover, note the kind of association which Thompson draws between the mystical experience in Tractatus Logico- Philosophicus [hereafter TLP] as a trigger for the rise of phenomenology in the transitional period. If Thompson is correct, then the relation is by no means obvious and straightforward, and it deserves a fuller explication. I do agree that some germs of the phenomenology found in Wittgenstein’s Middle Period can be already seen in the Tractatus, but not in its contention on mystical experience, as Thompson defends, but already in the very beginning of his first book.

Arguably, Thompson’s work overlooks the importance of colors and their logical organization in this transitional material. In some passages of Philosophische Bemerkungen [hereafter] PB, for instance §81-83, and in some entries of the discussions presented in Wittgenstein und der Wiener Kreis [hereafter WWK], such as ‘Farbsystem’ and ‘Die Welt ist rot’, Wittgenstein does draw attention to his uses of colors in TLP directly connected to his new phenomenology. I am not talking about the obvious problem in 6.3751, first pointed out by Ramsey (who was not mentioned in any part of Thompson’s book). Criticizing this Tractarian passage, Ramsey (1923) discovered the Sackgasse for the tractarian logic: Some necessary consequences are not due to tautologies. However, I prefer to read this contention through its dual: Some (logical) exclusions are not due to contradictions (but due to contrarieties). My point is that if we read carefully the first two mentions of colors in Wittgenstein’s Tractatus, namely 2.0131 and 2.0252, which both occur in the work’s so-called ontological section, we will see that already some phenomenology was to be expected even there. The italics in 2.0131 strongly suggest a kind of exclusion, surprisingly underdeveloped by Wittgenstein at that time. As this passage 2.0131 already suggests, these italics are not just to be found in color system.

The ‘etcetera’ in this very same passage suggests the multiplicity of ‘logical spaces’ or ‘Satzsysteme’, whose treatment are ubiquitous in his “phenomenological” period and given a full treatment.

Another concern might be raised about Thompson’s neglect of Ramsey’s relevance to Wittgenstein’s abandonment of the thesis of the independence of elementary propositions/Sachverhalt. Many authors have been said to have influenced Wittgenstein directly or indirectly throughout his carrier. But none of them made a complicated trip from England to Austria, more specifically, to a small village in Niederösterreich in the middle of nowhere, to meet personally with Wittgenstein to discuss some (obscure) problems in his (obscure) book.

Ramsey was the first one to recognize the significant problem of logical organization that colors posed and the challenge they represented for the tractarian logic and image of language. Moreover, as an illustration of a very interesting case of historical completeness, Ramsey already pointed out the color problem within the tractarian philosophy in 1923; he therefore probably anticipated, in 1927, Wittgenstein’s later solution for the problem introducing additional rules, pragmatism and games, by using a metaphor of chess. And Ramsey had proposed all of that three years before Wittgenstein had begun talking significantly about games! The importance of recognizing Ramsey’s criticism and his impact on Wittgenstein’s solutions in the Tractatus is not just a matter of scholarly integrity; it is also a matter of illuminating accurately the conceptual development of key contributions made to logic and mathematics which have become associated with early analytic philosophy.

The total neglect of WWK in Thompson’s book, which purportedly intends to unveil Wittgenstein key shifts, is also hard to comprehend. WWK was neither written nor edited by Wittgenstein; yet it is a great historical and philosophical document for understanding the kinds of problem Wittgenstein was dealing with and reacting to in his philosophical development. If the problem is that WWK is not well edited, that can always be established by a careful comparison with Wittgenstein’s Nachlass. Such an exercise would like reveal that many arguments, metaphors and concepts are indeed very similar. Thompson ought to justify why he very often used PB and not WWK at all. Moreover, in WWK we can see diachronically how things evolved, while, with PB, Rush Ree’s interventions make this kind of genetic investigation impossible.

Perhaps also as consequence of not using WWK, Thompson seems to have overlooked the importance of the year 1930 for Wittgenstein’s treatment of phenomenological problems. For instance, in the beginning of 1930, the notion of normativity, which is not explored in Thompson’s book, arose in Wittgenstein’s discussions with Waismann about the number π and the role of axioms in geometry. Another example is the role of June of 1930. At this time, Wittgenstein was preparing Waismann to represent him in a brilliant round table on the nature of mathematics in Könisberg, in which Von Neumann, Carnap and Heyting would participate. In the entry ‘Was wäre es zu sagen in Könsisberg’ in WWK, we can see both Wittgenstein and Waisman discussing Grundgesetze’s criticism of formalism. This entry shows that Wittgenstein defended clearly, against Frege, that formalists are right in holding mathematics as a game. This discussions on formalism also marks Wittgenstein`s decreasing interest in his short-lived phenomenology. In this way, this entry should have played a relevant role in Thompson’s evaluation of Wittgenstein’s phenomenology.

Another conspicuously absent omission in Thompson’s book was some detailed discussions of verificationism. Maybe this is also due to his neglect of WWK in his critique; for it is there that this topic is raised at several points in conjunction with phenomenology. These discussions are important to understand Wittgenstein’s influence on Carnap and the Vienna Circle; moreover, the prominence of Wittgenstein’s treatment of these two conjoined topics is critical to appreciating the influence on Wittgenstein of Brouwer’s intuitionism and revisionism about the role and nature of logic. Thompson does mention, but does not explore in much detail, the clear connection between verificationism and problems with the restrictiveness of truth-functionality. In some way this discussion may link with the reasons why the kind of realist truth theory Notes on Thompson’s “Wittgenstein on phenomenology and experience” – Marcos Silva Argumentos, ano 7, n. 13 – Fortaleza, jan./jun. 2015 321 defended in the Tractatus (based on the notion of sense as truth conditions) must be abandoned. It might be argued that this consequence is directly linked to the full ascendancy of Wittgenstein’s phenomenology: ‘sense’ resolves finally into the concern for finding a method for verification, and not a matter of concern for determining logical truth conditions. Thus a very important key to the role that his phenomenology played in Wittgenstein’s official return to philosophy has been neglected, in an otherwise compelling overview of his phenomenology and the notion of experience.

Thompson made, in spite of these problems pointed above, some brilliant remarks on the failure of using calculus to understand human language discussing its lack of determinedness, rigidity (i.e. the well structuredness of rules) and completeness. I recommend Thompson’s book to people interested in an introduction to Wittgenstein’s (short-lived) phenomenology and for anyone who will profit from sharp, effective criticism of the limitations of the so-called resolute reading.

References

FREGE, Gottlob. Grundgesetze der Arithmetik. Band: II. Jena: Verlag Hermann Pohle, 1903.

RAMSEY, Frank. Critical Notes to Tractatus Logico-Philosophicus. Mind, p. 465- 478 ,1923 _____. Facts and propositions. Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volumes, v. 7, Mind, Objectivity and Fact, p. 153-206, 1927.

SILVA, Marcos. Muss Logik für sich selber sorgen? On the Color Exclusion Problem, the truth table as a notation, the Bildkonzeption and the Neutrality of Logic in the Collapse and Abandomnent of the Tractatus. PHD Thesis – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Bemerkungen. Werkausgabe Band 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.

_____. Some Remarks on Logical Form. Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volumes, v. 9, Knowledge, Experience and Realism p. 162-171 Published by: Blackwell Publishing on behalf of The Aristotelian Society, 1929.

_____. Tractatus Logico-philosophicus. Tagebücher 1914-16. Philosophische Untersuchungen. Werkausgabe Band 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.

_____. Wittgenstein und der Wiener Kreis. Werkausgabe Band 3. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.

Marcos Silva – Pós-doutorando em Filosofia na Universidade Federal do Ceará (UFC)/CAPES-PNPD. E-mail: [email protected]

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Hannah Arendt e a modernidade. Política, economia e a disputa por uma fronteira – CORREIA (ARF)

CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade. Política, economia e a disputa por uma fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. Resenha de: JOSINALDO, Cícero. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.12, jul./dez. 2014.

No livro Hannah Arendt e a modernidade. Política, economia e a disputa por uma fronteira, Adriano Correia se propõe a percorrer com Hannah Arendt as distinções conceituais que operam como um dos principais expedientes metodológicos em sua reflexão política. Particularmente no que concerne à sua relação crítica, mas também ambígua com a modernidade. Para explicitar a acuidade e a relevância do procedimento de distinção conceitual assumido por Arendt, sem descurar, no entanto, do exame crítico de sua reflexão política (exemplificada na abordagem da “questão social”), importa para Correia considerar tanto as distinções mais sutis quanto os desdobramentos de certas equações negligentes. E isso sob a aposta no “vigor heurístico” da análise arendtiana acerca “mundo moderno”, em parte instituída por este procedimento.

No prólogo, sob o título “A necessidade de conhecer”, Correia começa por registrar o decisivo distanciamento que Hannah Arendt procurou manter da filosofia política tradicional no bojo da qual, exceto por algumas exceções, desde Platão, sob o impacto da morte de Sócrates, resta “o desconforto dos filósofos com a pluralidade, a fala persuasiva e o modo de vida ativo” (p. XII). O autor lembra que apenas muito recentemente, no ambiente de hostilidades políticas sem precedentes que marcam o século XX, Arendt teria detectado um tipo de interesse filosófico pela política, particularmente distinto das inquietações que desde Platão configuraram uma tradição filosófica. O aspecto marcante do novo interesse filosófico pela política foi o fato de que, mobilizado por certos acontecimentos avaliados como crises da civilização no século XX, incitou a reabilitação do vínculo entre pensar e agir. No registro de Adriano Correia, a interpretação de Arendt de que isso equivale à renúncia do filósofo ao papel de sábio no trato com a política, tem em conta a oportunidade criada pelo fenômeno para reavaliar as concepções tradicionais à luz de certas experiências e condições humanas básicas que a filosofia hostilizou.

Por sua parte, com a crise da tradição metafísica que procurava extrair as razões últimas dos fenômenos, conferir-lhes sentido ou “salvá-los”, a filosofia moderna se concentrou em revelar suas forças ocultas na conexão que mantêm com os processos do conhecer. Expediente moderno que lança os fenômenos numa profunda carência de sentido, e esta, por consequência, na falta de dignidade própria. Tal maneira moderna de “salvar” os fenômenos, “esta falta de jeito para lidar com o particular teria consequências políticas desastrosas para a capacidade de compreender, notavelmente em tempos sombrios” (p. XVII).

Daí que, como nota Correia, contra a falta de jeito da modernidade para lidar com a singularidade e a contingência, Arendt proponha “exercícios de pensamento político”: o exame dos acontecimentos ou o compromisso de “pensar o que estamos fazendo” (conforme Correia, a insígnia articuladora do pensamento de Arendt) que mediante tentativas, isto é, de forma ensaística, começa por suspender a questão da verdade, particularmente assumida como os pressupostos fundamentais e incontestados da tradição, em especial os que sucumbem à novidade dos eventos em categorias ou processos gerais e abrangentes, como se a história fosse um processo fadado a repetições.

Se o pensamento é provocado pela experiência, o empenho em compreender que a ela segue articulado, não se vê amparado por certas categorias tradicionais. Antes admite a “precariedade” e a condição da compreensão ensaística que opera por tentativas, consoantes aos fenômenos de onde parte para articular significativamente as experiências que se vivencia. Entre outros meios, foi por uma espécie de “fenomenologia genealógica” (p. XXII) complementada pela distinção conceitual, segundo Correia, que Arendt se lançou ao desafio de “pensar sem corrimão” (para usar uma expressão que lhe é bastante cara); de pelo testemunho da linguagem reencontrar nos fenômenos o sentido das experiências humanas, e assim resistir à inclinação a submergi- -las em “mais do mesmo.” No capítulo um, sob o título “Vícios privados, prejuízos públicos”, Correia, na companhia de Arendt, problematiza o “privatismo burguês” prenunciado na obra A fábula das abelhas de Bernard Mandeville, efetivamente consolidado pelo Imperialismo e mobilizado pela organização nazista do terror.

Antes de explorar diretamente a hipótese anunciada no título do capítulo (e de acordo com a proposta geral de seu livro), o autor reconstitui a distinção conceitual no horizonte da qual, na interlocução com Carlton Heynes, Hannah Arendt considera fundamental refletir acerca das condições subjacente ao agenciamento totalitário das massas: Hannah Arendt julga indispensável à compreensão desses fenômenos evidenciar as distinções entre a ralé, as massas e o povo, principalmente para indicar a novidade representada pelo surgimento das massas. A ralé “é fundamentalmente um grupo no qual são representados os resíduos de todas as classes” e “é isto que torna tão fácil confundir a ralé com o povo, o qual também compreende todas as camadas sociais”. Não obstante, julga que as distinções são suficientemente agudas para serem desconsideradas, e a principal é que enquanto nas grandes revoluções o povo luta por um sistema que de fato os represente, a ralé sempre clama pelo “homem forte”, pelo “grande líder”. Enquanto o provo, por meio das revoluções e das pressões por reformas nos regimes políticos, busca fazer-se representado no sistema político, a ralé tende a desprezar o parlamento e a sociedade dos quais está excluída, aspirando, em sua atração por movimentos que atuam nos bastidores, por decisões plebiscitárias e ações extraparlamentares. (p. 6).

Na trilha das distinções arendtianas, Correia enfatiza que o engajamento das massas mediante a organização dos líderes emergidos da ralé teve como pano de fundo o colapso do sistema partidário numa Alemanha assolada pela derrota militar, o desemprego e a inflação. E por isso tendo de lidar com o desespero das massas, “uma turba de indivíduos unidos unicamente pela convicção de que os partidos e seus líderes eram perniciosos e desonestos” (p.10). Daí que a mobilização totalitária das massas por líderes da ralé, não signifique, como destaca o autor, a saída da indiferença ou o despertar dos interesses por questões públicas, mas antes a canalização da ira contra aqueles que no sistema partidário se passavam por seus representantes políticos.

Ao reiterar com Arendt que os líderes das massas provinham da ralé, como ilustram os casos Hitler e Stalin, e que o partido nazista era quase que exclusivamente constituído por desajustados, Correia examina o interesse peculiar de Arendt no caso de Eichmann. Himmler, que em suas palavras “‘era mais normal’, mais filisteu do que qualquer outro chefe do partido. Distintamente de toda sorte de pervertidos que se toraram líderes no regime totalitário” (p.13). Himmler tipifica o “privatismo burguês” que ele mesmo teve em conta ao organizar o sistema nazista de terror. Zeloso para com os deveres de pai de família, na fidelidade à esposa e na proteção e garantia de um futuro decente aos seus filhos, Himmler concebeu uma organização burocrática cuidadosamente estruturada para absorver a solicitude do pai de família na organização de tarefas quaisquer que lhe fossem atribuídas, e para dissolver a responsabilidade pessoal em procedimentos de extermínio em que o perpetrador de um assassinato era apenas a extremidade de um grupo de trabalho. (p. 13).

