Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção – GRANJA (MAEL)

GRANJA, Lúcia. Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2018. 111 pp. Resenha de: SALA, Thiago Mio. Machado em meio à civilização do jornal. Machado Assis Linha v.12 n.26 São Paulo Jan./Apr. 2019.

Em Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção, Lúcia Granja retoma alguns de seus trabalhos relativos à produção cronística e ficcional do célebre autor de Quincas Borba e à história literária do século XIX, mas, diferentemente do que se poderia pensar num primeiro momento, não se trata da simples compilação de artigos, capítulos de livros ou trechos de teses. A obra consiste, na verdade, no reexame da produção recente da distinta pesquisadora à luz de novas ideias, reflexões e, sobretudo, de um pressuposto que confere ao livro em questão um sabor original quando se consideram as relações entre letras e comunicação: o papel do suporte editorial na produção do sentido. Em conformidade com tal perspectiva, Lúcia Granja procura examinar o fazer jornalístico e literário de Machado tendo em vista, para além da dimensão de artefato verbal do texto, a forma midiática na qual o escritor se fixou e se manteve durante grande parte de sua trajetória, isto é, o jornal.

Matriz importante para tal proposta analítica são os trabalhos do historiador francês Roger Chartier, com destaque para os estudos por ele conduzidos em torno do conceito de “mediação editorial”. Segundo Chartier (2002, p. 61-62), os escritos não existiriam “fora dos suportes materiais por meio dos quais foram veiculados, pois a construção de seus significados estaria diretamente ligada às formas que permitiriam sua leitura, audição ou visão”. Em outras palavras, para além do aparente truísmo, aquilo que costuma ser tratado como exterior e apartado da história do livro e da literatura, isto é, a análise das condições técnicas e materiais de produção ou de difusão dos objetos impressos e a dos conteúdos que eles transmitem (CHARTIER, 2002, p. 62), ganha importância quando se tem em vista, em perspectiva ampliada, os efeitos de sentido produzidos por um texto. Seguindo os passos de Chartier, mas caminhando por conta própria e com desenvoltura pela produção de Machado e por nosso jornalismo oitocentista, Granja se detém no exame das formas particulares e sucessivas de transmissão dos textos do autor em oposição a uma leitura abstrata, que desconsidera a poética do suporte periódico.

Todavia, para além de uma compreensão reduzida do papel da imprensa diária ou de uma descrição instrumental do espaço ocupado pelo texto machadiano nas diferentes folhas, Lúcia procura entender o suporte jornalístico enquanto peça-chave de um sistema midiático e civilizacional que floresce no século XIX. Para tanto, vale-se, em chave crítica, da produção de uma plêiade de autores franceses dedicados ao estudo do periódico do Oitocentos em conformidade com tal enquadramento: Dominique Kalifa, Marie-Ève Thérenty, Allain Vaillant e Marie-Françoise Melmoux-Montaubin, entre outros. Em linhas gerais, tais pesquisadores procuram examinar o intercâmbio entre formas literárias e jornalísticas, bem como o novo regime de comunicação instituído: se o jornal, por um lado, emprestava à literatura atributos como o ritmo da vida moderna, coletivização da escrita (numa única página de jornal passam a conviver diferentes rubricas com espaços delimitados), remissões internas e externas, fragmentação, periodicidade, ficção da atualidade (assuntos na ordem do dia passam a oferecer temas para a produção artística) etc., por outro, recebia dela esquemas narrativos e retóricos que permitiam seu desenvolvimento.

Mais especificamente, observa-se que o livro se divide em apenas duas partes. Na primeira, Granja trata, sobretudo, das características plásticas e estruturais dos rodapés dos jornais no século XIX, promovendo o devido contraponto entre Brasil e França. Ao abordar a crônica machadiana e, em chave comparatista, a produção folhetinesca do escritor francês Théophile Gautier, a pesquisadora examina não apenas a textualidade das realizações de ambos os autores, mas a materialidade destas, ou seja, o fato de elas terem sido publicadas em suportes editoriais e em enquadramentos históricos específicos. Assim, sem prescindir da análise intrínseca (linguística e literária) dos escritos de Machado e Gautier, também ganha destaque, na pena da pesquisadora, o estudo dos significados a eles agregados no processo de sua transmissão e difusão. Além disso, ela ressalta como os escritores-jornalistas em questão, enquanto artistas dotados de consciência tipográfica e concepção metarreflexiva do texto, integraram a lógica da materialidade do jornal na própria construção de suas obras.

Estabelecidas tais bases, a segunda parte do livro dedica-se a uma análise mais vertical de um corpus reduzido, com destaque para o exame de um conto, uma crônica e aspectos de um romance. Trata-se, mais especificamente, de “Conto alexandrino” (publicado de início em 13 de maio de 1883, na Gazeta de Notícias, e, um ano depois, recolhido em Histórias sem data); crônica de 7 de julho de 1878 (estampada na série “Notas semanais” do jornal O Cruzeiro, na qual ganha atenção o caso bizarro de um homem que teria expelido um feto natimorto); e Memórias póstumas de Brás Cubas. Em chave metonímica, tal conjunto cuidadosamente selecionado permite divisar com mais clareza o modo como “as revoluções ideológicas e reconfigurações sociais operadas pelo jornal em nível mundial teriam resultado em transformações estéticas para um escritor carioca daquele século, afastado dez mil quilômetros da ‘capital do século XIX’, mas completamente inserido naquela civilização do jornal e do impresso” (GRANJA, 2018, p. 15).

De acordo com tal perspectiva, que toma as folhas periódicas não apenas como espelhos do mundo exterior, mas como espécies de substitutos dele, Lúcia procura entender os cruzamentos entre realidade (recriada pelo imaginário jornalístico) e ficção na prosa machadiana. Assim, os movimentos trepidantes da modernidade espacializados nas páginas dos jornais se tornam motivos da própria produção literária de Machado. Nesse processo, ao recuperar a divisão e a disposição da primeira versão de Memórias póstumas de Brás Cubas publicada em periódico, a autora revela a forma por meio da qual o escritor desconstrói os modos de leitura ligados ao romance-folhetim. Prosseguindo na análise da correspondência entre os efeitos produzidos pelo referido romance em jornal e no livro, Granja (2018, p. 99) caracteriza a novidade literária da narrativa concebida por um defunto autor como “uma transposição de uma manobra retórica da crônica jornalística e da própria poética da escrita dos jornais”, elevando o jornal a protagonista da originalidade e do impacto da referida obra que ganhará perenidade no suporte livresco.

Para a construção de tal percurso argumentativo em torno do papel do suporte e do fazer jornalístico-literário de Machado, Granja se vale não só de seu trabalho como professora e pesquisadora, mas também como editora. Em parceria, respectivamente, com Jefferson Cano e com John Gledson, ela esteve à frente da edição anotada, em livro, das séries cronísticas Comentários da semana e Notas semanais, ambos os volumes publicados pela editora da Unicamp em 2008. Tais experiências lhe possibilitaram o contato íntimo com o texto de Machado ambientado em seu suporte primeiro, bem como lhe conferiram a percepção in loco dos gêneros textuais nos quais o escritor investia. Desse modo, pôde articular as relações existentes entre crônicas, contos e romances com a materialidade das páginas onde tais produções foram originalmente estampadas.

A ênfase no particular permite que Granja lance um novo olhar sobre as respostas que a obra literária de Machado de Assis propõe a questões estéticas e contextuais do tempo em que circulou quer em periódico, quer, posteriormente, em livro. Nesse sentido, sem questionar o talento individual do artista, a pesquisadora interpreta a singularidade dele de acordo com as demandas da “civilização do jornal” (KALIFA et al, 2011, p. 7-21). Segundo tal perspectiva, portanto, o autor de Dom Casmurro passa a ser encarado, em sentido mais amplo, como um “escritor-jornalista” (MELMOUX-MONTAUBIN, 2003), isto é, como um intelectual e artista de seu tempo que não apenas se revelava consciente do lugar da imprensa enquanto universo textual responsável pela ampla e contínua difusão de conteúdos, mas que também se valeu das formas forjadas nesse novo e pulsante sistema de escrita para conferir à sua literatura o ritmo da vida moderna.

***

Por fim, em consonância com a orientação seguida por Lúcia Granja a respeito da importância dos diferentes suportes e das dinâmicas particulares de produção e circulação dos escritos estampados nestes, convém destacar que o livro da autora, em seu formato eletrônico e-pub, pode ser baixado gratuitamente no site da editora da Unesp (disponível em <http://editoraunesp.com.br/catalogo/9788595462816,machado-de-assis-antes-do-livro-o-jornal>). Todavia, para os desejosos em ter o livro em mãos e efetuar uma leitura mais detida dele, é ainda possível, no mesmo endereço, encomendar a impressão da obra sob demanda. Se o novo procura se impor, a materialidade, a verticalidade e a contiguidade do impresso tradicional felizmente, neste caso, também estão ao alcance dos leitores.