Adriano Correia explora, enfim, a consagração que na falta de uma palavra melhor, Arendt nomeia do tipo “burguesa” aos interesses privados. O homem de massa que Himmler mobilizou para a perpetração dos maiores crimes da história, se aproximava menos da ralé do que do filisteu, disposto a tudo sacrificar em nome de seu “privatismo burguês”.

Ainda no contexto da temática esboçada no capítulo anterior, o segundo capítulo, intitulado “O liberalismo e a prevalência do econômico”, examina o movimento que vai da emergência à consagração filosófica das teorias éticas, políticas e econômicas do “egoísmo”, a saber, as teorias utilitaristas, que tanto para Arendt quanto para Foucault encontram no liberalismo sua mais vigorosa expressão. Antes de retraçar a avaliação que (para dizer de um modo bastante geral e esquemático) Arendt e Foucault têm em comum acerca do liberalismo como prevalência do econômico sobre o político, Correia faz notar que não parece ser coincidência o fato de a este respeito tais autores estabelecerem uma interlocução crítica com David Hume, particularmente acerca da obra Uma investigação sobre os princípios da moral.

Quando no âmbito de suas distinções conceituais entre trabalho e fabricação Arendt identificou a vitória moderna do animal laborans, isto é, do trabalhador- consumidor sobre o construtor-utilizador (que ela chama de homo faber), detectou na “revolução” da teoria ética utilitarista de David Hume, com que Jeremy Bentham concebeu “o cálculo dos prazeres”, um momento decisivo de ascensão do princípio da vida sobre o princípio de utilidade e o mundo. Pois o critério supremo das ações ou a “felicidade” de que fala Bentham, no fim das contas definida como a busca do prazer, é a mais autêntica expressão filosófica da instrumentalidade do animal laborans. Seu critério de utilidade, a subordinação de tudo ao processo vital, é totalmente desconexo e alheio ao mundo em que está situado.

Igualmente fundado sobre o princípio do interesse próprio, embora deslocado para o âmbito coletivo do domínio social, o liberalismo constitui a forma coletivizada do egoísmo, que nem por isso assume o caráter de interesse público.

O decisivo para Arendt, como enfatiza Correia, é que essa forma coletivizada do interesse individual representada pelo liberalismo, e cuja insígnia é a própria prevalência do econômico sobre o político, confira à vida mesma, à vida coletivizada como processo a ser mantido, incentivado e gerido, a distinção de critério supremo do empenho político.

Quanto a Foucault, o autor pontua que a menção àquilo a que Hume é citado por Arendt tem em vista seu esboço para a história do homo oeconomicus, compreendido como a história econômica do sujeito de interesses cuja mecânica, dada a sua heterogeneidade constitutiva, é intransfigurável ao plano jurídico-político pela figura fundadora do contrato:

O homo oeconomicus caracteriza-se justamente, na análise do empirismo e da economia nascente, como um sujeito de interesse cuja ação egoísta, multiplicadora e benéfica, é valorosa na medida mesma em que intensifica o interesse próprio. Com isso em vista, Foucault indica o quanto o homo oeconomicus não apenas não se deixa transfigurar na imagem do homo juridicus como também lhe é inteiramente heterógeno. O liberalismo constitui-se assumindo como pressuposto essa heterogeneidade, ou a “incompatibilidade essencial entre, por um lado, a multiplicidade não totalizável dos sujeito de interesse, dos sujeitos econômicos, e por outro lado, a unidade totalizante do soberano jurídico. (p. 30).

No curso da argumentação desenvolvida por Foucault com base na obra de Adam Smith, Correia destaca que os dois princípios fundamentais do liberalismo implicam a interdição de qualquer concepção de interesse comum, mas também a desqualificação de qualquer soberania arrogada sob o pretexto de conhecer a dinâmica da identidade natural de interesse individuais: O princípio de invisibilidade, notável na obra de Adam Smith, assenta- -se na hipótese de que uma vez que não se pode calcular o que seria um bem coletivo, sua busca é tanto infundada quanto danosa. Ocorre que não apenas o agente econômico não é capaz de mobilizar sua racionalidade para além da sua conduta atomística, também ao soberano é vedado o conhecimento da mecânica da identidade natural de interesses, de modo que “o poder político não deve intervir nessa dinâmica que a natureza inscreveu no coração dos homens”. (p. 30).

Nas palavras de Correia, “na interdição à interdição”, na limitação inflexível do econômico ao político, “é a própria noção de soberania que é posta em questão, portanto, na medida em que [a ignorância econômica] produz no soberano uma incapacidade essencial” (p. 31). Como o homo oeconomicus é aquele que para além de estabelecer limites ao poder soberano (como no caso do homo juridicus), é também de certo modo aquele que o destitui, ao impor o princípio de que lhe é vedado a intervenção no mercado, o poder soberano se vê diante da paradoxal impossibilidade de governar o homo oeconomicus. Foi pela concepção de “sociedade civil”, explica o autor, que na análise foucaultiana a governamentalidade liberal pôde “dissolver” a aporia que a prevalência do econômico lançou sobre a soberania política. A “sociedade civil” é o expediente da arte liberal de governar que emerge do princípio de que o homo oeconomicus é ingovernável. Ela “não é, portanto, uma realidade primeira e imediata, mas nota Foucault, o correlativo da tecnologia liberal de governo.” (p. 32).

Em sua análise final, o autor afirma que para Arendt e Foucault, a despeito de diferenças notáveis na progressiva imbricação de âmbitos tão distintos como o econômico e o político, está igualmente em jogo a questão da liberdade: “trata-se ainda da recusa da concepção de que a liberdade se traduz na conduta do sujeito de interesses que busca realizar os propósitos emanantes da sua vontade mediante o emprego de uma razão calculadora.” (p. 43-44).

Com o propósito de explicitar alguns dos aspectos mais fundamentais da crítica de Hannah Arendt à sociedade moderna, no terceiro capítulo com o título “Do uso ao consumo: alienação e perda do mundo”, o autor reconstitui e explora com argúcia aquela que é talvez a distinção conceitual mais original e mais preciosa de todo o pensamento arendtiano, a saber, a distinção entre trabalho e fabricação.

A recuperação das inversões que a modernidade operou no quadro geral da vita activa é empreendia, num primeiro momento, a partir do referencial constituído pela ciência moderna, no que tem de decisivo para o fenômeno da “alienação”. Conceito carregado de tradição, mas cujo sentido político preciso em Hannah Arendt traduz, como insiste o autor, uma perda do mundo humano de consequência ímpar.

O exame de Adriano Correia mostra que o potencial alienador da ciência moderna, sob a concepção de Hannah Arendt, envolve um complexo conjunto de aspectos cuja consequência é a configuração de um pano de fundo sobre o qual a cena que se desdobra é a inversão da relação hierárquica entre vita contemplativa e vita activa. Inversão operada com base no que é, por assim dizer, o elemento fundante da ciência moderna:

a “fé no engenho das próprias mãos” humanas: A transferência, levada por Descartes, do ponto de vista arquimediano do conhecimento de um ponto fora da Terra para a própria mente humana canalizou a confiança humana exclusivamente para os processos que desencadeava e controlava. Esta fé no engenho das próprias mãos configura o pano de fundo entre o qual se desenrolará a inversão da posição hierárquica entre a vita contemplativa e a vita cativa. A inversão não é, a rigor, uma alternação de posições entre contemplação e ação em que esta ocuparia o espaço de destaque antes conferido àquela no pensamento clássico. A contemplação, no sentido de contemplar a verdade, perdeu todo e qualquer sentido. (p. 49).

O decisivo, como sublinhado por Correia, é que a partir daí registre-se uma subordinação das demais atividades humanas básicas às atividades de fazer e fabricar, as atividades características do homo faber. O que é especialmente válido para a ciência, já que agora aposta antes de tudo no “gênio experimental do cientista aliado ao uso da tecnologia, e a partir daí conhecer e fazer uso de instrumentos passam a ser momentos complementares”. Tanto mais que “o experimento, por outro lado, reforça a compreensão moderna que o homem só pode conhecer realmente o que ele mesmo pode desencadear.” (p. 47). O autor explica que a perda do mundo mediante a dignificação suprema do homo faber decorre justamente do fato de que o conceito de “processo” seja o substituto moderno para o antigo conceito de “Ser”: “é como se, do ponto de vista do homo faber, o processo de fabricação fosse mais importante que o produto acabado, como se o método fosse mais importante que qualquer fim singular.” (p. 48).

Mas à vitória moderna do homo faber se seguirá ainda a quase imediata vitória do animal laborans e a sua correspondente forma ainda mais radical de alienação do mundo. É naturalmente no âmbito da distinção entre trabalho e fabricação que o autor explora a segunda inversão no interior da vita activa. “A compreensão da atual fusão conceitual de tais atividades [trabalho e fabricação] permite”, nas palavras do autor, “um maior aprofundamento no que seria a ‘essência’ da era moderna.” (p. 51). Pois a absorção da fabricação, da atividade com que o homo faber constitui o mundo durável de coisas, pelo trabalho, o empenho infindável com que o animal laborans resta sempre adstrito aos imperativos vitais, deflagra outro tipo de processo pelo qual o homem se vê mais agudamente alienado do mundo: a concentração em torno ao processo vital.

No cerne da fusão moderna entre trabalho e fabricação em favor do trabalho, figura a diluição progressiva das fronteiras entre público e privado, o advento do social ou o surgimento de “uma sociedade completamente ‘socializada’, como a sociedade de massas de trabalhadores, a conceber todas as coisas como funções do processo vital”. Em tal sociedade em que “a distinção entre fabricação e trabalho passa a não existir.” (p. 60), a substituição do uso pelo consumo é a expressão radical de alienação e perda do mundo dinamizada na forma de imperativo econômico.

“Quem é o animal laborans?” é o quarto capítulo consagrado ao problema de precisar a ampla significação de tal conceito na obra de Hannah Arendt.

Refinando ainda mais o crivo de suas análises acerca das distinções e aplicações conceituais na obra arendtiana, interessa ao autor examinar o conceito de animal laborans como correlato da condição humana da vida, mas também como elemento conceitual unificador de suas transfigurações modernas. Daí que seu trajeto envolva as considerações sobre o animal laborans como personagem correlata à “dimensão fundamental da existência condicionada pela vida”, como “produto da sociedade atomizada” e como “mentalidade ou ‘modo de vida’ extraído das condições do mero viver.” (p. 71). Trata-se de considerações que o autor julga necessárias à compreensão da relação entre política e economia na modernidade. É nesse contexto que no espírito do capítulo precedente amplia a discussão em torno ao animal laborans como tipo vencedor na modernidade. Correia ainda tangencia e pondera com clareza a intrincada e ainda não resolvida questão da crítica de Arendt ao pensamento de Marx.

Como dimensão fundamental da existência condicionada pela vida, o conceito de animal laborans indica que

Enquanto viventes, […] somos sempre […] condicionados pelo processo vital biológico a realizar as atividades do trabalho e do consumo, abandonados no âmbito da estrita privatividade das funções corporais e do lar no qual a vida é o bem supremo. Presidida por uma temporalidade cíclica tipificada no incessante metabolismo com a natureza, no ciclo de esgotamento e regeneração, a atividade do trabalho não humaniza, não singulariza nem transcende a necessidade sem o auxílio de capacidade reificadora do homo faber, hábil na produção de objetos, dentre os quais cabe destacara as ferramentas e instrumentos que vêm em auxílio do animal laborans com vistas a sua liberação do aprisionamento ao imperativo da necessidade. (p. 88).

Como produto da sociedade atomizada animal laborans é o conceito que traduz a transformação moderna dos agentes políticos mediante o advento do social ou a organização pública do processo vital, pela qual também a vida em comum, politicamente organizada, passa a ser orientada segundo determinações do necessário à vida considerada como fenômeno coletivo. Somente do âmbito social como espaço para os empreendimentos coletivos no interesse da vida (portanto nunca da esfera pública na qual a ação imprevisível se norteia pela ideal de liberdade) é que se pode esperar a uniformidade comportamental que se presta à predição estatística.

Nessa esfera social, os interesses privados adquirem relevância púbica, ou, mais propriamente, o privado e o público dissolvem-se no coletivo, no qual não se espera por ação, mas por comportamento, na medida em que se impõe ‘inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los comportarem-se, a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária. Assim, para Arendt, esse gênero moderno de igualdade redunda necessariamente em uniformidade, na medida em que se baseia no conformismo constitutivo da sociedade’. (p. 89).

Daí que a terceira significação do animal laborans referida ao “modo de vida” vitorioso na modernidade extraído das condições da vida em sua elementaridade fundamental, só possa resultar para o autor como paradoxal no contexto das reflexões arendtianas. “Paradoxal porque o caráter compulsório da necessidade que está na base do mero viver, comparável à violência da tortura, não permite que se conceba um modo de vida, isto é, uma forma de vida livremente escolhida no âmbito das possibilidades humanas de autoconfiguração deliberada”. A transfiguração moderna da condição de animal laborans em “modo de vida” além de paradoxal é também apequenadora, já que da sujeição à necessidade resulta, nas palavras do autor, “implicações altamente danosas à dignidade humana, indissociável da singularidade e da capacidade de distinção de cada indivíduo.” (p. 102).

“‘A política ocidental é cooriginalmente biopolítica?’ – um percurso com Agamben” é o quinto capítulo em que (um pouco na continuidade do capítulo quarto quanto à discussão acerca da paradoxal tradução da vida em modo de vida) trilhando o caminho de Giorgio Agamben, mas ladeado por Hannah Arendt e também Michel Foucault, o autor pretende examinar a tese daquele reformulando-a de saída no tom contestatório da interrogação.

[…] A política ocidental é, portanto, cooriginalmente biopolítica”. A implicação fundamental dessa afirmação, em Agamben, é a suposição de que desde a pólis há uma imbricação entre vida biológica e política, em vista isso, não podemos conceber uma réplica política à modernidade biopolítica na história política ocidental. (p. 125).

À hipótese de Agamben de que o mais decisivo na modernidade não é tanto o ingresso da zoé na pólis, […] tão antiga na política ocidental, mas a diluição da fronteira entre exceção e regra e a consequente indistinção entre espaço da vida nua e espaço político, e entre zoé e bíos. (p. 108).

Correia opõe principalmente as insistentes posições em que Hannah Arendt registra o abismo entre os domínios público e privado como ancorado no modo como os gregos conceberam a distinção entre bíos e zoé. É neste espírito que o autor evoca, por exemplo, a representatividade que Arendt a este respeito reconhecia no testemunho de Aristóteles. Está em questão o fato de que em tal distinção os antigos “tinham por fundamental à política a demarcação entre as demandas naturais da sobrevivência e as demandas políticas da liberdade, que falavam ambas no cidadão”. Correia sublinha que é por ter em conta registros como os de Aristóteles que Arendt apreende o fenômeno político originário como o espaço para o desenvolvimento de uma segunda natureza, “não uma zoé transfigurada, mas uma segunda natureza, em acréscimo à vida privada natural que jamais suprimimos.” (p. 119).

Em Arendt e Foucault (e neste, desde o primeiro volume da História da sexualidade) o autor encontra os elementos em comum para pensar a imbricação entre vida e política no início da tradição ocidental da política, mas como um dos fenômenos inaugurais da modernidade:

Seguramente Arendt e Foucault, que não conheciam as obras um do outro, tinham juízos distintos sobre o significado da política e do poder, para mencionar o mais flagrante. Todavia, ambos julgavam que não podemos apreender os fundamentos da modernidade política sem percorrer a trilha privilegiada que traz à vista a progressiva implicação biológica no poder político. (p. 126).

Fiel à proposta de seu livro, no sexto capítulo, “A esfera social: política, economia e justiça”, Correia analisa o conceito arendtiano de “social” à luz das análises críticas mais importantes e em contraste com o que ele julga ser “uma rígida distinção entre as esferas pública e privada, inspirada principalmente por sua interpretação do significado da pólis e do pensamento aristotélico.” (p. 130).

A despeito da ligação entre a vida privada e a vida pública ser indicada para Arendt, de acordo com Correia, pela vitória sobre as necessidades da vida relegadas ao âmbito da privatividade do lar constituir a condição para o exercício da liberdade no âmbito da pólis, a demarcação fundamental entre os dois âmbitos resta dada pelo fato de a necessidade ser o princípio ordenador da esfera privada e a liberdade o princípio ordenador da esfera pública. Para ao autor importa notar que na interpretação arendtiana o espaço da pólis é não apenas distinto do espaço do lar, consagrado à vida privada, como também foi desde o início concebido em completa oposição a ele. “A pólis, com efeito, não equivalia à localização física da cidade-estado, mas à organização das pessoas que resulta do agir em conjunto; correspondia ainda ao espaço da aparência no qual os cidadãos aparecem uns aos outros”, ao espaço “onde os homens existem não meramente como as outras coisas vivas ou animadas, mas fazem explicitamente seu aparecimento” (p. 132), por meio da ação e do discurso como modos exclusivos de condução dos assuntos públicos. Portanto, nunca como meios para perseguir interesses privados.

Ora, é justamente a moderna instrumentalização do domínio público pelos interesses privados que implica, na compreensão de Arendt, a recomposição das esferas correlatas à necessidade e à liberdade na esfera híbrida que ela chama de “social”, que Correia avalia ser “um dos elementos mais significativos, e por vezes mais incômodos, para a compreensão de A condição humana.” (p. 132).

Esse caráter devorador que Arendt confere à esfera social, conforme assinala Correia, decorre do fato de que “as questões privadas em sua dimensão coletiva (ainda que com implicações políticas), não constitui um espaço próprio, terceiro em relação ao público e o privado. O social seria como um câncer, que expande seu espaço na medida em que se espraia sobre o privado e o público” (p. 133). A “sociedade” é, enfim, o fato da dependência mútua em prol da sobrevivência e da acumulação, de objetivos em nome dos quais as atividades privadas adquirem relevância pública.

Mas há que se notar que na ponderação de Correia, à luz das mais expressivas críticas à rigidez e/ou incongruência da posição arendtiana acerca da questão social (às quais o autor não deixa de ter também suas reservas críticas), manifesta-se as dificuldades internas da relação entre as esferas pública e privada para assegurar o exercício da cidadania, assim como as dificuldades para se pensar a justiça a partir da referencial arendtiano:

As dificuldades surgem quando passamos a examinar questões pungentes de nossos tempos, com ampla repercussão na vida de todos e implicações no exercício da cidadania, mas que parecem não encontrar abrigo confortável na esfera pública tal como Arendt a compreende. A pobreza, tal como aparece na obra Sobre a revolução, por exemplo, é compreendida como danosa quando acolhida no domínio público, na medida em que poderia ser mais bem resolvida por expedientes técnicos e disposições administrativas, por um lado, e em que opera como um canal para o translado dos interesses privados para a esfera política, assim como da violência necessária para suplantar as necessidades vitais.

Compreendendo que nenhuma revolução resolveu a questão social e levando a crer que a tentativa de fazê-lo por meios políticos conduz ao terror, a lançar as revoluções à ruína, Arendt insere algumas dificuldades na já complexa relação entre as indispensáveis condições pré-políticas da cidadania e o engajamento dos cidadãos nos assuntos públicos. (p. 137).

No sétimo capítulo que tem por título “O caso do conceito de poder – Arendt e Habermas”, Correia se concentra em precisar o sentido e a singularidade do conceito de poder em Hannah Arendt num diálogo crítico com sua apropriação moduladora e associada às “incorreções” das interpretações empreendidas por Jürgen Habermas.

Para Habermas, a objeção fundamental que se pode fazer ao conceito de poder definido por Hannah Arendt é a de que “a política não pode ser idêntica […] à práxis daqueles que conversam entre si, a fim de agirem em comum”. Com efeito, seria necessário separar a gestação do poder, na qual pode ser aferida a legitimidade, do exercício legítimo do poder, que frequentemente supõe interações entre o governo e os cidadãos orientadas pela coerção e pela relação estratégica mando/obediência, que claramente têm de ser rejeitadas na práxis que presidiu a fundação da comunidade. (p. 162).

Correia destaca que a compreensão da crítica de Habermas ao conceito de poder em Hannah Arendt (que envolve um deslocamento interno ao próprio diálogo habermasiano com o pensamento político de Arendt), só pode ser compreendido à luz do que ele mesmo, num movimento apropriador, identifica como uma espécie de transposição do conceito arendtiano de poder do âmbito normativo ao nível descritivo/realista. Mas o que o autor não tarda a destacar é que Habermas emprega uma terminologia que Arendt seguramente denegaria:

Arendt, em seu exame do fenômeno do poder político, jamais pretendeu fazer teoria social ou ciência política, stricto sensu, mas também não almejava erigir um ideal normativo regulador. Em vista disso, seguramente para ela não seria uma objeção legítima a indicação da inaplicabilidade dos seus conceitos de ação, poder e política para a descrição da sociedade moderna. Para os leitores de A condição humana fica claro que, para Arendt, essa inaplicabilidade apenas reforça suas hipóteses com relação ao declínio da política na era moderna. (p. 163).

Operando sempre no âmbito da distinção conceitual, o pensamento de Arendt, conforme sublinhado por Correia e para lembrar o prólogo do seu livro, ao demarcar tais diferenças almeja a compreensão de fenômenos e não a descrição da realidade. Em todo caso, é parte do seu procedimento metodológico de distinção o fato de que ela busca indicar antes de tudo que nenhum poder advém da coerção violenta e nenhuma comunidade política pode se assentar estrita ou fundamentalmente na coerção – e é por isso que afirma que ‘a violência é a arma mais da reforma que da revolução. (p. 164).

Na contramão da compreensão de Habermas para quem o conceito arendtiano de poder é operativo apenas no sentido de precisar heuristicamente a maneira legítima de sua gestação, restando inválido para apreender a conservação das instituições e o exercício do poder, Correia assinala a insistência com que Arendt na obra Sobre a revolução registra que “não pode haver em uma comunidade política legítima uma ruptura entre a práxis que gesta o poder e a práxis que é o próprio exercício do poder” (p. 166), como pretendido por Habermas. E isso sob pena da nova ordem política, de espaço para a liberdade na forma de participação pública, se converter logo após a fundação em administração dos interesses sociais.

Com a tarefa adicional de mitigar o tentador diagnóstico de um traço “antimoderno” no pensamento de Hannah Arendt (conforme promessa firmada no capítulo sexto em que se examinou o conceito de esfera social como elemento decisivo para a relação de Arendt com a era moderna), o oitavo e último capítulo intitulado “Revolução, participação e direitos”, tem em mira o exame dos vínculos entre liberdade, engajamento e participação como expediente para reconstituir o pano de fundo sobre o qual Arendt afirma em Sobre a revolução, que “a liberdade política só pode significar a participação no governo”.

Um empreendimento que Correia procura levar com atenção focada “na oposição arendtiana à compreensão liberal de liberdade.” (p. 176) Daí que o referencial arendtiano para a reflexão sobre a liberdade seja justamente a experiência revolucionária, no marco da qual registra-se uma relação à parte entre a pensadora e a modernidade. Para Arendt, conforme Correia,

Apesar das imagens diferentes entre os acontecimentos e convicções dos dois lados do Atlântico, os revolucionários partilhavam o fundamental, isto é, “um interesse apaixonado pela liberdade pública”. O que os franceses chamavam de liberdade pública, como tradução da libertação do domínio despótico, os revolucionários estadunidenses já denominariam “felicidade pública”, em grande medida por já experimentarem essa liberdade aspirada pelos franceses. Sabiam, portanto, que “não poderiam ser totalmente ‘felizes’ se sua felicidade se situasse e fosse usufruída apenas na vida privada”. Concordavam que a liberdade pública consistira na participação nas atividades ligadas às questões públicas, que tal participação proporcionava “aos que se encarregavam delas um sentimento de felicidade que não encontrariam em nenhum outro lugar” e que “as pessoas iam às assembleias de suas cidades […] acima de tudo porque gostavam de discutir, de deliberar e de tomar decisões”. (p. 178).

A despeito das respectivas dificuldades que os revolucionários franceses e americanos tiveram para bem orientar a luta pela liberdade e para assegurá-la após a experiência política da fundação, em ambos os casos, conforme os registros de Correia das posições assumidas por Arendt, “a ideia central da revolução é a fundação da liberdade, isto é, a fundação de um corpo político que garante o espaço onde a liberdade pode aparecer.” (p. 125). Portanto, restava em qualquer caso a compreensão comum de que a liberdade política não é, por exemplo, equivalente à experiência interior da vontade, mas antes algo que, à luz da antiga compreensão de liberdade, somente se efetiva mediante o engajamento ou a participação ativa de cada um no espaço público, nos assuntos comuns que ocupam o governo.

Não obstante o malogro dos empreendimentos revolucionários devido em parte também ao fato de que “a busca da felicidade não teve seu caráter público claramente definido”, tendo enfim operado ambiguamente “desde o início como canal para a confusão entre felicidade pública e bem-estar privado” (p. 179), a liberdade pública, para Arendt, é algo a que os seus agentes realmente aspiraram. Mas o ideal revolucionário, como assinalado por Correia, não pôde resistir em nenhum dos dois lados do Atlântico aos clamores da “questão social”, quer em sua feição francesa, quer em sua feição americana.

Mais uma vez, em ambos os casos, a consequência derradeira foi a dissolução da liberdade política em direitos civis.

[…] a questão social interferiu no curso da Revolução americana com o mesmo grau de intensidade, embora não tão dramática, que teve no curso da Revolução francesa”. A questão social nos EUA aglutina-se na obsessão com a abundância: “nesse sentido, a riqueza e a pobreza são apenas as duas faces da mesma moeda; as cadeiras da necessidade não precisam ser de ferro: podem ser feitas de seda”. Com efeito, “o crescimento econômico algum dia pode se revelar uma maldição, e não uma benção, e em nenhuma hipótese ele pode levar à liberdade ou constituir prova de sua existência. (p. 181; grifos do autor).

Há que se notar, contudo, o empenho de Correia em registrar que a “convicção arendtiana de que a paixão pela liberdade e pela felicidade públicas pode ainda inspirar o engajamento político para além de demandas estritamente econômicas e sociais, ainda que frequentemente provenha delas.” (p. 195).

No epílogo à obra, partindo de considerações que exorcizam os derradeiros resquícios da recepção caricatural de Sobre a revolução, quando de sua publicação em 1964, Correia mostra que no âmago da tese de Arendt acerca da perda do espírito revolucionário (que se traduz no fracasso para consolidar uma forma de governo capaz de preservar a liberdade), figura a constatação do ressurgimento recorrente do sistema de conselhos como os espaços políticos revolucionários para a participação direta. Elemento reiteradamente derrotado das revoluções, o espírito revolucionário, explica Correia, tem se “cristalizado no sistema de conselhos ou [n]a oportunidade de salvar a república ao ‘salvar o espírito revolucionário por meio da república.’” (p. 200-201).

Dentre as ressurgências que manifestaram o espírito revolucionário para além da das revoluções francesa e americana na forma de sistemas de conselhos que elas mesmas conceberam, constam no âmbito das indicações de Arendt apontadas pelo autor: a Comuna de Paris de 1871, as Revoluções Russas de 1905 e 1917, o movimento Alemão de 1918 e 1919 e a Revolução Húngara de 1956.

“Para Arendt”, conforme afirma Correia, “são várias as razões para que os sistemas de conselho, que desempenharam um papel decisivo nas revoluções, não tenham ainda se convertido em uma forma de governo consolidada”.

Dentre as razões identificadas por Arendt o autor considera particularmente esclarecedora para a questão que intitula o epílogo, a oposição entre o sistema de conselhos e o sistema partidário. Há de se notar que, que desde os fenômenos revolucionários até os últimos ressurgimentos do sistema de conselhos, é flagrante a ideia reacionária do sistema partidário que reconhece nos conselhos apenas “organizações transitórias a serem suplantadas junto com o próprio processo revolucionário.” (p. 203). Contra as insistentes reações à espontaneidade do sistema de conselhos, mas também contra toda expectativa de interdição da capacidade humana de iniciar algo novo de que este movimento espontâneo é apenas um testemunho, é o caso de se registrar com Adriano Correia que

Arendt, que jamais acreditou no progresso e inclusive o julgava uma ofensa à dignidade humana, nunca tomou parte no catastrofismo ou em qualquer outra convicção de que o futuro pudesse estar predeterminado e de que a liberdade só poderia se dar paradoxalmente em alguma pretensa dinâmica predeterminada da história. Pensava que na modernidade como em épocas anteriores poderíamos estar à altura de nossa dignidade como agentes livres, a testemunhar a singularidade de cada um e a pluralidade que articula a todos. O espírito revolucionário, um tesouro a ser encontrado, conformou para ela a mais flagrante imagem moderna da liberdade, a unir liberdade e começo, ruptura e fundação, o iniciar e o levar a cabo em conjunto. Reaviva-se assim a promessa de que a liberdade possa ser restituída como um experiência política e se afirme em oposição à prevalência de uma vida que não aspira redimir-se do aprisionamento ao âmbito da necessidade, ampliado pelo crescimento não-natural do natural que é também marca distintiva da era e do mundo modernos. (p. 209).

Adriano Correa – Professor  de  filosofia  em  estágio  pós-doutoral  na  Faculdade  de  Filosofia  (FAFIL)  da  UFG.  Bolsista  do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD-CAPES).

Acesso à publicação original

Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia – RIBAS (ARF)

RIBAS, Thiago Fortes. Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia. Curitiba: Editora da UFPR, 2014. Resenha de: BALTAZAR, Tiago Hercílio. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.12, jul./dez. 2014.