Referências

CHARTIER, Roger. A mediação editorial. In: ______. Os desafios da escrita. São Paulo: Editora Unesp, 2002. [ Links ]

GRANJA, Lúcia. Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2018. [ Links ]

KALIFA, Dominique; RÉGNIER, Philippe; THÉRENTY, Marie-Ève; VAILLANT, Alain. La civilisation du journal: une histoire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau Monde, 2011. [ Links ]

MELMOUX-MONTAUBIN, Marie-Françoise. L’écrivain-journaliste au XIXe siècle: un mutant des lettres. Saint-Étienne: Éditions des Cahiers Intempestifs, 2003 (Collection Lieux Littéraires 6). [ Links ]

Thiago Mio Salla – É doutor em ciências da comunicação e em letras pela Universidade de São Paulo. Enquanto docente e pesquisador da Escola de Comunicações e Artes da USP e do Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH/USP, dedica-se às áreas de Literatura Brasileira, Teorias e Práticas da Leitura e Editoração. E-mail: [email protected].

A invenção da brasilidade: Identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração – LESSER (VH)

LESSER, Jeffey. A invenção da brasilidade: Identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração. São Paulo: Editora Unesp, 2015. 206 p. JOANILHO, André Luiz. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 59, Mai./ Ago. 2016.

Há obras que devem ser tratadas como tomadas de consciência de uma nacionalidade, mesmo que não tenham essa intenção. Autores que tratam daquilo que poderíamos chamar de “alma” nacional, acabaram indo um pouco além e dizendo mais do que intencionaram. É o caso do livro recém lançado de Jeffrey Lesser, A invenção da brasilidade (São Paulo: UNESP, 2015). Pelo texto, pela pesquisa e pelas descrições históricas, o autor pretendia apresentar o Brasil para um público não brasileiro, mais especificamente, para um público norte-americano. No entanto, acaba dizendo mais sobre nós do que poderíamos esperar.

Mesmo que não se tenha colocado claramente, a obra é uma história comparada entre Brasil e Estados Unidos. Estão ali os mitos de origem. O Norte-americano é claro: a Terra Prometida, o Novo Israel, portanto, ali é o lugar de chegada e de construção do futuro. Já o nosso mito é uma não origem. Somos estrangeiros numa terra estrangeira. Na realidade, o nosso mito é um não mito: terra de passagem; terra de fronteira; confins do mundo. Como entender um lugar, um país cujo mito de origem é desmistificação da origem?

Jeffrey Lesser, conhecedor da nossa “alma”, quer dizer, das nossas pequenas idiossincrasias, busca não ferir suscetibilidades nacionais, com algum tipo de crítica sobre o modo como construímos nosso país, ao contrário, apresenta uma narrativa clara e didática de como nós nos formamos. Bem ao inverso do mito americano: o país se forma de dentro para fora. Nós somos o de fora para um não dentro.

O país não é promessa de nada, a não ser de extração de riquezas (algo não dito, afinal sabemos disso, mas não queremos que fiquem dizendo isso por aí). Portanto, os recém-chegados não tinham (talvez não tenham ainda) nenhum compromisso com a terra de acolhimento, a não ser extrair o máximo possível e o mais rápido.

Tendo isso em vista (é bom lembrar, que não foi dito), Jeffrey Lesser nos apresenta um quadro constante de chegadas de povos que eram admitidos de acordo com circunstâncias e nenhum planejamento ou política específica de imigração. Vagas humanas imensas aportaram nestas terras tendo como único móvel, desejado ou não, encontrar o bem-estar econômico. Em momento algum, mesmo que inicialmente pudesse ser pensado, foram em direção ao seu “verdadeiro” lar, mesmo que imaginário. É claro que se pode objetar que mesmo os Estados Unidos não foram exatamente uma terra de acolhimento (e não foram mesmo), mas cultivaram o mito o suficiente para que se acreditasse nisso, diferença fundamental.

A intenção é anunciada, por Lesser, logo no começo: A imigração é um tema que permite discutir o Brasil como “nação” (em termos de etnicidade e identidade nacional), paralelamente à postura mais tradicional, mas igualmente produtiva, de falar de “os Brasis” (p. 20). Sua diferença face a uma “tradição” historiográfica busca incluir o nosso país numa perspectiva não mais “excepcional”, como é comumente tratada a nossa história, perante a América, mas como equivalente às formações das nacionalidades americanas, incluindo os Estados Unidos, isto é, a América é terra estrangeira (evidentemente que não para as populações autóctones, mas que os governos fizeram questão de também torná-las estrangeiras nas suas próprias terras).

Assim, esta será a principal hipótese de Lesser, grupos de imigrantes se tornaram brasileiros ao incorporar a cultura majoritária, mas permaneciam como grupo distintos (p. 25). No entanto, o autor positivamente nos lembra que estas identidades não eram fixas, ao contrário. Por exemplo, mesmo “não brancos”, isto é, não europeus, como árabes ou japoneses, se tornaram “brancos” no Brasil, pelo menos foi o modo que encontraram para negociar os seus lugares na sociedade brasileira. Assim, permanecer distintos significava, e significa, serem distintos no Brasil, mesmo que isso não tenha nenhuma correspondência real e efetiva com o lugar de origem. Chineses se tornam japoneses, árabes se tornam antepassados longínquos de indígenas, italianos do Tirol se tornam austríacos, descendentes de italianos se enobrecem, encontrando na internet possíveis brasões com nomes de famílias, assim por diante. Há um jogo constante das identidades conforme as circunstâncias.

Este padrão explicativo torna o livro mais interessante, pois nos apresenta um quadro geral, não exaustivo, da nossa formação, algo um pouco esquecido após a década de 1970. Histórias locais e regionais se tornaram muito mais comuns nos últimos anos, sendo abandonada qualquer perspectiva mais geral, como se a História do Brasil estivesse resolvida a partir da explicação econômica, por meio da linhagem estabelecida por Caio Prado Jr. Portanto, todas as outras histórias (políticas, sociais, culturais) só são possíveis graças, ou por causa desta linha mestra e única.

De certa maneira, sem expor isso claramente, é o que faz Jeffrey Lesser ao encontrar móveis gerais e específicos nesse processo. Se temas comuns como o branqueamento, a ideia de que o imigrante melhoraria o nosso, a busca de trabalhadores dóceis para a agricultura e de povoadores para as regiões fronteiriças apresentam a necessidade de compor uma população, a chegada de imigrantes nos mostra que na realidade se constituiu, ou ainda, acentua a diversidade do que seria a nossa “alma”.

Dessa forma, após gerações, muitos brasileiros continuam sendo estrangeiros. Algo que afeta a nossa ideia de nacionalidade. Essa fluidez é uma marca da negociação da identidade nacional, para parafrasear o título do livro anterior de Jeffrey Lesser, Negociando a identidade nacional, UNESP, 2001. Grupos de imigrantes jogam o tempo todo com outros grupos e com aquilo que poderíamos chamar de ideias dominantes.

Mas, a grande questão é a que permanece, por que não se criou uma identidade tipicamente brasileira? A resposta não foi dada diretamente, mas através de toda a obra. Jeffrey Lesser aponta para a nossa especificidade: somos um povo tipicamente multicultural. Não no sentido que podemos ver nas grandes cidades europeias ou americanas, mas num sentido caracteristicamente sul-americano e brasileiro: incorporamos o que é estrangeiro na nossa identidade. Portanto, se na nossa origem está o herói sem nenhum caráter, com o nosso Brasil estrangeiro, acabamos nos tornando uma sociedade de indivíduos “multicaráter”, um povo de mil faces.

André Luiz Joanilho – Universidade Estadual de Londrina, Campus Universitário, Londrina, PR, 86.057-970, Brasil. [email protected].

 

A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins – FONSECA (B-RED)

FONSECA, André Azevedo da. A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins. São Paulo: Editora da Unesp. 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Michel. O avesso de um mito: uma análise da ascensão pública de Mário Palmério. Estudos Históricos, v.27 n.54 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.

Alguns mitos são de carne, osso e ideologia. Essa é uma das muitas premissas que se pode depreender da leitura de A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins, livro lançado em novembro de 2012 pela Editora Unesp. A obra de 306 páginas, distribuída nas versões impressa e digital, é resultado da pesquisa de doutorado do pesquisador e professor André Azevedo da Fonseca.

O autor, jornalista, doutor em História e pós-doutor em Estudos Culturais, apresenta uma obra que reflete essa trajetória acadêmica. O livro imbrica diversas facetas: do relato documental à análise da ascensão mítica de Mário Palmério através de um recorte baseado na História Cultural. Fonseca iniciou a pesquisa que resultou no livro durante a monografia de sua especialização em História, em 2004, e a finalizou em 2010, quando defendeu a tese de doutorado. Durante esse período, analisou diversos documentos relacionados a Palmério, como fotografias, recortes de jornais e até boletins escolares. O material coletado durante a pesquisa foi reunido no Memorial Mário Palmério, fundado pelo autor na Universidade de Uberaba (Uniube).

A narrativa tem início com uma apresentação do cenário: Uberaba, no Triângulo Mineiro. A cidade, cuja economia se baseava na pecuária, viveu tempos de progresso nas primeiras décadas do século XX devido ao terminal ferroviário ali instalado. A expansão da linha férrea para cidades vizinhas descentralizou a distribuição de produtos e a circulação de pessoas. Gradativamente, Uberaba foi perdendo o prestígio e entrou num processo de estagnação econômico-cultural.