Foucault: verdade e loucura no nascimento da arqueologia se desenrola na antecâmara daquilo que conhecemos como o projeto arqueológico de Foucault. Thiago Fortes Ribas investiga o início do percurso teórico do filósofo francês, no momento em que suas estratégias se realinham em torno de um alvo (não mais uma forma determinada do conhecimento científico, mas a própria positividade de uma ciência) e também o momento da formulação de uma crítica extra-científica. Enquanto este objeto e o tipo de crítica histórico-arqueológica que Foucault elabora através dele, já são velhos conhecidos na literatura sobre o assunto, a empresa de Ribas recua um passo para tratar da própria constituição deste objeto e deste tipo de crítica na démarche do futuro arqueólogo. Se os textos pré-arqueológicos nos pareciam dispersos sob uma frágil unidade temática, saberemos agora que eles guardam uma decisiva transformação na relação do próprio Foucault com a verdade. “Numa palavra, pretendemos mostrar que a constituição do projeto de uma arqueologia do saber dependeu de uma mutação decisiva no modo como Foucault pensou a questão da verdade em sua relação com a psicologia, a psiquiatria e a loucura” (RIBAS, 2014, p. 16).

O primeiro capítulo, buscando contextualizar a primeira obra arqueológica de Foucault e discutir a supressão de seu prefácio original, parece apenas situar a questão da relação de Foucault com os saberes da radical “psi” em História da loucura. Mas na realidade ele já desloca o lugar da “reviravolta” no pensamento de Foucault. De fato, a literatura estabeleceu, entre o prefácio original suprimido de História da loucura (1961) e sua segunda versão (1972), uma importante modificação no pensamento de Foucault, muito discutida quanto a um possível prejuízo ontológico que se poderia apontar na crítica arqueológica da loucura. Mas é verdade que tal injunção é feita à luz dos próprios desenvolvimentos arqueológicos posteriores, que “evitariam” tal prejuízo e, por outro lado, trata somente daquilo que já é a arqueologia desde a primeira edição de História da loucura. É desse emaranhado que Ribas consegue escapar, trabalhando uma diferença mais decisiva para o projeto arqueológico de Foucault, situada entre o polêmico prefácio de 1961 e textos que datam dos anos 1950.

A referida mutação será então diretamente analisada no segundo capítulo, e com um nível de detalhamento que certamente satisfaz aos leitores em seus anseios por minúcias. Nesse momento, o foco do estudo recai sobre as diferenças teóricas entre dois textos que o autor seleciona para comparação: Doença mental e personalidade e Doença mental e psicologia. Escrito em 1954, e reescrito em 1962 com o segundo título, os dois textos permitem a engenhosa estratégia de Ribas para flagrar as modificações na relação de Foucault com a psicologia. Na realidade, poderíamos tomar a liberdade de dizer que se trata de apenas um texto em duas cenas, e entre elas uma transmutação de significados que iluminaria assim o nascimento de um grande problema filosófico.

Em sua primeira versão, lê-se na introdução que a raiz da patologia mental deve estar numa reflexão sobre o próprio homem. Eis a pista que nosso autor persegue, como uma “adulteração” em sua versão de1962, onde se diz que a raiz da patologia mental pode ser procurada numa certa relação, historicamente situada, entre o homem e o homem louco e o homem verdadeiro. Estes são vestígios que entregariam os motivos do filósofo francês:

aqui, somente essa mudança já nos mostra que a preocupação do autor é radicalmente outra. Não mais fundacionista, no sentido de fundar a investigação numa antropologia, agora a investigação quer procurar a raiz histórica da patologia mental. Ao invés de propor uma verdadeira psicologia, quer compreender como se construiu historicamente um discurso verdadeiro chamado psicologia. (RIBAS, 2014, p. 57).

Ao cabo de uma análise comparativa que se estende por todo o segundo capítulo, torna-se claro que o “projeto de fundação da psicologia” que Foucault lançava em 1954, equivaleria a um pensamento que acreditava na objetividade da ciência psicológica uma vezliberta de certos postulados equivocados (Cf. RIBAS, 2014, p. 57). Na sua reescritura, este rigor será substituído por um novo sentido: não mais a conquista de sua cientificidade, mas a posição de que sua própria positividade enquanto ‘ciência’ depende de condições históricas de existência. Trata-se aí de um rigor que, quando levado ao limite, compromete o estatuto de cientificidade e objetividade da própria verdade da medicina mental. (RIBAS, 2014, p. 58).

Tratar esta modificação como mera reformulação teórica seria perder de vista o essencial, isto é, o início de uma crítica de inspiração nietzschiana que faz aparecer o funcionamento de uma ciência no interior de um sistema de condições históricas. Contra a leitura de Pierre Macherey, para quem, até 1962, Foucault não colocaria em questão o pressuposto de uma natureza humana – incluindo História da loucura – Ribas nos faz vislumbrar o que seria uma aquisição básica no percurso teórico de Foucault, e com a qual este “se servirá até o fim dos seus escritos, e que alimentará a constante revisão de seus métodos” (RIBAS, 2014, p. 86).

Acercando-se mais das grandes teses de História da loucura, A pesquisa científica e a psicologia (1957) permite precisar um pouco mais a relação entre verdade e psicologia fora do seu aspecto científico-epistemológico. Despontam neste texto formas de interrogação – que reconhecemos prontamente como um traço foucaultiano – na direção das práticas que revelem o modo de funcionamento da ciência psicológica, através de suas instituições e de tudo aquilo que colabora para a produção do seu reconhecimento em nossa sociedade.

Vê-se que no artigo A pesquisa científica e a psicologia a verdade sobre a psicologia é de outra espécie. Ela já não diz mais respeito aos verdadeiros pilares de uma ciência, mas ao seu estatuto, ao seu funcionamento. A verdade que se busca sobre a psicologia também não virá mais de uma construção metodológica melhor apurada, mas há de vir, entretanto, da análise dos métodos utilizados para engendrar sua ‘cientificidade’. Nesse momento da reflexão foucaultiana, o estatuto da psicologia nada tem a ver com sua natureza estritamente epistemológica, mas, diversamente, aquilo que poderá revelar seu modo de funcionamento são as suas práticas. Desse modo, aquilo de que se tratará na interrogação da pesquisa psicológica são as suas instituições, suas formas cotidianas e as dispersões de seus trabalhos. Em poucas palavras, a verdade que se quer definir agora só será revelada através de uma análise histórica desses três pontos levantados, uma análise que se concentre no problema de como a psicologia chega à condição de ‘ciência’ ao lado de outras ciências, de como ela chega a tal reconhecimento atual em nossa sociedade. (RIBAS, 2014, p. 95-6).

Além deste passo decisivo na formulação de uma crítica extra científica, A pesquisa científica e a psicologia e outro texto do mesmo ano, A psicologia de 1850 a 1950, registram o aparecimento de mais uma hipótese fecunda na construção do projeto arqueológico: a hipótese segundo a qual a positividade da psicologia tem como condição de possibilidade uma experiência do negativo. Enquanto outras ciências mantêm uma relação provisória com o negativo, digamos, como limites ou dificuldades a serem superadas, “aquilo que distingue a psicologia é a relação vital que ela tem com o negativo, a ponto de não poder ser compreendida senão através dele.” (RIBAS, 2014, p. 108). Vemos que nestes dois artigos dos anos 1957, segundo a interpretação de Ribas, a psicanálise não gozaria de nenhum poder transgressor, pois, indiferentemente de qualquer outra pesquisa em psicologia, a psicanálise daria continuidade à escolha de toda psicologia.

“Se na análise da pesquisa freudiana fica evidente o papel do negativo na construção da verdade do homem, fica manifesta também a sua opção por continuar tal construção, ou seja, sua escolha em perpetuar o ‘mito da positividade’ em que a psicologia hoje ‘vive’ e ‘morre’. Desse modo, Freud afastou ainda mais a psicologia da compreensão de seu próprio sentido enquanto saber, pesquisa e prática” (RIBAS, 2014, p. 110).

Esta perspectiva foucaultiana sobre a psicanálise, como sabemos, se modificará na arqueologia da loucura, sob a consideração de uma nova abordagem interpretativa (e uma nova concepção de signo) que ela inaugura, e que desloca a linguagem da loucura para um tipo de interdição em que a linguagem não refere mais a um significado oculto, mas fica condenada a dizer apenas a si mesma e o código que permite decifrá-la1. Ainda que a tarefa da psicanálise seja malograda pelo fato de que a articulação transferencial repouse numa estrutura em torno da qual se constituem relações de dependência médico-paciente – em que um médico não busca fundamentalmente conhecer, mas dominar a loucura e alienar o paciente, apoiado em seus poderes e prestígios – a psicanálise ainda assim representará, em 1961, uma determinada ruptura em relação à psiquiatria e à psicologia, na medida em que sua abordagem abriria uma possibilidade de diálogo com a desrazão clássica.

Esse realinhamento na órbita em torno da qual gravitam os saberes da radical psi, ligado ao nascimento da arqueologia e implicando uma modificação importante na perspectiva de Foucault em relação à psicanálise, não é abordada no livro de Ribas.2 Sua argumentação, todavia, neste ponto consiste em apresentar a tese foucaultiana da profunda relação da psicologia com a negatividade, tese esta que, perpassando esses escritos de 1957 até a História da loucura, consistirá num elemento determinante para nos dar a ver uma perspectiva propriamente arqueológica sobre esses saberes.

Vê-se, portanto, que não se trata simplesmente de uma modificação na relação de Foucault com a psicologia, mas na sua relação com a verdade, o que implica um deslocamento no lugar que a psicologia ocupa no interior da investigação de Foucault. De objeto de uma “ambição teórica reformuladora”, a psicologia torna-se objeto de uma problematização que a ultrapassa em direção a um problema filosófico muito mais amplo. (Cf. RIBAS, 2014, p. 113). Qual é este problema filosófico, que não cabe mais ser colocado em termos epistemológicos, intimamente ligado a uma transformação na relação de Foucault com a verdade e que “constitui a condição de possibilidade do próprio projeto arqueológico.” (RIBAS, 2014, p. 18)?

Ele pode ser dito de muitos modos. Porém, creio que um dos pontos fortes do livro de Ribas – ainda que sejam apenas apontamentos para um “estudo futuro” – consiste em aborda-lo a partir das implicações políticas do pensamento arqueológico de Foucault. Estamos já na conclusão do livro, na qual se problematiza a interpretação tradicional da arqueologia como uma descrição despolitizada dos “frios blocos de saber”. O argumento consiste em mostrar como insustentáveis as afirmações de que a passagem para a política, na obra de Foucault, se daria apenas com a genealogia, isto é, a partir de uma volta para as instituições e práticas sociais no intuito de transformá-las.

É possível encontrar em Foucault elementos para formular outra concepção a respeito da ação política ou da dimensão política do pensamento.

Tal ação ou dimensão não precisa estar voltada para a transformação de algo fora do pensamento, como as instituições sociais, porque é o próprio pensamento que é o campo de batalha. Como ele mesmo afirma, ‘a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática’. Na medida em que para Foucault a política é entendida como luta de forças que não tem na verdade seu regimento, então tampouco se compreende porque seria necessário restringir a tarefa política do intelectual ao âmbito de transformação das instituições sociais. (RIBAS, 2014, p. 132).

As arqueologias de Foucault forneceriam um “operador intelectual”, ligado a concepção de verdade que, de matriz nietzschiana, combate pretensões universalistas a partir de sua inserção numa trama de relações históricas.

As verdades das arqueologias jamais se colocam no lugar daquelas que são criticadas, e sim reconduzem a uma apropriação do jogo de produção dessas verdades, produzindo por esta via um efeito transformador:

a via interpretativa que se propõe para um trabalho futuro nesta conclusão aposta na concepção desses livros arqueológicos como portadores de um pensamento político enquanto produtor de efeitos que podem ser avaliados pela transformação filosófico-discursiva que provoca. Seguindo essa hipótese os diagnósticos do presente oferecidos por tais estudos são vistos como armas imprescindíveis de uma luta política capaz de se apropriar das regras discursivas para impô-las outra direção. (RIBAS, 2014, p. 137).

Todas essas indicações de pesquisa foram desenvolvidas a partir dos estudos do autor na antessala da arqueologia foucaultiana. Isso foi elogiosamente caracterizado pelo professor Cesar Candiotto, na primeira linha do prefácio, onde atribui ao estudo levado a cabo neste livro o caráter de uma “arqueologia” da própria arqueologia de Foucault. Para os estudiosos de Foucault, não há forma mais direta para descrever o que aqui se vai encontrar.

Quanto aos leitores que, trilhando outros caminhos, cruzam com o pensamento de Foucault, estes encontrarão a oportunidade de acompanhar um dos maiores pensadores da atualidade no extraordinário momento de formulação de seu principal problema filosófico.

Notas

1 Cf. CHAVES, E. Foucault e a psicanálise. Apresentação de Benedito Nunes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

2 É certo que sua menção à Freud consiste apenas num “exemplo privilegiado” para demonstrar a tese foucaultiana sobre a regra geral da pesquisa em psicologia como perpétuo arranchamento do solo consolidado (Cf. RIBAS, 2014, pp. 97 e segs.). Por outro lado, julgamos que esta modificação é um aspecto inalienável da crítica arqueológica nascente, ou seja, de seu poder para captar e diferenciar o espaço epistemológico que se instaura com a ruptura freudiana no discurso psicológico.

Tiago Hercílio Baltazar – Pós-graduando em Filosofia na UFPR. Email: [email protected]

Acesso à publicação original

 

Leibniz e o problema de uma língua universal – POMBO (ARF)

POMBO, Olga. Leibniz e o problema de uma língua universal. Lisboa. Editora: Junta Portuguesa de Investigação Científica e Tecnológica, 1997. Resenha de: SILVA, Marcos. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.10, jul./dez, 2013.

Porque se compreenderes de forma justa simplesmente a tua língua materna, terás nela um fundamento tão firme como se fosse o hebreu ou o latim

Jacob Böhme

O livro “Leibniz e o problema de uma Língua Universal” escrito pela professora portuguesa Olga Pombo, publicado em 1997, pela Junta Portuguesa de Investigação Científica e Tecnológica, é surpreendentemente desconhecido no Brasil, esta resenha tenta emendar, em parte, esta injustiça editorial. No excelente livro de Olga Pombo, Leibniz é apresentado como autor-chave da discussão sobre o hoje em dia marginalizado tema da Língua Universal. Os signos por si só abreviam, fixam, pintam, ordenam, expressam, transmitem pensamentos.

Ao cumprirem função heurística, operacional e mnemônica, são, sem dúvida, de grande apoio material para o conhecimento. Entretanto signos ordenados numa eventual Língua Universal ganhariam um papel ainda mais importante na constituição do conhecimento. Uma vez que permitiriam a expressão clara e exata de todos os pensamentos, um meio de comunicação universal e transparente, um juiz de controvérsias, um cálculo rigoroso e infalível, uma estratégia de descoberta de verdades, a transmissão ideal do conhecimento e, por extensão, representariam o progresso das ciências em uma unidade tão cara ao século XVII e abandonada em nossos tempos. Com efeito, uma Língua Universal potencializaria a já grande operacionalidade cognitiva dos signos.

A tese subjacente ao livro de Olga Pombo afirma a existência de uma unidade nas estratégias leibnizianas para investigação da Língua Universal, apesar do caráter difuso e fragmentário de sua obra. A autora defende a existência de uma unidade velada, um núcleo central na obra de Leibniz que revelaria uma complementaridade de finalidades e estratégias acerca deste tema- -obsessão dos séculos XVI e XVII. Segundo a autora, “o objetivo principal de Leibniz, a unidade possível dos seus trabalhos nesta matéria, seria então: investigar a origem motivada das línguas naturais; examinar os mecanismos responsáveis pela naturalidade do seu vocabulário (especialmente no caso do Alemão), a estrutura profunda que subjaz às particularidades gramaticais das várias línguas (investigações sobre a Gramática Racional) e aplicar essas descobertas à construção de uma nova língua filosófica dotada de uma similar, ou ainda maior, capacidade de revelação. Por essa razão, Leibniz exigirá da língua filosófica a construir que seja, também ela, natural, isto é representativa do Mundo que nela se des-cobre e que ela visa dizer.”(p. 24)1 A Língua Universal, una, regular, invariável, uniforme, que permitiria a comunicação e o conhecimento irrestrito, nos remeteria a um período ideal e mítico pré-Babel. Olga Pombo conduz seu leitor ao terreno de discussões multidisciplinares que compõem o mosaico cultural e histórico deste tema “maldito, marginal, escandaloso”, alguns dos adjetivos usados pela autora. Ela sugere, então, que este projeto seria uma espécie de sonho de Leibniz de anulamento progressivo de opacidades e sombras, pela abertura plena e radical das coisas pela pura literalidade dos signos, pela busca de um lugar mítico de todos os regressos: o momento em que as coisas são criadas racionalmente pelo verbo divino. Leibniz circunscreve o problema em diferentes perspectivas e estratégias para extrair todas as implicações lógicas e epistemológicas de um programa tão ambicioso. Olga Pombo aponta o horizonte da discussão: “Nos precisos contornos que a delimitam, essa ideia reguladora – na qual coexistem e intimamente se articulam o mais mítico de todos os mitos (o mito da origem) e o mais racional de todos os projetos (o de cobrir toda a extensão do ser e do saber pelo manto de uma racionalidade discursiva e universalmente partilhável) – encerra intuições fundamentais, hoje em grande parte esquecidas ou postas fora de debate, mas que, no século de Leibniz, polarizaram a atenção dos maiores espíritos.” (p. 60).

O espectro de atuação de Leibniz neste contexto, como em outros assuntos de seu interesse, é gigantesco: é filólogo e historiador de línguas naturais, investigador da origem e natureza de signos linguísticos, gramático especulativo das invariâncias das sintaxes indo-europeias, lógico de sistemas formais e propostas de coordenação de paradigmas linguísticos aos matemáticos, semiólogo, interrogador do alcance e natureza dos símbolos e, finalmente, filósofo que coordena e investiga sistematicamente toda esta interdisciplinariedade.

Desta forma, segundo Olga Pombo, Leibniz poderia “estreitar a distância que separa um Deus que criou o Universo pela palavra e o homem que constrói um universo de palavras” (p.261). Segundo a autora, o fio unificador dos projetos é a certeza de que o símbolo antes de ser um empecilho ou perturbar o conhecimento humano, conduz à revelação racional do real, promovendo e potencializando o conhecimento. (p.23) Destaca-se e radicaliza-se, assim, o valor heurístico, cognitivo e constitutivo da linguagem para o pensamento e razão humana.

Olga afirma que “há em Leibniz, o reconhecimento de uma verdade fundamental da linguagem, hoje grandemente esquecida perante a diversidade das línguas humanas, ele sempre sentiu a nostalgia cratiliana de uma transparência original, sempre se deixou (in)justificadamente maravilhar pela hipótese de uma unidade latente das palavras e das coisas.” (p. 8) Leibniz se encontra numa tradição histórica que tenta resguardar os fins científicos da linguagem protegendo-a de imperfeições das línguas vulgares como a equivocidade, irregularidade, instabilidade e ambiguidades. Desta forma, participa da consolidação de um projeto de Língua Universal que, para lá de finalidades meramente comunicacionais, exprima adequadamente o pensamento e as suas articulações. Para tanto, deveria se construir uma simbologia rigorosa e estável para traduzir todos os conhecimentos e cumprir uma função eminentemente cognitiva: guiar a formação de novos conhecimentos ao trazer à tona as comunidades sintáticas escondidas no fundo das línguas naturais. A matemática, então, aparece como paradigma natural deste sistema simbólico pelo seu rigor e simplicidade notacional e pela tese de uma afinidade categorial intrínseca entre mundo e linguagem, estabelecendo um mundo pitagórico matemático, ordenado e estruturado, como parâmetro e horizonte de investigação.

Dentre as dificuldades reconhecidas por Olga Pombo em sua Introdução estão: (1) a histórico-conceitual, i.e., a vastidão e heterogeneidade do problema de linhas de investigação marginais e interdisciplinares, e a sempre perigosa elucidação de mitos, seus pressupostos e pressentimentos; (2) a dificuldade na própria geografia conceitual de Leibniz, com a elucidação da relação deste problema com os fundamentos internos à sua filosofia; e (3) a dificuldade hermenêutica, a relação do projeto leibniziano com as suas muitas abordagens. A estas três dificuldades principais somam-se três objetivos: (i) determinar a amplitude da ideia da Língua Universal no contexto histórico no qual Leibniz se insere; (ii) compreender o significado e alcance da questão no sistema de Leibniz; e (iii) apresentando as várias estratégias e perspectivas adotados por ele.

Fazendo par aos problemas e objetivos, o livro é divido, também, em três grandes partes. Na primeira parte, a autora apresenta o movimento do século XVI e XVII acerca de uma língua natural ou sistema linguístico que traduzisse rigorosamente o pensamento e a sua articulação, comportando, assim, uma semântica de expressividade natural e permitindo avanços cognitivos. Na segunda parte, apresenta o empenho de Leibniz para a formação de uma teoria geral do simbolismo que delimitaria o fundamento, a adequação e o limite de uma Língua Universal. Há neste ponto do livro um pertinente contraste entre a Filosofia de Descartes e de Leibniz, o qual possivelmente Chomsky não conhecia quando propôs uma gramática cartesiana, enquanto seu programa gerativo teria mesmo fortes contornos leibnizianos como demonstra Pombo (cf.

215-16). Grosso modo, para Leibniz símbolos são auxiliares porque constitutivos do pensamento, para Descartes algo dispensável para o conhecimento de essências. Na terceira parte de seu trabalho apresenta a tentativa de uma unidade de abordagem do tema na Filosofia de Leibniz, sobretudo em seus escritos tardios.

Seguindo estes movimentos de três passos, Olga Pombo apresenta uma interpretação conjunta das perspectivas e especulações de Leibniz. Olga nos apresenta três projetos leibnizianos para criticar e suplantar a intransigente defesa do postulado da arbitrariedade do signo linguístico: A) o aperfeiçoamento do alemão, língua defendida por Leibniz como provável candidata de mais próxima de uma língua adâmica; B) a construção a posteriori de uma gramática comparativa, a partir da assunção de uma sintaxe profunda comum a todas as línguas que espelharia o espírito humano; e c) construção a priori de uma Língua Universal que garantiria a operacionalidade, representatividade e potencial heurístico idealizado por Leibniz. Estaríamos falando de um método pragmático pela manipulação de algo provisório, mas adequado e funcional, que deveria, portanto, conduzir o progresso científico humano através do cálculo de notações gráficas autônomas. Assim, ciências e esta Chararacteristica Universalis poderiam se desenvolver por um mútuo condicionamento. Há ainda, em anexo ao seu livro, um notável estudo comparativo entre Hobbes e Leibniz e possíveis influências e claras rupturas entre ambos, além de um rico inventário cronológico dos textos de Leibniz sobre as várias facetas do tema da Língua Universal. Destaco, ainda, a riquíssima bibliografia do livro com autores e obras do século XVI e XVII, textos de Leibniz, autores sobre Leibniz e trabalhos mais contemporâneos sobre esta problemática.

Há dois momentos em sua excelente obra em que Olga Pombo ao descrever os trabalhos de Leibniz parece antecipar o que estava pensando ao ler seu trabalho. Primeiro, quando afirma que a grandiosidade da obra de Leibniz estaria na revisão e organização de textos e tradições anteriores além é claro na contribuição positiva ao problema clássico de uma Língua Universal. Em analogia a este elogio a Leibniz, destaco a exuberante erudição de Olga Pombo com substanciosa revisão da literatura acerca do tema e a sua contribuição com a sugestão da necessidade exegética de ver as diferentes e fragmentárias perspectivas leibnizianas como complementares e convergindo para o endosso e necessidade do projeto de uma língua transparente e natural. Em um segundo momento, ao falar de Leibniz afirma que sua obra “enquanto particular forma de questionamento da origem e natureza íntima da linguagem, da sua relação ao mundo, abre um horizonte múltiplo de interrogação desenhando em termos conceituais complexos, vasto e fecundo campo de reflexão.” (p.261). A meu ver, esta seria a própria descrição do livro de grande fôlego de Olga Pombo. Sua obra é necessária pelo tema e revisão e pela pertinente defesa de uma leitura que confere sistema aos fragmentos, fio condutor às anotações dispersas, unidade às aparentes perspectivas inconclusas e indicações heterogêneas do espólio leibniziano. Isto leva a um reconhecimento seminal de um processo de evolução na historicidade interna dos textos assistemáticos de Leibniz. Segundo a autora, “em Leibniz, o ponto de partida é sempre múltiplo e a unidade uma tarefa”. (p.174) Entretanto, o que é ponto alto também pode representar seu fraco, muitas vezes uma quantidade excessiva de referências e notas de pé de página trunca a fluência do texto. Elas poderiam facilmente ser incorporadas ao corpo do texto principal. Além disso, há frases excessivamente longas, lembrando a fraseologia alemã, e inúmeros erros tipográficos que poderiam ser resolvidos em uma eventual futura edição. Contudo, isto certamente não ofusca o brilho da obra em seu esplendor de catalogamento de referências, nível de erudição filosófica e o potencial interdisciplinar. Estes aspectos certamente contribuíram para a indicação de sua dissertação defendida em 1986 para a publicação em inglês no ano seguinte e, mais tarde, no original português em 1997.

Leibniz está em definitivo na “corrente maldita da Filosofia” que acredita haver algo de naturalmente comum entre a linguagem e o mundo, fora de convencionalidades humanas ou da história natural das coisas. Acredito ser esta tradição ainda defendida em pleno século XX pelo tractariano Wittgenstein que postula uma espécie de naturalidade formal entre coisa e símbolo para que uma representação seja possível. Aliás, o livro de Olga Pombo ganharia, e muito, caso tivesse investigado, não só em sugestão de notas de pé-de-página (cf. p. 252), as intuições leibnizianas presentes em Frege, Russell e no Tractatus representativos de uma tradição que traz Leibniz de novo ao centro de discussão filosófica sobre matemática, lógica e simbolismo, como que ressuscitado (e reabilitado?) depois da hegemonia do criticismo kantiano. Aliás, a interdisciplinaridade do livro parece muito mais conduzida pela interação da Filosofia com a Linguística do que com a Matemática ou a Lógica Simbólica. Tal aproximação seria pertinente por Leibniz tentar estender explicitamente métodos matemáticos, sobretudo de análise algébrica, para a análise de línguas naturais, como faz, por exemplo, em seu inaugural Ars Combinatória de 1666.

Ao terminar o livro fiquei com a dúvida: Por que a partir da complementaridade entre grandes avanços em linguística comparada com claros vestígios de concordância sintática entre as línguas naturais e o desenvolvimento de técnicas de análise e manipulação de sistemas simbólicos artificiais não poderíamos reintroduzir no campo de investigações filosóficas uma via consequente sobre a naturalidade simbólica? Poderíamos revisitar esta escola marginalizada da Filosofia como ilusória e esotérica por um tratamento mais sintático da relação signo/coisa, justamente porque não parece existir signo fora de uma estrutura de relações a qual ele pertenceria e que poderia espelhar através de uma rede de signos outra estrutura independente. Afinal, padrões (Resenha) Leibniz e o problema de uma língua universal – Marcos Silva Argumentos, ano 5, n. 10 – Fortaleza, jul./dez. 2013 239 conceituais parecem sempre emergir caprichosamente em terrenos anteriormente incomunicáveis. Daí vem a seminalidade dos olhos corajosos de um filósofo.

Esta abordagem, por assim dizer, mais lógico-sintática restringiria o desconfortável apelo místico de uma necessária comunidade icônica entre o símbolo e simbolizado. Logo, a sintaxe, a meu ver, poderia substituir esta excessiva demanda semântica que caracterizou a investigação de uma Língua Universal nos séculos XVI e XVII, como o próprio Leibniz tentou no caso de sua Gramática Racional.

Além disso, fica a pergunta: uma Língua Universal precisaria realmente ser construída? Quando precisamos prospectar algo a grandes profundidades, precisamos criar instrumentos hábeis e eficientes e não criar, por exemplo, o petróleo ou o ouro. Eles, de certa maneira, já estão lá. Acredito que ao procurarmos a língua adâmica cometemos o mesmo erro de Russell ao interpretar o Tractatus de Wittgenstein: não se trata de postular e construir uma língua perfeita, mas de construir instrumentos perfeitos para mostrar o quanto perfeito já é o funcionamento profundo da linguagem.

Tudo se passa como se tivéssemos disponíveis potentes instrumentos de prospecção, mas fôssemos incrédulos quanto à existência do ouro. Aliás, afastamos peremptoriamente a simples possibilidade de existência deste tesouro profundo pelo apelo hegemônico naturalista das investigações acadêmicas de hoje em dia, com grande aversão ao que possa simplesmente parecer mais abstrato ou metafísico. Acredito que haja vestígios em Linguística Comparada que indicam uma comunidade gramatical profunda entre as línguas naturais, uma espécie de universal linguístico, como a presença de quantificação ou oposições lógicas entre proposições em línguas diversas. Os vestígios desta comunidade sintática poderiam justificar a tentativa de prospecção do “ouro” auxiliada, por exemplo, pela nossa avançada mecânica de projeções algébricas, homomorfismos, mapeamentos e modelos. O que fica após a leitura do livro de Olga Pombo é a sensação de que um projeto de Língua Universal, caso coordenado pelas inspirações seminais de Leibniz, além de ainda ser desejável, poderia também ser viável pelo atual grau de avanços técnicos em Linguística e Lógica.

Contudo deveríamos primeiro acreditar no ouro, antes de buscá-lo. Ouro de Leibniz, não de tolo.

Szabó nos diz que a questão “há objetos abstratos?” é aquela que separa nominalistas de não-nominalistas. Os primeiros pensam que não há, enquanto os últimos pensam que há ao menos um tipo de abstracta (objetos abstratos).