Na década de 1940, a elite local decidiu investir na modernização do centro do município, a fim de dar um novo ânimo à população e avivar o brio dos ricos criadores de gado. O pesquisador deixa claro como as relações de poder eram motivadas por adulações. A própria imprensa local era responsável por açular o ego dos pecuaristas e de outras figuras de destaque da sociedade. Segundo o autor, uma cultura em que a elite encenava um verdadeiro “teatro social”. Foi nesse contexto que Mário Palmério construiu seu legado, aproveitando-se dessa conjuntura social para consolidar uma imagem mítica.

Essa teatralização fica clara desde o sumário da obra, dividido em duas partes principais, chamadas pelo autor de atos. Essa escolha não foi aleatória, e já mostra ao leitor que a trajetória de vida de Mário Palmério será apresentada como um espetáculo que deve ser acompanhado num crescente narrativo: da infância até a consolidação profissional e política.

O primeiro ato, intitulado “Mário Palmério na escalada do reconhecimento social”, é dividido em quatro cenas principais. Na primeira delas, “O prestígio familiar”, o autor faz uma apresentação do contexto: Palmério era o filho caçula do engenheiro e advogado Francisco Palmério e de Maria da Glória Palmério, casal notório da sociedade uberabense. Ao longo dessa primeira parte, o autor explicita como o personagem sempre trabalhou na construção de uma imagem pessoal forte, na tentativa de alcançar a importância do pai e dos irmãos.

A cena seguinte, “A socialização de Mário Palmério”, relata o retorno do personagem a Uberaba, depois de uma temporada de estudos em São Paulo. Para o autor, essa volta marcou a “emancipação simbólica” do personagem e deu início à terceira cena: “A ascensão profissional”, que mostra o começo da carreira docente de Palmério, com a criação do Liceu Triângulo Mineiro, passando pela Escola do Comércio do Triângulo Mineiro até o apogeu com a abertura da Faculdade de Odontologia.

O primeiro ato tem como desfecho “A consagração pública”, etapa na qual Palmério se consolida enquanto figura de prestígio da elite e do povo. Mesmo que no íntimo fosse avesso à teatralização social, o personagem participou do jogo de encenação para alcançar seus objetivos pessoais. Nesse ponto, há um avanço na narrativa que culmina no segundo ato, denominado “A consagração do mito”, dividida em três cenas principais.

A segunda fase da história é introduzida com o pensamento de Schwartzenberg, além de Balandier e Girardet, que analisam o poder político a partir do arquétipo mítico do herói como um enviado capaz de conduzir o povo à terra prometida. Esse prólogo delineia um novo rumo na narrativa, que tem início na cena “O tempo da espera”, na qual o autor relata o conturbado momento político do pós-guerra num Brasil marcado pela consolidação do Estado Novo.

A cena seguinte, “Crises”, apresenta uma série de perturbações de diversas ordens, social, econômica, política e identitária, que afetaram Uberaba e o Triângulo Mineiro entre as décadas de 1940 e 1950, crises essas que culminaram numa proposta de separação da região do Triângulo do território de Minas Gerais. Foi esse contexto que serviu de pano de fundo para a cena seguinte: “O anúncio do herói”. Nessa fase, Palmério já era figura de bastante destaque na cidade, sempre à frente de projetos educacionais e assistencialistas. O anúncio de sua candidatura a deputado federal, em 1950, foi quase que uma consequência de sua ascensão apoteótica.

Depois de um pleito bastante agitado, o professor saiu vitorioso. Para o autor, essa sagração só foi possível graças à maneira como Palmério gerenciou a própria imagem. Depois de alguns mandatos e cargos públicos, o último deles como embaixador do Brasil no Paraguai, Palmério desiludiu-se com a política e passou a se dedicar à literatura, período em que escreveu seu segundo romance: Chapadão do Bugre (1965). Em 1970, ele concorreu novamente à prefeitura de Uberaba mas foi derrotado, encerrando sua carreira pública sem grande prestígio.

A proposta apresentada pelo autor, de analisar a biografia de Mário Palmério através de um recorte da História Cultural, mostrou-se bastante válida, pois não se debruçou apenas na narrativa de vida, apresentando o contexto e as relações sociais e de poder como elementos constitutivos de uma teia mais ampla. Esse viés, muitas vezes deixado de lado nas biografias, faz com que o leitor possa compreender os fatos e ir além do que está narrado.

A obra traz ainda o diferencial de apresentar a ascensão de Palmério como consequência de uma construção mítica de sua imagem, dando aplicabilidade às teorias dos autores estudados durante a pesquisa. Dessa forma, o leitor pode compreender a História como um contexto em que fatos e ideologias se fundem na construção daquilo que tomamos como realidade.

O livro se destaca também por apresentar elementos visuais e gráficos, como fotografias, recortes de jornais e tabelas comparativas, que servem não apenas para ilustrar, mas para contextualizar o enredo e os cenários. Esses elementos se somam à narrativa ampliando as esferas de compreensão. Decerto, a proposta apresentada por André Azevedo pode ser replicada na reconstrução de outras biografias e fatos históricos ou até mesmo de contextos sociais.

Michel Oliveira – Mestrando em Comunicação e aluno de Especialização em Fotografia: Práxis e Discurso Fotográfico na Universidade Estadual de Londrina (UEL) ([email protected]).

A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins – FONSECA (EH)

FONSECA, André Azevedo da. A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins. São Paulo: Editora da Unesp. 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Michel. O avesso de um mito: uma análise da ascensão pública de Mário Palmério. Estudos Históricos, v.27 n.54 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.

Alguns mitos são de carne, osso e ideologia. Essa é uma das muitas premissas que se pode depreender da leitura de A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins, livro lançado em novembro de 2012 pela Editora Unesp. A obra de 306 páginas, distribuída nas versões impressa e digital, é resultado da pesquisa de doutorado do pesquisador e professor André Azevedo da Fonseca.

O autor, jornalista, doutor em História e pós-doutor em Estudos Culturais, apresenta uma obra que reflete essa trajetória acadêmica. O livro imbrica diversas facetas: do relato documental à análise da ascensão mítica de Mário Palmério através de um recorte baseado na História Cultural. Fonseca iniciou a pesquisa que resultou no livro durante a monografia de sua especialização em História, em 2004, e a finalizou em 2010, quando defendeu a tese de doutorado. Durante esse período, analisou diversos documentos relacionados a Palmério, como fotografias, recortes de jornais e até boletins escolares. O material coletado durante a pesquisa foi reunido no Memorial Mário Palmério, fundado pelo autor na Universidade de Uberaba (Uniube).

A narrativa tem início com uma apresentação do cenário: Uberaba, no Triângulo Mineiro. A cidade, cuja economia se baseava na pecuária, viveu tempos de progresso nas primeiras décadas do século XX devido ao terminal ferroviário ali instalado. A expansão da linha férrea para cidades vizinhas descentralizou a distribuição de produtos e a circulação de pessoas. Gradativamente, Uberaba foi perdendo o prestígio e entrou num processo de estagnação econômico-cultural.

Na década de 1940, a elite local decidiu investir na modernização do centro do município, a fim de dar um novo ânimo à população e avivar o brio dos ricos criadores de gado. O pesquisador deixa claro como as relações de poder eram motivadas por adulações. A própria imprensa local era responsável por açular o ego dos pecuaristas e de outras figuras de destaque da sociedade. Segundo o autor, uma cultura em que a elite encenava um verdadeiro “teatro social”. Foi nesse contexto que Mário Palmério construiu seu legado, aproveitando-se dessa conjuntura social para consolidar uma imagem mítica.

Essa teatralização fica clara desde o sumário da obra, dividido em duas partes principais, chamadas pelo autor de atos. Essa escolha não foi aleatória, e já mostra ao leitor que a trajetória de vida de Mário Palmério será apresentada como um espetáculo que deve ser acompanhado num crescente narrativo: da infância até a consolidação profissional e política.

O primeiro ato, intitulado “Mário Palmério na escalada do reconhecimento social”, é dividido em quatro cenas principais. Na primeira delas, “O prestígio familiar”, o autor faz uma apresentação do contexto: Palmério era o filho caçula do engenheiro e advogado Francisco Palmério e de Maria da Glória Palmério, casal notório da sociedade uberabense. Ao longo dessa primeira parte, o autor explicita como o personagem sempre trabalhou na construção de uma imagem pessoal forte, na tentativa de alcançar a importância do pai e dos irmãos.

A cena seguinte, “A socialização de Mário Palmério”, relata o retorno do personagem a Uberaba, depois de uma temporada de estudos em São Paulo. Para o autor, essa volta marcou a “emancipação simbólica” do personagem e deu início à terceira cena: “A ascensão profissional”, que mostra o começo da carreira docente de Palmério, com a criação do Liceu Triângulo Mineiro, passando pela Escola do Comércio do Triângulo Mineiro até o apogeu com a abertura da Faculdade de Odontologia.

O primeiro ato tem como desfecho “A consagração pública”, etapa na qual Palmério se consolida enquanto figura de prestígio da elite e do povo. Mesmo que no íntimo fosse avesso à teatralização social, o personagem participou do jogo de encenação para alcançar seus objetivos pessoais. Nesse ponto, há um avanço na narrativa que culmina no segundo ato, denominado “A consagração do mito”, dividida em três cenas principais.

A segunda fase da história é introduzida com o pensamento de Schwartzenberg, além de Balandier e Girardet, que analisam o poder político a partir do arquétipo mítico do herói como um enviado capaz de conduzir o povo à terra prometida. Esse prólogo delineia um novo rumo na narrativa, que tem início na cena “O tempo da espera”, na qual o autor relata o conturbado momento político do pós-guerra num Brasil marcado pela consolidação do Estado Novo.

A cena seguinte, “Crises”, apresenta uma série de perturbações de diversas ordens, social, econômica, política e identitária, que afetaram Uberaba e o Triângulo Mineiro entre as décadas de 1940 e 1950, crises essas que culminaram numa proposta de separação da região do Triângulo do território de Minas Gerais. Foi esse contexto que serviu de pano de fundo para a cena seguinte: “O anúncio do herói”. Nessa fase, Palmério já era figura de bastante destaque na cidade, sempre à frente de projetos educacionais e assistencialistas. O anúncio de sua candidatura a deputado federal, em 1950, foi quase que uma consequência de sua ascensão apoteótica.

Depois de um pleito bastante agitado, o professor saiu vitorioso. Para o autor, essa sagração só foi possível graças à maneira como Palmério gerenciou a própria imagem. Depois de alguns mandatos e cargos públicos, o último deles como embaixador do Brasil no Paraguai, Palmério desiludiu-se com a política e passou a se dedicar à literatura, período em que escreveu seu segundo romance: Chapadão do Bugre (1965). Em 1970, ele concorreu novamente à prefeitura de Uberaba mas foi derrotado, encerrando sua carreira pública sem grande prestígio.

A proposta apresentada pelo autor, de analisar a biografia de Mário Palmério através de um recorte da História Cultural, mostrou-se bastante válida, pois não se debruçou apenas na narrativa de vida, apresentando o contexto e as relações sociais e de poder como elementos constitutivos de uma teia mais ampla. Esse viés, muitas vezes deixado de lado nas biografias, faz com que o leitor possa compreender os fatos e ir além do que está narrado.

A obra traz ainda o diferencial de apresentar a ascensão de Palmério como consequência de uma construção mítica de sua imagem, dando aplicabilidade às teorias dos autores estudados durante a pesquisa. Dessa forma, o leitor pode compreender a História como um contexto em que fatos e ideologias se fundem na construção daquilo que tomamos como realidade.

O livro se destaca também por apresentar elementos visuais e gráficos, como fotografias, recortes de jornais e tabelas comparativas, que servem não apenas para ilustrar, mas para contextualizar o enredo e os cenários. Esses elementos se somam à narrativa ampliando as esferas de compreensão. Decerto, a proposta apresentada por André Azevedo pode ser replicada na reconstrução de outras biografias e fatos históricos ou até mesmo de contextos sociais.

Michel Oliveira – Mestrando em Comunicação e aluno de Especialização em Fotografia: Práxis e Discurso Fotográfico na Universidade Estadual de Londrina (UEL) ([email protected]).

A Era Vargas – BASTOS; FONSECA (EH)

BASTOS, Pedro; FONSECA, Cezar Dutra (orgs.). A Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: UNESP, 2012. 476p. Resenha de: CARVALHO, Marina Helena Meira. A construção de uma era: Vargas e a formulação do desenvolvimentismo. Estudos Históricos, v.27 n.53 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

Pedro Zahluth BastosCezar Dutra Fonseca organizaram uma coletânea para analisar o desenvolvimentismo, que se teria iniciado na Era Vargas. Na apresentação eles se posicionam contra o liberalismo econômico e acreditam ser o conhecimento histórico importante ferramenta na busca de modelos de maior desenvolvimento econômico e justiça social. O livro elogia a prática intervencionista do Estado varguista para superar as crises econômicas e transformar o perfil do Brasil, de uma economia agrário-exportadora, em uma economia industrializada. A inovação está na interpretação de que o governo Vargas adotou, ao mesmo tempo, medidas ortodoxas e heterodoxas.

Além de a apresentação justificar a relevância do livro para o momento em que foi publicado, 2012, outros artigos também o fazem. Luiz Carlos Bresser-Pereira cita a pesquisa realizada pela Folha de São Paulo (2007) que elegeu Vargas o maior brasileiro de todos os tempos. Francisco Luiz Corsi afirma que o modelo econômico varguista, que vigorou até hoje, se teria esgotado, mostrando incertezas quanto aos rumos da economia. Diante da crise mundial de 2009 e das dúvidas sobre suas consequências para o Brasil, o livro ganha novo significado. Analisar as estratégias de Vargas diante do crash de 1929 torna-se relevante, 70 anos depois, pois a possibilidade de crise assombra novamente a economia brasileira.

A coletânea faz prevalecerem as análises dos organizadores, uma vez que os dois são autores da metade dos artigos que ela abriga. Apesar desse discurso hegemônico, ela abre espaço para abordagens diversas: econômicas, políticas, sociais, históricas, simbólicas. A análise do desenvolvimentismo une as múltiplas vozes. As interpretações contêm alguns pontos de divergência, como o uso ou não do termo “populismo”, o que as enriquece com um debate interno.

Apenas quatro textos da coletânea são inéditos. Os demais constituem versões modificadas de artigos publicados. A organização de textos antes dispersos muda-lhes o sentido, pois eles ganham uma coerência e uma unidade antes não existentes, evidenciadas, por exemplo, nas recorrentes citações de artigos anteriores do próprio livro.

Os dois capítulos iniciais, de Fonseca, dissertam sobre a genealogia do desenvolvimentismo e sua primeira experiência: o governo de Vargas no Rio Grande do Sul, em 1928. Fonseca conclui que quatro elementos antes experimentados separadamente no Brasil, o nacionalismo, a industrialização, o papelismo e o positivismo, ao se fundirem, mas se superarem individualmente, geraram o desenvolvimentismo.

Ângela de Castro Gomes e Bresser-Pereira, logo a seguir, lançam um olhar sobre a figura de Vargas e o autoritarismo pós-30. Se Gomes analisa como o personalismo foi uma modernização da cultura política brasileira paternalista, Bresser-Pereira identifica Vargas como estadista, homem que tinha a “visão antecipada do momento histórico que seu país ou sua nação está vivendo” (p. 94). Gomes mostra como o discurso de pensadores autoritários (Oliveira Vianna, Francisco Campos e Azevedo Amaral) foi incorporado para criar um Estado corporativo, forte e centralizado, em que a democracia passou a ser social. Para Bresser-Pereira, entretanto, a democracia só seria possível no país após um regime autoritário que realizasse a revolução nacional brasileira, ou seja, transformasse o povo em nação e completasse a transição econômica para o capitalismo. Apesar das divergências entre os dois autores, há uma confluência quanto à importância do mito do líder diante de um Estado autoritário. A narrativa de Bresser-Pereira deve, contudo, ser tomada com cuidado, uma vez que realizações políticas aparecem como justificativas para a censura e as violações de direitos (p. 115).

Após avaliar as mudanças políticas, principalmente na concepção de sociedade, a coletânea se concentra nas mudanças econômicas. Perpassa os capítulos de Wilson Cano, Fonseca, Bastos e Corsi a ideia de que o projeto econômico estava em construção. Os autores negam a tese de Celso Furtado da inconsciência do governo diante da reorientação da economia, segundo a qual a industrialização do Brasil seria resultado de choques externos e de políticas de proteção do café, heterodoxas. Negam também as análises de Peláez, para quem Vargas teria optado pelo caminho ortodoxo para superar a crise.

Ressalta-se, na coletânea, que a agricultura não foi abandonada em detrimento da indústria. A proteção do café foi perdendo espaço gradativamente para a policultura, voltada para o mercado interno (p. 204). A industrialização como prioridade governamental visou à superação da condição de agrário-exportador, à substituição de importações e à manutenção da soberania política e econômica. A falta de recursos internos para seu financiamento foi um empecilho. Assim, o governo adotou uma política conciliatória, munindo-se de heterodoxia econômica no plano interno, através do incentivo agrário, e de ortodoxia no plano externo, pois necessitava do capital estrangeiro para financiar as indústrias. A Era Vargas não poderia, portanto, ser considerada xenófoba ou entreguista.

Os últimos capítulos analisam as crises do projeto Vargas e o apoio/oposição de determinados segmentos. Jorge Ferreira problematiza os conceitos de trabalhismopopulismo e nacional-estatismo e as intencionalidades do ato da nomeação. Lígia Osório, por sua vez, mostra a oposição surgida no pós-guerra no âmago do Exército, a qual teria gerado o golpe de 1945. Bastos se concentrará no segundo governo Vargas, momento em que as conjunturas políticas eram diversas, o que não permitia o uso dos mesmos instrumentos de barganha empregados no primeiro governo. Esse núcleo como um todo desenha a perda de apoio interno e a falência da estratégia de financiamento externo do programa de desenvolvimento, entravada pelo governo Eisenhower, culminando no suicídio de Vargas.