Os nominalistas são eliminativistas com relação a abstracta e os reduzem a concreta (objetos concretos). Sua motivação é geralmente indicada como advinda de uma certa consciência ontológica (intuição básica) e de um certo horror abstractae.

Uma objeção ao nominalismo é que ele se autodestrói, pois não há como negar a existência de abstracta sem pressupô-la, pois, para que haja comunicação, é preciso que haja uma proposição, um tipo de sentença ou uma mesmidade de estados mentais, e tudo isso pressupõe abstracta. O nominalista pode tentar dizer que podemos descrever a comunicação como uma tentativa de produzirmos no outro um estado mental semelhante ao seu próprio por meio de certos barulhos particulares. O problema dessa resposta é que se esses barulhos dizem algo, dizem uma proposição, um tipo de sentença ou algum outro objeto abstrato.

Mesmo que o nominalista tenha uma solução para esse problema, ainda precisaríamos ter claro o que queremos dizer com “há entidades abstratas?”, o que o autor tenta fazer com uma exposição sistemática de cada termo dessa sentença.

Com relação ao “há”, o autor nos mostra várias implicações de pensarmos o “há” como o quantificador existencial da nossa lógica clássica de primeira ordem. Uma delas é que não haveria níveis de existência, já que o quantificador quantifica igualmente, embora pudesse haver diferentes categorias ontológicas. Geralmente a objeção a essa ideia é que podemos criar uma lógica não padrão com tipos de quantificadores e, daí, poderíamos falar em diferentes níveis ou tipos de existência. A réplica quineana a essa objeção é dizer que temos que interpretar “há” ou “existe” da maneira como a nossa melhor lógica nos diz que devemos e a nossa melhor lógica (em profundidade, simplicidade, utilidade e beleza) é a lógica clássica de predicados de primeira ordem com quantificação e identidade.

Notas

1 Todas as referências deste trabalho vêm da primeira edição do livro de Olga Pombo.

Marcos Silva – Doutor em Filosofia pela PUC-RJ. Bolsista da Funcap/Capes de Pos-doutoramento na Universidade Federal do Ceará (UFC). Email: [email protected]

“Nominalism”. The Oxford Handbook of Metaphysics – SZABÓ (ARF)

SZABÓ, Zoltán Gendler. Nominalism. The Oxford Handbook of Metaphysics. Editado por Michael Loux e Dean Zimmerman. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 11-45. Resenha de: CID, Rodrigo. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.10, jul./dez. 2013.

Com relação ao “entidades”, o autor nos fala sobre pensarmos as entidades como objetos. O objeto seria o referente de um termo singular, diferentemente da função, que é referente de um termo geral. Uma entidade assim pensada teria de ter condições de identidade determinadas, pois os objetos em lógica têm eles próprios condições de identidade determinadas.

E, finalmente, com relação ao “abstrato”, Szabó nos fala de algumas concepções de abstracta, aceitando apenas a última no resto do texto. A primeira concepção é de que aquilo que é abstrato nos é dado por abstração daquilo que é concreto (embora o que tenhamos em mente seja apenas uma representação concreta daquilo que é abstrato). O problema dessa visão é que ela parece implicar dependência ontológica do abstrato com relação ao concreto. E isso é estranho para vários objetos abstratos, como proposições, tipos de enunciados, geometria, entre outros. A intuição que está envolvida aqui é que falta algo nas entidades abstratas que têm nas entidades concretas.

O problema então seria encontrar o que é que lhes falta, pois não é nada claro o que falta a eles – já que, por exemplo, os fótons não têm massa em descanso, os buracos negros não emitem luz e os pontos no espaço não têm extensão.

Uma outra ideia é que os objetos abstratos são (p. 17-18): “(i) imperceptíveis em princípio, (ii) incapazes de interação causal e (iii) não localizados no espaço-tempo”. O problema aqui é que pode-se logicamente defender que entramos em contato causal com objetos abstratos, como proposições, por exemplo. E é também defensável que percebemos os objetos abstratos nas coisas, tal como defende o realismo extremo dos universais, no qual há apenas feixes de universais. Szabó abandona os dois primeiros critérios e utiliza o termo abstrato levando apenas (iii) em consideração e tendo em vista que pode haver entidades concretas apenas temporalmente, mas não espacialmente, localizadas – como almas cartesianas.

O nominalista crê que esses objetos, os abstratos, tal como os monstros fantasiosos, não existem. Como, ainda assim, os abstratos são muito úteis nas ciências, o nominalista quer preservar o vocabulário dos abstratos, sem se comprometer ontologicamente com eles, reduzindo-os a concreta. Ele realiza tal coisa por meio da construção de uma paráfrase sistemática das frases sobre objetos abstratos a frases que não dizem respeito a abstracta. Um exemplo seria parafrasear “Há uma boa chance de chover mais tarde” para “Está parecendo que vai chover mais tarde”. Neste caso parafraseamos uma frase sobre chances em uma frase sobre a aparência das coisas. O problema da paráfrase é que não está claro por que haver uma paráfrase que não fala sobre abstracta indica que tanto a paráfrase quanto a frase parafraseada não têm compromisso com abstracta em vez de indicar que ambas têm. A paráfrase não vence a disputa ontológica, mas ao menos mostra que seu usuário consegue fazer sentido de sua própria posição.

Uma objeção séria ao nominalista é que ele não consegue parafrasear frases como “há entidades abstratas”, pois se houver uma paráfrase para tal frase, o nominalista não conseguirá formular a sua própria posição e nem a posição rival. É possível falar de uma outra interpretação, bem complexa, para essa sentença e para algumas outras de dentro das matemáticas. Mas é difícil teoricamente ter de aceitar que a interpretação de sentenças seja algo não transparente ou velado ao falante.

Algumas razões pelo nominalismo, diria o autor, são (a) a aceitação do fisicalismo, (b) a economia ontológica e (c) o argumento do isolamento causal.

E algumas razões contra seriam (d) o argumento da indispensabilidade e (e) o argumento fregeano.

A primeira razão pelo nominalismo vem da ideia de que se tudo é físico, então não pode haver coisas que não estejam no espaço-tempo. Essa ideia é problemática justamente pelas localizações do espaço não serem elas mesmas coisas com localizações, de modo que não precisamos aceitar que o fisicalismo implica a inexistência de coisas sem localização espaço-temporal. Tudo vai depender da abrangência de “físico”, que é um assunto profundamente problemático. Poderíamos dizer que só é físico o que é implicado por nossas melhores teorias. Porém, nesse caso, números e conjuntos seriam entidades físicas. Poderíamos tentar dizer que físico é o que está sujeito a leis. No entanto, há leis que tratam de abstracta, como a lei dos gases ideais. Podemos também tentar dizer que físico é o que entra em interação causal. Mas é debatível o que do objeto ou do evento entra na interação causal.

Outra razão seria a economia ontológica: poder-se-ia dizer que abstracta são supérfluos para os propósitos explicativos. O problema disso é que várias teorias científicas parecem quantificar sobre abstracta e, mesmo que forneçamos paráfrases, ainda teremos de decidir se a explicação da teoria reconstruída é preferível à não reconstruída (p. 29). Além disso, simplicidade, na qual se funda a economia ontológica, é variável: simplicidade em algumas partes traz complexidade a outras.

A terceira razão pelo nominalismo seria o argumento do isolamento causal. Ele nos diz que, como abstracta não têm posição espaço-temporal, não podem ter efeito causal em nós. Sem efeito causal, não há como ter nem conhecimento (parte epistêmica) e nem referência (parte semântica) dos mesmos.

A resposta a isso é muito parecida com uma que já vimos, que é dizer que não precisamos assumir que abstracta não têm efeito causal, pois pode-se assumir que as abstracta dependente de concreta têm efeito causal. O ponto então seria explicar como obtemos conhecimento e fazemos referência a objetos abstratos independentes dos concretos. Ou defender que não é necessário que haja interação causal para que obtenhamos conhecimento ou para que façamos referência a abstracta. Que não precisamos de interação para fazer referência a objetos, isso a referência por meio de descrição já nos mostra. Mas não é tão claro como poderíamos obter conhecimento de coisas necessárias as quais não entramos em contato causal.

Uma dificuldade para o nominalismo é o argumento da indispensabilidade (p. 34). Ele nos diz o seguinte: (1) a matemática é indispensável à física; (2) a matemática tem compromisso ontológico com abstracta; (3) logo, a física tem compromisso ontológico com abstracta; (4) não temos razões para rejeitar a física; (5) logo, não temos razões para rejeitar a existência de abstracta. As duas soluções nominalistas para este argumento são negar (1) ou (2). Se negarmos (1), teremos o programa em física de mostrar como pode haver uma física sem matemática, coisa que Hartry Field tentou mostrar, ao reformular sem quantificação sobre números a teoria gravitacional de Newton. Sua teoria nos diz que as sentenças matemáticas existenciais são falsas e que na verdade elas são apenas úteis para expressar as paráfrases nominalistas verdadeiras. Negar (2), por sua vez, exige do filósofo um programa semântico de paráfrase sistemática de toda a linguagem matemática que quantifique sobre abstracta.

Outra dificuldade para o nominalista é o argumento fregeano (p. 37). Ele é o seguinte: (A) “2+2=4” é verdadeiro; (B) “2” em “2+2=4” é um termo singular; (C) se uma expressão funciona como um termo singular numa sentença verdadeira, então deve haver um objeto denotado por tal expressão; (D) logo, deve haver um objeto denotado por “2”; (E) logo, há um objeto denotado por “2”. É possível que o nominalista argumente que “2” não é um termo singular genuíno. Entretanto, dados critérios sintáticos e inferenciais e dada a primazia da sintaxe sobre à ontologia, “2” é de fato um termo singular. É possível também que se objete a (C), tal como fez Field ao nos dizer que os juízos das matemáticas são falsos, embora sejam úteis para expressar as paráfrases nominalistas verdadeiras.

Uma posição possível intermediária ao nominalista é aceitar o ficcionalismo e dizer que as sentenças matemáticas são verdadeiras nas matemáticas, embora nada seja dito com relação a fora das matemáticas. Quando perguntamos se há abstracta, nos diria o ficcionalista Carnap, podemos estar querendo fazer uma pergunta interna ou externa ao sistema linguístico em causa.

Se for interna, sua resposta é trivial. Se for externa, seria uma questão sobre se devemos adotar uma teoria comprometida com abstracta. Carnap não pensava que havia razões para preferir um sistema linguístico em vez de outro. Quine discordaria disso, já que pensa podermos fornecer razões para a escolha entre tais sistemas.

Finalmente, Szabó termina seu texto indicando algumas outras posições intermediárias, entre nominalismo e anti-nominalismo.

Rodrigo Cid – Doutorando em Filosofia pelo PPGLM-UFRJ. E-mail: [email protected]

Acesso à publicação original

 

 

Nietzsche, as artes do intelecto – BRUM (ARF)

BRUM, José Thomaz. Nietzsche, as artes do intelecto. Porto Alegre: L&PM, 1986. Resenha de: Resenha de: PIVA, Paulo Jonas de Lima. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 9, jan./jun. 2013.

Uma resenha sobre um livro pioneiro há tempos esgotado, feita para que ele seja mais do que lembrado, mas reeditado, cabe numa seção de resenhas de uma revista acadêmica de nível respeitável, a princípio destinada apenas para lançamentos? Inovemos se essa quebra de protocolo pode render bons frutos bibliográficos para as pesquisas em filosofia no Brasil.

Os estudiosos brasileiros do Marquês de Sade, bem como os do sensualismo e do materialismo modernos, foram contemplados recentemente pela Editora Champagnat com o relançamento, em segunda edição, de Desejo e prazer na Idade Moderna, livro de Luiz Roberto Monzani desaparecido das livrarias há vários anos. Outro caso relativamente recente de um relançamento capital ocorreu com a minuciosa e densa biografia de Jean-Paul Sartre escrita por Annie Cohen Solal, Sartre, uma biografia, publicada no Brasil, nos anos oitenta, pela L&PM, e que também estava fazendo falta na biblioteca dos especialistas e aficionados do pensamento existencialista. O livro voltou à tona em 2008, com um novo prefácio da biógrafa a propósito do centenário de nascimento do autor de A Náusea em 2005. O mesmo aconteceu com o esgotado e disputado Silogismos da amargura, do romeno Emil Cioran, reposto em circulação este ano pela Rocco, também em ocasião do centenário do nascimento do seu autor. Nessa mesma direção, a editora Autêntica já anunciou o relançamento do clássico O Erotismo, de George Bataille, também muito procurado, mas sumido até dos sebos.

Contudo, há uma longa lista de outras obras fundamentais de filosofia em português que precisam ser relançadas, algumas com urgência.

A dificuldade para encontrá-las e, quando encontradas, o preço exorbitante no mercado de sebo para adquiri-las, são motivos bastante persuasivos para que as editoras atendam a essa necessidade dos seus leitores. A Filosofia do Iluminismo, de Ernst Cassirer, livro lançado no Brasil pela Editora Unicamp e que em 1997 chegou à sua terceira edição, é uma delas. Até mesmo no mercado virtual de sebo é difícil comprá-lo. Quem conhece o livro sabe que muito se perde ao estudar o iluminismo sem ele. E por falar em publicações da Editora da Unicamp, o que dizer do clássico Carta a D’Alembert sobre os espetáculos, de Jean- -Jacques Rousseau, também há muito tempo uma raridade entre nós? Nesta direção, Nietzsche, as artes do intelecto, de José Thomaz Brum, é outro título desaparecido que merece ser ressuscitado. E a ousada L&PM, mais uma vez, que deu vida ao pequeno livro em 1986, na sua extinta “Coleção Universidade Livre”, deveria fazê-lo, ainda mais depois de ter posto no mercado seis traduções diretamente do alemão do autor de O Anticristo. Sua variada e riquíssima coleção de bolso seria a via ideal para tal empreendimento.

E por que esse ensaio, uma dissertação de mestrado defendida na PUC do Rio de Janeiro em 1984? Em Nietzsche, as artes do intelecto, Thomaz Brum se faz pioneiro.

Trata-se de um dos primeiros textos de um estudioso brasileiro a expor a concepção nietzschiana de conhecimento, num sentido lato, a epistemologia de Nietzsche. E Thomaz Brum o faz por meio de um exame cuidadoso de Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral, texto inacabado de 1873 e publicado postumamente, e de alguns fragmentos póstumos de Nietzsche dedicados ao assunto.