O legado varguista, entretanto, permaneceria. Seja nas instituições criadas ou modificadas por ele, na CLT, na Justiça Trabalhista, seja na ideia de que o liberalismo não resolve a desigualdade social, mas a aprofunda em épocas de crise. Seja também graças ao continuísmo, ainda que reformulado, do desenvolvimentismo nos governos JK, Jânio e Jango, e até mesmo durante a ditadura militar. A repressão às formas autônomas de organização de trabalhadores, o autoritarismo político e a organização econômica estariam superadas atualmente.

Apesar do uso do termo revolução por alguns dos autores, a relação ruptura/continuidade torna-se um fio condutor do livro, evidenciando as constantes escolhas do governo Vargas, de um lado, e as rupturas e as continuidades dos governos seguintes em relação ao seu projeto, de outro.

Essa abordagem econômica do Estado Novo, que interpreta a concomitância das práticas ortodoxas e heterodoxas, e vê a industrialização como decorrência de escolhas internas incentivadas pela conjuntura externa, entra em embate com estudos clássicos, como os de Furtado e Peláez, que influenciaram toda uma geração.

Nos últimos 30 anos muitos são os autores que se têm dedicado à Era Vargas, usando abordagens culturais e políticas. Este livro realiza importante discussão na perspectiva da História Econômica e faz, ainda, ponte com outras áreas, como Culturas Políticas, História Militar, das Instituições e Cultural.

A coletânea se concentra num estudo de caso brasileiro entre as décadas de 1930 e 1950, mas suas análises ultrapassam os marcos espaciais e cronológicos. Os autores estabelecem conexões com o contexto mundial e especificamente da América Latina e também recuam e avançam no tempo para mostrar as rupturas e continuidades de uma era, revelando-se importante referência não só para os que estudam o varguismo. Deve-se, entretanto, ter cautela com a abordagem militante de alguns capítulos, os quais mobilizam fatos históricos para defender práticas antiliberais e autoritárias e deixam a desejar quanto à historicização do tema. A retomada dessa valoração ganha sentido em um contexto de crise mundial, em que vários governos repensam suas práticas político-econômicas.

Marina Helena Meira Carvalho – Mestranda em História e Culturas Políticas na UFMG ([email protected]).

Guerras e Escritas: a correspondência de Simón Bolívar (1799-1830) – FREDRIGO (H-Unesp)

FREDRIGO, Fabiana de Souza. Guerras e Escritasa correspondência de Simón Bolívar (1799-1830). São Paulo: Ed. UNESP, 2010, 290 p. Resenha de: DULCI, Tereza Maria Spyer. História [Unesp] v.31 no.1 Franca Jan./June 2012.

Simón Bolívar tem lugar cativo na memória política e social da América Latina, inclusive como mito inspirador de diferentes bandeiras político-ideológicas. Por sua vez, as versões históricas em torno das independências hispano-americanas foram construídas a partir dos próprios escritos do “Libertador”, que criou uma identidade de “herói sem fronteiras”.

Em seu livro Guerras e Escritas: a correspondência de Simón Bolívar (1799-1830), publicado pela Editora Unesp, a historiadora Fabiana de Souza Fredrigo, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Goiás, investiga o culto a esse mito. Seu trabalho, que mescla história, memória, literatura e biografia, deu-se a partir da análise das cartas de Bolívar (2.815), buscando identificar os vínculos construídos entre a memória individual, a memória coletiva e a historiografia em torno das independências e de Simón Bolívar.

Sua análise é bastante original, já que utiliza as missivas para buscar a subjetividade de Bolívar e dos diferentes atores históricos que aparecem nas cartas. A historiadora procura apresentar o mundo do general a partir do contexto depreendido das correspondências, sem seguir a cronologia tradicional, pois seu objetivo central é investigar os temas mais relevantes do epistolário, debruçando-se sobre o que se tornou importante para Bolívar no contexto em que vivia.

O que lhe interessa não é compreender por que Bolívar foi escolhido ícone das independências latino-americanas, mas, sim, como ele produziu esta escolha ao criar seu próprio mito. Para a autora, “Simón Bolívar torna-se o Libertador, primeiro, por suas ações e suas palavras, tão valiosas como a espada; segundo, pelo efeito inebriante que o ideal de liberdade produz em meio à memória coletiva” (p. 64).

O livro é composto por três capítulos, ao longo dos quais a historiadora desenvolve a tese de que, ao escrever cartas, o general procurava construir um projeto de memória de si e dos outros (do indivíduo e do seu grupo/do remetente e do destinatário). Bolívar acreditava que suas memórias atingiriam e mobilizariam as gerações futuras, “tinha projetos urgentes em um presente concreto, mas sempre apontava para o futuro, guardião da sua imagem” (p. 47-48).

Para o missivista e seus contemporâneos, a consagração da memória era percebida como sinônimo de posteridade. A autora, ao fazer uma releitura do epistolário, afirma que o culto ao general teve o próprio Bolívar como seu principal arquiteto, já que seu projeto de memória foi construído a partir de uma cuidadosa escolha dos temas, de como escrever sobre eles e da constância das suas cartas. Segundo Fredrigo, em suas correspondências “Bolívar atuou como historiador, quando selecionou, registrou e arquivou os ‘fatos'” (p. 271).

No primeiro capítulo, “As cartas, a história e a memória”, a historiadora desenvolve suas reflexões a partir do cotejo das biografias de Bolívar com as missivas, buscando reconstruir as dimensões históricas do personagem. Ao identificar duas principais fases na vida do general – a das guerras de independência contra a Espanha, permeada de otimismo, e a das guerras civis entre as lideranças que tinham diferentes projetos para a América (o unitarismo de Bolívar versus o federalismo de Santander), carregada de ressentimento e pessimismo – a autora nos propicia um interessante panorama do autoexame feito pelo general em suas cartas, escritas com o objetivo de convencer o interlocutor e edificar o personagem.

Também nesse capítulo, a historiadora se preocupa em discorrer sobre as correspondências (que detêm status de fonte privilegiada) e discutir as relações entre história, memória e epistolário. Ao abordar as particularidades da fonte e analisar como estas foram apropriadas pela historiografia, Fredrigo analisa, com uma grande riqueza de detalhes, não apenas o contexto e a criação do mito, mas também seu estilo de escrita, as especificidades do discurso e a construção narrativa.

A autora traça igualmente um interessante panorama das apropriações do mito bolivariano na Venezuela, onde foi e continua sendo usado para representar a coesão nacional, seja pela elite do século XIX, seja durante a ditadura de Juan Vicente Gomes (1908-1935), ou a partir da revolução chavista e da República Bolivariana. Fredrigo leva o leitor a perceber que a historiografia bolivariana é repleta de anacronismos e que as palavras de Bolívar foram interpretadas por grande parte da historiografia como verdade histórica absoluta, sem crítica às fontes. Além disso, as biografias do general usam os mesmos marcos cronológicos e são geralmente estudos apologéticos. Para a historiadora, tanto as biografias quanto a historiografia, construídas desde sua morte, estabeleceram uma correlação entre a vida de Bolívar e o destino da própria América, como se Bolívar e América Latina formassem “uma só alma” (p. 68).

O segundo capítulo, “Guerra, honra e glória: atos e valores do mundo de Simón Bolívar”, trata da constituição de uma memória particular dentro da memória coletiva, pois as cartas interpretavam o passado e tinham um projeto de futuro. Para a autora, Bolívar, consciente de que produzia memória, buscava atingir seus contemporâneos e as gerações futuras. Por sua análise, vemos que o general e seus pares, a elite criolla, formavam uma “comunidade afetiva” e tinham valores comuns, baseados na “guerra, honra e glória”, valores que eram expressos e cultivados nas cartas, enquanto o povo era excluído dessa comunidade, mesmo que isso contrariasse a simbologia republicana.

Ao tratar dos diferentes atores históricos que aparecem nas missivas, a historiadora apresenta uma valiosa contribuição ao campo das identidades nacionais, demonstrando que estas tiveram de ser construídas no pós-independência para criar uma mesma comunidade de afiliação, “unindo os descendentes dos conquistadores aos descendentes dos conquistados” (p. 122), a partir de uma identidade focada em um projeto estatal republicano, federalista e oligárquico.

Para Fredrigo, Bolívar acreditava que era necessário construir uma narrativa que reforçasse o vínculo entre os criollos e os cidadãos comuns, baseada na humanidade das tropas e nas dificuldades dos campos de batalha. “A guerra, a honra, e a glória”, valores que teriam criado a coesão intraelite, não tiveram o mesmo efeito no povo, por isso Bolívar teria construído lugares de memória simultâneos, para os generais criollos e para os soldados, ao estabelecer uma imagem de si mesmo que reunia, ao mesmo tempo, as figuras de líder e de soldado.

Já o terceiro capítulo, “Construindo a memória da indispensabilidade: o discurso em torno da renúncia e do ressentimento”, se detém na análise da principal estratégia utilizada por Bolívar nas missivas para edificar seu mito, qual seja, a criação de uma “memória da indispensabilidade”. Essa memória foi articulada a partir de um discurso polifônico, fundamentado na evocação da “renúncia” e do “ressentimento”, elaborado pelo general para refutar as acusações de autoritarismo e apego ao poder e para fortalecer a ideia de homem público dedicado incondicionalmente ao povo e à pátria. Para a autora: “É a partir da fusão entre a necessidade de legitimidade, determinada pelo jogo político do presente, e o desejo de memória, delimitado pela perspectiva do futuro, que o missivista constrói e solidifica a memória da indispensabilidade” (p. 190).

Esse capítulo é, certamente, o ponto alto do livro. Nele, ao analisar o epistolário em diálogo com a literatura e a biografia, a historiadora trata do romance de Gabriel García Márquez (GARCÍA MARQUEZ, 1989) e da biografia de Salvador Madriaga (MADRIAGA, 1953). Em ambos os casos, Fredrigo estuda o culto bolivariano e a apropriação que os dois autores fizeram da “memória da indispensabilidade” forjada por Bolívar. A ficção literária e a biografia, embora de formas distintas, acabaram por reiterar a imagem que o general criou de si mesmo para a posteridade.

Assim, a leitura deste livro constitui, sem dúvida, uma rara oportunidade de acompanhar a historiografia bolivariana e a construção deste mito, o cotidiano das tropas e das guerras de independência na América do Sul, bem como os embates entre a elite criolla e o povo.

Referências 

GARCÍA MARQUEZ, Gabriel. O general em seu labirinto. Rio de Janeiro: Record, 1989.         [ Links ]

MADRIAGA, Salvador. Bolívar: fracaso y esperanza. México: Editorial Hermes, 1953. Tomos I e II.         [ Links ]

Tereza Maria Spyer Dulci – Doutoranda pelo Departamento de História da FFLCH/USP – Av. Prof. Lineu Preste, 338 – Bairro: Cidade Universitária. São Paulo – SP. CEP: 05508-000. E-mail: [email protected].

Linguagens e comunidades nos primórdios da Idade Moderna – BURKE (Tempo)

BURKE, Peter. Linguagens e comunidades nos primórdios da Idade Moderna. São Paulo: Unesp, 2010. Resenha de: WEBER, Regina. Discussões preciosas, interlocutores ausentes. Tempo v.18 no.32 Niterói  2012.

Neste livro, que resulta de um conjunto de ensaios originados de palestras, publicado em inglês em 2004, mais uma vez Peter Burke desenvolve um tema com sua peculiar erudição, expondo inúmeras referências que embasam seus argumentos.1 O autor nos faz compreender, por exemplo, como o latim, a língua universal na época (cap. 2), mesmo sofrendo a competição dos vernáculos em cada país, teve uma sobrevida como língua dos círculos diplomáticos porque neutralizava a competição pela hegemonia cultural, principalmente por parte do italiano, do espanhol e do francês, até ser superado por este último como língua diplomática. Lançando mão de pesquisas linguísticas, ele situa o aumento do repertório dos vernáculos e ficamos sabendo das contribuições de Thomas More e Shakespeare para o inglês (cap. 3), e também que essa língua, até o século XVIII, possuía pouca expressão no mundo europeu continental (cap. 5), menor, em muitas regiões, que uma língua hoje desconhecida, o romanche. Se a contextualização da gênese de determinadas representações modernas não é a principal contribuição de Linguagens e comunidades, não deixa de ser importante conhecermos a origem da expressão “macarrônico”, designando modos de falar considerados grosseiros (p. 136 e 149).

A temática da linguagem não é nova na produção do autor, estando presente em várias coletâneas, a maior parte delas em parceria com Roy Porter e todas editadas no Brasil pela Editora da Unesp, não necessariamente na mesma ordem em que foram publicadas em inglês: História social da linguagemLínguas e jargões: contribuições para uma história social da linguagem, e Linguagem, indivíduo e sociedade, acessível em português desde 1993. Recentemente, foi lançado e traduzido A tradução cultural, escrito em parceria com Ronnie Po-chia Hsia.

Burke tornou-se a principal referência em História Cultural, pelo menos para o público brasileiro, tendo mais obras publicadas em português que Roger Chartier, um dos autores que inspiraram as primeiras pesquisas em História Cultural em vários programas de pós-graduação em História do País.1 Burke tem demonstrado versatilidade, retomando temas que ele próprio já trabalhara e inserindo-os em discussões que se tornaram relevantes para os historiadores nas últimas décadas, tais como identidade coletiva, relações entre língua e política, unificação e pluralismo linguísticos. Antes dos acontecimentos do final do século XX, provavelmente não teriam muito significado para o leitor não especializado, particularmente aqui na América, termos frequentes nesse texto do autor, como “esloveno”, “eslavo”, “lituano”, “servo-croata”, Bósnia e Herzegovina. A referência à globalização era inevitável, permitindo a Burke afirmar que “a mistura de línguas em nível global começou séculos atrás” (p. 128).

Um importante debate contemporâneo, para o qual o autor encaminha a discussão, é o do nacionalismo, constituindo o último capítulo um epílogo sobre o tema “línguas e nações”, avançando no tema da “invenção” da nação e da “comunidade imaginada”, que, se não é tão novo (o livro de Benedict Anderson é de 1983), tem sofrido importantes desdobramentos. Participar de tais discussões parece ser o objetivo do autor, que, com seus “estudos sobre a história social da língua, com sua ênfase em múltiplas comunidades e identidades”, pretende questionar um “tipo de história nacional, ou até nacionalista” (p. 189). Não há dúvidas de que o livro traz importantes elementos para tais discussões, mas o que esta resenha tenta explorar é que Burke adentra o debate deixando de lado aprofundamentos críticos já em curso no campo dos estudos sobre o nacionalismo e em um campo que não comparece ao livro, o campo dos estudos étnicos, que tem estreita relação com o estudo de comunidades locais e regionais, sempre potenciais criadoras e veiculadores de falares específicos, o que é demonstrado com tanta riqueza em Linguagens e comunidades. Mas, considerandose as imensas contribuições de Peter Burke para o estudo do período denominado História Moderna, entende-se que, nessa obra, faltam interlocuções com as análises do processo de transição para a sociedade “moderna”.

Para a temática da formação dos Estados modernos, Burke agrega dados preciosos sobre o recuo de línguas que não foram padronizadas para uso administrativo e jurídico, destacando opapel das elites leigas e religiosas, de acadêmicos e de tipógrafos nesse processo (caps. 3 e 4). Ainda que aponte as relações entre “língua e política” (p. 91), só reconhece existir um processo de “nacionalização” da língua a partir do fim século XVIII (p. 183), no qual a escola, os exércitos e as ferrovias teriam seu papel. Nesse tema, seria oportuno um diálogo com as interpretações de Gellner, que demonstra que, na passagem da sociedade agrária para a sociedade industrial, tornou-se imprescindível um “meio de comunicação standartizado”,2 por meio de um sistema educacional nacional. Da mesma forma, interpretações como a de que “uma língua-padrão se adequava à lógica econômica da indústria da imprensa” (p. 108) poderiam vir acompanhadas de uma referência ao “capitalismo tipográfico” de Anderson.3 Tanto Gellner quanto Anderson interpretam o nacionalismo como um fenômeno da sociedade contemporânea, cuja emergência, por outro lado, deve ser buscada em um amplo período de tempo. Se os defensores da “purificação das línguas” contra a penetração dos termos estrangeiros (cap. 6) eram patrícios, professores e tipógrafos (p. 175), enquanto a elite era francófila, a xenofobia linguística dos séculos XVII e XVIII não poderia ser associada ao aparecimento de líderes de camadas médias com vocação nacionalista? A afirmação de Burke, de que não se tratava de um “nacionalismo linguístico no sentido moderno”, não exclui, em princípio, a hipótese de estarmos diante de manifestações precursoras de um nacionalismo.4

Na verdade, a análise dos fenômenos culturais desse período de transição poderia se beneficiar do diálogo com algumas interpretações do longo processo de transição para a moderna sociedade capitalista, especialmente do “absolutismo”. A leitura de Burke, de que estaria ocorrendo uma “defesa do território linguístico” (p. 172), não tem paralelo com a ideia de “Estado territoria“,5 processos políticos concomitantes ao processo cultural descrito em Linguagens e comunidades? Aqui também a resposta de Burke é negativa: ainda que considere “tentador” estabelecer um paralelo entre a centralização do governo e o controle da língua, prioriza fatores como “rivalidade entre França e Espanha no domínio linguístico” (p. 173) e motivos religiosos, chegando mesmo a cogitar uma interpretação psicanalítica para justificar a obsessão dos puristas com a pureza: eles se enquadrariam na categoria freudiana “anal-retentivos” (p. 174). Para criticar o emprego não apenas do termo “nacionalismo”, mas também de “protonacionalismo”, para a preocupação governamental com a língua, Burke (p. 180) opta pela expressão “estatismo”, traduzindo a preocupação dos governantes com um Estado forte (integração política), e não como uma nação unificada (integração cultural). Apoiados em vários autores, podemos questionar essa argumentação de Burke de que a integração política não implicava uma integração cultural.