Construção antropomórfica da natureza; redução da realidade a uma interpretação humana demasiado humana; adequação e conversão do universo à perspectiva de uma espécie biológica específica, a humanidade; ficção, ilusão e erro de um animal determinado voltados para a sua preservação vital; em última instância, obra de arte que possibilita a sobrevivência dos seres humanos. Em linhas gerais, é assim que Thomaz Brum entende e define o conhecimento em Nietzsche. E a concepção de homem da qual parte tal interpretação é a de um ser que não é criatura de uma divindade, que não é imagem e semelhança de um ser supremo, uma vez que este não existe. Porém, mesmo assim, por pura vaidade e engano, homem se sente o centro do universo, embora sua existência seja absolutamente insignificante, contingente e gratuita do ponto de vista onto e cosmológico. Esse ser vaidoso − as moscas, como bem observa Nietzsche, também se sentem o centro esvoaçante do universo, assim como as formigas se sentem a finalidade da floresta −, sem criador nem lugar privilegiado na natureza, à deriva num processo sem teleologia, não passaria de um animal em meio aos demais lutando pela sobrevivência. Não dispondo de garras ou chifres para se defender, ele usa o intelecto para suprir sua vulnerabilidade e manter-se vivo no interior de um planeta perdido em meio a bilhões de tantos outros. Por meio desse intelecto o homem lança-se em abstrações, constructos, elaborando teses e doutrinas, elucubrando sistemas e explicações, e o faz com a sua especificidade animal, portanto, como uma atividade biológica, tal como a abelha produz o mel e a mariposa tece o seu casulo.

Donde se segue que não há essências para serem descobertas, nenhuma coisa-em-si para ser revelada, tampouco uma objetividade a ser alcançada na investigação das causas e da natureza das experiências. A verdade mostra-se então artifício, ferramenta eficaz, expediente útil, uma convenção lingüística, mais precisamente, figura de linguagem. No dizer do próprio Nietzsche, a verdade consiste num “batalhão de metáforas, metonímias, antropomorfismos”, isto é, numa “soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas”. O homem do conhecimento seria então um artista, de certo modo um poeta, embora não se veja e relute a se ver como tal. A ciência, por conseguinte, faz-se arte, talvez a mais necessária delas, pois, além de garantir a preservação da espécie humana, atribui um sentido humano a um mundo essencialmente inumano.

A linguagem, obviamente, também é humanizada e naturalizada por Nietzsche. Ao contrário da convicção da tradição, ela não é portadora de nenhum ser. Thomaz Brum mostra que Nietzsche a entende também como um artifício humano, porém, enfatiza, um artifício arbitrário e parcial, de procedência orgânica, física, baseado em estímulos e sons, repleto de imprecisões, falhas e limitações na apreensão da totalidade.

Sua origem é a falsificação. O conceito? Um exercício de simplificação, uma abstração mutiladora das particularidades das coisas e dos fenômenos, em última instância, uma deturpação do que é aludido e teorizado.

Contudo, explica Thomaz Brum, é por meio da ficção da verdade e da crença no poder da linguagem de nos viabilizar o acesso ao real tal como ele é que a vida gregária se constitui e, sobretudo, estabiliza-se; é por meio dessa arrogância que o homem estabelece regras, que ele atribui um valor e um sentido à sua vida e à do rebanho que compõe; enfim, que ele tenta administrar seus conflitos com o outro, dominar a natureza e se impor diante das adversidades. Para isso, ele institui “verdades” e “mentiras”, por conseguinte, com base nesses critérios, seleciona os indivíduos aptos ou não para o convívio. Quem mente contra o rebanho não tem lugar dentro dele.

A ciência, por outro lado, efetiva-se como um instrumento de potência, como uma vontade humana de subjugar. Ao contrário da concepção de ciência da tradição, contaminada até os ossos pela metafísica, a concepção nietzschiana de ciência torna a verdade demasiadamente humana e o conhecedor um sujeito ativo e criador. Em suma, mesmo o conhecimento sendo uma construção antropomórfica do mundo – uma humanização da natureza e dos fatos – e a verdade uma mentira, uma crença numa ilusão, um erro útil, uma invenção interessada, ambos são crucialmente necessários à nossa espécie.

Thomaz Brum encerra seu percurso pelo pensamento nietzschiano sobre o conhecimento e a verdade sugerindo um pragmatismo avant la lettre em Nietzsche. Já que a realidade da natureza é inacessível ao nosso intelecto, que o universo é um caos a nós estranho, já que o animal homem está confinado inelutavelmente ao seu ponto de vista e ele é a medida das coisas, valorizemos a eficácia, a utilidade, o resultado favorável à sobrevivência. Não mais transcendências, não mais indagações sobre o que são as coisas em si mesmas. Que o animal homem se faça sujeito criador de sentido e legislador; que a ciência se desvencilhe de uma vez por todas da metafísica e se norteie doravante pela vontade e por valores afirmativos da efetividade, como o da conservar e da intensificação da vida. A razão agora deve ser razão prática, conclui Thomas Brum, e o animal homem deve se impor diante da natureza como um demiurgo, ou seja, num universo sem deuses nem teleologia, ele deve perceber que está entregue a si mesmo e às suas invenções. É por tudo isso que o pequeno e pioneiro livro de Thomaz Brum precisa voltar ao mercado.

Paulo Jonas de Lima Piva – Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Acesso permitido apenas pela publicação original

Lle persuader aux autres” le choc avec Hobbes et Gassendi sur le doute/Notes sur la dialogique cartésienne – SALLES (ARF)

SALLES, Jordi. “...le persuader aux autres” le choc avec Hobbes et Gassendi sur le doute/Notes sur la dialogique cartésienne. (Org) Jean-Marie Beyssade e Jean-Luc Marion. Paris: Presses Universitaires de France, 1994. P.91-109. Resenha de: ZANETTE, Edgard Vinícius Cacho. Argumentos – Revista de Filosofia, n.8, p.261-268, 2012.

Acesso permitido apenas pela publicação original

A estrutura das revoluções científicas – KUHN (ARF)

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009. Resenha deFAGHERAZZI, Onorato Jonas. Argumentos – Revista de Filosofia, n.7, p.141-146, 2012.

Acesso permitido apenas pela publicação original

Inovação na Filosofia – STEIN (ARF)

STEIN, Ernildo. Inovação na Filosofia. Ijuí: Editora da Unijuí. Coleção Filosofia 38, 2011. Resenha de AQUIAR, Odílio Alves. Argumentos – Revista de Filosofia, n.7, p.131-134, 2012.

Acesso permitido apenas pela publicação oficial

Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault – DUARTE (ARF)

DUARTE, André. Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Resenha de: FERNANDES, Antônio Batista. Argumentos – Revista de Filosofia, n.7, p.135-140, 2012.

Acesso permitido apenas pela publicação original

Os mestres da humanidade – JASPERS

JASPERS, Karl. Os mestres da humanidade. Coimbra: Almedina, 2003. 165p. Resenha de: CARVALHO, José Mauricio de. Argumentos – Revista de Filosofia, n.6, p.161-164, 2011.

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Advinhas do tempo: êxtase e revolução – MATOS (ARF)

MATOS, Olegária Chain Féres. Advinhas do tempo: êxtase e revolução. São Paulo: Hucitec, 2006. 128p. Resenha de: MAGALHÃES, Rogério Silva de. Argumentos – Revista de Filosofia, n.6, p.165-167, 2011.

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A questão do sentido em psicoterapia – FRANKL (ARF)

FRANKL, Victor. A questão do sentido em psicoterapia. Campinas: Papirus, 1990. Resenha de: CARVALHO, José Maurício de. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.5, 2011.

O livro de Victor Frankl foi publicado há muitos anos, mas conserva atualidade pelo diálogo que obriga entre a Filosofia e a Psicologia. Ele possui introdução, três conferências e um esboço autobiográfico. Nestes textos enfrenta uma questão fundamental que ocupou parte significativa dos filósofos no século XX: possui a vida humana um sentido? Esta questão se mistura a outras de caráter existencial que ajudam a clareá-la.

Eis algumas: será que a finitude da existência aniquila seu sentido? O sofrimento físico e mental contribui para a elaboração do sen tido ou o destrói? Como pensar o sentido diante daquilo que nos acontece? Exemplo do que nos ocorre é uma doença incurável ou ser levado para o campo de extermínio.

É para enfrentar estas questões que Frankl escreveu este livro. A pergunta é essencial- mente filosófica e ela será tratada assim. No entanto, o autor estende as conseqüências da meditação para o campo da Psicologia ao colocar a questão do sentido como eixo orientador de uma abordagem psicológica que ele desenvolve. Entender o modo como filosoficamente Frankl pensa o problema do sentido e depois perceber os resultados que daí deriva para a Psicologia é o que confere nexo ao livro.

Victor Frankl começa sua obra retomando a questão que Albert Camus consagrou como a única digna de ser efetivamente meditada: como é o sentido da vida humana? A vida vale a pena ou o suicídio é o que se nos oferece como alternativa mais plausível? O filósofo francês trata a questão do sentido nos romances A Peste e O Estrangeiro, bem como nas peças de teatro Calígula e Os Justos . Ao optar pelo sentido construído pelo existente coloca em evidência o problema da liberdade humana, pois nela reside o sentido e não numa construção lingüística rebuscada ou erudita. Este sentido da vida como expressão de liberdade é assunto fundamental dos existencialistas observa outro filósofo francês Roger Garaudy. A vida não tem um sentido prévio ou pronto, ele diz, “como se tem uma casa ou uma conta no banco. Seria (se assim fosse) um cenário já escrito, fora de nós e sem nós; teríamos apenas que representar aparentando crer em nossa liberdade.” ( Palavra de homem , p. 52).

A questão do sentido para Frankl vai além da meditação filosófica porque o problema expresso pelo sentimento de vazio de sentido obrigou as pessoas hoje em dia a procurar o psicólogo e o psiquiatra. O vazio existencial e a depressão são as doenças do século XXI e isto aumenta o interesse pelo livro de Frankl. O homem não sabe o que quer e esta ignorância não apenas serve para ele meditar melhor sobre a vida, “a sensação de falta de sentido é patogênica, isto é, leva a doenças, a neuroses específicas.” (p. 20). Este A rgumentos , Ano 3, N°. 5 – 2011 181 sentimento se manifesta de muitos modos como: na chamada crise de meia idade ou no medo do domingo tão comum em nosso tempo. Em ambos os fenômenos o que verdadeiramente aparece é a falta de sentido.

Esta falta de sentido coloca em evidência o problema de ir além de si, trata-se da auto – transcendência sem a qual a vida parece ficar sem sentido. Afirma o autor: O homem não é apenas um ser que reage e abreage, mas também que se autotranscende. E a existência humana aponta para além de si mesma, mostra sempre algo que não é de novo ela mesma – a algo ou alguém, a um sentido, ou a um ser companheiro. (p. 29).

O que há de singular nesta posição de Frankl é que ele coloca a questão do sentido como sendo de interesse primário do homem e não como meditação que lhe confere algo a mais, algo que lhe adensa o sentido, mas sem o qual é possível viver. O sentido para Frankl é questão fundamental. Ao referir- se ao comportamento dos prisioneiros nos campos de concentração fica claro o que ele quer dizer: “não foi menos importante a lição que eu pude levar para casa de Auschwitz e Dachau: que os mais capazes, inclusive de sobreviver a tais situações-limite, eram os direcionados para o futuro, para algo ou alguém que os esperava.” (p. 34). Esta questão filosófica fundamental foi deixada de lado pelos psicólogos, comenta o autor. Os psicanalistas a consideram parte dos processos psicodinâmicos e os comportamentalistas um tipo de aprendizagem que precisa ser removido para que o sujeito fique “espontaneamente curado.” (p. 37). Ora o problema não pode ser resolvido deste modo, a falta de sentido é um tipo de sofrimento, mas não uma doença no sentido médico ou uma ignorância a ser suprimida. Também não se confunde falta de sentido com desespero, pois este último só ocorre quando a pessoa não enxerga sentido para o sofrimento. E aqui surgem questões fundamentais: A vida tem sentido e se tem podemos nós comunicá-lo? Frankl considera que a vida tem sentido e que podemos percebê-lo. Com isto não invalida o trabalho dos psicanalistas, pois muita coisa tida como sentido deve ser desmascarada, mas tentar desmascarar o problema do sentido produz uma deshumanização, porque estamos diante de “um fenômeno que não se deixa desmascarar porque é autêntico” (p.41). A conclusão de Frankl é que “o homem é um ser à procura de sentido” (p. 45). E considera que esta questão fundamental da filosofia existencial seja o centro de sua uma orientação psicológica. A raiz desta linha psicológica é a intencionalidade no sentido de Bren- tano, Husserl e Scheler, que produz a relação com os sujeitos intencionais, ou seja, entre os atos intencionais que deles provém e os objetos intencionais. Tão logo deixemos de contemplar o ser sujeito do sujeito, nós perdemos de vista que ele tem objetos próprios. (p. 35).

Trata-se, portanto, de uma psicologia fenomenológica como as de Karl Jaspers, Ludwig Binswanger, o representante da Es- cola gestáltica de Berlim Wolfgang Köhler, além do que escreveu o existencialista e personalista Gabriel Marcel, filósofos e psi- cólogos cujos nomes Frankl cita textualmente em sua autobiografia, o último dos textos do livro (p. 112).

As questões associadas ao sentido fo – ram desenvolvidas em três conferências que Frankl pronunciou sobre o sentido e valor da vida na Universidade para o povo em Viena- Ottaring. Ele entende que o pensamento europeu reconheceu a dignidade humana com a formulação ética de Immanuel Kant, mas depois vieram as guerras e em especial a Segunda Guerra Mundial onde o homem foi colocado a serviço da morte. Nos campos de refugiados os presos não valiam o prato de sopa e a vida humana foi exterminada em massa, a sociedade européia desonerou- se da dignidade. Esta atitude não foi uma decisão coletiva, o reconhecimento do valor da vida é singular. Isto se demonstra pela atitude do chefe nazista que gastava o próprio dinheiro para comprar remédio para os doentes do campo. No mesmo Campo havia prisioneiros mais antigos que maltratavam os companheiros recém-chegados. A direção fundamental assumida por Frankl remonta a Kant, viver é um dever. Há alegria na vida, mas ela não é um fim, apenas o resultado.

José Mauricio de Carvalho – Doutor em Filosofia e Professor da UFSJ-MG.

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“Eine bisher unbekannte Handschrift mit Werken des Nikolaus von Kues in der Kapitelsbibliothek von Toledo”,  Mitteilungen und Forschungsbeiträge der Cusanus-Gesellschaft – REINHARDT (ARF)

REINHARDT, Klaus. “Eine bisher unbekannte Handschrift mit Werken des Nikolaus von Kues in der Kapitelsbibliothek von Toledo”,  Mitteilungen und Forschungsbeiträge der Cusanus-Gesellschaft, 17, p. 96-141). Resenha de SCHMITT, Alexia B. Ninicolás de Cusa,  Acerca de lo  no-otro o de la definición que  todo define, nuevo texto crítico  original (edición bilingüe). Argumentos, Fortaleza, n. 2 – 2009.

Nicolás de Cusa,  Acerca de lo no-otro o de  la definición que todo define , nuevo texto crítico  original (edición bilingüe), Introducción: Jorge  M.  Machetta  y  Klaus  Reinhardt,  Traducción:  Jorge  M.  Machetta,  Preparación  del  texto  crítico  y  notas  complementarias:  Claudia  DʹAmico,  Martín  DʹAscenzo,  Anke  Eisenkopf,  José  González  Ríos,  Jorge  M.  Machetta,  Klaus  Reinhardt, Cecilia Rusconi, Harald Schwaetzer,  391 pp., Editorial Biblos, Colección Presencias  Medievales, Buenos Aires, 2008.

Esta edición se inicia con la presentación  de  la  obra,  a  cargo  del  Prof.  Dr.  Jorge  M. Machetta (p. 11-12); la historia de la transmisión  del texto, escrita por el Prof. Dr. Klaus Reinhardt  (pp.  13-20);  y  bibliografía  sobre  el  escrito  cusano, tanto ediciones en lenguas modernas  como trabajos sobre el mismo (p. 21-24).

A continuación encontramos, junto a su  traducción  española,  el  texto  original  latino  iluminado por un completo aparato de fuentes,  tanto  explícitas  como  implícitas,  de  tal  obra  cusana,  y  un  elenco  de  lugares  paralelos  en  sus  demás  escritos,  pues  se  trata  de  una  edición  crítica.    Pero  lo  más  significativo  es  que  se  ofrece  el  nuevo  texto  crítico  original  a  partir  del  descubrimiento  de  un  ignorado  manuscrito  de  Acerca  de  lo  no-otro   en  la  Biblioteca Capitular de Toledo llevado a cabo  por el Prof. Dr. Klaus Reinhardt 1 .

Es ésta la primera edición que publica el  nuevo texto crítico.  Ello es el fruto del proyecto  conjunto cumplido por investigadores alemanes,  miembros del Institut für Cusanus-Forschung de  Trier,  e  investigadores  argentinos,  integrantes  del  Círculo  de  Estudios  Cusanos  de  Buenos  Aires.  Gracias al aporte de la DAAD (Deutscher  Akademischer Austauschdienst) y la Fundación  Antorchas, entre Marzo de 2003 y Octubre de  2006,  el  grupo  de  investigadores  alemanes,  -dirigido  por  el  Prof.  Dr.  Klaus  Reinhardt  y  secundado  por  el  Dr.  Harald  Schwaetzer-,  y  argentinos, – coordinado por el Prof. Dr. Jorge  M.  Machetta,  secundado  por  la  Dra.  Claudia  DʹAmico,  e  integrado  por  los  Licenciados  en  Filosofía  y  Doctorandos  Cecilia  Rusconi,  Martín  D ́Ascenzo  y  José  González  Ríos.    La  primera tarea consistió en el minucioso análisis  paleográfico  del  nuevo  manuscrito  y  luego  se  procedió al cotejo con la edición crítica anterior  de  la  Academia  de  Ciencias  de  Heidelberg,  preparada por los profesores Ludovico Bauer y  Paul Wilpert en 1944, utilizando el manuscrito  que  fuera  recogido  y  publicado  por  Ioannes  Übinger, como anexo a su obra  Die Gotteslehre  des Nikolaus von Kues  en 1888.

Junto a estos tres tipos de notas (variantes  textuales disponibles, fuentes, y paralelos en la  obra cusana) encontramos, iluminando el nuevo  texto crítico original y su traducción española,  dos clases de notas complementarias:

  1. Notas temáticas,  destinadas  a  facilitar  la  comprensión del texto en torno a los aspectos  temáticos más importantes, distribuidas de esta  manera:

1.1  Interlocutores  del  tetrálogo  (Jorge  M. Machetta, p. 243-246).

1.2 La fuerza significativa de lo “no-otro” (José  González Ríos, p. 247-263).

1.3 La definición que se define a sí misma y a  todo (Cecilia Rusconi, p. 264-272).

1.4 El principio del ser y del conocer (Jorge M. Machetta, p. 273-285).

1.5 Participación y alteridad (Claudia DʹAmico,  p. 286-295).

1.6 El carbúnculo (Harald Schwaetzer, traducción  Jorge M. Machetta, p. 296-303).

1.7  La  sustancia  (Martín  DʹAscenzo,  p.  304- 310).

1.8  Acerca  del  Principio  A  (Cecilia  Rusconi, p. 311-322).

1.9 El tiempo (Anke Eisenkoff y Harald Schwaetzer,  traducción Jorge M. Machetta, pp. 323-328).

  1. Notas de  autores  presentes  en  el  texto  propuestas, con el fin de poner de manifiesto las  principales fuentes doctrinales del texto: 2.1 Aristóteles (Martín DʹAscenzo, p. 329-335).

2.2 Alberto Magno (Jorge M. Machetta, p. 336- 346).

2.3 Dionisio Areopagita (José González Ríos, p.347-358).

2.4 Proclo (C. DʹAMICO , p. 359-369).

Como  puede  advertirse,  las  notas  complementarias  se  concatenan  unas  con  otras  y  brindan  al  lector,  sea  éste  novato  o  especializado,  valiosas  herramientas  que  lo  ayudarán a profundizar en la comprensión del  sentido del texto.

Finalmente,  el  libro  se  cierra  con  los  índice  de  nombres  (p.  371)  y  obras  (p.  372)  mencionadas  por  Nicolás  de  Cusa  en  este  escrito,  un  índice  de  autores  de  fuentes  mencionadas (p. 373-385), el  index codicum  (p.386) y un glosario de términos latinos específicos  cusanos con su correspondiente traducción al  español (p. 387-391).

El  propio  Cusano  presenta  este  escrito  como  un  “tetrálogo”  (Nota  temática  1.1,  p.244); éste no es un mero detalle estilístico sino  que  revela  lo  profundamente  dialógico  del  proyecto  filosófico  cusano  (cf.  Nota  temática  1.1,  p.  243).  En  el  diálogo  fecundo  desea  Nicolás mostrarnos “la unidad en la diversidad  que  alienta  los  múltiples  intentos  filosóficos”  (Nota temática 1.1, p. 244).  Él mismo señala  el criterio último que debe animar el diálogo:  n o   e l   a rg u m e n t o   d e   a u t o r i d a d ,   s i n o   e l  descubrimiento de la verdad por la razón (cf.n. 2 y Nota temática 1.1, p. 246).

Los cuatro interlocutores tienen en común  el encontrarse “entregados al estudio” (n. 1) y  el ocuparse de “temas profundos” (n. 1), pero  cada  uno,  desde  distintos  pensadores  (cf.  n.1  y  Nota  temática  1.1,  p.  243-246):  el  abad  Juan  Andrés,  secretario  del  Cusano,  estudia  el  Parménides   de  Platón  y  el  Comentario  de  Proclo; Pedro Balbo traduce del griego al latín la  Teología platónica  de Proclo; Fernando, médico  personal de Nicolás, se dedica a Aristóteles; y el  Cusano frecuenta la obra del teólogo Dionisio  Areopagita  (cf.  Notas  de  autores  presentes  en  el texto 2.3, p. 347-358).

Tras  esta  presentación,  el  abad  expresa  el  interés  común  a  los  tres  interlocutores:  que  Nicolás les brinde “una formulación más sintética  y más clara” (n. 1) de los temas que cada uno  aborda.  El Cardenal responde con la siguiente  sentencia paradójica: “alguna vez me pareció a  mí que es dejado de lado por nosotros aquello  que  nos  podría  guiar  más  próximamente  a  lo  buscado”  (n.  1);  es  decir,  “lo  que  parece  tan  obvio […] a la vez es tan insospechado” (Nota  temática 1.1, p. 245).

N i c o l á s   c o m i e n z a   p r e g u n t a n d o   a l  interlocutor  aristotélico  “qué  es  aquello  que  ante  todo  nos  hace  saber”  (n.  3),  y  Fernando  responde  la  definitio ,  pues  etimológicamente  definición  significa  delimitar,  poner  límites          (n.  3):  “decir  lo  que  una  cosa  es  -dar  su  definición- implica circunscribir dicha cosa en  sus límites dejando por fuera todo lo que ella no  es.” (Nota temática 1.3, p. 265).

Si la definición pone límites a todo, también  se limita a sí misma (cf. n. 3).  Arribamos a lo que  el Cusano había adelantado que descuidamos:  “la definición que todo define es no otro que lo  definido” (n. 3); lo no-otro es la definición que  define todo (el cielo es no otro que el cielo (cf. n.

5) ) y a sí mismo (lo “no-otro es no otro que no- otro” (n. 4) ).  El tema en torno al cual los cuatro  interlocutores se demorarán en este diálogo será  lo no-otro en cuanto “definición que se define a  sí y a todo” (n. 4).  Tal definición no sólo debe ser  entendida desde un plano lógico, sino también  ontológico (cf. Nota temática 1.2, p. 263; Nota  temática 1.3, p. 264-272).

Una de las preocupaciones del Cusano,  que se reitera desde el primero hasta el último de  sus escritos, es encontrar una formulación para  referirse al primer principio (Cf. Nota temática  1.2,  p.  262).  No  obstante,  los  nombres  a  los  que arriba son siempre “enigmáticos”, porque,  por  un  lado,  manifiestan  la  imposibilidad  de  expresarlo  en  forma  adecuada,  pues  él  es  anterior  a  todo,  es  principio  de  todo  (cf.  n.

6);  no  obstante,  por  otro  lado,  señalan  uno  de los modos en que el principio se participa  en  lo  principiado  (Nota  temática  1.2,  p.  254).

El  propio  Cusano  define  “enigma”  como  una  “imagen de aquello que, siendo anterior a toda  imagen  -puesto  que  es  su  principio-,  es  en  sí  mismo invisible en toda forma de visión (n. 103).   Aquello  que  no  puede  ser  visto  directamente  puede  verse  -invisiblemente-  en  el  enigma,  como  si  viéramos  en  un  espejo  la  imagen  de  lo que no puede ser visto directamente” (Nota  temática 1.3, p. 268-269).

¿En dónde reside la fuerza de lo no-otro  para que el Cusano lo considere un enigma  más “preciso” (n. 7), tal como lo expresa en  el  manuscrito  de  Toledo,  frente  a  los  demás  nombres, tanto los provenientes de la tradición  como  los  formulados  por  él  mismo  en  obras  anteriores  (cf.  n.  13;  Nota  temática  1.2,  p.261-262)?  A  ello  nos  responde:  puesto  que  lo  no- otro  no  puede  ser  definido  por  otro  término,  sino sólo por medio de sí mismo, nos muestra al  primer  principio  como  anterior,  autosuficiente  y desvinculado de todo (cf. n. 6; Nota temática  1.2, p. 259-260; Nota temática 1.3, p. 269; Nota  temática 1.5, p. 288).  Además, cuando lo no- otro se define a sí mismo (lo “no-otro es no otro  que no-otro”), nos revela la naturaleza unitrina  y relacional del principio (cf. n. 7; Nota temática  1.2, p. 260-261; Nota temática 1.3, p. 269; Nota  temática 1.5, p. 289).   En tercer lugar, por medio  de lo no-otro podemos ver que “el principio del  ser es, asimismo, el principio del conocer” (n. 8);  tal es el significado ontológico de la definición  que a sí misma y a todo define (cf. Nota temática  1.3,  p.  270-271;  Nota  temática  1.4,  p.  273- 285):  “La  novedad  profunda  de  la  propuesta  cusana  consiste,  a  nuestro  entender,  que  en  la denominación de lo no-otro se implican los  principios fundamentales del ser y del conocer  y que con ello ha alcanzado el mayor nivel de  profundización, concentración y unidad en su  especulación  acerca  del  principio  supremo”  (Nota  temática  1.4,  p.  285).  Por  último,  “la  novedad de este nombre enigmático “ non aliud ”  para referirse al principio se encuentra en que  tal denominación hace referencia a la noción de  alteridad: ser principio implica la exclusión de sí  de toda alteridad, a la vez que la precedencia y  fundación del ámbito de toda alteridad posible”  (Nota temática 1.5, p. 286).

Ahora  bien,  alteridad  y  participación  se  encuentran siempre vinculadas: “la participación  sólo es posible en la alteridad y la alteridad sólo  tiene  su  ser  en  la  medida  en  que  en  ella  se  participa  la  no  alteridad  del  principio”  (Nota  temática 1.5, p. 286).  Las nociones de alteridad  (cf. n. 20-30) y participación (cf. n. 36-39) abren  paso a la concepción cusana de singularidad  (cf. n. 44; Nota temática 1.5, p. 287): “Si bien  en  De  non  aliud   el  principio  de  identidad  de  cada  cosa,  es  decir  el  de  su  singularidad,  se  presenta desde el comienzo y se va completando  con la doctrina de la participación en una forma  o  esencia  única  según  diversos  grados,  tal  doctrina  parece  no  bastar  para  dar  respuesta  a  la  cuestión  de  la  diferencia  en  términos  de  alteridad”  (Nota  temática  1.5,  p.  295).  Tal  cuestión sólo podrá ser respondida si se atiende  a la concepción cusana de sustancia y materia  (cf.  n.  41-52;  Nota  temática  1.5,  p.  295;  Nota  temática 1.7, p. 304-310).

Por último, entre las fuentes del nombre  no-otro, el propio Cusano menciona a Pseudo  Dionisio (cf. n. 5-9 y n. 73-98; Notas de autores  presentes  en  el  texto  2.3,  pp.  347-358;  Nota  temática 1.8, p. 311-322), y al  Parménides  de  Platón  y  el  comentario  de  Proclo  (cf.  n.  100;  Notas de autores presentes en el texto 2.4, pp.359-396),  frente  a  este  último  el  Cusano  ya  no  adopta  una  actitud  crítica  como  en  obras  anteriores, sino todo lo contrario.

Acerca de lo no-otro o de la definición  que  todo  define   ocupa,  sin  duda,  un  lugar  destacado,  tanto  dentro  de  la  obra  cusana,  -“quizás  […]  la  más  especulativa  de  Nicolás  de  Cusa”  (Presentación,  p.  11)-,  como  en  la  historia  de  la  filosofía,  por  su  inagotable  profundidad  y  densidad  metafísicas.  Por  consiguiente,  la  presente  edición  crítica   constituye  un  acontecimiento  único  y  de singular  importancia  para  todo  aquel  que  busque  la  verdad  en  las  fuentes  perennes  del  pensamiento.  No  obstante,  adquiere  para  nosotros  desde  Latinoamérica  una  mayor  relevancia,  pues  nunca  antes  investigadores  de  nuestra  región  habían  participado  en  la  edición crítica de una obra cusana. Aún más, la  presente edición, encarnando el ideario que el  Cusano nos ha legado en cada una de sus obras  filosóficas  y  con  su  propia  vida,  manifiesta  un  aspecto fundamental de la verdad, que nuestra  época parece haber olvidado: la fecundidad y  riqueza del diálogo y del trabajo en equipo o, en  términos cusanos, la unidad en la diversidad.

Alexia B. Schmitt – Doctoranda en Filosofia, Universidad del Salvador – Argentina, Miembro del Círculo de Estudios Cusanos de Buenos Aires.

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Argumentos | UFC | 2008

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