Todo o livro Los inicios de la Europa moderna, de Van Dülmen segue uma argumentação da indissociabilidade dos empreendimentos políticos, econômicos e culturais na gestação do mundo moderno. A nova ordem estatal dos séculos XVI e XVII buscou regulamentar âmbitos diversos da sociedade, da economia ao mundo privado.6 Operou-se uma “revolução educativa”, mesmo que muitas escolas, particularmente da elite, continuassem a ensinar em latim. Para o autor, o crescente abandono do latim em favor do vernáculo, por parte dos literatos, revelava uma maior vinculação à “sociedade nacional”, à qual pertenciam e de onde extraíam os temas tratados.7 Ao se propor explicar a expulsão de judeus e mouros pela Espanha, entre os séculos XV e XVII, Braudel mostrou a religião ocupando uma função que seria da política no que tange à “unificação”: “A Espanha está no caminho da unidade política que só pode conceber, no século XVI, com uma unidade religiosa.”8 Compondo o conjunto de ações que Apostolidès denomina “projeto Colbert” para implantar uma nova imagem do soberano (Luís XIV), a Academia Francesa foi encarregada de oficializar a língua comum dos membros da nação,9 o que tem consonância com a interpretação de Mucheblend, de que o absolutismo não era apenas uma teoria do poder real prolongado por uma máquina administrativa, mas pretendia a criação de uma nova dinâmica cultural.10 Para Gellner, após um período de transição dominado pelo conflito, ocorre a unificação entre o Estado e a cultura, que caracteriza o nacionalismo.11

É oportuno lembrar que “estatismo” é o termo que Wallerstein emprega para descrever a ideologia do período de formação da economiamundo europeia baseada no modo de produção capitalista.12 As monarquias absolutistas, para se fortalecerem, além de burocratização, monopolização da força e criação de mecanismos de legitimação, promoveram a homogeneização cultural da população, o que explica a expulsão de judeus e estrangeiros de países onde florescia uma burguesia indígena.13 Operando-se com um enfoque de transição e incorporandose contribuições de vários campos históricos, argumentos que parecem contrapostos poderão ser vistos como complementares. Seria necessário, por outro lado, ter claro qual é esse “tipo” de “história nacional, ou até nacionalista”, que Burke entende estar contrapondo.

Quanto ao “problema da comunidade”, Burke o situa com clareza no Prólogo: o termo “parece implicar uma homogeneidade, uma fronteira e um consenso que simplesmente não são encontrados quando se realizam pesquisas básicas” (p. 21). Os estudiosos do tema da etnicidade, que apontam a complexidade das delimitações dos grupos étnicos, em contraposição à noção reificada de etnia ou raça para o senso comum, não teriam dificuldades em concordar com isso. Um dos grandes balizadores da moderna teoria da etnicidade, Fredrick Barth, destacou ocaráter móvel da fronteira étnica em texto de 1969.14 As distinções linguísticas às quais Burke se refere não dizem respeito unicamente a diferentes grupos étnicos, pois os “socioletos” (cap. 1) poderiam variar entre o campo e a cidade, entre homens e mulheres, conforme a hierarquia social, ou de acordo com grupos específicos dentro de uma mesma camada social (monges, acadêmicos ou nobres). Entretanto, os desenvolvimentos teóricos dos estudos étnicos auxiliariam a explicar muitos desses fenômenos.

Ao analisar como cada nação, região ou cidade elogiava sua própria língua e depreciava a dos vizinhos ou estrangeiros (cap. 3), Burke utiliza a expressão “narcisismo coletivo”, quando o fenômeno poderia ser interpretado como uma forma de “etnocentrismo”. Os recortes por bairros das “cidades poliglotas” (cap. 5) podiam ter uma configuração religiosa (huguenotes), mas também étnica (“Veneza com seus bairros gregos, judeus e eslavos”, p. 134).15 O emprego de uma teoria desenvolvida no estudo de fenômenos contemporâneos para interpretar manifestações de outras épocas, se, por um lado, acarreta o risco do anacronismo, por outro, na mão de um hábil historiador, pode transformar-se em um poderoso instrumento heurístico, como ocorre em História social da mídia, de Burke e Briggs.16 Ao chamar a atenção para a persistência das variedades linguísticas (p. 185), contrapondo-se a uma “história triunfalista”, Burke descreve inúmeros casos de resistências de linguagens regionais e locais, os quais permitem associações com estudos contemporâneos que mostram que identidades étnicas ora entram em conflito, ora convivem com as identidades nacionais, possibilitando aos indivíduos aquilo que os teóricos denominam “manipulação identitária”.17

O que se pode concluir é que Peter Burke realizou um esmerado trabalho de abordagem de um tema extremamente importante para várias áreas das ciências humanas, mas abriu pouco espaço a estudos que agregariam agudeza na interpretação do assunto. Contudo, é preciso ter claro que destacar essas ausências só faz sentido em um esforço de análise crítica, que, de resto, salienta alguns elementos de um conjunto amplo de sistematizações.

Ou seja, o que o leitor recebe do autor é bem mais vasto em relação àquilo que possa ser interpretado como uma falta. Por outro lado, esta resenha talvez esteja demandando mais diálogos com outros campos interdisciplinares (História Política, História Econômica, Antropologia) de um historiador que, justamente por seu trânsito por diversificados campos das ciências humanas, tem contribuído para renovar as frentes da pesquisa histórica.

1 Ronaldo Vaifas (História das mentalidades e história cultural. In: Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 150),         [ Links ] ao alinhar três correntes que tiveram influência na configuração da nova História Cultural, as vincula aos historiadores Carlo Ginzburg, Roger Chartier e Edward Thompson.
2 GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 1997. p. 58.         [ Links ] 3 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1983]. p. 46.         [ Links ] Burke faz uma breve menção à expressão no Epílogo (p. 183).
4 Analisando o cosmopolitismo na Prússia do século XVIII, René Pomeu mostra que, ao lado de uma corte francófona, foi se desenvolvendo em Berlim uma burguesia nacionalista, e, em várias cidades, foram fundadas sociedades de pensamento por uma classe média composta por pastores, médicos, livreiros, tudo contribuindo para o florescimento de um germanismo (POMEAU, René. La Europa de las luces. Cosmopolitismo y unidade europea en el siglo XVIII. México: Fondo de Cultura Económica, 1988 [1966]         [ Links ]).
5 DÜLMEN, Richard Van. Los inicios de la Europa moderna 1550-1648. 4. ed. Madri: Siglo XXI, 1990 [1982]         [ Links ].
6 Id. Ibid., p. 335.
7 Id. Ibid., p. 274 e 293.
8 BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico. Lisboa: Martins Fontes, 1984 [1966]. p. 187.         [ Links ] 9 APOSTOLIDÈS, Jean-Marie. O rei-máquina: espetáculo e política no tempo de Luís XIV. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: EDUnB, 1993 [1981]. p. 30.         [ Links ] 10 MUCHEMBLED, Robert. Société, cultures et mentalités dans la France moderne. XVe – XVIIIsiècle. 2. ed. Paris: Armand Colin, 1994 [1990]. p. 121.         [ Links ] 11 GELLNER, Ernest. Op. cit., p. 66.
12 WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mun dial moderno. Porto: Afrontamento, [1974, ingl.]. v. 1.         [ Links ] 13 Id. Ibid., p. 148.
14 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.         [ Links ] 15 Em um dos poucos momentos em que Burke se refere ao conceito, referindo-se à língua “etnicamente” pura (p. 158), o assunto não é desenvolvido.
16 BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.         [ Links ] 17 POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo: Editora da Unesp, 1998. p. 168.         [ Links ]

Regina Weber – Professora-doutora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Napoleão- LENTZ (VH)

LENTZ, Thierry. Napoleão. São Paulo: Editora Unesp, 2008. 179 p. Tradução C. Egrejas. Resenha de: MARTINEZ, Paulo Henrique. Varia História. Belo Horizonte, v. 26, n. 43, Jun. 2010.

Um pequeno volume dedicado a um personagem singular. O “século XIX foi o século de Napoleão”, explica Thierry Lentz, neste livro destinado a conferir maior historicidade à vida deste militar francês, a época napoleônica e as narrativas míticas sobre Bonaparte. Lentz vai além da simples biografia e da história política do século XIX. Ele nos oferece um atualizado guia de iniciação aos estudos napoleônicos. Publicado na França em 2003, o magro volume está organizado com introdução, cronologia, oito capítulos e bibliografia que inclui comentários sobre estudos existentes, livros em francês e outros idiomas, revistas, periódicos e sites na internet. Pouco criativo, o estereótipo da capa conspira contra o conteúdo do livro. Mais um argumento de que é preciso, e melhor, lê-lo.

Lentz ocupou-se em proporcionar esclarecimentos aos leitores para a compreensão da vida e da ação política de Napoleão. Em sua avaliação, estas se tornaram mais complexas devido a inúmeros mitos que pairam sobre Napoleão, suas realizações, sua época e história, e pela instrumentalização que sempre fizeram delas, tanto líderes partidários, quanto escritores, militares e artistas, de pintores a cineastas, na posteridade, desde o exílio, em 1815. O autor sugere percorrer algumas “linhas de reflexão sobre a biografia desse personagem”. Oito capítulos são desfiados em perspectiva cronológica e abordam desde o nascimento biológico, na Córsega do século XVIII, e o do mito Bonaparte, no início do XIX, até a derrocada do imperador dos franceses e do exército de lendas que acossa os historiadores nas universidades. Um Napoleão histórico surgiu apenas na segunda metade do século XX. Escrever a história nos livros parece, assim, mais difícil do que a escrever com as próprias mãos, no tempo e espaço, no mundo dos homens.

Em uma periodização clássica da vida e da trajetória militar e política de Napoleão Bonaparte, os acontecimentos são confrontados com a gestação de relatos fabulosos sobre diferentes lances de sua vida. Estas medições não ocorrem com vistas a um desmascaramento da história. Elas apontam antes para a contextualização e o superfaturamento que o discurso da posteridade fez de aspectos em torno da “formação enciclopédica” de Napoleão, leitor de clássicos gregos e latinos e de filósofos da Ilustração, e da publicação de livros, entre 1789 e 1793 – ensaios filosóficos e políticos, romances e trabalhos técnicos. Um indivíduo que foi legítimo filho do século XVIII, ainda que autor de livros, não adquire automaticamente o estatuto de filósofo das Luzes. Tanto quanto o general político que despontou na campanha da Itália, a partir do chefe militar, do exercício de governo e da diplomacia, do criador de repúblicas, da reforma de instituições, administração de recursos financeiros, e que acalentou o registro simultâneo dessas glórias em jornais, odes e pinturas. A erudição atribuída à expedição ao Egito, em 1798, unindo ciência, política e ação militar não logrou apagar o fracasso na estratégica busca de estrangulamento econômico da Inglaterra e que dera origem a essa campanha malograda.

A unificação das atividades administrativas, sob o grande Consulado, solucionando na prática querelas entre a colaboração e a separação dos poderes de Estado, propiciou a estabilidade política interna na França e, pela primeira vez, em dez anos, a paz externa. As reformas foram tangidas por inúmeras leis e decretos que ordenaram a ação governamental, a organização e a hierarquia administrativa, judiciária, das finanças e da educação. A anistia política e obras para a restauração da atividade econômica reforçariam o poder político pessoal de Napoleão. Em 1804, sem hesitar, foi proclamado Imperador dos franceses. A paz, a ordem e a retomada dos negócios foram fontes de acumulação e de legitimação do poder por Bonaparte. Neste esforço, Napoleão buscou fundir a soberania monárquica e a soberania nacional na figura de Carlos Magno, evocando sua lembrança como unificador do antigo império romano e fundador do novo império franco. Apresentando-se como sucessor daquele, apegou-se aos símbolos políticos do Antigo Regime, como o cetro, a coroa e a espada.

As guerras da França fornecem outra linha de reflexão. Lentz distingue aquelas que foram as guerras da revolução, entre 1792 e 1802, quando os girondinos queriam “levar a liberdade ao mundo”, marcadas pelas disputas ideológicas e militares entre o Antigo Regime e a Revolução. Estas seriam encerradas apenas com o Consulado. Já as guerras da França napoleônica retomaram a secular rivalidade com a Inglaterra, os históricos conflitos diplomáticos na Europa e adicionaram as ambições pessoais de Bonaparte. Entre 1803 e 1815, a guerra foi um instrumento para impor sua política imperial no continente, uma compensação pelo desmantelamento do império colonial. Esta foi uma história de sucessivos decréscimos. Em 1805, houve a destruição da frota francesa e espanhola pelos ingleses, na batalha de Trafalgar. No ano seguinte, teve início o embargo à Grã-Bretanha, visando, novamente, a sufocar o comércio e as finanças britânicas. Este gesto seria incrementado a partir de 1809, quando a revolta popular espanhola colocou fim ao período de vitórias contínuas, desde a Itália até aquela data. Revelou-se, aos olhos do mundo, que Napoleão não era invencível. O último feliz acontecimento político e pessoal veio com o nascimento do herdeiro masculino de Napoleão, em março de 1811. O Grande Exército, montado sobre o sistema de recrutamento, travou as grandes guerras de massas, com longos e contínuos deslocamentos, moral e coragem elevadas. Contudo, ele foi movido pela farta distribuição de aguardente, sempre mal equipado, com os soldos atrasados, dotado de arriscados serviços de saúde, alimentado pela pilhagem das cidades e dos territórios ocupados e a espoliação dos vencidos.

Na França, o Estado napoleônico, piramidal, fundado sobre princípios de autoridade e hierarquia – era o modelo militar – buscava pelo rigor e eficácia obter a centralização governamental, administrativa e social. O poder Executivo forte e concentrado não era, porém, controlável, mesmo com uma administração pouco numerosa. As distancias físicas, as comunicações precárias e limitadas tornavam morosa a transmissão e a execução de ordens governamentais. As administrações locais foram entregues às mãos dos prefeitos, então, ungidos representantes do governo central. Os sucessivos códigos napoleônicos – civil, comercial, criminal, penal, rural – visavam armá-los até os dentes com a força da lei e da justiça do Império. Segundo Lentz, “com sua expansão alcançando até a metade do continente, o Império não poderia ser eficazmente gerido de maneira centralizada”. Dirigir centralmente, governar localmente, foi outra estratégia política do general no comando da França imperial.

Cabe a indagação: como e por que foi vencido? A batalha e a derrota em Waterloo alimentaram a lenda e o desencantamento de Napoleão. Ele seria vencido no apogeu do prestígio e da fama que alcançara, com a expansão geográfica do império, a estabilidade política, a instauração da sua dinastia. Das extremidades da Europa partiram os abalos que fizeram ruir a paz e a ordem napoleônica. Na Espanha e na Rússia o inesperado e surpreendente engajamento popular contra as tropas francesas anunciava que o alvorecer das nações não comportava a ordem militar e diplomática instaurada por Bonaparte. Napoleão foi vitimado pelos seus próprios louros. Ao fecundar a Europa com os trunfos ideológicos e técnicos da revolução francesa, sobretudo, a nação e o recrutamento militar, estes, tão rápida e eficazmente absorvidos em distintas partes daquele continente, foram mobilizados também contra suas tropas invasoras e de ocupação. Em março de 1814, os exércitos coligados ocuparam Paris. Um ano depois, é Bonaparte quem estará na capital da França, reconduzido ao trono. Uma política de “soberania nacional” não agradou a nenhum segmento, recomeçou a guerra. Abdicou, em favor de seu filho, em junho de 1815, mas a saída “Napoleão II” fracassou. Feito prisioneiro dos ingleses, em outubro desembarcou na ilha de Santa Helena, no Atlântico sul. Nela sobreviveu até 1821. Ali seu corpo repousou até 1840, quando foi trasladado para a França e o novo sepultamento foi acompanhado por mais de um milhão de pessoas.

Em Santa Helena, Napoleão começou a reconstruir sua trajetória, carreira e a história do último quarto de século para a posteridade. Na França o consenso anti-napoleônico “quase não tinha raízes populares”. Em pouco tempo surgiu à lenda branca, na pena dos românticos, na geração seguinte à dos protagonistas e que não participara daquele momento, agora, tornado memorável. A “epopéia napoleônica tornou-se assim o pano de fundo da literatura romântica” e dela brotou um “Napoleão do povo”. Este penetrou a sociedade e a glorificação do passado pavimentou o caminho do bonapartismo político, este biombo cênico da dominação burguesa, que marcaria indelevelmente a França e que serviria ainda em muitos outros países europeus ou não. Logo, o personagem e a lenda inspiraram as artes e, já em 1897, o cinema dos irmãos Lumière. Napoleão tornou-se, assim, mais conhecido pelas fantasias da imaginação do que pela pesquisa histórica.

Os distintos legados da época napoleônica ganharam novas expressões no nacionalismo, nas instituições governamentais, nas codificações legais, na relação entre indivíduos e classes sociais em busca de ascensão e supremacia, ao longo do século XIX e mesmo no XX. Este espólio alimenta a diversidade, a instrumentalização e, logo, a necessidade dos estudos napoleônicos também nas universidades. Estes ganharam impulso apenas a partir de meados do século passado. São, portanto, muito recentes e desafiadores.

Este Napoleão de Thierry Lentz contempla os leitores da vida dos “grandes homens” com um texto agradável, fluente e informativo. Apresenta o debate aos iniciantes e alimenta os estudiosos devotados com uma síntese recente e erudita. Milita pelos estudos napoleônicos realizados pelos historiadores profissionais, ou seja, com o exame meticuloso de fontes, conhecimento crítico, novas informações, pesquisas monográficas, comparações, organização e divulgação de documentos e das análises. Unifica a história política ao redor dos atores, contextos e da apropriação social da história, contornando o gênero biográfico ou a microfísica do poder. Alerta, por fim, para o esforço permanente e necessário do estudo e da compilação sistemática do universo napoleônico, sem os quais as sínteses, imprescindíveis, não poderão ser alcançadas com sucesso interpretativo da história.

Paulo Henrique Martinez – Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis Universidade Estadual Paulista Av. Dom Antonio 2100 Assis – São Paulo – Brasil 19.806.900 [email protected].